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Os índios na história do Brasil – ALMEIDA (RBH)
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. 168p. Resenha de: GARCIA, Elisa Frühauf. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.59, jun. 2010.
Até muito recentemente, os índios eram sujeitos praticamente ausentes em nossa historiografia. Relegados à condição de vítimas passivas dos processos de conquista e colonização, seu destino inexorável era desaparecer à medida que a sociedade envolvente se expandia. Nas últimas duas décadas, porém, significativas mudanças teórico-metodológicas, associadas a criteriosas pesquisas empíricas, proporcionaram o surgimento de uma nova perspectiva sobre as populações nativas.
A trajetória da inserção dos índios em nossa historiografia, contemplando as mudanças conceituais e os avanços obtidos pelas pesquisas recentes, foi muito bem sistematizada por Maria Regina Celestino de Almeida em Os índios na História do Brasil. A publicação, inserida na coleção FVG de Bolso, Série História, sem dúvida será de grande valia àqueles que têm interesse na temática, cumprindo sua função de divulgação do conhecimento produzido na academia. Além disso, o lançamento também ocorre em momento pertinente. Em 2008 foi sancionada pelo governo federal a Lei 11.645, que estipula a obrigatoriedade do ensino da história indígena nas escolas de nível fundamental e médio, tanto públicas quanto privadas. Diante dessa exigência, muitos professores encontram dificuldades para ministrar tal conteúdo, pois ele ainda não foi devidamente inserido nos cursos de graduação em história do país.
A autora inicia o livro apresentando a mudança no lugar ocupado pelos índios na história do Brasil, os quais, nas suas palavras, passaram dos “bastidores” ao “palco”. Debatendo em linhas gerais as principais modificações teórico-metodológicas que possibilitaram tal mudança, demonstra como as novas perspectivas sobre os significados de cultura e identidade foram fundamentais para uma alteração no paradigma sobre as ações dos índios em diferentes conjunturas. Como demonstrado de forma clara e concisa no texto, a aproximação entre a história e a antropologia, ancorada no diálogo entre os profissionais dessas áreas, possibilitou que as antigas noções de cultura e identidade, percebidas como “fixas e imutáveis” (p.21), passassem a ser consideradas como fruto de processos históricos, resultado das interações dinâmicas dos diferentes agentes envolvidos em situações específicas.
Articulando as questões teórico-metodológicas às pesquisas recentes na temática, a autora aborda aspectos fundamentais para a compreensão do lugar dos índios na história do Brasil, começando com uma discussão sobre a dinâmica das guerras. Sem negar a sua importância para os grupos nativos, como demonstrado por autores como Florestan Fernandes, Regina Celestino enfatiza a impossibilidade de analisá-las sem referência ao seu contexto, pois, a partir dos primeiros contatos e das disputas pelo território americano, as guerras indígenas passaram a convergir com as guerras coloniais. Associada às guerras e à construção da sociedade colonial, a autora enfrenta ainda a difícil questão da formação das etnias, uma das grandes discussões atuais nos estudos sobre os povos indígenas. Pesquisas sobre o surgimento e a operacionalidade dos etnônimos desenvolvidas em várias regiões das Américas, inclusive no Brasil, demonstraram como muitas etnias, antes consideradas anteriores aos contatos com os europeus, originaram-se no decorrer do processo de conquista e das diferentes formas de inserção dos índios na sociedade colonial. Para exemplificar a questão, a autora utiliza como base os dados de sua tese de doutorado, demonstrando como os temininós, aliados fundamentais dos portugueses na Guanabara, provavelmente nada mais eram do que uma dissidência dos tamoios consolidada com o processo de conquista.1
Ao analisar a formação dos etnônimos, a autora enfatiza como eles estavam entrelaçados com o domínio dos povos indígenas por parte do Estado colonial. A criação e cristalização de etnônimos e a rígida separação dos índios entre aliados e inimigos eram uma forma de classificar a população nativa e viabilizar o empreendimento colonial através da sua alocação em determinados lugares na hierarquia social. Regina Celestino, porém, demonstra muito bem como esse processo era mais complexo, pois aborda ainda os mecanismos através dos quais os índios se apropriaram dessas categorias, utilizando-as como base para elaborar as suas próprias estratégias para interagir com a sociedade colonial. Afinal, como apontou John Monteiro, “a tendência de definir grupos étnicos em categorias fixas serviu não apenas como instrumento de dominação, como também de parâmetro para a sobrevivência étnica de grupos indígenas, balizando uma variedade de estratégias”.2
Um dos espaços por excelência de inserção dos índios na sociedade colonial e, consequentemente, de redefinição de suas identidades e culturas eram os aldeamentos, analisados com propriedade pela autora no capítulo quatro. Até muito recentemente, nossa historiografia abordava os aldeamentos pela ótica do Estado colonial, dos moradores ou dos missionários. Eles eram então definidos como espaços de agrupamento de índios de origens diversas, que deveriam servir aos intuitos coloniais, possibilitando tanto a concentração da mão de obra disponível, a ser empregada em atividades variadas, quanto a implementação do projeto de catequização dos nativos. Em tal perspectiva, os índios eram sempre objeto de diferentes políticas e de disputas entre determinados agentes, mas nunca sujeitos atuantes na construção do espaço dos aldeamentos. Para a autora, porém, eles devem ser considerados também a partir das motivações dos nativos. Pesquisas recentes permitem afirmar o seu interesse em tais estabelecimentos, pois eles “participaram de sua construção e foram sujeitos ativos dos processos de ressocialização e catequese” ocorridos naqueles espaços (p.72).
Outra importante discussão contemporânea abordada no livro, especialmente nos capítulos quatro e cinco, é a relação dos índios com as diretrizes coloniais, articulando políticas indígenas com políticas indigenistas. Novamente, Regina Celestino redimensiona certos pressupostos historiográficos. De maneira geral, a política indigenista da Coroa portuguesa era apresentada como inoperante, na medida em que não se fazia valer nas práticas coloniais, especialmente em relação à condição de liberdade jurídica outorgada à maioria dos índios, ameaçada diante das estratégias dos moradores interessados nessa mão de obra. Como já assinalado por Thompson, porém, mais do que um mero instrumento de dominação, a legislação também se configura como um campo de lutas.3 Assim, tal como outros sujeitos históricos, os índios, ainda que em posição subalterna, aprenderam a utilizá-la em prol dos seus interesses. Como muito bem demonstrado pela autora, se é fato que a legislação indigenista colonial era aplicada de acordo com conflitos e negociações envolvendo vários agentes (principalmente missionários, funcionários reais e moradores), é imprescindível considerar o papel dos índios nesse processo. Em tal discussão, adquire importância fundamental o capítulo cinco, sobre a aplicação das políticas pombalinas, cujas linhas gerais se orientavam à extinção da categoria dos índios aldeados, promovendo a sua diluição no conjunto da população. Na análise dessa legislação, uma das mais pesquisadas pelos historiadores da temática, fica evidente como a constante negociação com os índios foi uma das marcas da construção e manutenção da sociedade colonial.
No último capítulo a autora aborda o século XIX, enfocando as diferenças entre as políticas imperiais em relação aos índios do presente e o lugar a eles destinado na identidade nacional então em construção. Os índios do presente, especialmente aqueles que habitavam as aldeias fundadas durante o período colonial, deveriam ser rapidamente integrados ao conjunto da população, consonante às linhas anteriormente estabelecidas por Pombal. Já os índios ainda não inseridos plenamente na sociedade imperial, comumente chamados “selvagens”, deveriam ser aldeados, também com o objetivo de preparar a sua diluição no conjunto da população, ou implacavelmente combatidos, caso não aceitassem o aldeamento e resistissem à expansão das frentes de ocupação. Assim, o Império projetava uma população homogênea, sem espaço para a permanência dos índios como grupo diferenciado. Reservava, porém, lugar de destaque aos nativos no passado da jovem nação. Apesar de significativas divergências, prevaleceu entre os intelectuais envolvidos na construção da identidade nacional a proposta de atribuir aos índios importante papel no momento fundador do Brasil, simbolizado na sua união com os portugueses.
Ao abordar o lugar dos índios na história do Brasil contemplando diferentes conjunturas, interesses e agentes, Regina Celestino oferece ao leitor uma importante iniciação na temática. Após a leitura, ficará evidente que não se trata apenas de perceber as histórias específicas de diferentes grupos nativos, certamente importantes, mas de considerá-los agentes fundamentais no processo de construção da sociedade colonial e pós-colonial. Apesar de terem enfrentado situações extremamente difíceis e uma série de restrições jurídicas e sociais, eles ajudaram também a delinear os limites e possibilidades daquelas sociedades.
Notas
1 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. [ Links ]
2 MONTEIRO, John. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese (Livre Docência em Antropologia) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas (SP), 2001, p.58. [ Links ]
3 THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.358. [ Links ]
Elisa Frühauf Garcia – Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense. Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Campus Gragoatá. Bloco O, 5º andar, Gragoatá. 24210-350 Niterói – RJ – Brasil. E-mail: elisafg@terra.com.br.
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