Gênese e estrutura da antropologia de Kant – FOUCAULT (Ph)

FOUCAULT, Michel. Gênese e estrutura da antropologia de Kant. São Paulo: Edições Loyola, 2011.Resenha de: SOLER, Rodrigo Diaz de Vivar y. Foucault e antropologia Kantiana: morte do homem e analítica da finitude. Philósophos, Goiânia, v. 22, n. 1, p.265-273, jan./jun., 2017.

A construção de um ensaio intitulado Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant (FOUCAULT, 2011) seguido da tradução de Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático (KANT, 2006) constitui a tese complementar escrita por Foucault em paralelo com a sua consagrada leitura sobre a história da loucura. Texto menor, sem sombra de dúvida, porém de extrema relevância já que é nele que podemos encontrar todo um conjunto de problematizações que se farão presentes em outros momentos de sua trajetória intelectual.1 Em linhas gerais, pode-se afirmar que o projeto longitudinal dessa interpretação, por parte de Foucault (2011) consiste em demarcar como todo pensamento moderno, desde o século XVIII, encontra-se assombrado pelo espectro da antropologia, uma vez que, para Foucault (2011) a emergência da crítica como categoria fundamental do pensamento opera como uma espécie de emblema de passagem do sujeito do cogito em Descartes para a complexa maquinaria do duplo empírico-transcendental.

Entretanto, antes que se prossiga é necessário nos perguntarmos: quais seriam as condições de possibilidade responsáveis por fazer da antropologia o grande sistema epistemológico de nossa modernidade? Inicialmente é necessário afirmar que a antropologia corresponde a toda categoria de pensamento que procura responder a infame pergunta: o que é o homem? Questionamento este que recebera um tratamento crítico desde a publicação de As Palavras e as Coisas até A Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2006, 2007) no que se refere a uma problematização sobre o homem como categoria fundamental dos saberes modernos. Mas, é necessário ressaltar que, correlativo a esse projeto, encontra-se a tese de Foucault (2011) de que no horizonte prescrito pela antropologia kantiana vislumbra-se a analítica da finitude como ferramenta para se pensar o tempo presente.

Logo nas primeiras páginas de Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant Foucault (2011) constrói duas problematizações imprescindíveis a esse respeito. A primeira consiste na denúncia de que toda racionalidade ocidental encontra-se atrelada aos problemas desenvolvidos por Kant. A segunda refere-se a imagem concreta do homem como categoria inventada. Habituamo-nos a compreender que foram os homens que criaram o pensamento científico.

A leitura foucaultiana acaba por indicar que foi a ciência quem criou o homem baseada nas contribuições elaboradas por Kant, lançando em torno dessa figura uma série de discursividades que remontam à emergência da modernidade. Para Foucault (2011, p.36)

A Antropologia é pragmática no sentido de que não vê o homem enquanto pertencente à cidade moral dos espíritos (ela seria chamada de prática), nem à sociedade civil dos sujeitos de direito (ela seria então jurídica); considera-o “cidadão do mundo”, isto é, pertencente ao domínio universal concreto, no qual o sujeito de direito, determinado pelas regras jurídicas e submetidos a elas, é ao mesmo tempo uma pessoa humana que traz, em sua liberdade, a lei moral universal (Foucault 2011, p.36).

Ou seja, a importância da antropologia consiste no fato de que ela consiste em ser um livro prescritivo sobre as bases do problema do agir. Ela não está, portanto, interessada em fixar os limites da experiência ética ou descrever as condições de possibilidade de uma doutrina jurídica e política, mas sim demonstrar quais seriam, precisamente, os motivos pelos quais o homem, na modernidade, age em sua liberdade a partir da aplicabilidade de uma lei universal.

Nesse contexto, é a liberdade do ponto de vista pragmático isto é, as razões que nos levam a agir de acordo com aquilo que a sociedade espera de nós sem perder, contudo, a capacidade de exercer o argumento crítico em relação as nossas ações públicas e privadas. Na realidade, o objetivo de Kant seria o de propor um valor universal mediado pela experiência do pensamento e, o que as convenções sociais compreender como correto a partir da constatação, ou melhor, da formulação do problema de que o homem faz, pode e deve fazer constituir-se como ser livre da ação.

Justamente por conta desses aspectos que Kant (2006) desenvolverá ao longo de toda sua antropologia um conjunto de prescrições práticas sobre as ações humanas como as recomendações elencadas em torno da saúde. Uma saúde que se produz no bom uso da liberdade. Observa-se nesse caso como Kant (2006) enfatiza nesse ensaio não a categorização dos grandes sistemas metafísicos, mas as questões concretas que contribuem para tornar a vida humana possível a partir do exercício de uma ética voltada para as possibilidades manifestadas de maneira empírica. A verdadeira antropologia é aquela responsável por fundamentar um conhecimento prático sobre o homem característica fundamental de toda a modernidade. Na realidade, Foucault (2011) parece se interessar muito em apresentar a antropologia de Kant como uma espécie de correlação entre a ciência da época e sua própria experiência filosófica para fazer emergir uma espécie de estética cotidiana do agir. Não por acaso que Kant (2006) irá considerar o prolongamento da existência como uma arte. Contudo, mesmo a minúcia desse prolongamento não é capaz de garantir a vitória do homem contra a morte sendo necessário ao homem gerir as relações entre a ética do agir e as adversidades experimentadas ao longo da existência.

O que ilustra a antropologia como texto prescritivo e daí a riqueza do pensamento kantiano é que ela inaugura um novo estatuto ontológico baseando sua analítica em torno de uma questão que circula sobre as condições de uma época a qual parece emergir uma compreensão prática sobre o homem e sua finitude através da dimensão técnica do trabalho de compreensão em torno da objetivação do sujeito. Em suma, o problema a ser colocado consiste em pensar: o homem é sujeito de liberdade da ação, mas como se pode defini-lo? Esse problema coloca a antropologia diante de alguns desafios. O primeiro consiste em perceber o conhecimento como algo pragmático já que se faz uso dele de um modo generalizado na nossa sociedade. Embora, isso não significa que ele seja algo utilitário convertido em um universal.

Foucault (2011) designa que esse aspecto responsável pela correlação entre antropologia e conhecimento é a junção do que Kant compreende como Können poder e Sollen – dever a partir do desdobramento das práticas sociais cotidianas.

Mas, isso não significa que Kant (2006) pretenda constituir uma espécie de psicologia. A primeira vista Foucault (2011) trata de deixar claro que os projetos que consolidaram a psicologia como ciência referem-se a um projeto radicalmente diferente do formulado por Kant (2006) na sua antropologia, pois para o filósofo alemão os motivos pelos quais o homem apresenta determinados modelos de conduta aceitáveis seriam aqueles pensados sob o ângulo de certo contexto social. A questão seria a explorar o Gemüt natureza2isto é, a maneira pela qual o homem, por meio de suas experiências, constitui-se a partir de sua relação com o mundo e com as coisas. Percebe-se, portanto, como a antropologia acaba por fixar as bases de que é o labor das ideias que se manifestam no campo da experiência, princípio pelo qual deve-se perceber a analítica kantiana não somente como um pressuposto epistemológico mas sim como uma dialética desdialetizada uma vez que ela destina-se a compreender a experiência no próprio jogo dos fenômenos. Nesse sentido Foucault (2011) inclina-se a pensar Kant deslocando seu campo da filosofia da ciência para relacioná-lo dentro de um contexto mais amplo, no caso, os jogos provenientes dos enunciados e da ordem do discurso.

O fato emblemático é que Foucault (2011) considera a antropologia como superação do próprio empirismo científico uma vez que ela sinaliza o conhecimento como um princípio vivificante. Crítica empreendia por parte de Kant dos próprios limites do empirismo compreendido como uma mera fisiologia. De fato, um dos maiores problemas elencados por Kant (2006) foi o de tentar estabelecer todo um esforço para pensar os contornos de sua antropologia a partir de uma nova relação do conhecimento com o problema da experiência.

Uma vez que a antropologia não deve ser lida como uma mera continuidade das teses presentes na teoria do conhecimento, o que está em questão seria a necessidade de um deslocamento que se manifesta na categoria do homem como objeto de estudo a partir da constatação de que a antropologia do Gemüt dedica-se a pensar a condição de possibilidade da experiência no campo da finitude humana.

Não que o Gemüt não esteja presente no contexto da filosofia crítica, mas especificamente na antropologia essa ideia surge como um desafio a ser superado pelo empírico-transcendental.

Se a antropologia inaugura a questão moderna sobre o que é homem já não se trata mais de uma questão que deve ser sustentada somente pela perspectiva do ceticismo filosófico dirigido pelo tribunal orquestrado pela filosofia crítica, mas pelos contornos os quais toda forma de conhecer está inegavelmente sujeita desde a metafísica, até a moral, desde a própria política até a religião. Em torno dessa questão que todo o pensamento moderno encontra-se delimitado.

Foucault (2011) parece interessado em nos mostrar como toda episteme está imersa na antropologia kantiana não conseguindo desvencilhar-se dessa conjetura, por mais radical que posam parecer suas argumentações. Ao propor os limites e as possibilidades do que é o homem, a antropologia acaba constatando que essa figura pode apenas conhecer o fenômeno, ou seja, aquilo que se apresenta sem apreender a coisa em si. Esse modo de pensar se traduz na possibilidade de se perceber quão problemática se torna a analise sobre a questão da conduta humana. Ao tentar solucionar tal problema, a episteme moderna limita-se a descrever características limitadoras mediadas pelos fenômenos aparentes de suas ações e predicados. Por isso, jamais poder-se-á afirmar algo sobre a natureza humana descontextualizada das práticas culturais, históricas e sociais. Contudo, isso não quer dizer que não se possa caracterizar as ações do homem.

Existe nesse conjunto de constatações lançado pela antropologia a estreita relação entre verdade e liberdade. Tal problema é trabalhado por Kant, segundo Foucault (2011), no Opus Postumum: a tripartição entre Deus, o mundo e o homem. Foucault (2011) nos lembra que, para Kant, Deus configura-se como persönlichkeit a personalidade responsável por representar a liberdade em relação ao homem e ao mundo, a própria fonte absoluta. Já o mundo seria o todo, a potência da experiência que se apresenta como extensão do inoperável enquanto que, o homem apresenta-se como síntese dupla, ao mesmo tempo que se configura como aquilo que se unifica em Deus e no mundo, não sendo mais do que um de seus habitantes e um ser limitado em relação a Deus. Abre-se nessa perspectiva o fundamento da ação antropológica cujo efeito seria o de perceber a relação entre verdade e liberdade como um processo de finitude.

Nesse sentido, a interpretação foucaultiana de Kant está inscrita na tentativa de se desdobrar os limites dessa finitude a partir da problematização sobre a modernidade como idade do homem. Conforme aponta Foucault (2011), a maioria dos sistemas de pensamento que julgavam ter ultrapassado a sabedoria do grande chinês de Konninsberg não souberam, delimitar com acuidade o fato de que não se encontravam as voltas com novos problemas, mas simplesmente lidavam com as questões de filiação e de fidedignidade ao pensamento kantiano. Resta, compreender o olhar sobre a filosofia pelos critérios da intempestividade de Nietzsche. Uma empresa de coragem que ousa associar o filosofar a golpes de martelo em torno de problemas delicados sobre os quais nossa modernidade foi fundada. Se ao homem não lhe é facultado o direito de conhecer sobre sua natureza, a filosofia de Nietzsche nos mostrará, segundo argumenta Foucault (2011) que o homem não passa de uma invenção risível dentro do contexto dos grandes sistemas de enunciado, uma invenção que encontra- se em vias de desaparecimento como um rosto desenhado na orla do mar.

Referências

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

____. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

____. Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant. São Paulo: Edições Loyola, 2011.

____. Foucault. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V: ética sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, pp. 228-233.

KANT, Immanuel. Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Notas

1 Em muitas análises do pensamento foucaultiano são reconhecidas as influências de Kant em temas relacionados à morte do homem, a ontologia histórica de nós mesmos e a problemática sobre o apriori histórico. O próprio Foucault reconheceu, sob o pseudônimo de Maurice Florence a, é certamente na tradição crítica de Kant, e seria possível nomear sua obra História Crítica do Pensamento. Ver mais detalhes em: FOUCAULT (2014, p.228).

2 Embora tenhamos traduzido a palavra Gemüt como natureza cumpre ressaltar que podemos encontrar na língua alemã outros significados igualmente relevantes como alma, mente e até mesmo sensibilidade.

Rodrigo Diaz de Vivar y Soler – Doutorando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS, Brasil. Professor do Centro Universitário Estácio Santa Catarina e do UNIBAVE. E-mail: diazsoler@gmail.com

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