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A Terra e os homens sob fogo / Varia História / 2017
Como revela o título deste dossiê, seu tema é o fogo, elemento constituinte do planeta Terra, recortando algumas de suas interações históricas com os homens. Os humanos constituem a única espécie animal que aprendeu a controlar o fogo. Em primeiro lugar, os homens o empregam de maneira produtiva: o usam para transformar plantas e animais em comida, minerais em moedas, artefatos ou joias, e ainda para os aquecerem no inverno. Mas esse controle não é absoluto, pois o fogo é um serviçal rebelde e, frequentemente, escapa do seu controle. De maneira destrutiva, chamas podem queimar uma casa, uma cidade, uma grande floresta, ou ainda uma imensa planície. Mas ao longo do tempo, em diversas situações históricas, o fogo é que exerceu seu controle sobre seus pretensos senhores, quando, por diversos motivos, homens lançaram outros homens às chamas, frequentemente utilizando para isso de crueldade e da tortura. Os exemplos são inúmeros: nos atos de canibalismo, nas penas impostas pela Inquisição, nas armas lançadas em várias guerras. Mas a experiência humana, para melhor ou para pior, tem sido moldada pelo fogo. Este é o tema desse dossiê.
Habitante da terra muito antes dos homens, o fogo é um dos elementos centrais que compõe a própria Terra e, ao longo da história diversas teorias tentaram compreender sua constituição e seu papel na origem do nosso planeta. Mas foi a partir do século XVIII, que os homens da ciência, afastando-se cada vez mais da explicação bíblica, sem no entanto abandoná-la completamente, buscaram cada vez mais as causas naturais por trás dos eventos geológicos observáveis. Nesse contexto, discutiram intensamente como se deu o processo de formação da própria Terra e, entre outros temas, debateram como o fogo atuou para moldar a paisagem desde a criação. Terremotos e erupções vulcânicas tornaram-se temas privilegiados nessas discussões, alguns deles, como que sacudiu Lima, em 1746, ou o famoso terremoto de Lisboa de 1755, puderam ser vivenciados por esses homens e tornaram-se temas recorrentes do debate erudito então travado.
De um lado, se posicionaram os Netunistas, para quem a terra esteve coberta, inicialmente, por um oceano primordial, onde muito lentamente depositaram-se os sedimentos que formaram os continentes (a vantagem era esta situação que correspondia ao cenário bíblico); a eles se contraporiam os Plutonistas, que, se não descartavam a existência de um oceano primitivo, não consideravam que todas as rochas se formaram a partir de sedimentos em suspensão nesse líquido inicial. Levando em consideração o fogo, consideravam a importância da ação do calor oriundo do centro da terra na formação das rochas terrestres, muitas delas originárias das atividades vulcânicas. Por fim, os Catastrofistas, chamaram a atenção para a atuação de eventos geológicos depois do surgimento da Terra, os quais seriam responsáveis por alterações na paisagem. Para eles, a história do planeta estava marcada por cataclismas, como fraturas, terremotos, vulcões, que revolucionavam o planeta de tempos em tempos.
No que diz respeito às causas naturais desses eventos – terremotos e vulcões – os homens de ciência também não eram unânimes. No século XVIII, se dividiam entre os majoritários que os atribuíam à existência de um fogo subterrâneo, que se espalhava sob a superfície da Terra por meio de cavernas, sendo que, para eles, terremotos e erupções vulcânicas seriam fenômenos associados entre si; e os que defendiam que era a água subterrânea o elemento primordial por trás desses fenômenos geológicos, exercendo, de tempos em tempos, intensa pressão sobre a crosta terrestre.
Em 1755, um enorme cataclismo abalou a Europa: o Terremoto de Lisboa, ao qual se sucedeu um tsunami e um grande incêndio que devastaram a outrora fulgurante cidade, capital europeia de um gigantesco império que se estendia às 4 partes do globo. Como destaca Stephen Pyne, em seu artigo “Sacudir e assar: um comentário sobre terremotos e incêndios”, o grande terremoto de Lisboa foi um dos eventos icônicos na história da humanidade em que houve a interação entre terremotos e incêndios. Como em Lisboa, essa conjugação expõe os limites humanos no controle dessa força da natureza. O autor acentua que, no século XX, os terremotos foram substituídos pela guerra como estopim das chamas capazes de destruir cidades inteiras. Por fim salienta que, por mais que o homem tenha domesticado o fogo, ele continua a ser uma ameaça incontrolável às grandes cidades que se espraiam espacialmente em subúrbios, cada vez mais adentrando o ambiente florestal, suscetível às chamas. Esse tem sido uma ameaça recorrente, mesmo em países desenvolvidos, como se viu no impressionante incêndio que alastrou-se no verão europeu de 2017, pela região de Trás os Montes, em Portugal.
Na segunda metade do século XVIII, como nenhum outro evento geológico, o terremoto de Lisboa de 1755 concentrou a atenção da comunidade savant europeia. Para além da literatura e da poesia, estudos sobre o evento surgiram da pena de importantes homens de ciência, como Voltaire, Leibniz, John Michell, entre tantos outros. Esses trabalhos foram fundamentais para o aprofundamento do processo já em curso, sob bases Iluministas, de entendimento da natureza em bases cada vez mais racionais, explicada a partir de causas naturais. Entre eles, destaca-se o português Joaquim José Moreira, observador direto do terremoto que, na sequência do mesmo, escreveu a História Universal dos Terremotos, livro que é analisado no artigo de Jorge Ferreira e Maria Margareth Lopes, intitulado “O fogo é o agente, que causa tantas maravilhas: a América e as explosões subterrâneas na História Universal dos Terremotos de 1758″. Ao analisar esse texto, os autores chamam a atenção para o fato de que Moreira adere à teoria das causas naturais por trás dos terremotos, ainda que não se prenda a discutir as de natureza religiosa. Como se tornará hegemônico à época, analisa a sua origem a partir do fogo subterrâneo submetido à enorme pressão sob a crosta terrestre. Para ele, “o fogo subterrâneo podia deflagrar acidentalmente por fermentação ou combustão espontânea e actuar sobre o ar e a água em cavernas subterrâneas, produzindo dessa forma a força explosiva que causava os terramotos”.
Ana Simões, Ana Paula Carneiro e Maria Paula Diogo, em “Ciências da Terra e História na obra de Correia da Serra (1751-1823)”, analisam a confluência das teorias de História e de Ciências Naturais no pensamento do famoso naturalista português, o abade Correa da Serra. Revelam, a partir da análise de seus textos sobre a geologia portuguesa, que, ainda que não tenha formulado de forma clara, era um adepto da teoria Catastrofista. São efetivamente esses estudos de geologia, que realiza por meio de várias viagens de campo e publica em diferentes textos, que o levam a estabelecer um entrelaçamento e um paralelo entre o homem e a natureza, o que se revela em seus trabalhos de História de Portugal. Segundo as três autoras, de maneira singular e criativa, seu pensamento promove “uma historicização da natureza e uma naturalização da História”, pois defende que ambas são, de tempos em tempos, abaladas por eventos únicos e de grande impacto, com grande capacidade de transformação tanto da paisagem, quanto da história da humanidade.
Júnia Ferreira Furtado – Pós-Graduação em História Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: juniaf@gmail.com
FURTADO, Júnia Ferreira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.33, n.63, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]
Mapas das Minas / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2010
Como nos apontam os diversos estudos reunidos neste Dossiê, a história da exploração, ocupação e consolidação territorial das Minas Gerais, sob o signo da América portuguesa e / ou do processo de formação da jovem nação brasileira, confunde-se com a própria necessidade de conhecer e delimitar esse espaço, o que se expressa em documentos diversos de natureza cartográfica: são roteiros, relações, mapas, esboços, plantas, borrões, desenhos.
Os primeiros mapas realizados da Capitania das Minas vão se configurar como um momento de inflexão da arte cartográfica. Por um lado, revelam o contínuo conhecimento do interior do Brasil e o desvelamento de sua geografia; por outro, inserem-se na tradição medieval de preencher os espaços desconhecidos com elementos que lembram o onírico e o maravilhoso. Mas, à medida que os portugueses adentram pelo Novo Mundo, a geografia imaginária vai aos poucos sendo abandonada, substituída progressivamente por outra, resultante da experiência concreta de penetração no território da América. A cartografia da Capitania de Minas Gerais vai então ocupar nesse contexto importante papel. Assim, a partir do século XVIII, os espaços das cartas, que antes configuravam áreas de representação pictórica, vão sendo preenchidos por rios, montanhas, acidentes naturais do terreno, bem como por arraiais, vilas, caminhos e roças, estes frutos da ocupação humana. Leia Mais
História em mapas antigos / Varia História / 2007
O estudo da cartografia não pode ser desvinculado de uma dimensão histórica e simbólica, pois não existe uma linguagem cartográfica única, universal e imutável. Todo mapa é um conjunto de signos, símbolos, que só podem ser compreendidos e decodificados a partir dos elementos da própria cultura na qual ele foi formulado. Por isto, Cartografia e História estão indissociavelmente ligadas, pois só a segunda nos permite decodificar os signos que a primeira se utilizou. Um mapa é sempre representação do real e mantém uma íntima relação com o espaço que ele que delimita, mas não é o próprio real. Se perdem esta característica de representação, os mapas deixam de ter sua função reconhecida e se tornam ininteligíveis. Um mapa é, pois, uma expressão simbólica de uma área e, ainda que nos dias atuais as imagens de satélite sejam ferramentas essenciais para a arte cartográfica, essas imagens não deixam de ser também uma forma de representação do espaço.
Cartografar um território não é pois uma operação neutra, cuja objetividade estaria assegurada pelo uso das técnicas mais aperfeiçoadas. Um mapa é sempre uma expressão de um território, o que implica que vários filtros separam o real da coisa representada. Os mapas miniaturizam o mundo, imprimindo-lhe uma dimensão gráfica que permite, pois, inúmeras leituras. Ao longo do tempo, as técnicas de desenho, impressão e gravação variaram e seu estudo fornece inúmeras informações sobre as formas de produção, reprodução e distribuição destes documentos. Outro aspecto que o estudo da cartografia permite é a análise da formação e consolidação de um território, como ele foi compreendido e ocupado ao longo do tempo, o que só pode se desvelar ao estudioso de posse de outras ferramentas de análise pertencentes a outras ciências como a História.
Todo documento humano faz parte de um sistema de comunicação e desvendar este sistema nos ajuda a compreender como estes mapas eram lidos e compreendidos na época em que foram produzidos. Os mapas contêm uma linguagem, que é necessariamente simbólica e que deve ser decodificada para que se possa melhor compreendê-la. Porém, não existe uma linguagem cartográfica única, universal e imutável. Os mapas são, pois, como um texto e têm cada um e em seu tempo uma linguagem própria. O estudo da Cartografia Histórica engendra uma série de outros elementos, tais quais o entendimento das técnicas de medição do espaço, das noções de forma e de área que expressam, dos espaços que o mapa cobre e dos que deixa em branco ou preenche com um desenho ou uma iluminura. Tudo isto compõe a forma como o homem entende e representa o mundo e exige do historiador da cartografia um esforço interdisciplinar.
Todo mapa é um conjunto de signos ou símbolos historicamente construídos. Podemos compreender os mapas produzidos no passado, como fazemos da mesma forma com os documentos outrora escritos, a partir do conhecimento dos elementos que compunham a cultura na qual eles foram formulados, ainda que não tenhamos vivido na mesma época. É aí que reside o trabalho do historiador e é aí que a Cartografia e a História se tornam indissociavelmente ligadas, pois é a partir da História que podemos mergulhar na aventura de decodificar os signos que o cartógrafo utilizou no passado, alguns intencionalmente, outros nem tanto.
Da importância da História para o estudo da Cartografia nasce o título do dossiê publicado nesse volume que, parodiando o grande historiador da cartografia do Brasil Jaime Cortesão, [1] se denomina A História nos velhos mapas. Os cinco artigos aqui reunidos se enquadram nos estudos da História da Cartografia e assim devem ser entendidos. Mary Sponberg Pedley, em O comércio de mapas na França e na Grã Bretanha durante o século XVIII, desvela o processo de produção cartográfica na transição para o Iluminismo, distinguindo as particularidades de cada um desses dois países. Entre tantos assuntos, analisa o ambiente intelectual no qual se inseria a produção de mapas, o papel dos cartógrafos, das casas de edição, o estímulo oficial e o gosto dos consumidores. Em A história da publicação do Mapa da América do Norte de John Mitchell de 1755, Mathew Edney traz a luz o contexto de edição e re-edição desse famoso mapa, comumente utilizado pelos historiadores do período colonial norte-americano, chamando atenção para o fato de que um mapa pode nos informar muito mais sobre o universo cultural do seu autor e de seu público consumidor do que sobre a área representada. Mário Clemente Ferreira, em O Mapa das Cortes e o Tratado de Madrid: a cartografia a serviço da diplomacia discute o processo de construção do Mapa das Cortes, a principal base cartográfica utilizada pelos portugueses durante as negociações do Tratado de Madrid, em 1750. A partir da desconstrução de seus elementos e identificação das fontes usadas pelo cartógrafo, o autor aponta para a intencionalidade dos erros desse mapa, viciado nas longitudes de forma a não evidenciar a extensão da colonização portuguesa em território espanhol. Jordana Dyn discute particularmente a importância dos mapas nos relatos de viagens desde o século XVI até os dias de hoje. Íris Kantor, em Usos diplomáticos da ilha Brasil: polêmicas cartográficas e historiográficas, analisa a formação do mito da ilha Brasil e suas representações na cartografia dos séculos XVI e XVII, além das formas de apropriação e reapropriação posterior desse mito com fins diplomáticos. Em “Mais calculado para enganar do que para informar”: os viajantes e o mapeamento da América Central (1821-1945) aponta para os diferentes papéis que os mapas desempenharam ao longo do tempo em relação às narrativas de viagem e apela para a necessidade de autonomia do estudo desses elementos cartográficos.
Nota
1. CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1965 / 1971. 2 v. Belo Horizonte, 2007
Júnia Ferreira Furtado – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
juniaf@fafich.ufmg.br
FURTADO, Júnia Ferreira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.37, jan. / jun., 2007. Acessar publicação original [DR]
Espaços urbanos e territórios simbólicos / Varia História / 2003
O dossiê Espaços urbanos e territórios simbólicos reúne artigos que discutem as transformações e apropriações que as cidades sofrem ou sofreram continuamente. Os atos de construção, reformulação, reapropriação e demolição são constantemente realizados pelos seus habitantes conferindo aos espaços urbanos, sempre em transformação, uma teia de novos significados. As cidades se por um lado se apresentam como uma das faces da modernidade, por outro, podem ser vistas como uma sucessão de ruínas que se acumulam no tempo.
Roberta Marx Delson, em seu artigo Versailles em Guaporé: a evidência visual do passado glorioso de Vila Bela de Goiás, discute, a partir de duas fontes iconográficas tardias, as evidências de um projeto urbanístico monumental que norteou a construção da cidade de Vila Bela no período colonial, mas que as transformações posteriores do espaço urbano apagou completamente, inclusive da memória.
Nos primeiros tempos da construção de Belo Horizonte, entre 1894 e 1897, o antigo arraial do Curral De I Rei caiu por terra e a Comissão Construtora da nova capital promoveu uma verdadeira revolução urbana. O artigo de Anna Karina Castanheira Bartolomeu analisa o conjunto de fotografias realizadas na época e que constitui o acervo do Gabinete Fotográfico da Comissão Construtora. Segundo a autora, as lentes dos fotógrafos capturavam as imagens de uma cidade moderna em construção acelerada e cujas fotografias corriam o Brasil alardeando o sucesso do empreendimento.
Regina Helena Alves da Silva aborda a reatualização pelos modernistas paulistas do imaginário bandeirante associado à cidade de São Paulo. As múltiplas imagens fragmentadas que nascem de suas penas visam contrapor às novidades modernizadoras que vinham de fora uma identidade nacional a partir de valores intrínsecos à cultura brasileira, recuperando a identidade bandeirante como mola propulsora do ser nacional. Assim, a cidade de São Paulo, que então passava por várias transformações urbanas, é lida no duplo signo da tradição colonial e dos elementos do sonho moderno e civilizado.
Por fim, fechando esse dossiê sobre os espaços urbanos e seus territórios simbólicos, no artigo Segregação e artimanhas nas cidades contemporâneas, Denise Bernuzzi de Sant’Anna sugere alguns conceitos capazes de intensificar o debate e as problematizações sobre as experiências de criação em megalópoles como é o caso de São Paulo. Se de um lado, a vivência nos espaços urbanos contemporâneos tende a segregar a diferença, por outro lado, é possível identificar inúmeras experiências de resistência e criação, sem no entanto cair no risco de tornar essas experiências em templos de veneração.
Em O lugar da América na história: história natural, estado de natureza, objeto de cobiça dos homens, Vera Chacham remonta os discursos de Voltaire e de Buffon a respeito do aparecimento do homem, em particular do homem americano. Ao situar o lugar das populações americanas na história e na natureza, o discurso iluminista dos naturalistas europeus do século XVIII representa a América como um lugar inferior, propício à manifestação da superioridade européia, um antiexemplo de civilização, posto que ali se assiste a uma história da barbárie dos civilizados.
O estudo da população forra da freguesia de São José do Rio das Mortes, nos séculos XVIII e XIX, em seus aspectos quantitativos e qualitativos é o desafio dos historiadores Douglas Cole Libby e Afonso de Alencastro Graça Filho. Tomando como ponto de partida fontes seriadas, especialmente o rol dos confessados da localidade, e completando-as com outras mais esparsas, como cartas de alforrias, testamentos, registros de batizados e óbitos, cartas de sesmarias, entre outros, o artigo busca reconstruir o universo dos forros da localidade, sua composição, e as formas de acesso à liberdade. Por fim, as trajetórias individuais de duas mulheres alforriadas servem como contraponto ao conjunto massivo de dados levantados pelos autores, iluminando vários dos aspectos sugeridos pelos documentos inventariados.
Roberto Carlos dos Santos analisa as posturas municipais que acompanharam o processo de urbanização da cidade de Patos de Minas em fins do século XIX para assim desvendar o discurso higienista e moralizador das autoridades municipais. O discurso do poder, produzido de forma autoritária, tende a excluir os pobres e marginais, responsabilizando-os pela corrupção da ordem idealizada para o espaço da urbe que se modernizava.
O Fausto caipira: Joaquim Macedo Bittencourt e as faces da modernização urbana em Ribeirão Preto na Primeira República (1911-1920), de Rodrigo Ribeiro Paziani, analisa o discurso do médico e prefeito da cidade, Joaquim Macedo Bittencourt, que reflete as intervenções e projetos de modernização urbanos ocorridas no período republicano, refletindo os laços entre a política e o poder privado da elite cafeeira.
Júnia Ferreira Furtado
Regina Helena Alves da Silva
(Organizadoras)
FURTADO, Júnia Ferreira; SILVA, Regina Helena Alves da. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.19, n.30, jul., 2003. Acessar publicação original [DR]
Espaços urbanos e territórios de poder / Varia História / 2003
Segundo Lévi-Strauss, especialmente na América, as cidades não foram feitas com o intuito de durarem, mas para se renovarem na mesma rapidez com que foram edificadas.[1 ]Sua observação atenta para a capacidade de transformação dos espaços urbanos o que tem ocorrido, nos últimos tempos, de forma cada vez mais acelerada. Os sujeitos ao se apropriarem dos espaços das cidades com eles se interagem, proporcionando, mesmo às velhas paisagens européias, novos significados e valores simbólicos. Os números 29 e 30 da Varia Historia reúnem o dossiê Espaços urbanos e territórios que se desdobra em duas partes. O primeiro, que se publica nesse número 29, se intitula Espaços urbanos e territórios do poder e o segundo, a ser contemplado no número 30, se denomina Espaços urbanos e territórios simbólicos.
Esse primeiro dossiê, Espaços urbanos e territórios do poder, abarca um conjunto de estudos sobre diversas cidades em suas inter-relações com os poderes que as constituíram. Em Cidades e elites coloniais; redes de poder e negociação, Maria Fernanda Bicalho analisa o papel das câmaras municipais como centro articulador entre o poder local e o poder real. Parte das interpretações historiográficas do tema, especialmente a obra de Charles Boxer e a de Evaldo Cabral de Mello, para propor uma nova abordagem. A partir do estudo do papel da Câmara Municipal no Rio de Janeiro na década de 1640, logo após a aclamação de Dom João IV como rei de Portugal, a autora enfoca o papel das redes de poder local e sua inserção na política mais geral do império, particularmente no que diz respeito aos negócios e interesses dessa elite no complexo mercado do Atlântico sul.
O artigo de Cláudia Damasceno Fonseca aborda a concessão de títulos de vila e cidade na capitania de Minas Gerais no decorrer do século XVIII. Usualmente, os estudos tradicionais salientam as questões políticas decorrentes das disputas de poder envolvidas nestas contendas, atribuindo ao rigor metropolitano a escassez de títulos concedidos aos núcleos urbanos mineiros. Numa outra vertente, a autora analisa as representações de cidades e dos núcleos urbanos que transparecem nos discursos coevos que salientam os aspectos que enobrecem as localidades tais como: a ordem dos assentamentos, a fidelidade dos moradores à Coroa, o papel defensivo e / ou estratégico da povoação, entre outros. Tais discursos refletem os interesses e as disputas dos moradores locais pela autonomia ou não dos espaços urbanos imprimindo novos significados aos conflitos entre os colonos e o poder metropolitano.
Os relevos urbanos da cidade de Macau são desvendados a partir de uma leitura semiótica da paisagem por Isabel Marcos. A ocupação do território chinês pelos portugueses correspondeu a três etapas diferenciadas que, segundo a análise da autora, podem ser identificados em três relevos cartográficos distintos. Essa disputa pela ocupação e transformação do espaço urbano evidencia as disputas de poder entre os primitivos habitantes, e os conquistadores. Num primeiro momento, os portugueses avançaram sobre os locais simbólicos dos chineses, especialmente aqueles relativos à morte. Numa segunda etapa, assiste-se simultaneamente a um processo construtivo diferenciado empreendido em espaços concorrentes tanto da parte dos portugueses quanto da dos chineses, o que resultou em uma diversidade de interações sob a forma de grandes percursos urbanos. Já no século XVIII, ocorre a terceira etapa de apropriação do território, quando Portugal admite no território chinês grandes companhias estrangeiras e assiste-se a um processo de edificação em massa na cidade de novos bairros, praças, edificações criando um espaço diversificado e intrigante.
As transformações arquitetônicas das moradias urbanas das elites no Brasil do período colonial até o início do Republicano são abordadas no artigo História, Cultura e Patrimônio: os solares urbanos do século XIX. Chamando a atenção para o desprezo que a política de defesa do patrimônio histórico no Brasil teve em relação às moradias populares, a autora Sandra Pelegrini salienta que as transformações e singularidades dos projetos arquitetônicos dessas habitações revelam a própria organização hierárquica que caracterizou a sociedade brasileira, evidenciando as estruturações de poder no campo social. Nesse aspecto, as adaptações e as características que a cozinha tomou ao longo do tempo nas moradias brasileiras são sintomas da segregação que a mão-de-obra, especialmente a escrava, encontrava no Brasil.
No contraponto do dossiê a respeito do mundo urbano, o universo dos sertões é abordado no artigo de Márcia Amantino. O sertão, identificado como o lugar da fronteira e do vazio desde o início da ocupação portuguesa, configura-se no século XVIII em Minas Gerais como espaço de resistência de negros aquilombados e índios selvagens. Representado nos discursos como um lugar vazio, mas verdadeiramente ocupado pelo outro, esse espaço torna-se, na ótica das autoridades, terra a ser ainda conquistada e incorporada ao mundo civilizado dos brancos.
A política de controle e estímulo ao comércio local para o abastecimento dos núcleos urbanos nas Minas Gerais é estudada por Flávio Marcus da Silva. Em seu artigo, o autor analisa o papel das Câmaras municipais no sentido de estabelecer uma política que propicie a organização do mercado de víveres nos núcleos urbanos, ao mesmo tempo que estabelece uma política de repressão aos atravessadores e ao comércio ilegal. Privilegia o estudo do relacionamento entre as autoridades locais e três dos principais agentes responsáveis pelo abastecimento alimentar: os roceiros, os comissários e os atravessadores.
Em A História na “história” de José Bonifácio: fundamentos de um projeto nacional, Ana Rosa Coclet da Silva analisa a visão de história presente no pensamento político de José Bonifácio, fundamental para a compreensão de seu projeto reformista para o Brasil e para o Reino. Ancorada no duplo aspecto da continuidade- de natureza física e humana- e de ruptura- na medida que informava a especificidade das partes e de seus habitantes- , a História constituía aspecto fundamental do projeto modernizador imperial na medida em que fornecia as bases para emendar o velho Reino e criar a nova nação brasileira.
Rodrigo Patto Sá Motta e sua equipe encerram esse número com um artigo no qual se debruçam sobre o acervo documental do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (OOPS / MG) e apresentam os resultados preliminares do estudo desse instigante acervo. Partem da discussão sobre a política de acesso aos documentos dos arquivos das agências de repressão, o que só se torna possível em um estado de direito e que se associa à luta por um estado em consonância com os interesses comuns da população e subordinado ao poder público, ponto de convergência com a própria temática republicana. Num segundo momento, abordam a regulamentação e o aparelhamento dos órgãos de repressão, aspecto necessário para a organização e a compreensão da própria documentação levantada, compondo um quadro da trajetória institucional do órgão.
Nota
1. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires, 1970. p.81- 82. “As cidades na América não só foram recentemente construídas como estão para renovar-se com a mesma rapidez com que foram edificadas.
Júnia Ferreira Furtado – Organizadora.
FURTADO, Júnia Ferreira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.19, n.29, jan., 2003. Acessar publicação original [DR]
Mídias, leituras e viagens / Varia História / 2001
A revista do Programa, Varia Historia, redefiniu, a partir de 1999, os critérios para seu novo perfil, e iniciou sua reformulação editorial a partir do número 20, publicado no primeiro semestre daquele ano. Entre outros objetivos, pretendeu-se ampliar a participação de pesquisadores nacionais e internacionais refletindo o intercâmbio acadêmico que o Programa de Pós-graduação em História da UFMG vem solidificando. O número 25 apresenta mais uma inovação em seu projeto editorial: a organização de um dossiê temático. A opção pela confecção de dossiês se liga à estratégia de maior vinculação da revista às linhas de pesquisa que compõem o referido Programa, a saber: História e Culturas Políticas, História Social da Cultura, e Ciência e Cultura na História.
A Varia Historia vem se firmando como espaço privilegiado do debate histórico e a organização de Dossiês permitirá que as diferentes linhas explorem temas de pesquisa dentro do universo teórico de cada uma delas, envolvendo seus pesquisadores na preparação dos mesmos, em constante intercâmbio com os estudiosos de outras instituições. Os Dossiês também pretendem refletir os seminários e os debates promovidos pelas linhas no decorrer do ano acadêmico, envolvendo o corpo docente e discente e pesquisadores convidados.
O Dossiê Mídias, leituras e viagens foi uma iniciativa da linha de História Social da Cultura e reflete alguns dos temas que têm instigado os estudos no campo da cultura: a produção e a circulação dos livros, as práticas de leituras, os mecanismos de difusão e mídia, as teorias de recepção, tendo como pano de fundo o fenômeno e o movimento das viagens como espaços privilegiados para a produção de conhecimento. As viagens que nos interessam aqui são aquelas que significaram renovação do conhecimento, fruto da observação de todos aqueles, que “por meio das viagens, querem conhecer utilmente o mundo”.
O primeiro texto foi gentilmente cedido pelo Prof. Robert Darnton e discute os processos de formação e de difusão de notícias na França do Antigo Regime, tecendo instigantes questões a respeito da formação e do conceito de mídia para a época. Outra novidade que o autor apresenta é que a leitura do artigo não se esgota em si mesmo. O leitor é convidado a visitar a versão eletrônica do paper e acompanhar os caminhos e os instrumentos de investigação disponibilizados paralelamente on-line em janelas que podem ser acessadas enriquecendo a leitura e explorando as possibilidades que estes novos suportes apresentam à investigação histórica.
O texto do Prof. Miguel Benitez foi apresentado numa palestra promovida no referido programa no ano de 2001. Analisa a intersecção dos movimentos das viagens e da circulação de idéias heréticas, libertinas, muitas vezes na forma de livros ou textos proibidos, no espaço ibérico durante o período moderno.
Guiomar de Grammont no artigo “Catarse e teoria da leitura” explora as questões teóricas com que a história da literatura se debate hoje em torno das teorias da recepção, esta última reconstituída sempre como fragmento, como espaço imaginário que se caracteriza pela pluralidade e diversidade.
O tema da produção de conhecimento em relação aos fenômenos das viagens na esteira da constituição da identidade brasileira e da modernização da nação, no alvorecer do período republicano, foi o tema de estudo da Prof. Thais Velloso Cougo Pimentel. Num movimento inverso, são agora os brasileiros que se transformam em viajantes, buscando uma Europa mítica, berço de civilização, o exemplo a ser seguido, que permitirá a entrada do Brasil na modernidade.
A revista mantém sua prática de também receber contribuições espontâneas agregadas na seção Artigos. Mantendo-se como espaço referencial para os pesquisadores de diversas regiões e instituições que investigam a história de Minas Gerais, o presente número apresenta quatro artigos sobre a região entre os séculos XVIII e XIX.
Marco Antônio Silveira aborda a questão das práticas políticas utilizadas pelos diversos agentes na conformação do espaço minerador no início do século XVIII, quais sejam a conquista e a soberania. Ângelo Alves Carrara contribui para o entendimento do desenvolvimento urbano da sociedade mineira oitocentista em consonância com a pujança do setor agrário normalmente mais bem estudado. Dois artigos contribuem para desvendar o universo dos escravos que constituíram a maioria da população mineira no século XIX, tendo sido uma sociedade escravista voltada para a produção interna de produtos. Antônio Henrique Duarte Lacerda aborda o fluxo e as variáveis das alforrias concedidas em Juiz de Fora no declínio da sociedade escravocrata e Eliane Silva Guimarães analisa os crimes passionais ocorridos entre a comunidade escrava no mesmo município ao longo do século XIX.
A Varia Historia tem sido também, ao longo dos anos, espaço plural de debates sobre a história e tem recebido contribuições sobre as mais diversas temáticas. Johnni Langer e Sérgio Ferreira dos Santos apresentam um estudo sobre a criação da imagem oitocentista dos povos escandinavos, desnudando a constituições de mitos equivocados sobre a cultura e a sociedade dos povos nórdicos. Também explorando a questão da produção de mitos, Adriana Barreto de Sousa examina o processo de constituição da imagem do General Osório e do Duque de Caxias como heróis necessários à legitimação do regime republicano em seus diversos projetos, incorporando e justificando a participação dos militares na vida política brasileira.
Por fim, Jeffrey Needlle faz uma instigante resenha do livro de Kirsten Schultz, intitulado Tropical Versalles, enfatizando o aspecto inovador da abordagem que deixa de lado os lugares comuns que marcam as análises sobre a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, salientando a forma como a monarquia redefiniu e mudou a sociedade e como estas mudanças foram percebidas pelos próprios brasileiros.
Júnia Ferreira Furtado – Organizadora.
FURTADO, Júnia Ferreira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.17, n.25, jul., 2001. Acessar publicação original [DR]