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The medieval invention of travel – LEGASSIE (Ge)
Shayne Aaron Legassie. https://timetoeatthedogs.com/
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LEGASSIE, Shayne Aaron. The medieval invention of travel. [Chicago]: University of Chigago Press, 2017. Resenha de: SANTOS, Guilherme Maximiano Ferreira; PEREIRA, Luiza Souza; SILVA, Tainara do Carmo Lopes da. Revista Geografias, v.28, n.1, 2020.
The Medieval Invention of Travel é o primeiro livro publicado por Shayne Aaron Legassie que não seja em parceria com outro autor e foi lançado em 2017 pela University of Chicago Press. Legassie é professor associado ao Department of English and Comparative Literature na Universidade da Carolina do Norte (UNC). Seus interesses de pesquisa incidem, predominantemente, sobre literatura medieval, a história da Europa na Idade Média, os estudos mediterrâneos e os escritos de viagem. Tal trajetória lhe garante um forte poder comparativo dos diferentes textos literários escritos sobre viagens durante o período entre 1200 e 1500.
O livro se desenrola nesses três séculos de intensa mobilidade humana, cujos deslocamentos cosmopolitas medievais, entre a Europa, a Ásia e a África, cruzam os espaços dessa economia-mundo nascente (BRAUDEL, 1987). A partir do período selecionado, poder-se falar de uma “invenção” (p.8-9) medieval da viagem como etapa provedora de uma literatura idealizadora da subjetividade do viajante a partir do penoso trabalho físico que ele empreende nessas peregrinações.
As viagens medievais desempenharam um papel fundamental nas práticas letradas europeias e na compreensão dessas como elevadoras de status social, pelo trabalho (travail) – viagem (travel). 1 Além disso, originou novos métodos de escrita de romances baseados na investigação geo-etnográfica. É por esses motivos que o título escolhido para o livro busca atribuir um novo sentido ao significado de viagem, com a escolha da palavra “invenção” e mostrando o papel da literatura na formação e racionalização dos novos modos de viagens e subjetividades emergentes.
No decorrer da escrita, o autor aborda as diferentes intenções das viagens medievais, que se caracterizam por motivos religiosos, por razões de relações comerciais e por encontros diplomáticos. Ele também apresenta os escritores de viagens do período, que moldaram os aspectos e os valores inseridos nos relatos das viagens europeias. Por fim, discute as diferentes formas de escrita da viagem utilizadas no gênero de literatura de viagens.
Em sua metodologia, o autor se apoia na literatura comparada, tratando de realizar um esforço de estilo ensaístico a respeito das diferentes obras dos viajantes. No recorte de tempo determinado por Legassie, ocorreram inúmeros processos históricos que dão contornos ao contexto: as cruzadas na Idade Média, as tentativas de expansão dos impérios medievais dominantes, os conflitos religiosos, as peregrinações e o próprio surgimento do capitalismo. Estes processos contribuíram para uma divisão do espaço e do tempo que permite construir uma evolução e diversos estágios da viagem sem que se possa dizer que um estilo supere o outro. No primeiro período da era medieval, há uma primeira aproximação do significado de viagem como sinônimo de dor e sofrimento; no segundo momento, há a construção de um olhar sobre a viagem que a enxerga como oportunidade de ser relatada e vista, como algo a ser enaltecido; por fim, em um terceiro momento, vê-se a possibilidade de transmitir informações entre o lugar de origem do viajante e o resto do mundo.
A partir desse contexto geral, Legassie vai se aprofundar nas relações específicas que estão presentes no decorrer do livro por meio dos diferentes lugares visitados. Ele organiza a estrutura do livro em três partes: viagens ao leste da Ásia (parte I – “Subjectivity, Authority, and the Exotic”), viagens à Terra Santa (parte II – “Pilgrimage as literate work”) e àquelas que estão no caminho entre Europa e Mediterrâneo (parte III – “Discovering the proximate”). Em sua narrativa, ele traz relatos de peregrinos e viajantes diplomáticos da Idade Média, sendo alguns deles Marco Polo, Felix Fabri e Francisco Petrarca2.
A primeira parte, denominada de “Subjectivity, Authority, and the Exotic”, aborda as viagens que partem da Europa ao Leste da Ásia. Legassie debate questões geoetnográficas nas experiências dos viajantes, bem como a forma que essas experiências influenciaram na produção de escritos sobre viagens, como as descrições de Marco Polo sobre Ásia e o Império Mongol. Além disso, fala sobre o papel adquirido pela autoridade clerical e pelos escritores dessas viagens como sumos sacerdotes, que, em alguns casos, após realizarem suas viagens, voltavam como “especialistas de longa distância” (p.22) devido ao conhecimento adquirido nos destinos. Grande parte das viagens na Idade Média eram motivadas por necessidades que se relacionavam às intenções religiosas pela libertação dos pecados ou, como é reconhecido na contemporaneidade, por turismo religioso.
Diferentemente da atualidade, porém, a viagem na era medieval era árdua e penosa, com extenso caminho a percorrer e que colocava em risco a própria vida do viajante. Por isso, não era vista como um momento de lazer. Eram viagens tratadas como um trabalho, ou seja, uma negação ao ócio.
No capítulo 1, intitulado “Exoticism as the appropriation of travail”, o autor aborda os relatos de William of Rubruck (1215 – 1295) e Marco Polo (1254 – 1324). O primeiro era um monge franciscano, missionário e responsável por escritos de viagens à Ásia. O segundo era um mercador e viajante italiano que deixou registros sobre sua viagem à China e às outras regiões da Ásia. Legassie demonstra que as experiências contidas nessas obras reforçam uma posição ideológica em relação ao exotismo, que ele define como “um modo de esteticismo politicamente orientado, que na Idade Média foi fundado na apropriação simbólica do trabalho do viajante.”3 (p.13). Além disso, seus estilos revelam uma “economia de prestígio do conhecimento da longa distância” (p.22) pois é relativa ao conhecimento dos lugares distantes como expressão de um maior status ao viajante. Com efeito, essa forma de economia refere-se a um conjunto de práticas materiais e experiências subjetivas que permitiram às pessoas obter vantagens sociais, políticas e econômicas através da sua relação com o estrangeiro. Mesmo que outras abordagens compreendam que esta emergente economia de prestígio esteja posta como uma repetição excessiva (KYNAN-WILSON, 2019), se o autor o faz, é para situar ou qualificar a economia de bens simbólicos do período abordado.
No capítulo 2, nomeado por “Travail and authority in the forgotten age of discovery”, são analisados os escritos de John of Plano Carpini (1180 – 1252), um franciscano e explorador italiano; Odoric of Pordenone (1286 – 1331), um frade franciscano e missionário italiano; e John Mandeville (século XIV), suposto4 autor de uma coleção de histórias de viajantes. Esses escritos recorrem às dificuldades da viagem para reforçar a credibilidade autoral sobre os textos, ou seja, o peso probatório da verdade de seus escritos e de testemunho oficial da Igreja. A leitura desses escritos por outras pessoas está sujeita ao poder persuasivo da veracidade dos relatos através da personalidade impregnada e transmitida pelo autor através do texto. Paralelamente, o autor faz uma refutação da ideia de que o período medieval tem seus contornos fixos e ditados somente por autores da antiguidade, como Aristóteles, Cícero e Agostinho. Ao contrário, o autor aponta as contribuições da Idade Média aos avanços do conhecimento territorial, sendo esse um aspecto importante que deve ser ressaltado pela historiografia e que pode retirar o período do esquecimento.
De modo geral, a segunda parte do livro de Legassie intitulada “Pilgrimage as literate work” aborda o caminho percorrido pelo teólogo e padre Felix Fabri5 (1441 – 1502), que entende a peregrinação como um exercício de memória. Esse trabalho tratou-se de um exercício da memória pois, no ato do deslocamento da viagem, os viajantes que seguiram o modelo de Fabri utilizavam-se de ferramentas6 para fins de registros, que permitiam aos demais peregrinos lembrar posteriormente de suas viagens, tendo em vista que alguns viajantes que não exercitavam isso estavam sujeitos a desaprender o que a viagem os ensinou.
A peregrinação a Jerusalém era uma forma dos devotos provarem sua fé através do deslocamento. Entretanto, não bastava exercer o ato de deslocar-se para a Terra Santa, era preciso aguçar a mente com exercícios de memória e a utilização de técnicas para o registro do que os viajantes viram e sentiram. Com isso, no capítulo 3, “Memory of work and the labor of writing”, e no capitulo 4, “The Pilgrim as a investigator”, encontramos os relatos desses processos ocorridos na peregrinação. O terceiro capítulo abrange uma discussão sobre a tradição sintética, que se baseava, na época, em produzir um escrito sintético sobre as viagens realizadas, havendo a possibilidade de não deslocar-se para vivenciar a viagem, tratando-se de uma espécie de viagem em imaginação (alguns indivíduos tinham repulsa por vivenciar todos os males do deslocamento). Os escritores da tradição sintética foram responsáveis pela produção e pela formação pictórica dos locais por onde passavam os viajantes em campo. Dessa forma, seus escritos eram admirados na terra natal.
Com isso, os peregrinos, a partir da virada do século XIII, iniciam uma escrita descritiva das memórias para fins de leitura meditativa. Já no capítulo seguinte, o autor mostra como essas produções tornavam-se escritas reformuladas, uma visão crítica e um instrumento de investigação.
A terceira parte, intitulada “Discovering the proximate”, reúne os autores encarregados em viagens pela Europa e pelo Mediterrâneo, destacando-se o poeta italiano Francisco Petrarca (1304-1374) e o cavaleiro de Castela Pero Tafur (ca. 1410-ca. 1487).
Nessa sequência, ganham forma mais contundente os argumentos apresentados no prefácio do livro nos capítulos 5 e 6, questionando a posição de Joan-Pau Rubiés que sustentou a hipótese, em obra anterior7, quanto à uma relativa estagnação dos escritos de viagem no período contido entre 1350 e 1492. Ao contrário, Legassie assegura que, após 1350, surgem muitos novos relatos que são frutos de viagens de curta distância. Assim, antecedem as posteriores conquistas do “Novo Mundo” (p.167), e, ao contrário de serem desprovidas de importância, exerceram grande influência na vida intelectual e cultural para a emergência do mundo moderno europeu em formação.
Ainda nessa parte do livro, Legassie pontua as precisas descrições de Petrarca e Tafur em que eles elevam ao público europeu a condição de seus países de origem. Os largos projetos autobibliográficos e protonacionalistas dos viajantes estreitam a aproximação de territórios europeus a partir das missões políticas empreendidas por eles. Para o autor, os questionamentos levantados por Petrarca acerca dos benefícios e das dificuldades da viagem assemelhavam-se à tradição sintética. A viagem, no caso do poeta italiano, correspondia a um trabalho de construção pessoal identitária e ética8 e a um comprometimento com a descoberta geo-etnográfica. Igualmente, o sentido da viagem para Tafur era visto como uma vantagem política que ele possuía por conhecer os costumes de reinos distantes. Para Legassie, a postura desses autores foi compreensivelmente comparada aos valores inerentes ao Grand Tour9.
Os relatos recolhidos pelo autor, permitem demonstrar a visão europeia de mundo e os mecanismos pelos quais a Europa começa a compor e apropriar-se intelectualmente de um novo mundo que nascia das entranhas do feudalismo e da Idade Média através das viagens, com a ascensão de uma nova ordem econômica – o capitalismo.
Vale lembrar que Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein juntos situam o nascimento do capitalismo no século XIV (BRAUDEL, 1987; WALLERSTEIN, 1979).
Ainda que este seja um processo que se desenrola em seus primórdios, é também por meio da escrita que começa a se estabelecer uma relação de mercado entre as nações e entre os diversos impérios dominantes, revelando o que possivelmente seriam os bastidores dos longos deslocamentos feitos em períodos posteriores e que passaram a incluir o Atlântico (BRAUDEL, 1987). O autor é consistente em afirmar, a partir dos relatos dos viajantes, que a dor e o trabalho árduo dessas práticas estavam relacionados a processos mais amplos e, além disso, elucida as diversas outras significações que essas viagens encarnavam, como heroísmo, superação do trabalho físico ou autodisciplina intelectual.
Ainda assim, apesar de reforçar que esse período contribuiu para formação da identidade do período pós-medieval, não nos revela com clareza os pontos impactados na posterioridade. Em algumas passagens, o autor deixa a desejar no que toca à alusão a alguns acontecimentos históricos que seriam fundamentais para melhor compreensão do leitor.
Porém, pelos seus amplos benefícios percebidos em sua abordagem, a leitura da obra do estadunidense não deve restringir-se aos especialistas da literatura e da história medieval, mas também é interessante para as áreas da Geografia e, sobretudo, para o Turismo, possibilitando o estudo da evolução e das práticas denominadas de viagem.
Agradecimentos À Pró-reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais pela oportunidade de realizar este trabalho através do Programa de Iniciação Científica Voluntária.
Referências BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. 94 p.
TOWNER, John. The Grand Tour: a key phase in the history of tourism. Annals Of Tourism Research, London, v. 12, n. 3, p.297-333, abr. 1985.
WALLERSTEIN, Immanuel. El Moderno Sistema Mundial I: la agricultura capitalista y los orígenes de la economía-mundo europea en el siglo XVI. Siglo Veintiuno Editores, México, 1979.
KYAN-WILSON, William. Book Review: The Medieval Invention of Travel. TRAFO – Blog for Transregional Research, 14 fev. 2019. Disponível em: <https://trafo.hypotheses.org/17922>. Acesso em: 16 jul. 2020.
Notas 1 Legassie aponta que a viagem era vista como um trabalho árduo “travail” (p. 2). A palavra similar em latim é expressada como uma conotação relativa ao trabalho. O autor faz um trocadilho com a palavra “travail” e “travel” (p.2) devido às suas semelhanças ortográficas.
2 Em geral, as partes possuem proximidade em suas grandezas; a parte I contém 76 páginas, a parte II contém 70 páginas e a parte III contém 62 páginas.
3 Tradução dos autores. Original: “a politically oriented mode of aestheticism that — in the Middle Ages — was founded on the symbolic appropriation of the traveler’s travail.” (p. 13).
4 No prefácio de seu escrito As Viagens de Sir John Mandeville se intitulou cavaleiro e assumiu este nome, mas há uma incerteza sobre a sua verdadeira identidade devido à falta de registros comprobatórios.
5 Após umas das suas duas viagens sobre as regiões da Europa, Fabri ficou particularmente preocupado com “sua incapacidade de responder perguntas básicas sobre a disposição e as orientações relativas dos lugares que ele havia visitado” (p. 167, tradução nossa).
6 Legassie afirma que era utilizada Tábuas de Cera para o registro. As folhas de pergaminho chegam posteriormente com o intenso comércio desse produto na Itália.
7 RUBIÉS, Joan-Pau. Travel and ethnology in the Renaissance: South India through European eyes, 1250- 1625. Cambridge University Press, 2002.
8 “Petrarca coloca em primeiro plano a questão ética do tempo e do trabalho envolvidos na descoberta geográfica.” (p.178, tradução nossa). Para Petrarca e Tafur, as viagens perigosas e de longa distância devem ser deixadas para os que não as fazem por valores morais, como por exemplo, os comerciantes e armadores que as empreendem em busca duvidosa de novidade e lucro.
9 Jornada empreendida no século XVIII, “(…) that circuit of western Europe undertaken by a wealthy social elite for culture, education, and pleasure” (TOWNER, 1985, p.289).
Guilherme Maximiano Ferreira Santos – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail: guilhermemax@icloud.com.
Luiza Souza Pereira – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail: luizasouper@ufmg.br.
Tainara do Carmo Lopes da Silva – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail: tainarac@ufmg.br.
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Dengue no Brasil: abordagem geográfica na escala nacional – CATÃO (Ge)
CATÃO, Rafael de Castro. Dengue no Brasil: abordagem geográfica na escala nacional. [Sn.]: Cultura Acadêmica; Editora da UNESP’, 2012. Resenha de: MAGALHÃES, Suellen Silva Araújo; MACHADO, Carla Jorge. Em busca de um elo entre geografia e saúde. Geografias, Belo Horizonte, 01 de Julho – 31 de Dezembro de 2013.
Lançado em 2012, o livro ‘Dengue no Brasil: abordagem geográfica na escala nacional’, editado pela Cultura Acadêmica/Editora UNESP, é uma publicação oportuna e bem vinda. O autor, Rafael de Castro Catão, é geógrafo graduado pela Universidade de Brasília em 2007 e mestre pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho em 2011. Sua experiência, entre outras, é nas áreas, de geografia da saúde e cartografia, o que lhe permite habilmente entremear esses conhecimentos na produção de um panorama e de um arcabouço teórico conceitual, marcado pelo pensamento geográfico, para o estudo da Dengue no Brasil.
O livro consta de três capítulos, antecedidos pelo Prefácio e pela Introdução; e sucedidos pelas Considerações Finais e Recomendações e pelas Referências Bibliográficas. O Prefácio, escrito pelo professor Raul Borges Guimarães da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, estabelece a premência de obras como a de Catão ante a crise do modelo hegemônico da epidemiologia clínica, a reemergência de uma gama de doenças infecciosas e o aumento da pós-graduação em geografia, a qual permitiu captar demandas sociais, entre as quais àquelas por melhores condições de saúde. Assim, abre o caminho para que o leitor se sinta desejoso de conhecer como o aporte da geografia pode contribuir para elucidar a temática de uma doença transmissível.
Na Introdução o autor relata mudanças socioespaciais ocorridas após a Segunda Guerra Mundial, que desencadearam um novo padrão de epidemias, quais sejam: mais frequentes e mais abrangentes.
Rafael Catão parte de Milton Santos e de sua teoria espacial para analisar mudanças socioespaciais da dengue, na tentativa – bem sucedida – de relacionar o padrão da doença, sua emergência e expansão mundial, além do surgimento e a intensificação de casos mais graves à mudança do período e a produção desse novo meio geográfico. Enfoca, ainda, o caso do Brasil, onde houve erradicação, mas posterior reinfestação e, deste modo, estabelece a questão chave do livro: se a consolidação e expansão do meio técnico-científico-informacional – um dos mais conhecidos conceitos na geografia no Brasil (MAIA, 2012) – e a ampliação dos processos de urbanização, aliados a expansão mundial da doença, forneceram as condições socioespaciais que fizeram a dengue emergir nos dias atuais como um dos principais problemas de saúde pública do país. É também na Introdução que o autor explica o impacto do sistema de técnicas aplicado à natureza e causador de mudanças à saúde utilizando, entre outros, o exemplo do uso de vacinas no auxilio da imunização. Comenta ainda sobre a expansão das fronteiras agrícolas e econômicas que permitiu e permite a expansão dos meios de transporte e das telecomunicações interligando lugares e pessoas com maior circulação da informação. O autor conclui, então, que a atual configuração no espaço geográfico da doença depende das relações interdependentes estabelecidas entre o homem (social e biológico, individual e coletivo, imune e suscetível) com os vetores (gênero Aedes), o vírus (sorotipos e genótipos) e o meio técnico-cientifíco-informacional, inovando acerca da tradicional tríade epidemiológica meio ambiente, agente, hospedeiro.
O Capítulo 1 ‘Dengue: Emergência e Reemergência’ perpassa pela etiologia da dengue em seus quatro sorotipos, pelas teorias acerca da origem geográfica dos vírus e de seus sorotipos e pelos principais vetores. Os ciclos de transmissão também são abordados dado que seu conhecimento é fundamental para que sejam tomadas medidas de saúde pública e de vigilância de saúde em escala global: o autor ressalta o ciclo urbano endêmico/epidêmico. Finalmente, o autor aborda a difusão mundial da dengue.
O Capítulo 2 ‘Difusão do dengue no Brasil’ trata, entre outros aspectos, do retorno do Aedes aegypti e da dengue ao território nacional: em 1976 o país foi reinfestado, permanecendo desta forma ainda hoje. Nesse capítulo está um belo e oportuno detalhamento cartográfico da reemergência da dengue no Brasil, o que permite ao autor estabelecer uma análise do conjunto do País, onde, após a dispersão geográfica do vetor, as interações espaciais existentes em áreas com circulação viral permitiram e mantiveram até hoje a entrada de novos sorotipos em áreas indenes e infestadas. O papel da cidade reside nesse contexto, ao concentrarem indivíduos e bens, com fluxo intenso e veloz, que difunde e mantém o vírus.
‘Uso do território e o dengue no Brasil’ é o Capítulo 3, que trata dos fatores determinantes da transmissão dos vírus da dengue e do papel do Estado na contenção de epidemias. Rafael Catão faz um relato elegante sobre as formas de abordagem desses fatores determinantes da dengue na literatura brasileira, bem como sobre as fontes de dados. O mapeamento dos determinantes em escala nacional e uma síntese da situação recente da dengue no território também são realizados. Ao final do capítulo, o autor faz uma proposta de tipologia da dengue para a primeira década do século XXI no Brasil: os locais com baixa notificação dos casos de dengue normalmente apresentam uma média de temperatura anual mais baixa, baixa densidade de povoamento, baixo índice pluviométrico, políticas públicas mais eficientes, população mais consciente e poucas rodovias de fluxo intenso que ligam várias cidades. Após o capítulo, seguem as Considerações Finais e Recomendações, nas quais o autor deixa claro que, para compreender em plenitude o fenômeno da epidemia da dengue, perguntas tais como: ‘qual o contexto do dengue em sua área de influência?’ ou ‘como foi o processo de consolidação do dengue nessa localidade?’ necessitam ser feitas e suas respostas procuradas.
Além disso, o autor faz uma comparação crítica da atuação das técnicas de cartografia de síntese e das técnicas de geoprocessamento.
Ao final do livro, fica em evidência a constatação de BARCELLOS (2000): epidemiologia e geografia têm em comum crises ocorridas pelo esgotamento de modelos teóricos ou crises advindas da superação desses modelos em razão de novas realidades. Uma das novas realidades é a reemergência de doenças transmissíveis no Brasil e no Mundo – como a dengue. A obra de Rafael de Castro Catão incorpora o espaço explicitamente na análise da dengue, tornando o elo entre a geografia e a saúde visível e utilizável a pesquisadores das mais variadas áreas do conhecimento.
Referências
BARCELLOS, Christovam. Elos entre geografia e epidemiologia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.16, n.3, Setembro 2000. Disponível em: http:// www.scielo.br/scielo. php?pid=S0102- 311X2000000300004 &script=sci_arttext
CATÃO, Rafael de Castro. Dengue no Brasil – Abordagem geográfica na escala nacional. São Paulo: Cultura Acadêmica/Editora UNESP, 2012.
MAIA, Lucas. O conceito de meio técnico-científicoinformacional em Milton Santos e a não visão da luta de classes. Ateliê Geográfico Goiânia- GO v. 6, n. 4 Dez/2012 p.175-196 Disponível em: http://www.revistas. ufg.br/index.php/atelie/article/view/15642
Suellen Silva Araújo Magalhães – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.
Carla Jorge Machado – Departamento de Medicina Preventiva e Social.
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Biodiversidade e renovação da vida: em questão – BARROS (Ge)
BARROS, Henrique Lins de. Biodiversidade e renovação da vida: em questão. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. 94p. Resenha de: NEVES, Ana Carolina de Oliveira; MACHADO, Carla Jorge. Sempre haverá renovação? Geografias, Belo Horizonte, v.8, n.1, p.103-106, jan./jun., 2012.
Lançado em 2011, o livro ‘Biodiversidade e renovação da vida: em questão’, editado pela Claro Enigma em parceria com a Editora Fiocruz, é o primeiro volume da nova coleção de ciências da Fiocruz. O autor da obra, Henrique Lins de Barros, possui doutorado em Física e se dedica aos estudos na área de biofísica, história da ciência e museologia.
Na Introdução, o autor tece um panorama geral do que é a ideia de biodiversidade e de como ela surgiu. Da ideia de biodiversidade, passa às noções de diversidade cultural e argumenta que os europeus, colonizadores do Novo Mundo, não souberam se aproximar de outras culturas, pois não haviam aprendido outra relação com o mundo natural que não fosse de exploração para consecução de seus próprios anseios. Nesse eixo temático, dando conta das dificuldades que o colonizador europeu tinha em relação às culturas diversas da sua, o autor desenvolve cada um dos oito capítulos do livro.
O primeiro capítulo “Biodiversidade e Diversidade Cultural: eis a questão”, trata das diferenças que são extremamente necessárias não apenas da perspectiva biológica, mas também no tocantes às relações entre as pessoas. Sem a aceitação de um pelo outro, ou sem a tolerância, não é possível conviver com o diferente. À essa luz, do autor explica que o sentimento do colonizador europeu era de permanente estranhamento em relação à cultura do colonizado. Assim, a devastação ambiental foi simplesmente uma transposição das relações socioespaciais vigentes na Europa de então: se cultura e hábitos dos colonizados não eram compreendidos e, portanto, não eram aceitos, a exploração do ambiente consistiu em desdobramento natural dessa concepção pouco tolerante; concepção essa que fundamentou o extermínio do que não se adequava às pretensões dos europeus.
No segundo capítulo “Espanto, Fascínio e Horror”, o autor discorre sobre a estranheza de portugueses e espanhóis diante das várias culturas – a dos indígenas brasileiros, a incaica, a asteca e a maia. Ao passo que os europeus se pensavam como indivíduos, os colonizados das Américas se pensavam como grupo, acentua ainda o autor nesse capítulo.
“Conhecer para Dominar” é o título do terceiro capítulo que lida com duas questões: a classificação taxonômica das espécies e a compreensão progressiva de que a Terra era mais velha do que supunham os católicos.
Esse capítulo é o mais difícil porque nele há muitas informações distintas, embora unidas por um elo histórico temporal que trata dos avanços dos séculos XVIII e XIX: avanços conducentes ao entendimento de que o que havia na Terra poderia ter desaparecido. Assim, Henrique Lins de Barros inicia o capítulo mencionando que a diversidade encontrada de formas de vida levou o europeu à necessidade de organizar, num sistema de classificação e nomenclatura universal, os seres vivos, de tal forma que fosse possível comparar diferentes observações feitas por diferentes pessoas. O autor descreve, então, o trabalho de Carlos Lineu – o Sistema de Nomenclatura Binomial, que é uma das bases da taxonomia moderna e da biologia – retomando a questão central do livro: a diversidade das espécies em ameaça pelo próprio homem. Os trabalhos do paleontologista Cuvier, que utilizou o sistema de Lineu, mostraram a existência de extinções.
Erasmus Darwin, Lamarck, Smith e Hutton são outros naturalistas que indicaram em seus estudos “que o tempo de existência do planeta é maior do que algumas dezenas de séculos”.
Explicitando a importância crucial dos trabalhos de Darwin e Wallace quanto aos rumos da biologia, o capítulo quarto, “A Evolução por Seleção Natural”, pode ser considerado o eixo central do livro. Wallace e Darwin elaboraram os mecanismos da evolução decorrente da seleção natural em dois pontos cruciais. O número de espécies tende a aumentar e nenhum organismo sobrevive sem interagir com o meio externo são assertivas que substanciam o primeiro ponto. O segundo se refere à noção do tempo, considerada muito longa para que uma nova espécie pudesse surgir na Terra, se comparada à idéia de Deus criava novas espécies num ‘piscar de olhos’. Esses aspectos são importantíssimos, pois trazem a noção de ‘alerta’, que em nossa releitura assumiria a seguinte forma: as espécies precisam do ambiente e, se não puderem ‘contar’ com esse ambiente, podem desaparecer e, com isso, outras espécies podem levar muito tempo (da ordem de milhares a milhões de anos em algumas situações) para surgir.
No capítulo cinco, “A Idade da Terra”, as teorias sobre a idade da Terra são discutidas, e os fundamentos do surgimento da vida na Terra, descritos. A deriva continental e o surgimento de entidades capazes de se replicarem deram origem às informações necessárias para que houvesse vida: os ácidos nucléicos. A discussão do autor leva ao entendimento do ‘que é a vida’: “ela se perpetua, mas não se repete”.
Ainda nesse capítulo, Henrique Lins de Barros pontua o aparecimento de uma nova classe de organismos capazes de realizar fotossíntese, que possibilitou, por sua vez, o surgimento de outros seres.
A história da Terra em seus períodos geológicos, do Pré-Cambriano ao Cretáceo, foi submetida à análise no capítulo seis: “A Vida na Terra”. Os acontecimentos desse período são descritos com ênfase nas grandes extinções dos animais, plantas e fitoplâncton. Segundo o autor, poder-se-ia dizer que “se houvesse inferno, ele estaria se realizando ali“, há 65 milhões de anos, ou seja, no próprio planeta Terra.
“Destruição e Renovação” é o título do sétimo capítulo. Se o capítulo anterior descreve com detalhes a destruição de animais, plantas e fitoplâncton, o capítulo sete surge como um ‘alento’, indicando a crescente diversidade biológica que surgia há 150 milhões de anos desde o aparecimento dos dinossauros até sua extinção. Conforme sugestão do autor, sem a presença dos dinossauros, outros seres conseguiram sobreviver, surgiram os primeiros primatas, com destaque para o Homo sapiens cuja capacidade de adaptação é imensa. Por meio do exemplo elucidativo da ilha de Cracatoa, o autor conclui: “a chave para tamanha capacidade de renovação está na enorme diversidade de formas vivas”.
Henrique Lins de Barros afirma, no capítulo oito, “O Homem na Natureza”, que o aumento da temperatura do planeta, tema comum ao homem moderno, fará com que várias espécies desapareçam; extinção essa produzida pelo próprio homem. O pensar nas gerações futuras impõe ao autor a necessidade de repensar o conceito de indivíduo; assim, a noção de grupo é explicitamente retomada. Se as mudanças são lentas, tudo o que o homem consumista e imediatista teria de fazer hoje seria mudar sua relação com a natureza. Mas não há promessas de curto prazo: os benefícios só seriam sentidos em “uma extensão temporal bem mais larga”. Nesse sentido, o autor termina o livro de forma instigante, fecha um ciclo, ao fazer o leitor retornar ao segundo capítulo e pensar a origem da relação deturpada que temos com a natureza. Enfim, o autor nos traz uma história real, cujo desfecho não será satisfatório, se a forma de compreender o ambiente não for alterada.
Ana Carolina de Oliveira Neves – Doutora em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre – ICB/UFMG. E-mail: ananeves@biotropicos.org.br.
Carla Jorge Machado – Professora Adjunta do Departamento de Medicina Preventiva e Social da UFMG. E-mail: carlajm@ufmg.br.
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Quaternário do Brasil – SOUZA et al (Ge)
SOUZA, C. R. G. et al. (Ed.). Quaternário do Brasil. Ribeirão Preto: Holos, 2005. 378p. Resenha de: VALADÃO, Roberto Célio. Geografias, Belo Horizonte, v.2, n.2, p.123-126, jul./dez., 2006.
A segunda metade do século XX assistiu ao recrudescimento de esforços da ciência na sistematização de seus saberes com vistas à sua aplicação na prevenção e mitigação de problemas de ordem ambiental. As décadas de 198 0 e 199 0 foram especialmente profícuas nesse contexto, inclusive no Brasil. Os diversos ramos da ciência despertaram, de forma consciente, para as crises ambientais em suas mais diversas perspectivas escalares e temporais. Esse despertar revelou-se, de início, por meio do engajamento e do compromisso social de diferentes saberes científicos ainda hermeticamente fechados em si mesmos para, mais tarde – particularmente ao final dos anos de 199 0 –, dar-se conta da urgência na adoção de procedimentos metodológicos e na aquisição de conhecimentos advindos de outros campos do saber. As abordagens inter- e transdisciplinares, até então meramente filosóficas, ganharam terreno na prática de uma multiplicidade de especialistas, que passaram a se unir em torno de interesses comuns de forte demanda social.
Iniciava-se a materialização da sonhada integração de saberes e abordagens, em grande parte até então suprimida mediante especialização extrema, embora necessária, da ciência.
A obra intitulada Quaternário do Brasil, publicada sob os auspícios da Associação Brasileira de Estudos do Quaternário (ABEQUA), tem por mérito a iniciativa de congregar grande número de especialidades em torno de objeto comum: nossa própria casa, a Terra. As obras até então publicadas no país a respeito do Quaternário vinculam-se, em sua maioria, com abordagens e bases referenciais teóricas oriundas de leque bastante reduzido de disciplinas. Na obra em perspectiva, somam-se esforços não só de geocientistas – geólogos e geógrafos – como também de biólogos, engenheiros, agrônomos, antropólogos e oceanógrafos, dentre outros. Esses esforços resultaram na publicação de obra até então inédita no país, ao congregar reflexões e sínteses resultantes da intensa atividade dos principais e mais consolidados grupos de pesquisa quaternarista nacionais.
As temáticas abordadas na obra são apresentadas em 17 capítulos, cuja autoria é bastante diversificada e, mais ainda, plural no que se refere à especialidade de seus autores. O Capítulo 1 – a Introdução – apresenta as generalidades do arcabouço geológico no qual o território brasileiro está inserido: o continente sul-americano.
É de interesse desse capítulo apresentar as grandes linhas estruturais e as megaunidades morfológicas a elas associadas, com destaque para os depósitos e as formas do Quaternário. O Capítulo 2 apresenta elementos para discussão da variabilidade e das mudanças climáticas ocorridas durante o Quaternário no Brasil. Para tanto, enfatiza o papel da dinâmica atmosférica no contexto das mudanças climáticas, com recorte espacial que permite, inclusive, a discussão sobre aspectos dinâmicos do clima e seus impactos regionais no território brasileiro. Trata, em abordagem final, da simulação matemática do clima aplicada sob a perspectiva não só da espacialidade mas, sobretudo, da temporalidade.
Uma vez lançadas as bases para a compreensão da dinâmica climática e paleoclimática verificada no país – Capítulo 2 –, o Capítulo 3 aborda a paleovegetação e os paleoclimas do Quaternário do Brasil.
Seus autores discorrem a respeito dos resultados procedentes do desenvolvimento e da aplicação de técnicas palinológicas em materiais obtidos em registros sedimentares, bem como sobre seu significado e sua contribuição na compreensão do complexo padrão de alterações das diferentes formações vegetais brasileiras decorrentes das mudanças climáticas globais e do antropismo desencadeado no Quaternário Tardio. A reconstrução de paleoambientes quaternários no Brasil tem sua continuidade de análise no Capítulo 4, a partir de indicadores decorrentes da aplicação de estudos dos isótopos de carbono e de seu emprego simultâneo com a antracologia e a palinologia de sedimentos lacustres.
A geologia e a geomorfologia das regiões costeiras no Brasil são objeto de discussão nos capítulos 5, 6, 7, 8 e 9. No Capítulo 5 é apresentada síntese histórica e evolutiva dos conhecimentos a respeito das regiões costeiras de alguns estados brasileiros e dos fatores que condicionaram a sua evolução, ligados, de um lado, à geodinâmica global – tectônica de placas, clima e variações do nível do mar – e, de outro, à dinâmica costeira – ação de ondas, marés, correntes litorâneas e tempestades. A par dessa síntese os autores desse capítulo procuram demonstrar que as planícies costeiras, no Brasil, têm se comportado, nos últimos séculos, como costas de recuo afetadas por processos de submersão e/ou erosão.
O Capítulo 6, de modo complementar às abordagens introduzidas no capítulo anterior, trata dos paleoníveis do mar e das paleolinhas de costa verificadas na região costeira do Brasil. As reconstruções paleogeográficas apresentadas nesse capítulo são balizadas por numerosas datações de radiocarbono. A erosão costeira atual, particularmente aquela verificada em praias arenosas, é objeto de análise do Capítulo 7, no qual os autores buscam caracterizar o sistema praial, bem como reconhecer seus processos costeiros modeladores e sua morfodinâmica. Apresentam, ainda, síntese acerca dos indicadores de erosão costeira, contemplando suas causas e seus efeitos e os processos a ela associados, para, em seguida, discorrerem a respeito de métodos de proteção, contenção e recuperação de praias. O Capítulo 8, que encerra as discussões mais pormenorizadas das regiões costeiras brasileiras, aborda a oceanografia geológica e geofísica da Plataforma Continental Brasileira. Essa megafeição da margem continental é analisada com ênfase nos seus processos dinâmicos, no transporte sedimentar, no relevo e na composição do fundo marinho atual. Os principais métodos geológicos, geofísicos e oceanográficos utilizados na investigação da plataforma continental são apresentados e discutidos.
A microfauna recente das regiões costeiras é foco de análise do Capítulo 9, o qual traz significativa exposição e síntese dos resultados das principais contribuições sobre foraminíferos, tecamebas e ostracodes encontrados no Brasil – seus padrões de distribuição em diferentes ecossistemas e províncias biogeográficas e suas principais espécies bioindicadoras.
Os demais capítulos da obra – capítulos 10 a 17 – tratam de feições e fenômenos de interesse dos estudos do Quaternário que têm lugar, sobretudo, no interior continental do país. A neotectônica da Plataforma Brasileira é objeto de análise no Capítulo 10, no qual os autores abordam, de início, aspectos conceituais de relevante interesse para a temática – neotectônica, sismotectônica e morfotectônica –, como subsídio às discussões acerca da mobilidade litosférica recente verificada nas regiões Nordeste, Sudeste, Sul, Norte e Centro-Oeste do país.
A neotectônica da região costeira é também tratada, com destaque para a importância dos processos de sedimentação do Grupo Barreiras. O capítulo é finalizado com discussão acerca dos campos de tensões neotectônicos e do mapa da neotectônica do Brasil.
Aos campos de dunas livres e dunas vegetadas que ocorrem no Brasil é dedicado o Capítulo 11. Seus autores apresentam detalhada caracterização dos depósitos eólicos ativos brasileiros, sua classificação, distribuição espacial e, mais ainda, seu significado frente à evolução quaternária de algumas áreas litorâneas e interiores. A análise dos processos, produtos e agentes morfogenéticos continentais tem continuidade no Capítulo 12, o qual, referindo-se ao interior continental, enfatiza a relação entre as formas da paisagem e os depósitos quaternários, particularmente por meio do emprego de abordagens morfo- e aloestratigráficas que subsidiam a compreensão da evolução de encostas e vertentes. Técnicas e métodos empregados pela cartografia são discutidos como instrumentos da gestão ambiental, notadamente naqueles recortes espaciais em que os processos e os produtos morfogenéticos têm papel fundamental. A geologia, a geomorfologia e a paleo-hidrologia de grandes sistemas fluviais brasileiros são apresentadas e discutidas no Capítulo 13, cujo foco recai essencialmente sobre a evolução quaternária das mais importantes bacias hidrográficas brasileiras – Amazonas, Paraná, Paraguai, Tocantins-Araguaia, Uruguai e São Francisco –, seus depósitos sedimentares e as morfologias fluviais associadas às calhas de seus eixos de drenagem principais.
O Capítulo 14 realiza estudo geoquímico de sedimentos e solos ao propor uma análise multielementar na caracterização de uma região qualquer, realçando a compreensão da interação espaciotemporal entre sua herança natural e a interferência antrópica a ela imposta. São apresentados e discutidos alguns estudos de caso em que a geoquímica multielementar foi utilizada como ferramenta, com destaque para algumas áreas na Amazônia, no Rio Grande do Norte, no Distrito Federal, no Quadrilátero Ferrífero e na Bacia Hidrográfica do Paraná.
Uma vez que as feições superficiais e subterrâneas que integram os ambientes cársticos têm sua gênese e evolução associadas ao Quaternário, a obra reserva seu Capítulo 15 para discussão desses ambientes no Brasil.
São discutidos, a partir de estudos de caso diversos, o controle estrutural e tectônico da carstogênese, sua evolução morfopedológica e o contexto paleoambiental no qual estiveram inseridos.
O Capítulo 16 traz, de início, o debate e a aplicabilidade dos modelos paleoambientais comumente empregados pela arqueologia como subsídio à compreensão do processo de ocupação do território brasileiro desde o Pleistoceno terminal. Em seguida, os autores discutem o histórico da ocupação humana no Brasil durante o Holoceno, quando os sambaquis e os sambaquieiros passaram a desempenhar papel fundamental.
Os registros da ação geológica do homem têm continuidade de abordagem no último capítulo da obra – Capítulo 17 –, voltado para os estudos do Tecnógeno. São apresentados alguns estudos de caso sobre o Tecnógeno no Brasil, com destaque para o oeste do estado de São Paulo, a Região Metropolitana de São Paulo, o Vale do Paraíba do Sul, a zona urbana de Goiânia e a região da Chapada Diamantina (BA).
Ao final da leitura do livro em perspectiva, certamente se conclui por sua grande relevância, em razão de seu conteúdo e de sua abordagem interdisciplinar imprimirem a ele valor como obra de referência. Quaternário do Brasil é obra que devidamente preenche os requisitos necessários para figurar no acervo bibliográfico das principais instituições de pesquisa e ensino das geociências no país. É guia seguro para pesquisadores e, sem dúvida alguma, para discentes de graduação e pós-graduação, tendo em vista a clareza conceitual emitida por seus autores, a seqüência lógica na estruturação de suas temáticas, a seleção precisa de seus estudos de caso e a expressividade de suas ilustrações.
Roberto Célio Valadão – Professor do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências, UFMG.
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