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História da Cultura Escrita / Revista Brasileira de História da Educação / 2016
O número de estudos sobre história da cultura escrita tem aumentado muito em diversos países nas últimas décadas. Esses estudos, que mantêm uma interface estreita com áreas correlatas, como a história do livro e da leitura, a história da educação e a história da alfabetização, possuem especificidades que lhes atribuem contornos próprios, sobretudo em algumas tradições disciplinares e culturais. Já consolidada, a produção de alguns autores e grupos internacionais tem tido grande impacto nas pesquisas que vêm sendo realizadas no Brasil. Entre tais autores, destacam-se Armando Petrucci, na Itália, Antonio Castilho Gómez, na Espanha, de Roger Chartier, Jean Hébrard e Anne-Marie Chartier, na França. Na produção nacional, juntam-se a eles os que, embora realizem trabalhos semelhantes em seus propósitos e fontes, advêm de outros países, como os anglo-saxônicos, em que a própria expressão história da cultura escrita não tem sido a mais utilizada: em lugar dela, é utilizada a denominação history of literacy. Nessa direção, autores como Harvey Graff e David Vincent também têm contribuído para a configuração do campo em nosso país.
O uso de diferentes denominações para o estudo desse fenômeno em uma abordagem histórica é compreensível. Se considerarmos cultura escrita como o lugar simbólico e material que o escrito ocupa em determinados grupos sociais, comunidades e sociedades, em épocas distintas (Galvão, 2010), são muitas as “entradas” [1] (Chartier, 2002) que podem ser utilizadas para estudá-la: as instâncias ou instituições que ensinam ou possibilitam a circulação do escrito; os objetos que lhe dão suporte; os próprios suportes nos quais o escrito é difundido e ensinado; os sujeitos que o utilizam (ou não); os seus meios de produção e transmissão.
Nessa direção, o campo de estudos sobre história da cultura escrita necessariamente dialoga com um conjunto de abordagens que têm tido um papel fundamental na renovação observada, desde o final dos anos 1980 no Brasil, no campo da História da Educação. A princípio, portanto, se desejássemos expressar o contexto de produção da maioria dos artigos aqui reunidos, poderíamos nomear o dossiê de, pelo menos, três diferentes modos: história da alfabetização, história do letramento e história da cultura escrita. No entanto, como compreendemos que a história da alfabetização está centrada na compreensão do fenômeno da aquisição / apropriação de uma nova tecnologia e seus materiais e que a história do letramento focaliza os usos sociais da leitura e da escrita, optamos pela última denominação. Como discutimos acima, a expressão cultura escrita é capaz de abarcar um conjunto mais amplo de objetos e abordagens. Evidentemente, essa tentativa de delimitar campos cujas fronteiras são tão tênues não está isenta de polêmicas, principalmente porque, em torno dessas expressões, está também a tradução da palavra literacy, como mostram os dois primeiros textos publicados.
É nesse contexto de polêmicas e de um campo ainda em construção no Brasil que propomos o presente dossiê. Com ele, objetivamos apresentar contribuições que reforcem a produção de estudos cada vez mais sólidos, rigorosos e complexos sobre a temática. Buscamos também estreitar o diálogo com pesquisadores que, há cerca de três décadas, vêm renovando os estudos realizados no campo da História da Educação no Brasil e constituem o principal público leitor da RBHE.
A proposição deste dossiê também foi motivada pela presença de dois renomados pesquisadores, Harvey Graff (Ohio State University) e Anne-Marie Chartier (Laboratoire de Recherche Historique RhôneAlpes / École Normal Supérieure de Lyon), como professores visitantes [2] em universidades brasileiras (Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade do Estado do Rio de Janeiro), em agosto de 2014. Entre as diversas atividades por eles realizadas no país, destaca-se a participação na mesa redonda Perspectivas para uma história do letramento e da alfabetização, no V Colóquio Internacional sobre Letramento e Cultura Escrita, realizado em Belo Horizonte e organizado pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale / UFMG).
O dossiê é aberto, assim, por ensaios desses dois autores, reconhecidos internacionalmente pelo conjunto de suas obras. Nesses textos, eles retomam as principais questões que têm constituído a trajetória do campo de estudos sobre a história da literacy, nas tradições norteamericana e europeia. Com base nessa revisitação das grandes discussões que têm marcado a área, eles apresentam proposições que podem ser lidas como um grande programa de pesquisas que pode conduzir a um avanço de fato na produção do conhecimento sobre os fenômenos da alfabetização, do letramento e da cultura escrita. Entre essas proposições, destaca-se a necessidade de superar dicotomias tradicionalmente marcadas nos debates e compreendê-las como dimensões indissociáveis na pesquisa: oralidade e escrita, estudos históricos, sociológicos e históricos e práticas pedagógicas, prescrições e usos; idealizações e materialidade.
O artigo de Harvey Graff, o primeiro do dossiê, com um olhar comparativo voltado para uma abordagem intelectual, cultural, histórica e institucional, ajuda-nos a problematizar o lugar ocupado pelo letramento no plano simbólico e nas práticas. Na tradição de seus trabalhos, o autor recupera a noção de mito do letramento, reforçando a forma como o próprio Iluminismo e a ideia de modernidade foram amparados na crença na superioridade da tecnologia da escrita para a cognição, para a moral, para o controle social. Essas noções, construídas, pelo menos, desde a Renascença, por mais que tenham sido problematizadas em estudos acadêmicos e nas promessas não cumpridas das próprias práticas sociais, permanecem fortes no imaginário de pesquisadores, dos cidadãos e dos governos. O autor, ao reconstruir a trajetória dos estudos sobre letramento, localizando os principais trabalhos por volta dos anos 1920 e 1930, relaciona as viradas paradigmáticas neles observadas a crises sociais de diversas ordens, como guerras, migração, taxas de fertilidade, mudanças tecnológicas, entre outras, que põem em questão o mito do letramento e fazem avançar as tentativas de estudos interdisciplinares. Ao fazer uma análise do lugar institucional que os estudos sobre letramento ocupam na hierarquia das disciplinas, inclusive naquelas que tomam para si o status de ciências de base e se proclamam como novidade, o autor nos alerta para o passado, o presente e o futuro dos estudos, apresentando alguns caminhos-questionamentos para o avanço em uma direção interdisciplinar. Desafiam-nos, assim, a pensar o campo, seu status e reputação: ao mesmo tempo em que são vistos como inseparáveis das práticas educativas, os estudos sobre letramento ocupam espaços diferenciados nas ciências sociais e em outras áreas. Ao problematizar os termos letramento e cultura escrita, assim como algumas abordagens atuais, o texto convoca-nos a realizar uma permanente metarreflexão em torno de noções que têm sido repetidas em nossas produções acadêmicas sem que dimensionemos seu poder para instituir realidades. Como propor novos olhares que façam complexificar e provocar fissuras nas cômodas análises que temos realizado? Em que o lugar ocupado pelos estudos sobre letramento na hierarquia do “panteão das disciplinas” impõe limites e, ao mesmo tempo, aponta possibilidades para abordagens mais rigorosas, menos salvacionistas, mais voltadas para a compreensão das práticas e dos usos, mais interdisciplinares?
É exatamente a reflexão sobre o entre-lugar ocupado por pesquisadores que se interessam pela história do letramento, de um lado, e pelo ensino da leitura, de outro, que está no cerne da discussão contida no segundo artigo do dossiê, de autoria de Anne-Marie Chartier. Baseado em memórias pessoais e em estudos acadêmicos, o texto apresenta-nos os principais debates que estiveram no centro das reflexões dessas duas grandes áreas, principalmente nos últimos cinquenta anos. Por muito tempo, a pedagogia e as ciências a ela aplicadas (como a psicologia, a neurologia e a sociologia) situaram os estudos sobre a alfabetização e sua história no âmbito das práticas escolares, buscando respostas para os problemas cotidianamente enfrentados, contribuindo para construção de prescrições e para uma didática da leitura. Os historiadores, os antropólogos e os sociólogos, ao realizar estudos sobre letramento e cultura escrita em diferentes épocas e sociedades, por sua vez, quase sempre ignoraram os debates ocorridos entre aqueles que viviam os dilemas das práticas pedagógicas. Ao trabalhar com os dois domínios, Anne-Marie Chartier nos alerta para uma espécie de cegueira: a ausência de diálogo de um domínio com o outro torna-nos um pouco ingênuos em relação às formas instituídas e instituintes da cultura escrita. Reunindo esses dois domínios, a autora apresenta reflexões sobre que significa ler, o que significa ler partindo do ato de escrever e também sobre o papel da materialidade dos objetos que transmitem / portam a leitura. Esse último elemento, o da materialidade, por exemplo, transforma uma leitura de recepção em uma leitura para comunicação, alterando as relações entre quem pode escrever para que outros leitores recebam seus escritos e quem lê e escreve para se conectar aos outros na sociedade contemporânea. Não há desenvolvimento linear e evolutivo nas relações entre o oral e o escrito ou entre os poderes que definem quem transmite e quem aprende em determinado contexto. Os estudos históricos são uma porta de entrada para pensar momentos em que determinados poderes não estão nas mãos da escola: ora eles estão em instituições como a igreja, ora na sociedade e em suas práticas sociais, ora nas tecnologias. A contribuição de Anne-Marie Chartier permite problematizar esses poderes ao trabalhar alguns modelos dominantes de transmissão e aprendizagem da leitura, percorrendo um período que vai do século XVI ao XXI. Nesse estabelecimento de diálogo entre períodos tão distintos, ganham relevo aspectos que determinaram mudanças mais radicais nas práticas de leitura. Aos jovens pesquisadores fica o apelo para que, mesmo quando problematizam fenômenos da cultura escrita próprios do século XXI, operem com a ideia de que esses fenômenos somente podem ser compreendidos em sua historicidade.
Os três artigos seguintes, por sua vez, apresentam resultados de pesquisas empíricas com foco no caso brasileiro. Neles, é possível visualizar a operacionalização de algumas teorizações e pressupostos discutidos nos dois primeiros artigos.
No artigo de Isabel Cristina Alves da Silva Frade e Ana Maria de Oliveira Galvão são apresentados resultados de um estudo empírico sobre instrumentos e suportes de escrita prescritos e aqueles que eram cotidianamente utilizados por pessoas comuns para viabilizar seu próprio processo de escolarização nas primeiras décadas do século XX. Ao abordar elementos que têm se cruzado pouco nos estudos brasileiros, como a relação entre os objetos e os comportamentos, os gestos, as formas e os gêneros que podem ser praticados no ato de escrever, as autoras destacam o papel da materialidade na definição dos usos e práticas pedagógicas, como também é ressaltado no ensaio anterior. Apresentam, portanto, a possibilidade de relacionarmos base material e pensamento, materialidade e memória-uso, suporte e instrumento. Faz-nos compreender, como, no cotidiano da maior parte da população brasileira do período – professores, alunos e suas famílias –, era preciso produzir táticas para atender às exigências do processo de escolarização. A modernidade pedagógica e suas prescrições, que apostavam na homogeneidade do acesso / distribuição / usos dos objetos de escrita, pareciam muito distantes dos sujeitos que viviam, em grande parte, em comunidades regidas pelas lógicas da oralidade e pela (quase) ausência de materiais escritos. Os testemunhos analisados reforçam a realidade heterogênea, as apropriações criativas e a força dos objetos na constituição de determinadas práticas de escrita escolar. O estudo favorece que a análise ultrapasse a dimensão do dever-ser da realidade social, justificando tanto a produção quanto o uso de teorias pedagógicas para prescrever e, ao mesmo tempo, idealizar aquilo que se considerava como a melhor forma de inscrever e o melhor suporte para receber o traçado. Auxilia-nos, portanto, a entender o fenômeno da cultura escrita (ou melhor, das culturas do escrito) em contextos localizados e heterogêneos, centrados nos usos e nos sujeitos e, assim, relativiza, uma vez mais, o letramento e seus mitos.
Se, no artigo anterior, o foco da análise estava na escrita, os dois últimos artigos do dossiê tomam por objeto materiais de leitura. Nesses estudos, também problematizando a base material da produção, as autoras se dedicam à análise de livros e põem em relevo aspectos materiais que explicam seus processos de produção, circulação e uso. Utilizando como base a história do livro e da edição e / ou a história da educação, deixam importantes contribuições para o campo de estudos da cultura escrita.
No Brasil, no final do Império, tem início a produção de cartilhas por autores de renome, professores e inspetores de escolas, tais como: Abílio Cesar Borges, Tomaz Galhardo, Felisberto de Carvalho e Hilário Ribeiro. Vários estados brasileiros passaram a construir suas políticas com base nas inovações pedagógicas. No início do século XX, buscavam-se modelos europeus e americanos para produzir cartilhas ou pré-livros e tornar a prescrição dos métodos analíticos uma constante. No entanto, ao mesmo tempo, uma produção diferenciada instalava-se no contraponto dessas prescrições: a de professores que experimentavam alguns métodos considerados próprios, de estrutura mais simples e que pareciam falar a língua de seus pares. No esgotamento de determinado modelo de inovação e pela legitimação que os docentes dão a certos materiais é que aparecem brechas para divulgação de algumas propostas. No entanto, para que sua abrangência não seja local, é preciso fazer com que o governo os adote, sob a forma de indicação, coedição. É o caso de um best-seller que marcou a experiência de alfabetizar e de se tornar alfabetizado para muitos professores e leitores brasileiros: o livro Caminho Suave. Recuperando fontes pouco trabalhadas em outros estudos, como a imprensa periódica destinada ao grande público, e cruzando aspectos editoriais e pedagógicos, por meio da análise de contratos de edição e coedição, o texto de Eliane Peres e colaboradoras apresenta dados que reforçam que o poder público ora acompanha a produção, ora prescreve, ora legitima materiais para uso em sala de aula. Teria o livro de Branca Alves da Lima tanta circulação se não fossem as coedições? Ou é a força de sua proposta que faz com que os professores ainda o utilizem? É interessante observar que, em um primeiro momento, é o próprio esgotamento do contexto de inovações propostas no início do século XX que, entre as décadas de 1940 e 1990, propicia a grande utilização da proposta da autora; em um segundo momento, novas promessas pedagógicas de resolução dos problemas de alfabetização – representadas pelo construtivismo – é que explicam o seu declínio. Nesse último caso, o mesmo poder oficial promove uma exclusão brutal da proposta da autora: aparentemente, não há forma de adaptação da cartilha possível de ser executada. Como no artigo anterior, temos aqui uma relação complexa entre prescrições e usos: se a circulação oficial é impossibilitada, que utilizações são possíveis? A circulação contemporânea do livro é um mistério a ser desvendado e o artigo das autoras nos incita a pensar novos circuitos do livro. Por todas essas razões, traz contribuições significativas para a compreensão da história do livro escolar no Brasil e, mais amplamente, para a história da cultura escrita no país.
Ainda na linha de estudos sobre circulação de livros didáticos, o artigo que encerra o dossiê, de autoria de Estela Bertoletti e Márcia Cabral da Silva, apresenta os resultados de um estudo de caso sobre livros que circularam em duas escolas de referência no ensino primário do município Paranaíba, no Mato Grosso do Sul, entre 1928 e 1961. Ao se voltar para um contexto específico – situado fora do circuito dos estados que foram os principais produtores de livros no Brasil – as autoras abordam alguns elementos que nos auxiliam, uma vez mais, a pensar a cultura escrita em sua pluralidade, em sua heterogeneidade. Nas listas analisadas, por exemplo, há indicação de uso de cartas de ABC, atestando a permanência desse impresso nas escolas brasileiras, mesmo quando a produção nacional já dispunha, na década de 1920, de obras de grande alcance nacional. A menção à cartilha Caminho Suave corrobora o estudo anterior, mostrando o alcance dessa obra. O artigo também nos coloca questões que nem sempre são tematizadas em outros estudos, como o uso concomitante de livros didáticos e de outros materiais, como histórias em quadrinhos ou periódicos infantis. Apresenta também indícios de que as escolas tinham relativa autonomia para a compra direta de materiais. Reforça, por fim, a importância do estado de São Paulo como polo editorial produtorcomercializador. Algumas indagações são suscitadas pela leitura do artigo: seriam os livros utilizados pelos alunos ou pelos professores? O uso de coleções seria continuado ou dependente de exemplares disponíveis? Quais seriam os quadrinhos adquiridos pela escola? Por que, mesmo com apelo para uma produção local, isso não se concretizou? Conforme nos alerta Roger Chartier (2002), não basta a existência de autores para que sejam publicados impressos; reforçamos, fazendo o raciocínio inverso, que não bastam apelos à produção, se não há autores ou autores com peso e legitimação para escrever. Enfim, o artigo nos faz pensar sobre a necessidade de novos estudos que, voltados para contextos de circulação e usos mais restritos, revelem a construção de culturas do escrito na diversidade da realidade brasileira, destacando possíveis especificidades, mas também aspectos comuns a outros contextos.
Conscientes de que os estudos reunidos no dossiê não são capazes de abarcar, em sua amplitude, o crescimento do campo de estudos sobre a história da cultura escrita, a riqueza das abordagens utilizadas, a diversidade de temas e enfoques, apostamos que eles expressam, pelo menos em alguma medida, o debate que vem sendo realizado no Brasil e em outras partes do mundo. Nesse sentido, podem contribuir para o avanço das discussões, para a sinalização de temas emergentes para novas pesquisas e, por fim, para a internacionalização da produção científica brasileira.
Notas
1. Um detalhamento dessas “entradas” e um balanço da produção no campo nos últimos anos podem ser encontrados em Galvão (2010).
2. Com o apoio do CNPq, dos Programas de Pós-Graduação da UFMG e da UERJ e do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale / UFMG).
Referências
Chartier, R. (2002). Os desafios da escrita. São Paulo, SP: Ed. Unesp.
Galvão, A. M. (2010). História da cultura escrita: tendências e possibilidades de pesquisa. In M. Marinho, M., & G. Carvalho (Orgs.), Cultura escrita e letramento (p. 218-248). Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG.
Ana Maria de Oliveira Galvão. E-mail: icrisfrade@gmail.com
Isabel Cristina Alves da Silva Frade. E-mail: anamgalvao@uol.com.br
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v. 16, n. 1, jan. / abr., 2016. Acessar publicação original [DR]