Pluralidade de olhares: Construtivismo e multiperspetiva no processo de aprendizagem – GAGO (RL)

GAGO, Marília. Pluralidade de olhares: Construtivismo e multiperspetiva no processo de aprendizagem. Maputo: EPM-CELP, 2012. Resenha de: CARVALHO, Ana Paula Rodrigues. Narrativas divergentes no processo de desenvolvimento do pensamento histórico em sala de aula. Revista do LHISTE, Porto Alegre, v.3, n.4, p.99-105, jan./jun., 2013.

Indagar como os alunos pensam historicamente e de que forma eles lidam com a existência de diferentes narrativas históricas sobre um mesmo evento passado são os principais objetivos da pesquisa conduzida por Marília Gago. Com base em uma teoria construtivista sobre aprendizagem, o aluno e suas ideias são o foco principal deste estudo. Superando uma visão tradicional de ensino de História que previa uma assimilação passiva de informações transmitidas em sala de aula, Gago considera os alunos como sujeitos no processo de aprendizagem e coloca-os diante de problemas a serem solucionados.

A concepção de aprendizagem histórica defendida neste livro passa pela compreensão, por parte do aluno, sobre a disciplina da História e a forma como ele relaciona os saberes produzidos em sala de aula à sua própria subjetividade, dotando-os de significância e tornando-os fatores de orientação para as decisões de sua vida prática. A partir de pesquisas realizadas na área da Educação Histórica por historiadores como P. Lee, I. Barca, M. Carretero e D. Shemilt, a autora assevera que, para a obtenção de uma progressão do pensamento histórico, alguns aspectos devem ser considerados. Ressalta-se a importância de se partir das ideias prévias dos alunos para, em seguida, trabalhar com conceitos substantivos e de segunda ordem.

Com fundamento nesses pressupostos teóricos, Gago propõe investigar, a partir do tema da romanização da Península Ibérica, de que forma os alunos lidam com a multiperspectividade da narrativa histórica, colocando-os diante de uma situação-problema que eles devem resolver. A explanação da metodologia utilizada faz com que a obra possa encontrar espaço de ação entre os professores interessados em colocar em prática um ensino de História pautado na construção do saber em sala de aula de forma dinâmica e inclusiva.

O primeiro capítulo, Teorias de aprendizagem, como o título indica, ocupa-se de algumas teorias de aprendizagem, a saber: behaviorismo, humanismo e cognitivismo. A partir da explanação das respectivas teorias, Gago buscou discuti-las a partir da proposta do construtivismo social. Segundo adeptos do behaviorismo – Watson, Skinner, Thorndike, Pavlov –, o Homem responderia a estímulos externos, e suas reações poderiam ser moldadas de acordo com as recompensas obtidas. As recompensas poderiam ser negativas, com o escopo de reprimir determinado comportamento, ou positivas, com o objetivo de estimular sua repetição. Segundo essa teoria, o processo de aprendizagem é externo e concentra-se em atividades que o aluno deve conseguir realizar. Nessa perspectiva, o aluno não é considerado um sujeito ativo no processo de aprendizagem, ele seria moldado a partir de estímulos, e suas reações seriam recompensadas ou punidas de acordo com os objetivos postos pelo professor. Por outro lado, conforme as teorias cognitivistas, o sujeito é ativo no processo de aprendizagem, pois ele é capaz de organizar e atribuir significados a fatos e objetos a partir de suas experiências e vivências. Para as teorias cognitivistas, o aluno se encontra mais predisposto a aprender quando percebe o que está sendo trabalhado como relevante para sua vida, daí a necessidade de estimular o contato entre as ideias prévias dos alunos com os saberes novos e seus possíveis usos na vida prática. Na teoria humanista, é o aluno que estipula o que quer aprender. A sua aplicação em sala de aula seria organizada por meio de debates, discussões, resolução de problemas. Nesse contexto, o professor seria apenas um facilitador, pois o aluno seria independente e completamente responsável por seu processo de aprendizagem, o que comportaria muitas vezes uma preparação escolar inadequada. O construtivismo social surge na década de 1990 no bojo das teorias cognitivistas. Nessa abordagem, o aluno enquanto sujeito ativo do processo de ensino aprendizagem deve ser estimulado, a partir de situações-problema, a desenvolver saberes de forma mais elaborada com base em suas ideias prévias. A construção do conhecimento é ativa e inovadora, faz-se a partir da relação entre saberes advindos da experiência e do meio em que se insere o sujeito da ação com os saberes a ensinar. É por meio da dialética entre os saberes novos e os saberes familiares que o sujeito constrói seu próprio conhecimento. Conforme essa abordagem, a construção do conhecimento histórico perpassa o desenvolvimento de competências vinculadas à natureza epistemológica da História. Sendo assim, além dos conceitos substantivos, que encontram muita ênfase nas teorias mais tradicionais, o construtivismo também propõe trabalhar com conceitos de segunda ordem em sala de aula.

O capítulo dois, Narrativa no âmbito da História, trata, especialmente, dos desafios relacionados à construção do conhecimento histórico na sua forma materializada – a narrativa. A narrativa histórica é a reconstrução de atos do passado a partir de interpretações de evidências no presente. A interpretação enquanto característica intrínseca à produção da narrativa histórica ocasiona debates acerca de sua natureza ficcional ou científica. O relativismo cético que evidencia o caráter interpretativo, seletivo e perspectivado da narrativa histórica é contraposto pela ideia de uma narrativa construída a partir de evidências que seguem determinados parâmetros metodológicos e, portanto, não ficcionais. Mesmo reconhecendo a subjetividade na produção do conhecimento histórico, a integridade intelectual, a busca pela objetividade e o suporte em evidências demarca a fronteira entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional. A definição de narrativa histórica proposta por Gago encontra suporte em Atkinson. A escrita da história é descritiva, explicativa e perspectivada. Descritiva porque o historiador tem o compromisso de remeter a determinados acontecimentos da temporalidade analisada. Explicativa devido a procurar responder aos porquês de dadas situações do passado com o objetivo de formar um quadro inteligível dele, mesmo que seletivo. Além disso, busca as conexões com outros acontecimentos e evidências históricas. Por fim, a escrita da história é perspectivada, uma vez que existe uma pluralidade de posições diversas sobre o mesmo tema, dependendo do ponto de vista do historiador, dos recortes, seleções e escolhas realizadas e do quadro conceptual utilizado. A narrativa histórica apresentaria também características de uma “estória” ficcional no que diz respeito ao desenvolvimento de uma trama contingente e vinculada à verossimilhança. No entanto, a narrativa histórica se distingue da ficcional pelo respeito à evidência. A partir desses pressupostos, a autora pretende investigar como os alunos pensam a existência de narrativas diferentes sobre um mesmo tema do passado.

O terceiro capítulo, Educação e cognição em História, analisa algumas pesquisas realizadas na área da Educação Histórica em países como Inglaterra, Portugal, Espanha, Canadá e Estados Unidos. Para responder à questão de como ensinar História, os pesquisadores desta área de investigação se voltam para as ideias que os alunos e os professores têm acerca da disciplina da História e dos conceitos meta-históricos. Superando uma visão de ensino pautada na memorização de fatos e datas do passado, essas pesquisas buscam, a partir da interlocução entre os conceitos substantivos e os meta- históricos, desenvolver um pensamento histórico mais elaborado nos alunos. Os conceitos meta-históricos estão ligados à própria natureza epistemológica da disciplina de História. A partir da compreensão de conceitos como evidência, empatia, mudança e causa, o aluno estaria capacitado a entender como se dá a construção do conhecimento histórico. Dotado de tais ferramentas e competências, o aluno seria capaz de questionar e resolver problemas ligados ao conceito de evidência, a provisoriedade da explicação histórica e a existência de diferentes narrativas sobre um mesmo tema. Com base nessa perspectiva de progressão das ideias históricas dos alunos, o professor assume um papel importante enquanto orienta dor e organizador das atividades na sala de aula. O professor deve ter uma ideia clara dos objetivos que se propõe a atingir e quais estratégias adotar para alcançá-los. O mapeamento das ideias tácitas dos alunos é o ponto de partida inicial para organizar atividades cognitivamente desafiadoras, pois, a partir do levantamento das ideias dos alunos, é possível pensar uma sequência didática capaz de trabalhar de forma gradual partindo dos níveis já alcançados até o nível que se pretende obter. De forma geral, as pesquisas realizadas no campo da Educação Histórica buscam, por meio da relação entre conceitos substantivos e meta-históricos, dotar os alunos de ferramentas mentais que lhes possibilitem uma leitura reflexiva, crítica e consciente sobre a realidade humana.

No capítulo seguinte, Metodologia, a autora expõe de forma clara a metodologia adotada para compreender o modo como os alunos pensam a existência de narrativas históricas divergentes sobre o mesmo tema. A partir da abordagem da Grounded Theory, a pesquisa foi feita com 76 alunos do início do 2º e 3º ciclos do ensino básico do norte de Portugal. Aos alunos foram entregues dois materiais: um contendo informações sobre o tema que seria abordado e outro composto por dois relatos históricos sobre “O povo romano e sua presença na Península Ibérica” e “O vinho do Porto”, acompanhados por um questionário. O questionário tinha entre seus objetivos chamar a atenção dos alunos para a existência de diferentes relatos, fazendo com que eles pensassem sobre a multiperspectividade na narrativa histórica e pudessem fornecer uma explicação para essa característica. Os dados foram recolhidos em três momentos diferentes. Foi realizado um estudo pré-piloto com seis alunos do 6º ano de escolaridade e seis alunos do 8º ano de escolaridade. O grupo selecionado era composto por alunos com aproveitamento considerado insuficiente, médio e bom. Em seguida, esses alunos responderam os questionários sobre os romanos na península Ibérica e sobre o vinho do Porto. A partir dos dados recolhidos, foi possível confirmar que os alunos entendiam as tarefas propostas. Na segunda fase, ou no estudo piloto, foi realizado o mesmo procedimento, mas com seis alunos do 5º ano e seis alunos do 7º ano. Assim como na primeira fase, os alunos compreenderam as tarefas propostas. A terceira fase, ou estudo principal, contou com a participação de 52 alunos. Eles responderam o questionário, e, em um segundo momento, nove deles participaram de entrevistas individuais. As entrevistas serviram para esclarecer algumas ambiguidades que surgiram nas respostas, bem como para observar se a análise realizada era congruente com o que os alunos expressaram de forma escrita.

No capítulo cinco, Ideias dos alunos acerca da variância da narrativa histórica, as respostas dos alunos foram categorizadas em cinco níveis de progressão. Com base na compreensão do texto, nas ideias sobre o conceito de narrativa, no papel do historiador na construção da narrati va e nas ideias sobre o passado, as respostas dos alunos foram categorizadas em “Contar – A Estória”, “Conhecimento – Narrativa correta”, “Diferença – Narrativa correta / mais completa”, “Autor – Opinião ou narrativa consensual” e “Natureza – Perspectiva”. No nível “Contar” a compreensão do texto foi parcial. Segundo os alunos, as narrativas relatavam o mesmo, mas com palavras diferentes. A variância era devido à forma que cada historiador utilizava para contar as “estórias”. No perfil “Conhecimento”, ocorreu uma compreensão restrita e às vezes global do texto. Para explicar a existência de narrativas divergentes, os alunos nesse nível apontaram para a impossibilidade de o historiador ter acesso a todas as fontes sobre um determinado tema. Só existiria uma narrativa correta, e seria aquela que contém mais informações sobre o passado. A ideia de passado nesse nível é estática – e, como o passado só aconteceu de uma forma, somente uma narrativa é possível. No nível de progressão “Diferença”, a compreensão do texto foi restrita ou global. A diferença das narrativas é explicada por uma maior ou menor quantidade de informações, portanto algumas narrativas seriam mais corretas do que outras. A diferença percebida também é justificada tendo como base o período em que as narrativas foram escritas. Mesmo apresentando uma ideia de relatividade do conhecimento histórico, os alunos nesse nível não foram capazes de justificar a variância histórica, por sustentar uma ideia de narrativa factual e mais completa. No nível “Autor”, a compreensão do texto foi restrita ou global. A explicação para a existência de narrativas diferentes é vinculada à figura do historiador. A partir de seu ponto de vista e da interpretação das fontes, ele seria o responsável pela existência de diferentes narrativas. Na opinião desses alunos, os historiadores são desonestos, pois não deveriam se basear em suas opiniões para escrever a história. No nível “Natureza – perspectiva”, ocorreu uma compreensão global das narrativas propostas. A divergência entre as narrativas é tida como intrínseca à escrita da história. O historiador, a partir dos questionamentos colocados, do aparato teórico utilizado e do contexto no qual está inserido produziria diferentes narrativas. A diferença não seria algo nocivo para história, pois lhe é inerente – a história é um saber em continua elaboração.

No sexto e último capítulo da obra, Discussão dos dados empíricos, os dados levantados na pesquisa são confrontados com os resultados de pesquisas realizadas na Inglaterra por Peter Lee e em Portugal por Isabel Barca. Observou-se que as ideias dos alunos portugueses e ingleses sobre a variância da narrativa histórica apresentavam similitudes. Além disso, observou-se também que o grau de complexidade das explicações sobre a existência de narrativas diferentes não estava determinado pela idade ou ano de escolaridade dos alunos. A capacidade de operar com conceitos metahistóricos por parte desses alunos leva a pensar sobre a importância de se buscar uma progressão do pensamento histórico em sala de aula por meio de atividades desafiadoras em detrimento de uma disciplina histórica marcada pela memorização e desvinculada das práticas quotidianas. Em uma abordagem mais quantitativa, a autora buscou identificar a distribuição dos alunos por níveis de progressão e a distribuição dos níveis de progressão por ano de escolaridade e por sexo. O nível de progressão mais presente foi o nível “Autor”, com 31%; os níveis “Contar”, “Conhecimento” e “Diferença” apresentaram 19% cada um; o nível “Fragmento” contabilizou 10%; e o nível mais elaborado, “Natureza – Perspectiva”, apenas 2%. No 5º ano, o nível mais presente, com 26%, foi “Conhecimento”, seguido pelo nível “Autor”, com 22%. O nível “Natureza- Perspectiva” não foi observado nesse ano de escolaridade. No 7º ano, o nível mais presente foi “Autor”, contando 40% dos alunos. O nível “Contar” e “Diferença” contabilizou, cada um, 20 % dos participantes. O nível mais elaborado, “Natureza – Perspectiva”, obteve 2%. No 5º ano de escolaridade, observou-se uma distribuição entre os níveis de progressão semelhante entre os sexos dos alunos. No 7º ano, o nível “Autor” foi encontrado em 71% dos participantes de sexo masculino, seguido pelos níveis “Fragmentos”, com 14,3%, e “Diferença”, com 14,3%. O nível “Autor” foi o mais frequente entre os alunos de sexo feminino, e o nível “Natureza – Perspectiva” contabilizou 5,6%. Segundo a autora, o fato de o nível “Natureza- perspectiva” não ter sido observado no 5º ano não prova que a idade é um fator determinante na formação de um pensamento mais elaborado, já que foram observados alunos de 10-11 anos em níveis de progressão mais elaborados do que alunos de 13-14 anos.

A importância dessa pesquisa se torna evidente quando a inserimos em um contexto maior, como, por exemplo, quando a colocamos em relação com outras pesquisas realizadas na área da Educação Histórica. Os dados levantados nessa obra somados aos de outros estudos realizados na Inglaterra por Peter Lee e em Portugal por Isabel Barca permitem demonstrar que os alunos são capazes de pensar e operar conceitos meta-históricos. Tais dados também servem para corroborar a importância de se buscar um ensino de História que leve em consideração a progressão do pensamento histórico.

Em um mundo cada vez mais globalizado e plural, no qual se vê uma proliferação de discursos múltiplos capazes de abarcar os mais diferentes pontos de vista sobre uma mesma realidade, torna-se impreterível dotar os alunos de instrumentos apropriados para se inserir e atuar de forma ativa e consciente na sociedade. A investigação acerca das ideias dos alunos sobre a existência de diferentes narrativas históricas de uma mesma realidade vai ao encontro dessa carência de orientação temporal. A superação de uma História cristalizada e desvinculada do presente é um dos principais objetivos levantados neste estudo, pois a finalidade do ensino de História é fornecer aos alunos instrumentos que lhe possibilitem ler o mundo historicamente e atuar nele de forma crítica e consciente.

Ana Pauloa Rodrigues Carvalho –  Mestranda em História Social na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Graduada em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO). Membro do Laboratório de Ensino de História (LEHIS/UNICENTRO) e do Grupo de Pesquisa História, Ensino e Infância. Contato: carvalhoanapaula14@gmail.com.

Acessar publicação original

[IF]