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Futebol, História e Política / Estudos Históricos / 2019
Dossiês temáticos têm-se mostrado de grande importância para o desenvolvimento dos estudos sobre esportes e futebol nas Ciências Humanas e Sociais brasileiras. Desde pelo menos o ano de 1994, com o dossiê organizado pela Revista USP (n. 22 – Futebol), assistiu-se a uma série de publicações em periódicos científicos sobre esse tema no país. Com base em números especiais, textos e autores tornaram-se referência e fonte recorrente de citações. Deste modo, contribuíram para a formação de um campo de estudos e possibilitaram um avanço reflexivo — teórico, metodológico e empírico — em torno das práticas esportivas nacionais e internacionais.
A própria revista Estudos Históricos contribuiu nesse sentido em 1999, quando publicou o número 23 — Esporte e Lazer —, conhecido por trazer à tona debates e por ensejar polêmicas acerca dos referenciais mais apropriados para pesquisas na área. A “década esportiva”, como ficou conhecido o período entre 2007 e 2016, com a realização de uma gama de megaeventos esportivos no Brasil, estimulou também um conjunto significativo de dossiês dessa natureza, publicados em congêneres como a Horizontes Antropológicos, a Revista de História (USP) e os Cadernos AEL (Unicamp), entre outros periódicos científicos.
Passados os megaeventos, e multiplicadas as pesquisas sobre modalidades esportivas em programas de pós-graduação no país, novas gerações continuam a se debruçar sobre esse fenômeno típico das sociedades modernas e contemporâneas, capaz de mobilizar identidades coletivas, interesses midiáticos, circulações globais, fluxos financeiros e representações sociais. A motivação para a organização de um número específico dedicado à temática futebolística, cuja importância no século XX permanece atual, relaciona-se também a um cenário de desafios políticos que se colocam para a sociedade brasileira, na esteira das chamadas Jornadas de Junho de 2013 e no conturbado ciclo jurídico-político que se sucede ao Brasil pós-megaeventos.
O presente dossiê propõe, pois, uma articulação entre três dimensões — Futebol, História e Política. Estas inspiram-se, por sua vez, no trabalho desenvolvido pelo saudoso colega Carlos Eduardo Sarmento (2013), pioneiro no CPDOC nos estudos futebolísticos. Em sua investigação sobre a história institucional do futebol, feita com fontes primárias junto aos arquivos da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), Sarmento tratou da constituição da identidade nacional por meio da Seleção Brasileira e propôs intersecções diacrônicas desta com entidades desportivas, com instituições de poder e com estruturas políticas em chave mais ampla.
A tríade que circunscreve o presente número permite igualmente arejar um assunto marcado pelo peso ceticista das Teorias Críticas do Esporte, muito presentes nas Ciências Sociais europeias, norte-americanas e sul-americanas entre os anos 1960 e 1980, a exemplo dos escritos de Jean-Marie Bhrom (2006), Gerhard Vinnai (1973), Bero Rigauer (1981) e Juan José Sebreli (2005).
Se a introdução dos estudos sobre futebol no Brasil precisou contornar tais críticas funcionalistas e frankfurtianas, que preconizavam sua condição seja de dominação instrumental seja de epifenômeno da ideologia capitalista, valeu-se para tanto das postulações da Antropologia Social na afirmação da relevância do objeto no decorrer dos anos 1980. Rito, mito e símbolo das sociedades complexas foram, então, mobilizados para observar processos constitutivos da identidade nacional, em particular o significado, ora metafórico ora metonímico, adquirido pelo selecionado brasileiro nos eventos quadrienais das Copas do Mundo FIFA, com seus sentidos amplificados e conduzidos pelas narrativas da imprensa.
Assim, de tema secundário e por vezes não sério, o futebol pouco a pouco conquistou sua legitimidade e alcançou sua institucionalização na Academia. Nos últimos anos, observa-se também uma diversificação de abordagens, com a capacidade de ir além do âmbito meramente identitário e culturalista. No terreno da historiografia, a história social tem-se apropriado da temática em períodos mais recentes, graças a trabalhos seminais como o de Leonardo Pereira (2000). É o caso de destacar também a história política, cuja renovação nos anos 1980 (Rémond, 2003), se ainda é tímida na oferta de pesquisas concretas sobre o assunto, pavimenta caminhos para um tratamento menos canônico nessa área.
A proposta de renovar olhares acerca da história política do futebol é, portanto, um objetivo que se procurou contemplar com o presente volume. Da mesma maneira que as edições anteriores de Estudos Históricos, a grande demanda recebida e o elevado número de artigos aprovados, acima do que se poderia afinal publicar, foram uma prova do número de pesquisas de qualidade existentes nos dias de hoje, não só no Brasil como na comunidade acadêmica internacional. A difícil tarefa de selecionar ao final os textos por publicar sinaliza para a existência de um alargamento e uma continuidade geracional de pesquisadores que vêm se formando nas últimas décadas.
Sendo assim, o presente dossiê é constituído por três partes principais. A primeira conta com os sete artigos selecionados após o processo de avaliação cega por pares. Trata-se de doutorandos e doutores, vinculados a programas de pós-graduação no Brasil, em sua maioria historiadores, mas também de sociólogos, urbanistas e pesquisadores da área de Educação Física.
A primeira parte é composta por textos de autoria de João Malaia (Dep. História / Universidade Federal de Santa Maria); Marcel Tonini (Dr. História / Universidade de São Paulo) e Sérgio Giglio (Dep. Ed. Física / Universidade Estadual de Campinas); Raphael Rajão (Doutorando em História / FGV CPDOC); Luís Burlamaqui Rocha (Dr. em História / USP); Lívia Magalhães (Instituto de História / Universidade Federal Fluminense); Erick Melo (IPPUR / Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Gabriel Cid (Dr. IESP / Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Salienta-se, ainda na primeira parte, a colaboração de um autor de origem inglesa, Matthew Brown, professor de Letras Modernas na Universidade de Bristol, no Reino Unido. Agradecemos, a propósito, às dezenas de pareceristas ad hoc que contribuíram voluntariamente com sua expertise para a composição final dessa seção.
A segunda parte abarca as colaborações especiais e traz os dois autores internacionais, convidados especialmente pela equipe editorial para publicarem no dossiê. São eles: Courtney Campbell, brasilianista de origem estadunidense, doutora em História pela Universidade de Vanderbilt (EUA) e professora da Universidade de Birmingham; e David Wood, latino-americanista de origem inglesa, responsável por presidir a Society for Latin American Studies (SLAS) no período 2017-2019, e professor da Universidade de Sheffield.
A terceira e última parte do número 68 de Estudos Históricos apresenta uma entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, referência importante nas Ciências Históricas e Sociais, em particular no estudo da obra de Gilberto Freyre, destacando-se como pesquisadora associada há mais de vinte anos do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge.
2019 foi um ano de perdas na área de estudos do futebol, com o falecimento de três pesquisadores referenciais: o sociólogo inglês Eric Dunning, o geógrafo Gilmar Mascarenhas e a antropóloga Simoni Lahud Guedes. À memória desses três estudiosos dedicamos este número.
Por fim, desejamos a todos uma boa leitura.
Referências
BHROM, Jean-Marie; PERELMAN, Marc. Le football, une peste emotionelle. Paris: Gallimard, 2006.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2003.
RIGAUER, Bero. Sport and work. New York: Columbia University Press, 1981.
SARMENTO, Carlos Eduardo. A construção da nação canarinho: uma história institucional da seleção brasileira de futebol, 1914-1970. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2013.
SEBRELI, Juan José. La era del fútbol. Buenos Aires: Debolsillo, 2005.
VINNAI, Gerhard. Football mania: the players and the fans – the mass psychology of football. London: Orbach & Chambers, 1973.
Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br
João Marcelo Ehlert Maia – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: joao.maia@fgv.br
Thais Continentino Blank – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: thais.blank@fgv.br
Os editores
HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MAIA, João Marcelo Ehlert; BLANK, Thais Continentino. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.32, n.68, set. / dez.2019. Acessar publicação original [DR]
Futebol, biografias e memórias / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2018
O período que vai de 2007 a 2016 foi cognominado, em coletânea recente, de “a década esportiva” (Spaggiari; Machado; Giglio, 2016). O balizamento temporal desses dez anos faz alusão, por suposto, ao intervalo que se estende entre o anúncio da Copa do Mundo no Brasil pela FIFA e a realização dos Jogos Olímpicos de verão na cidade do Rio de Janeiro, ocorridos há três anos atrás.
No referido decênio, como sabemos, o país assistiu a uma série de convulsões político-sociais. O otimismo, o crescimento, a inclusão e as promessas até então reinantes, e que incluíam os megaeventos esportivos na agenda das transformações e promoções por que passava a nação, parecem ter sido levados de roldão pela onda conservadora e pelo abalo institucional vivenciado em tal conjuntura histórica, a se arrastar até os dias de hoje.
Não cabe aqui, nos limites dessa apresentação, discorrermos sobre esse ponto, mas talvez valha a pena pinçar desse quadro de múltiplas, sucessivas e desencontradas crises das instituições de poder ao menos um aspecto que pode ser considerado positivo. Dentro daquilo que nos compete, tal aspecto diz respeito ao contexto dos grandes eventos de esportes transcorridos no país, com especial atenção ao futebol.
O estudo de Campos (et. al., 2017), dedicado a mapear a presença do futebol nas Ciências Sociais e Humanas no decorrer do século XXI, traz um levantamento que pode ser tomado como alvissareiro para a consolidação desse subcampo disciplinar no país. A despeito da persistência das disparidades regionais, apontadas criticamente pela equipe de pesquisa associada ao GEFuT – Grupo de Estudos em Futebol e Torcidas, da Escola de Educação Física / UFMG –, a investigação mostrou um incremento quantitativo notável na produção científica com temática futebolística nos últimos anos.
Talvez seja problemático postularmos aqui os efeitos de um “legado acadêmico” – apropriação do termo nativo, supostamente beneficente, da organização promotora da segunda Copa do Mundo realizada no Brasil em 2014 –, mas é indubitável que a visibilidade do megaevento planetário estimulou a criação de grupos e projetos de pesquisa; propiciou a realização de fóruns e reuniões em associações de pós-graduação; e motivou a organização de dossiês e artigos nos periódicos científicos centrados no temário do futebol.
Se a consolidação de tais estudos vai-se mostrar duradoura, apenas os próximos anos e as futuras pesquisas de mapeamento irão dizer. De todo modo, é de se esperar que a quantidade de novos trabalhos implique em elevação de qualidade e em adensamento analítico, bem como que a curva ascendente apontada pela equipe do GEFuT reverta-se, pelo menos no médio e no longo prazo, na estabilização dessa seara de investigações.
Para as gerações que hoje começam a lidar com o objeto, trata-se de uma forma otimista de dizer que o futebol doravante não será mais “tema menor”. Tampouco que o mesmo carecerá de seriedade e legitimidade no rol dos assuntos relevantes, tal como parte da Academia e do senso-comum quis, durante bom tempo, nos fazer acreditar.
Um dos sinais da afirmação e da consolidação dos estudos futebolísticos é o interesse dos pesquisadores em fase de formação na pós-graduação dos cursos de História e de Ciências Sociais em se dedicar a este assunto. Mais do que contabilizar números de dissertações e teses defendidas, um caminho possível para aferir o estado da arte é levantar os dossiês que vêm sendo organizados ultimamente nas revistas discentes de pós.
A título de exemplificação, invoquemos os volumes que resultaram em publicações no ano de 2018. Um primeiro exemplo é o da Revista Mosaico, dirigida pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em História Política e Bens Culturais (CPDOC-FGV), que se intitulou “Diálogos com o futebol” [1]. O segundo, denominado “História dos esportes e do lazer”, foi uma iniciativa da Revista discente Hydra, vinculada à pós-graduação em História da Universidade Federal de São Paulo / UNIFESP [2].
O presente dossiê, cuja chamada foi lançada no ano passado, vem ao encontro dessa tendência que consideramos positiva e sintomática do interesse de mestrandos e doutorandos pela abordagem acadêmica do futebol. Pertencente ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), sediado no estado de Mato Grosso do Sul, o periódico eletrônico discente História em Reflexão, criado há mais de dez anos (2007) e publicado com regularidade semestral, também elegeu para tematização em 2019 o futebol.
Convidados pela editora da revista Kelen Katia Prates Silva, mestranda do Programa, a delinear as diretrizes do supracitado dossiê, amadurecemos inicialmente qual seria o escopo preferencial por definir. Com o critério preliminar da exclusão dos temas relativamente explorados em publicações precedentes, orientamo-nos pelo capítulo de balanço feito pela professora da UFF, Simoni Lahud Guedes, acerca da produção científica concernente ao eixo “Esporte, lazer e sociabilidade” (2010), em coletânea organizada pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, a ANPOCS.
No tocante à antropologia do futebol, a pesquisadora destaca duas temáticas que avultaram nos últimos anos, tornando-se recorrentes, em função de sua visibilidade e de sua percepção mais abrangente como “problema social”. A primeira concerne às identidades construídas por meio do futebol, com mais ênfase para a relação identitária do país com a Seleção Brasileira e com as Copas do Mundo, à luz das chamadas “comunidades imaginadas”, de que falava Benedict Anderson para pensar a emergência do nacionalismo no contexto pós-colonial dos países do sudoeste asiático.
O segundo assunto destacado por Guedes na sua apreciação de conjunto relaciona-se às torcidas organizadas, cujo envolvimento com a pauta da opinião pública atinente à violência urbana vem demandando da Academia estudos de relativização dos estigmas, da naturalização de comportamentos desviantes e do etos associado a estes agrupamentos juvenis na contemporaneidade.
Tendo em vista os avanços reflexivos na exploração da identidade nacional e da violência no futebol, consideramos de modo alternativo um dossiê com foco futebolístico capaz de cobrir um ângulo novo do assunto e, ao mesmo tempo, de não deixar de incitar questões tradicionais e caras ao terreno da historiografia.
Nesse sentido, elegemos dois flancos de abrangência: a relação dual entre história e memória, sempre importante como suporte conceitual na elaboração teórica dos historiadores; e a biografia, dimensão de igual importância na reflexão em torno da escrita historiográfica, em função do que pressupõe para o entendimento da relação entre indivíduo, sociedade e temporalidade, ou, para usarmos os termos críticos de Bourdieu, para desconstruir sua “ilusão biográfica”.
Ambos os temas sugeridos consistem em questões frequentes de interpelação, quer aos estudiosos do futebol tout court, quer aos historiadores que se dedicam a analisar as fronteiras de seu métier profissional com outras áreas. O dossiê Futebol, biografias e memórias mobiliza, pois, um ponto de partida metodológico para refletir sobre o estudo da prática deste esporte profissional, a saber, a escrita de sua história vis-à-vis a narrativa dos jornalistas esportivos.
O aquecimento do mercado editorial com livros sobre futebol, especialmente na conjuntura dos megaeventos esportivos, é uma das expressões mais candentes dos desafios de se pensar uma história científica desta modalidade esportiva, face a um volumoso material preexistente, com a capacidade de fornecer dados e informações abundantes, mas dotados de objetivos e métodos diversos daqueles almejados pelos historiadores profissionais. Assim, embora com objetos convergentes, os objetivos de cientistas sociais e jornalistas muitas vezes divergem quando se trata de procedimentos de pesquisa relacionados ao futebol.
Em artigo seminal sobre os usos do gênero biográfico na história e no jornalismo, Benito Bisso Schmidt (1997) detém-se na gama de aproximações e de afastamentos entre as duas áreas, mediadas pela literatura ou pelo que Walter Benjamin compreende como a “arte de narrar”. Ao abordar a emergência da biografia na vida contemporânea, Bisso salienta, entre os jornalistas, o advento do new journalism nos Estados Unidos, em meados do século passado, bem como o modo pelo qual as biografias são exploradas, porquanto suscitam a curiosidade e despertam de sedução no imaginário coletivo em face da vida privada de personalidades e homens célebres.
Em contrapartida, os historiadores assistiram a uma retomada dos relatos biográficos desde fins dos anos 1970, quando a historiografia deixa de lado postulados estruturalistas e críticas ao positivismo da história oficial, também chamada dos grandes vultos, para apostar no potencial de abordagens históricas que podem, no limite, ajudar a reconstituir painéis históricos inteiros. O reconhecimento do papel do sujeito na história permite a recuperação das histórias de vida de anônimos, seja os egressos da cultura popular do Renascimento – como no caso do moleiro Menocchio de Carlo Ginzburg – seja os personagens saídos da cavalaria medieval – como no episódio do marechal Guillaume, enfocado por Georges Duby.
Não é o momento apropriado, nos limites de uma Apresentação, para aprofundar a longitude dessa discussão. Nosso intuito consiste apenas em sublinhar a pertinência do debate escolhido para esse dossiê, bem como sua relevância de fundo, na medida em que se trata de articular os estudos futebolísticos com a agenda de questões biográficas e memorialísticas com que a historiografia se depara de maneira cíclica.
Para este número, após o cumprimento das etapas constitutivas do “fazimento editorial”, quais sejam, a divulgação da chamada, a submissão dos autores, o parecer por pares cegos, a retificação dos originais em atendimento às avaliações, o cumprimento dos prazos e a padronização final dos textos à guisa de publicação – o presente dossiê chegou à seleção de 8 artigos aprovados, somados a uma entrevista e a uma resenha.
Além de uma contribuição em espanhol, submetida por trio de pesquisadores uruguaios, observa-se o alcance nacional do dossiê, em termos de diversidade regional, institucional, disciplinar e de titulação dos autores cujos textos foram afinal aprovados. Haja vista que a maioria das biografias tende a enfocar futebolistas que se tornaram ídolos esportivos, o presente dossiê contempla análises de personagens históricos, como Pelé e Garrincha, chegando até os dias de hoje, com o caso de Neymar Jr.
Outro alvo tematizado no dossiê são os livros apologéticos que narram a saga dos clubes de futebol, via de regra escritos por aficionados e memorialistas. Estes, na linha dos antiquaristas, voltam-se para o passado das suas agremiações clubísticas, em busca de datas, anedotas, mitos de origem e feitos extraordinários protagonizados por figuras lendárias do seu panteão.
Ainda no quesito do memorialismo, o dossiê conta com uma contribuição que se debruça sobre a trajetória do torcedor-símbolo de um modesto clube de Pelotas, o Farroupilha. Neste trabalho, o argumento incide na construção da persona abnegada, cujos sacrifícios altruísticos em prol do time do coração exemplificariam o lídimo amor clubístico, à primeira vista autêntico e incondicional.
Dois outros artigos perscrutam as origens futebolísticas por meio dos espaços, um deles com foco no futebol de várzea paulistano, outro com respeito à introdução da prática nas praças públicas da cidade de Fortaleza. Aqui lança-se luz no caráter espacial do jogo, seguido por modificações bruscas desses mesmos espaços ao longo do século XX e no início do século XXI, relegando-as à condição de esquecimento.
Não obstante, tais artigos chamam ao mesmo tempo a atenção para a imbricação dos dois episódios com as abordagens contemporâneas que entendem a relação espaço-temporal na chave não somente dos documentos, mas também dos monumentos, com destaque para os lugares de memória a que se referia Pierre Nora.
Last but not least, o dossiê completa-se com a publicação de uma entrevista e de uma resenha, sendo ambas voltadas para as práticas e representações do futebol feminino no Brasil. Esta temática, não custa repetir, vem cada vez mais galvanizando pesquisadores interessados em revisitar a escrita da história deste esporte à luz dos estudos de gênero e das questões que se colocam para a mulher e para o corpo feminino na contemporaneidade.
Por fim, não podemos deixar de reiterar nosso agradecimento ao generoso convite de Kelen para a organização do dossiê que ora vem a público, após quase um ano de labor e de preparação.
Notas
1. Disponível em: http: / / bibliotecadigital.fgv.br / ojs / index.php / mosaico / issue / view / 4166.
2. Disponível em: http: / / www.hydra.sites.unifesp.br / index.php / pt / numeros / 75-numero-5-volume-3-dezembro2018
Referências
CAMPOS, Priscila (et. al.). “Produção sobre futebol nas ciências humanas e sociais: um mapa a ser analisado. In: CORNELSEN, Élcio Loureiro; CAMPOS, Priscila; SILVA, Sílvio Ricardo da. Futebol: linguagens, artes, cultura e lazer. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2017.
GUEDES, Simoni. “Esporte, lazer e sociabilidade”. In: DUARTE, Luiz Fernando Dias (Org.). Horizontes das ciências sociais no Brasil: antropologia. São Paulo: ANPOCS, 2010.
SCHIMDT, Benito Bisso. “Construindo biografias…historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 19, 1997, p. 3-21.
SPAGIARI, Enrico; MACHADO, Giancarlo; GIGLIO, Sérgio (Orgs.). Entre jogos e copas: reflexão de uma década esportiva. São Paulo: Intermeios / Fapesp, 2016.
Bernardo Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais (FGV-CPDOC)
Raphael Rajão Ribeiro – Doutorando em História Política e Bens Culturais (FGV-CPDOC)
HOLLANDA, Bernardo Buarque de; RIBEIRO, Raphael Rajão. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 12, n. 24, jul. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Futebol, Raça, e Nação no Brasil / História Unisinos / 2015
O que está em jogo? Em torno do futebol, da raça e da nação no Brasil: apresentação para uma história ausente
Há quem reclame sobre a necessidade de mais estudos de história intelectual na historiografia brasileira, de mais reflexões que deem conta dos processos que mobilizaram intelectuais, perspectivas teóricas e suas interpretações, um esforço que iria de campos de estudo como a questão agrária, passando por aquele da ecologia e meio ambiente, o da história das doenças e mesmo da história dos esportes, entre tantos outros. Quando surgem? Quais os seus principais e pioneiros intelectuais? Quais os diálogos teóricos propostos? Como se conectaram (ou não) com os debates contemporâneos da sociedade brasileira?
Muitas reflexões historiográficas, ao alinharem obras e autores, abriram mão de abordagens que pudessem apontar os termos dialógicos dos debates intelectuais – sempre amplos e multifacetados. O mundo acadêmico no Brasil produziu mesmo uma convenção sobre a existência de um pensamento social brasileiro, algo que não poucas vezes foi superdimensionado, supostamente definitivo e prospectivo. Nesse quadro, algumas influências e ideias foram destacadas, entre outras tantas abandonadas.
Interessante perceber como a música, o carnaval, o futebol, a capoeira, entre outros temas, ficaram banidos da historiografia brasileira até 30 anos. Começaram a interessar muito lentamente, inicialmente mais a antropólogos e sociólogos, só depois a historiadores. Durante muito tempo, na abordagem desses assuntos reinavam os jornalistas, mas não os acadêmicos.
Paradoxal, pois o carnaval e o futebol se transformaram, em meados do século XX, em símbolos da identidade nacional brasileira. Já a capoeira, nos dias de hoje, é considerada uma das maiores representações internacionais de cultura do Brasil. Ainda assim, só recentemente estes temas têm mobilizado pesquisadores acadêmicos para revolver seus processos históricos de surgimento, transformações e evocações sociológicas contemporâneas. Para muitos são símbolos (construídos) da nação e com uma história do tempo-presente ainda incompleta.
O que pensariam disto os explicadores do Brasil – intelectuais pioneiros, passando não só por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado, mas também Paulo Prado, Fernando de Azevedo, Raymundo Faoro, Celso Furtado, e outros? Para muitos destes, a sociedade escravista – colonial, patriarcal e patrimonialista – explicaria muito de um Brasil contemporâneo, desigual e hierarquizado. Mas como pensar a sociedade brasileira no pós-emancipação exatamente quando o futebol avança entre práticas, fábricas e personagens com diversas origens e identidades? Foi um longo processo no qual ex-escravos e seus filhos e netos foram transformados em “cidadãos de cor preta”, nomenclatura utilizada até praticamente o início dos anos 1940 em comícios políticos de setores conservadores, trabalhistas e mesmo comunistas.
No alvorecer do século XX, ideias em torno da identidade nacional, da cultura nacional e de outros símbolos envolventes foram manipuladas por intelectuais diversos. O futebol, um estrangeirismo para alguns, se transformaria em paixão, esporte de massa e envolveria milhares de adeptos e agremiações em pouco mais de duas décadas. O Brasil inventava-se numa modernidade que escolhia cores, rostos, corpos e identidades.
Nem sempre a associação entre nação e futebol – algo relativamente recente – apareceria nas interpretações clássicas. Mesmo outros campos de estudos – aqueles das relações raciais e da cultura negra – pouco avançariam na possibilidade de articular interpretações sobre o futebol e suas dimensões históricas e sociológicas. Foram assim intelectuais como Arthur Ramos, Edison Carneiro, passando por Florestan Fernandes e toda a geração da Escola Sociológica Paulista. O futebol poderia ser uma chave interpretativa para o Brasil, mas vários intelectuais não se aproximaram dela.
Por muito tempo, o futebol foi transformado num espaço sacralizado para os cientistas sociais. Podia ser admirado com quase ufanismo mas nunca investigado em termos sociológicos.
A obra de Mário Rodrigues Filho, O Negro do Futebol Brasileiro1, tem sido recuperada, embora ainda como leitura secundária, enquanto memória. Ela foi escrita num período de intenso debate sobre raça, racismo e cidadania, no cenário do pós-guerra, em meio aos debates da Constituinte de 1946 e quando, nos palcos do Rio de Janeiro, intelectuais negros – Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos e outros – criavam o Teatro Experimental do Negro e outras atividades como a Convenção do Negro Brasileiro (1945) e a Conferência do Negro no Brasil (1946), no Rio de Janeiro e São Paulo.
Enquanto isso, a organização de ligas desportivas, a criação de clubes e a presença cada vez mais marcante de negros e mestiços no futebol tinham mobilizado debates desde os anos 1930. Não poderia ser mais um tema de menor importância. O interessante é que no início dos anos 1950, a partir da proposta da Unesco de realizar uma grande pesquisa sobre as relações raciais na América Latina, surgiriam no Brasil vários estudos regionais, particularmente de sociólogos e antropólogos. O silêncio a respeito do futebol e o que ele simbolizava sobre imagens e símbolos em torno da raça e identidade nacional produziram estrondos, no que a obra de Mário Filho, em parte esquecida, tem ajudado a recuperar.
Ao contrário daquele momento, racismo e futebol, práticas e manifestações de xenofobia, estão hoje na pauta internacional. O esporte de massa – que reúne paixões, empresas multinacionais, mídias, debates de cidadania e (inter)nacionalismos – se confronta hoje com outras reflexões. Debates contemporâneos que evocam histórias, processos, experiências e interpretações. Também acadêmicas.
Imagem 1: O jogador negro pega a bola e a leva para a quina do gramado, a fim de cobrar um escanteio. O inusitado – lamentavelmente nem tão inusitado assim – ocorre: um torcedor atira uma banana no relvado. Num gesto de grande perspicácia, o futebolista descasca a fruta, a come e dá seqüência à partida. O público, em grande maioria a discordar do gesto absurdo do adepto, o saúda em uníssono.
As polêmicas mundiais que se seguem dão conta da dificuldade de tratar da questão das manifestações de racismo nos espaços de futebol, terreno, a princípio, de uma inversão da ordem, no qual se manifestam as mais diferentes facetas humanas, mesmo as mais extremadas, algumas que não podem mais ser toleradas.
Meses depois, são veiculadas repetidamente nos meios de comunicação as imagens do comportamento de uma parte da torcida de um grande clube do país num jogo realizado na região Sul do Brasil. Choca a naturalidade da adoção de procedimentos racistas, expondo mais uma vez a nervura aberta. Contrariamente ao que alguns insistem em afirmar, de forma explícita ou velada, o racismo ainda é uma mácula dolorosa na história desse país (e do mundo) que acaba por se manifestar naquele que é considerado o seu principal esporte, aquela modalidade que tem sido, pelo menos desde os anos 1930, mobilizada como uma das representações de uma suposta peculiaridade nacional.
A propósito, esses episódios de racismo, que grassam pelos gramados nacionais, contradizem mesmo essa construção identitaria. Se o futebol é uma das grandes representações de que a mistura relativamente pacífica de raças é uma das marcas da formação de uma cultura brasileira – na acepção freyreana expressa de forma mais explícita por esse autor no seu artigo “Foot-ball mulato”, publicado do Diário de Pernambuco, em 1938, fonte de inspiração para vários intelectuais que se debruçaram sobre o velho esporte bretão – como esse tipo de manifestação estaria a ocorrer? O único mérito desses episódios é, portanto, expor a fragilidade dessa compreensão, conclamando-nos a melhor refletir sobre as relações entre o mais querido esporte do Brasil, as questões raciais e os discursos sobre a nação.
A popularização do futebol em terra brasilis está relacionada à apropriação desse esporte pelas diferentes classes e grupos sociais, e isso se deu de maneira entrelaçada às questões da cor e raça. Se na fase inicial o futebol era predominantemente aristocrático, com o tempo essa prática desportiva foi apropriada pelos “de baixo”, levando progressivamente à passagem do amadorismo para o profissionalismo, o que possibilitou um aumento significativo da entrada e do sucesso de jogadores das classes populares em geral e de negros em particular. No entanto, não desapareceram do universo do futebol as crenças e práticas racistas que assumiram novas formas e se revitalizaram ao longo dos anos.
Vale frisar que a presença do negro nas lides esportivas não é um fenômeno recente. Foi mesmo um dos primeiros fóruns sociais em que gozou de certo protagonismo e destaque social, ainda que sempre enquadrado pelos limites dos estereótipos e preconceitos.
Imagem 2: Em dezembro de 1853, o célebre Francisco Otaviano, ao narrar as concorridas corridas de cavalos realizadas na Corte, se refere de forma distinta a alguns personagens que nelas tomaram parte. Sobre o gentlemen-rider Alba Carvalho, “aluno do quarto ano da escola de medicina” (Correio Mercantil, 9 dez. 1853, p. 1), sugere ter sido saudado como o grande herói do dia, ao vencer seis outros amadores, todos “trajando elegantes casacas verdes e montados em cavalos de sua propriedade” (Correio Mercantil, 11 dez. 1853, p. 1). Não pode fechar os olhos, contudo, para o fato de que “um demoninho bronzeado, como o amante de Desdemona, de quatro palmos de altura e trajado de azul, foi proclamado, ao som de estrondoso vivas, o primeiro jockey do Prado” (Correio Mercantil, 11 dez. 1853, p. 1): era Balbino (ou Albino), um negro ou pardo de cerca de 13 anos que ganhou as seis provas que disputou.
Na verdade, não podemos negligenciar o fato de que o esporte e as atividades físicas em geral foram claramente mobilizadas nas iniciativas de “branqueamento” da população brasileira. Consideradas como expressão civilizacional superior, supostamente contribuiriam para a “pureza” racial brasileira, devendo ser limitado, portanto, seu alcance ao grande conjunto da população, que não tomou conhecimento desse tipo de compreensão e, de alguma forma, tomou para si o direito de fazer e assistir os mais diversos esportes.
Há que se lembrar, da mesma forma, que a prática de esportes também foi um importante elemento de articulação de comunidades de estrangeiros no país, reunidos em clubes próprios que tinham em conta tanto relembrar algo de sua cultura de origem quanto prestar contas e exaltar a nova nação que os acolhia. Por todo o país, são inúmeras as agremiações de portugueses, italianos, espanhóis, franceses, britânicos, alemães, cujas iniciativas também contribuíram com a formação de uma cultura esportiva nacional.
Este dossiê aborda alguns aspectos da história do futebol brasileiro, desde quando não se suspeitava que a habilidade dos jogadores e as vitórias nesse esporte fossem vistos como um atributo inerente à nacionalidade. Retratando o Brasil em todas suas virtudes e mazelas, grandezas e misérias, o futebol é um domínio em que conflitos sociais, contradições raciais e dilemas nacionais são postos em evidência de maneira cristalina.
Trata-se, assim, de tema de enorme importância e o pequeno número de (excelentes) artigos que integra este dossiê é mais um indicador de que o assunto está a merecer mais atenção, e uma atenção mais cuidadosa, dos historiadores brasileiros. A trilha apresentada pelos autores que integram esta edição, sem sombra de dúvida, se constitui em um chamamento e um alerta acerca da necessidade de esforços mais contundentes.
Abrimos o dossiê com o artigo Futebol, nação e representações: a importância do estilo “futebol-arte” na construção da identidade nacional, de Filipe Fernandes Ribeiro Mostaro, Ronaldo George Helal e Fausto Picorelli Montanha Amaro. O debate muito brevemente aqui apontado nesta apresentação é analisado em profundidade pelos autores, uma contribuição para que melhor compreendamos determinadas ideias que se naturalizaram no senso comum a respeito dos significados do esporte bretão no Brasil.
Numa esteira semelhante, ainda que por caminhos distintos, “Diz-me como jogas e te direis quem és…”: estilos de jogar futebol em Pasolini, Freyre e DaMatta, de André Mendes Capraro, chama para o jogo novos personagens, esgrimindo a ideia de que também no cenário internacional a mobilização do futebol em construções identitárias guarda interessantes recorrências.
Em Entre o ethos aristocrático e o associativismo: futebol amador e competência esportiva na cidade de São Paulo (1920-1930), Diana Mendes Machado da Silva prospecta as diferentes construções de representações sobre o futebol em duas agremiações paulistanas, uma delas eminentemente ligada aos estratos socioeconômicos superiores, o Clube Atlético Paulistano, e outra herdeira de uma das mais pujantes experiências clubísticas nacionais, vivenciada nas várzeas da capital de São Paulo, a Associação Atlética Anhanguera.
Temos ainda uma nota de pesquisa de um dos organizadores deste dossiê. Petrônio Domingues nos apresenta os primeiros resultados de sua investigação sobre a trajetória da Associação Atlética São Geraldo, uma das que teve maior destaque entre as muitas agremiações de negros dedicadas à prática desportiva que se organizaram em São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Sem dúvida, um fascinante objeto de pesquisa.
Embora o futebol seja uma prática desportiva importante no Brasil desde longa data, mobilizando interesses políticos, sociais, econômicos e culturais diversos e catalisando esperanças, sonhos e paixões de milhares de pessoas, inexistiam estudos em torno das intersecções do esporte bretão, raça e identidade nacional até por volta do início do terceiro milênio. Alguns ensaios aludiam ao assunto colateralmente ou então só de passagem, de forma genérica. Felizmente, esse quadro vem se alterando, porém ainda é possível observar algumas peculiaridades. Não se trata mais de negligenciar esse esporte como de suma relevância na vida do brasileiro, com seus signifi cados polissêmicos e sentidos entrecruzados, mas de reequacioná-lo na agenda dos historiadores. Assim, nosso desejo é que muitos outros dossiês e artigos sobre “Futebol, raça e nação no Brasil” venham à baila. O tema é urgente. Os historiadores não podem se eximir dessa responsabilidade.2
Notas
1. O livro do jornalista Mário Rodrigues Filho, O negro no futebol brasileiro, foi publicado originalmente em 1947 e reeditado em 1964, quando recebeu o prefácio de Gilberto Freyre e o autor adicionou mais dois capítulos e fez alterações em sua parte inicial.
2. Sem a pretensão de esgotar as referências bibliográficas sobre o assunto, ver Gordon Jr. (1995, 1996), Lopes (2004), Santos (2008) e Basthi (2014).
Referências
GORDON Jr., C. 1995. História social dos negros no futebol brasileiro: primeiro tempo. Pesquisa de Campo, 2:71-90.
GORDON Jr., C. 1996. História social dos negros no futebol brasileiro: segundo tempo. Pesquisa de Campo, 3-4:65-78.
LOPES, J.S.L. 2004. Classe, etnicidade e cor na formação do futebol brasileiro. In: C.H.M. BATALHA; F.T. da SILVA; A. FORTES (orgs.), Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas, Ed. Unicamp, p. 121-163.
SANTOS, R.P. 2008. Futebol e racismo no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 439:131-147.
BASTHI, A. 2014. Breve reflexão sobre Pelé e a experiência negra no futebol brasileiro. In: F. CAMPOS; D. ALFONSI, Futebol objeto das Ciências Humanas. São Paulo, Leya, p. 115-127.
Victor Melo – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Petrônio Domingues – Universidade Federal de Sergipe
Flávio Gomes – Universidade Federal do Rio de Janeiro
MELO, Victor; DOMINGUES, Petrônio; GOMES, Flávio. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.19, n.3., setembro / dezembro, 2015. Acessar publicação original [DR]
Futebol, sentimento e política / História – Questões & Debates / 2012
A discussão entre historiadores e cientistas sociais e políticos sobre a temática dos sentimentos na política é, sem dúvida, um fenômeno recente. Mais inquietante ainda quando esse recorte crítico é trazido para o campo do estudo político do futebol.
O Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade, da UFPR, foi o proponente do dossiê “Futebol, Sentimento e Política” ao Conselho Editorial da revista História: Questões & Debates. A proposição surgiu das discussões desenvolvidas na Linha de Pesquisa “Intersubjetividade e pluralidade: reflexão e sentimento na história” (PGHIS / UFPR) sobre o papel das emoções na construção das atividades políticas e sociais. Como a maior parte dos membros do núcleo (professores e alunos dos cursos de Mestrado e Doutorado) encontra-se alocada na referida linha de pesquisa, a sugestão da interseção entre futebol e sentimentos na política tornou-se um envolvimento crítico do grupo à proposta. Uma relação dialógica entre linha de pesquisa e grupo de estudo, forçada pelas regras institucionais da pós-graduação, da qual procuramos extrair o melhor.
A partir dessa trajetória interna do núcleo Futebol e Sociedade, a consequência óbvia foi estender a proposta de ampliação do repertório de estudo do futebol a outros pesquisadores do tema.
Sem abrir mão da interdisciplinaridade – característica saudável dos estudos sobre futebol –, a proposta do núcleo é romper as resistências dissimuladas existentes na História em relação aos estudos do futebol. Nessa trajetória, nos últimos dez anos, várias dissertações e teses sobre futebol foram concluídas ou encontram-se em andamento. Desde 2003 compartilhamos com pesquisadores de outras instituições a coordenação do GT de esportes nos encontros nacionais da Associação Nacional de História – ANPUH, assim como nos regionais, no Paraná, além de diversas inserções em eventos nacionais e internacionais. É exemplar, nesse sentido, nossa participação no GT “História del fútbol en America del Sur”, no congresso da Asociación de Historiadores Latinoamericanistas Europeos – AHILA (Espanha, 2011). Assim como é oportuno lembrar a organização, nesta mesma revista, em 2003 (volume 39), do dossiê “Esporte e Sociedade”, quando contamos com a participação do britânico Eric Dunning, do escocês Richard Giulianotti, do argentino Julio Frydenberg, além de autores brasileiros.
Podemos considerar, portanto, que o Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade tem uma trajetória relevante na consolidação dos estudos sobre futebol do campo da História.
Logo, a formatação da proposta desse dossiê sobre futebol, sentimento e política não teria existido sem a contribuição dos colegas da Intersub, como carinhosamente nomeamos a nossa linha de pesquisa. É na pluralidade dos debates sobre religião, imigração, gênero, alimentação, processos culturais e poéticas artísticas que a temática do futebol tem se inscrito. São tantos outsiders que nos sentimos em casa.
Portanto, forjamos a proposta desse dossiê como produto de um debate mais amplo sobre os sentimentos na história que acontece na linha, onde têm se desenvolvido
estudos sobre os percursos históricos e historiográficos que fundamentam a construção teórica dos sentimentos, das identidades, das relações intersubjetivas, das sensibilidades, das relações de poder e da pluralidade social e cultural, nas suas diferentes modalidades discursivas, delimitações temporais e interfaces temáticas.[1]
A organização desse dossiê sobre futebol é, portanto, um risco assumido. A diversidade disciplinar dos autores que aceitaram o desafio dá, em grande medida, o “estado da arte” em que se encontram os estudos sobre o futebol. São sociólogos e antropólogos, um crítico literário e, claro, um historiador. Tivemos a preocupação em buscar análises de pesquisadores estrangeiros e, nesse sentido, foram ricas as contribuições de dois “nativos” sobre a Argentina e a França, além de um pesquisador brasileiro sobre o futebol alemão. Façamos sobre os artigos uma breve apresentação.
Ao propor uma discussão sobre os signos afetivos no futebol, Luiz Carlos Ribeiro recorre à expressão “paixão nacional” como referência à sua análise. O artigo se estrutura em dois momentos: como intelectualmente ao longo do século XX produziu-se esse imaginário em torno do futebol, abordando na sequência algumas estratégias de como tratar histórica e politicamente esse sentimento nacional, ao que definiu como uma proposta de construção de uma agenda de estudos que se abra às possibilidades de uma história política da nossa paixão pelo futebol.
Tomando como referência seus estudos etnográficos anteriores, Arlei Damo propõe um refinamento da noção, por ele elaborada, de pertencimento clubístico, a partir da qual busca uma relação dialógica entre política e as emoções. Para tanto, explora várias manifestações desse pertencimento, fenômeno que denomina de “trama simbólica das emoções clubísticas”. A partir da narrativa do próprio torcedor, procura compreender como os indivíduos se envolvem com um clube, constituindo a paixão clubística.
Elcio Loureiro Cornelsen nomeou a experiência das Copas do Mundo de Futebol de 1990 (Itália) e de 2006 (Alemanha) para nos falar do sentimento nacionalista da população germânica. Tomando como referência a “funesta” experiência do “Terceiro Reich” e a situação contemporânea da reunificação, o autor analisa os embaraços e ressentimentos da reconstrução identitária alemã. Afirma o papel do futebol, em especial da seleção alemã, no reavivamento do trauma identitário pós-holocausto, numa conjuntura muito especial de reunificação nacional.
Futebol e sentimentos políticos na França contemporânea é o tema abordado por Michel Raspaud. Desde a famosa indisciplina do principal astro da seleção francesa (a “cabeçada” de Zidane), na Copa de 2006, até a greve dos jogadores na Copa de 2010, desenvolveu-se entre torcedores, políticos e a imprensa especializada um forte sentimento de indignação em relação ao comportamento dos atletas franceses. Os adjetivos atribuídos pela sociedade ao comportamento dos atletas na África do Sul são emblemáticos do sentimento de desonra nacional em relação às atitudes e ao péssimo futebol apresentado. Os termos mais comuns utilizados na mídia para expressar esse sentimento foram escárnio, honra humilhada, nação ridicularizada.
A perspectiva escolhida por María Verónica Moreira para nos falar da relação entre futebol e política foi a pesquisa etnográfica das eleições em um clube de futebol na Argentina. A proposta da autora é descrever e analisar como dirigentes esportivos, torcedores, sindicalistas e políticos de outros espaços sociais estabelecem alianças e práticas de clientelismo nos momentos eleitorais dos clubes de futebol. Ou seja, como os sentimentos de afinidades futebolísticas ajudam na construção de pontes e na circulação de bens entre o sistema esportivo e a política comum.
O artigo de João Manuel Santos, Maurício Drumond e Victor Melo, ao analisar o Campeonato Sul-Americano de Futebol de 1922, revisita um tema caro na literatura esportiva e política brasileira, o da celebração da nação. A partir da análise das imprensas carioca e paulista, buscam compreender como dirigentes do futebol e o público construíram e se apropriaram da seleção de futebol como um bem simbólico da nação brasileira.
Encerrando o dossiê, Lana Pereira e Alexandre Vaz tomam o filme de Joaquim Pedro de Andrade, Garrincha, alegria do povo, de 1963, como referência para a análise de dois fenômenos da cultura política e futebolística nacional: o ídolo esportivo, representado por Garrincha, e o povo brasileiro, representado na película pela torcida nos estádios. Com uma leitura fílmica refinada, várias sequências e recursos são apresentados como expressão de um discurso romântico do ídolo indomável (dentro e fora do campo), ao mesmo tempo em que dialoga com a estética do cinema-verdade, que circula entre as dores sociais e o júbilo dos dribles do ídolo nos estádios lotados.
Por fim, à parte do dossiê, três artigos e duas resenhas completam esse volume. Simone Dupla aborda elementos circunscritos acerca do sagrado feminino mesopotâmico, relacionando-o à sobrevivência do culto às deusas mães, na figura da deusa sumério / babilônica Inanna / Ishtar, considerando que as características desse culto foram perpetuadas na cultura material e nos ritos praticados durante milênios na região do Antigo Oriente Próximo.
A partir da análise das representações da Idade Média, presentes no filme Cruzada (Kingdom of Heaven), dirigido por Ridley Scott, em 2005, Edlene Oliveira Silva questiona sobre as potencialidades do cinema como recurso didático para o ensino de História. Estabelece para isso um diálogo entre imagens da película e narrativas históricas dos manuais escolares.
Utilizando como documento principal o relato escrito pelo capuchinho Claude d’Abbeville, Amilcar Torrão Filho e Daniel Rincon Caires analisam as mudanças que ocorreram nas relações entre indivíduos e o meio ambiente na região da Ilha do Maranhão, a partir do estabelecimento da França Equinocial, no início do século XVII.
Johnni Langer resenha o livro Hibridismo cultural, de Peter Burke, em que o autor debate a globalização da cultura a partir de uma perspectiva histórica, na qual, afirma Langer, os fios norteadores são a noção de articulação e a dinâmica entre as culturas, pois não existem fronteiras, mas contiguidades culturais.
O trabalho de Frank McCann D., Soldados da Pátria – História do Exército Brasileiro (1889-1937), é resenhado por Bruno Torquato Silva Ferreira. O livro analisa um período no qual o exército se consolidou como instituição nacional, permitindo a compreensão não apenas da formação histórica da instituição, como também o debate intelectual e político do período. Ao mesmo tempo, traz leituras originais sobre o papel da força militar em convulsões políticas, como as campanhas de Canudos, na Bahia (1897), e do Contestado, em Santa Catarina / Paraná (1912-15), as rebeliões tenentistas da década de 1920, a Coluna Prestes, a Revolução de 1930 e o levante paulista de 1932.
Nota
1. Linha de Pesquisa “Intersubjetividade e pluralidade: reflexão e sentimento na história”. Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. Disponível em: .
Coordenação do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade. Universidade Federal do Paraná novembro de 2012
Coordenação do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.57, n.2, jul./dez., 2012. Acessar publicação original [DR]
História e Futebol / Revista de História / 2010
Como o Brasil entra em campo Como o Brasil entra em campo
Fascínio. Excitação. Obsessão. Ilusão. O comportamento de milhões de homens e mulheres diante do futebol e das mais diversas modalidades lúdicas revela uma situação que beira o paradoxo. A rigor, o futebol não produz nada, opõe-se ao trabalho e é essencialmente estéril. No entanto, ocupa lugar privilegiado nas sociedades industriais, regidas pela ideologia do trabalho e da produtividade. Trata-se de uma inutilidade saborosa, manifestação da frivolidade humana disseminada em todas as classes sociais. Uma inebriante sedução vinculada a uma sociedade lúdica.
Como conjunto de símbolos, gestos e ritualizações, o futebol tornou-se uma linguagem compreensível em quase todas as partes do mundo contemporâneo. Pode ser identificado como uma criação humana que estabelece um universo temporário inserido no mundo habitual, com regras, tempos e espaços específicos: um verdadeiro microcosmo. Se de um lado provoca a suspensão temporária da rotina cotidiana, de outro se abre em janelas reveladoras das características e tensões de uma dada formação social num determinado momento histórico. Como ocorre com as festas, o futebol (e os jogos em geral) também estabelece relações de reiterações e negações da ordem social.
No interior desse complexo fenômeno, a economia de rivalidades simbólicas, a constituição de alteridades a serem enfrentadas estabelece-se pari passu às disputas simbólicas pelos significados do torcer no interior de um mesmo grupo identitário (isto é, de uma determinada torcida) e revela um conjunto variado de sociabilidades que se estabelece a partir do universo do futebol, que vive nele e fora dela. Nessa intricada dinâmica, muitas vezes salta aos olhos a questão da violência entre as torcidas, pertencente ao tema mais amplo da violência social, mas ritualizado no âmbito das disputas esportivas e da constituição das identidades clubísticas. Essa problemática da condição torcedora e seus meandros sociais, culturais e psicológicos tem sido preocupação de diversos estudos acadêmicos, alguns deles apresentados a seguir neste dossiê.
Na realidade, essas investigações têm apresentado um quadro temático bastante diversificado e extenso que provavelmente já indica a formação de um território historiográfico específico. Transcorridos pouco mais de vinte anos desde as primeiras investidas acadêmicas, as pesquisas sobre futebol no Brasil começam a ocupar lugar de destaque na lista dos temas mais visitados pelas ciências humanas. Não é exagerado afirmar que, nos dias de hoje, os pesquisadores, finalmente, aceitaram entrar em campo e encarar tais questões.
Um dos maiores desafios enfrentados pelos investigadores brasileiros ainda tem sido o de obter o reconhecimento da validade e da legitimidade de tais estudos. Tema fartamente utilizado como matéria-prima para o feitio de identidades e essencializações nacionais e visto como ingrediente do senso comum, o futebol constitui-se como um poderoso operador cultural, símbolo flutuante, dotado de determinadas ambivalências que precisam ser avaliadas e problematizadas pelos investigadores. E que, sobretudo, requer o cuidadoso exame de suas práticas historicamente circunstanciadas e analisadas no jogo de suas relações sociais.
Afastados da gangorra interpretativa impulsionada por frustrações e projeções de um pretenso caráter nacional, eles procuram pensar no futebol também como uma chave privilegiada para a compreensão da nossa sociedade e para desconstruir determinados estereótipos e idealizações insistentemente reiteradas. Nesse sentido, o Brasil não é “o país do futebol” mais do que Argentina, Inglaterra, Espanha e Itália, onde sua prática é também capaz de potencializar e expressar determinadas tensões sociais. O estilo brasileiro não se diferencia do “jogo duro dos gringos” por uma predisposição natural, uma prontidão coletiva, nem tampouco devido à sua miscigenação étnica. O drible – insulto gestual sem violência, criativo domínio da bola, do corpo, do tempo e do espaço para iludir o adversário – não é uma prerrogativa exclusiva da “genialidade brasileira”. A existência hoje de um “estilo brasileiro de jogar”, entendido como o manejo particular de um repertório de habilidades técnicas e táticas individuais e coletivas, deve ser posto em xeque devido à diversidade regional do país e ao embaralhamento provocado pela globalização. Ao mesmo tempo, ele indica uma forma muito singular do jogo que precisa ser compreendida nas suas especificidades diferenciadoras. Há uma dinâmica cultural própria que ainda precisa ser criticamente desvendada, fora dos limites da exaltação e das mitificações usuais, para compreendermos melhor nossa sociedade. Não é tarefa fácil, mas muitos investigadores têm participado dessa construção e este dossiê pretende ser mais uma colaboração nessa direção.
Assim, a partir das últimas décadas, aos atores sociais mais frequentemente identificados no campo esportivo futebolístico, como profissionais (jogadores, técnicos, preparadores físicos e dirigentes), especialistas (jornalistas, cronistas e memorialistas) e torcedores (organizados, uniformizados e vips), deve ser acrescentado agora um conjunto extenso de pesquisadores universitários. A organização de grupos de pesquisa, debates, seminários, encontros e simpósios têm permitido a circulação de reflexões, conhecimentos e práticas. Sem dúvida, do ponto de vista acadêmico, a convivência entre profissionais de formações diversas imprimiu um estimulante caráter transdisciplinar, como poderá ser observado no conjunto de textos que seguem.
Ainda que o quadro aponte para essa salutar interdisciplinaridade, o artigo que abre o dossiê, De alma lavada e coração pulsante, é escrito pelo historiador Bóris Fausto. Intelectual experimentado e com obra historiográfica reconhecida, já há algum tempo procura certa aproximação com a temática do futebol, seja de maneira incidental – como no universo da memória em Negócios e ócios (1997) – ou de forma mais manifesta, como em O crime do restaurante chinês. Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 (2009). Pois o texto que apresenta tem definição clara: discutir o universo do futebol na perspectiva do torcedor convicto – como ele é! – e não dos torcedores de circunstância. Sendo assim, ele transita pelas sinuosidades psicológicas desse sujeito, suas subjetividades e os conflitos que sua paixão produz. O texto cruza elementos da memória individual e da coletiva, com problematizações de caráter sociológico e historiográfico. Assim, ele funde, na linha do horizonte da interpretação, suas experiências pessoais – de torcedor e historiador – com reflexões que indicam caminhos e análises interpretativas.
A entrevista realizada com o economista Luiz Gonzaga Belluzzo de certo modo segue ritmo semelhante: a do intelectual reconhecido que revela sua condição torcedora, mas sem abrir mão do instrumental intelectual para refletir sobre o mundo da bola. No entanto, sua trajetória carrega uma singularidade mais vigorosa e intrigante, já que também presidiu importante clube paulistano: a Sociedade Esportiva Palmeiras (biênio 2009-2010). Desta maneira, seu depoimento mostra as tensões existentes entre o intelectual que tende “a agir mais racionalmente” e o torcedor que “age pela emoção” e por “atitudes irracionais”. Acontece que justamente essa condição torcedora o tornou presidente do clube que, por sua vez, o obriga a práticas administrativas racionalizadoras, mas, antiteticamente, impõe a defesa intransigente do seu time em todos os espaços (imprensa, federações etc.). Em meio a essas tensões e dilemas humanos, de resto quase impossíveis de superar, Belluzzo nos mostra também um pouco dos bastidores do universo clubístico e das relações políticas e interesses econômicos que envolvem o futebol nacional e internacional.
A questão torcedora também aparece, com outros enfoques e abordagens, em mais dois artigos: Torcer: a metafísica do homem comum, de Luiz Henrique de Toledo, e A babel do futebol: atletas interculturais e torcedores ultras, escrito por José Paulo Florenzano. Os autores, pesquisadores vindos da antropologia, área das ciências humanas que acolheu o tema de maneira precursora, têm o futebol desde sempre como objeto de suas investigações acadêmicas e das reflexões sobre as dinâmicas sociais. Florenzano realiza intricada articulação entre os processos abrangentes e globais do futebol, com as conjunturas e casos mais específicos. Assim ele mostra como o futebol contemporâneo impõe a circulação de atletas (no caso do artigo, os jogadores africanos) e como ela gera mitos raciais (da destreza simbólica dos jogadores negros) e práticas racistas de certas torcidas. O cenário em que transcorre a ação é formado pela conjuntura social e política polarizada da Itália do fim do século XX, associada ao futebol empresarial do calcio italiano e à formação das “torcidas ultra” com suas práticas violentas e racistas. Neste panorama tenso, ele discute como os jogadores africanos procuram superar as representações negativas e articular novos significados sociais para o jogo e suas vidas.
Toledo, por sua vez, faz uma análise com perfil histórico-antropológico, já que procura recuperar as principais etapas de formação e transformação da experiência torcedora ao longo do século XX. Ele revela como houve neste longo processo mudanças significativas da “socialidade torcedora”, desde a prática da “assistência” das massas dos anos 1930 / 40 na cidade de São Paulo, à formação das torcidas organizadas em meados do século, seguida de sua repressão e o aparecimento, nos anos 1990 do “torcedor individual” e “cliente”. Deste modo, ele mostra o caráter múltiplo e descontínuo dessa prática torcedora, impossível de ser enquadrada em caracterizações monolíticas e essencializações do tipotorcedor. Para o autor essas transformações determinaram alterações evidentes nas práticas mais plásticas das torcidas e nas experiências coletivas nos estádios, mas, sobretudo, repercutiram nas elaborações das “relações lúdicas” presentes no cotidiano urbano, foco central de suas análises.
As múltiplas relações entre o cotidiano urbano e o futebol são retomadas também do ponto de vista historiográfico por Plínio Labriola no artigo A luz do lampião e a cidade invadida. O eixo para discutir essas relações é a história do Sport Club Corinthians Paulista. No longo arco temporal centenário do time, o autor escolhe dois momentos chaves para reflexão: a fundação do clube de bairro em 1910 e a conhecida “invasão corintiana” do Maracanã em 1976. No primeiro recorte, são salientadas as origens populares do clube e sua gradativa identificação com a cidade de São Paulo, onde os torcedores aparecem nas suas especificidades, mobilizando-se nos espaços urbanos. Neste lento processo de construção, difusão e ampliação da torcida, o clube aparece como “o time do povo”. No segundo momento, a metáfora da “conquista urbana” se dá em outra dinâmica, que é a do “tempo curto” mais pontual e que cria intenso impacto: a invasão da cidade do Rio de Janeiro e do estádio do Maracanã. O autor apresenta o quadro multifacetado do episódio de 1976 e sua importância para a construção da memória do time e da suposta “alma corintiana”, indicando também a presença dos anseios reprimidos de uma liberdade que começava a ser reivindicada no país. Atento às armadilhas da memória instituída pelo marco da origem e do evento representativo, Labriola articula de modo crítico essas construções da rememoração.
As problemáticas da construção da memória do futebol e das “identidades” também estão presentes no artigo de Fábio Franzini, Da expectativa fremente à decepção amarga: o Brasil e a Copa do Mundo de 1950. Muitos intérpretes consideram esse evento como dos mais importantes da história do futebol brasileiro, incluídas as conquistas e vitórias posteriores. Por isso o autor revela com cuidado como ele foi projetado, desde a escolha da sede até sua condição para se tornar ato de consagração nacional. O resultado foi o conhecido fracasso, amargo e traumático do ponto de vista da memória coletiva, e tratado à época como revelador de certo traço de nossa singularidade que Nelson Rodrigues cunhou como “complexo de vira-lata”. Baseado em fontes documentais sólidas e diversificadas, Franzini reconstrói os processos políticos em torno do acontecimento, a participação da seleção brasileira de futebol e as tensões da memória, para discutir os dilemas da sociedade brasileira da década de 1950. Certamente por essa condição o evento é constantemente relembrado por memorialistas e jornalistas, tornou-se foco de dezenas de análises, críticas e interpretações, e até serviu de tema de romances e produções cinematográficas.
Embora alguns filmes abordem a derrota na Copa de 1950 (como o documentário Copa do Mundo de 1950, dirigido em 1950 por Milton Rodrigues e produzido por Mário Filho, ou o documentário-ficção Barbosa, dirigido por Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, de 1988, baseado na obra de Paulo Perdigão, Anatomia de uma derrota), o sociólogo Mauricio Murad em seu artigo, Futebol e cinema no Brasil: um enredo procura outros roteiros para discutir as relações entre o cinema e o futebol. Em primeiro lugar, ele identifica certa sintonia nas dinâmicas históricas e sociais dos dois fenômenos culturais (como chegaram ao país, os espaços sociais que ocupam, sua popularização) e o papel que ambos tiveram na formação de nosso ethos coletivo e nossa “modernidade”. Nesse sentido, traça paralelos entre a história da apropriação, popularização e ressignificação do futebol, com os ciclos da cinematografia nacional, desde o início do século XX passando pelos ciclos da Chanchada e do Cinema Novo. Mas sua questão central parece ser o alerta de que há muito filmes nacionais sobre o tema “mas ainda é muito pouco, considerando-se a importância sociológica e estética de nosso futebol e de nosso cinema”. Por isso ele conclui que “o futebol não se consolidou ainda como argumento para o cinema brasileiro” e, por extensão, “para todas as nossas expressões artísticas”.
Já o artigo A patrimonialização do futebol: notas sobre o Museu do Futebol, das antropólogas Clara Azevedo e Daniela Alfonsi, destaca como o fenômeno já está integrado ao imaginário da cultura nacional, a ponto de merecer um museu específico que reúne e consagra parte de sua memória. Mas além de pesquisadoras, elas são também diretoras do Museu do Futebol, inaugurado em 2008, e localizado no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Essa dupla condição permite que apresentem uma interessante radiografia do funcionamento da instituição, suas características integradoras e inovadoras. Além disso, discutem os dilemas em torno da seleção daquilo que pode e deve ser musealizado e preservado, os aspectos simbólicos desta dinâmica e até o comportamento dos visitantes e suas relações com o acervo exposto. Por fim, elas não se recusam a refletir sobre os desafios da patrimonialização de um fenômeno muito dinâmico que atravessa diferentes áreas da vida social do país.
Pois bem, é possível perceber por meio dos artigos que compõem esse dossiê, como o tema tem despertado uma série de reflexões e abordagens criativas. Mas é no artigo A produção das ciências humanas sobre futebol no Brasil: um panorama (1990-2009), escrito pelos pesquisadores Sérgio Giglio e Enrico Spaggiari, que verificamos empiricamente esse quadro de crescimento e diversificação da produção acadêmica. Os autores apresentam um panorama esclarecedor e muito bem informado, ao mesmo tempo abrangente e minucioso, a ponto de identificar e quantificar a produção em cada programa de pós-graduação. Já o quadro geral mostra que a maior parte dos trabalhos acadêmicos está concentrada no Sudeste, mais especificamente em São Paulo (32,86%), ecoando assim o cenário geral oblíquo da produção nos programas de pós-graduação existentes no país. Revela também que o período de inflexão se cristaliza por volta de 1998, quando ocorre evidente crescimento quantitativo de dissertações, teses e artigos, formando um grande arco temporal ascendente até 2008, quando aparentemente a produção se estabiliza. E, finalmente, mostra que, no quadro das ciências humanas, a história é superada apenas pelas ciências sociais (que, no entanto, inclui antropologia, sociologia e ciências políticas), revelando certamente a dinâmica das mudanças historiográfica em curso desde o início daquela década e o vivo interesse dos historiadores pelo tema.
As discussões apresentadas nas seções Ensaio bibliográfico e Resenhas ampliam e reforçam essa avaliação sugerida pelo artigo. O ensaio apresentado pelo historiador Hilário Franco Júnior – ele mesmo autor da importante obra A dança dos deuses. Futebol, sociedade, cultura – abre debate direto com o livro escrito por José Miguel Wisnik Veneno remédio. O futebol e o Brasil. O fato extraordinário e raro – mas que felizmente tem se tornado comum – é a presença de dois intelectuais da mesma geração, com sólida produção em suas carreiras específicas, que escrevem os livros no mesmo período e procuram compreender o país, cada um a seu modo, fazendo do futebol chave interpretativa para pensar nossa cultura. As resenhas dos livros seguem na mesma linha. Elas apresentam parte da produção acadêmica transformada em livro e também discutem os temas, opções teóricas e reflexões metodológicas de seus autores. Assim, apresentam um breve painel de obras que percorrem temas como as relações do futebol com o Estado brasileiro e as classes trabalhadoras; os bastidores da produção dos novos atletas no Brasil e exterior; o papel do discurso nacionalista na construção da ideia de um mítico futebol-arte; e as relações entre futebol e música, elementos importantes e repletos de estereótipos na formação de nossa “identidade nacional”.
Ao percorrer todos esses artigos e as reflexões que carregam, desejamos que ao final da leitura deste dossiê História e Futebol, o leitor tenha em seu horizonte tanto um atual “estado da arte” da produção acadêmica que envolve o futebol, como a notável possibilidade de temas, abordagens e discussões que ela apresenta na formação desse novo território do conhecimento. Marc Bloch disse certa vez, para indicar a satisfação que a investigação científica lhe proporcionava, que “pessoalmente, tão longe quanto me lembro, a história sempre me divertiu muito. Como todos os historiadores, eu penso”. Assim, esperamos que essa alegria apontada pelo historiador francês não se limite a esse componente muito humano sempre presente na “inebriante sedução” do futebol, e se transporte também às formas de conhecê-lo e desvendá-lo.
Flávio de Campos – Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
José Geraldo Vinci de Moraes – Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
CAMPOS, Flávio de; MORAES, José Geraldo Vinci de. Apresentação [Como o Brasil entra em campo Como o Brasil entra em campo]. Revista de História, São Paulo, n. 163, 2010. Acessar publicação original [DR]