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A corrida pelo rio: projetos de canais para o Rio São Francisco e disputas territoriais no Império brasileiro (1846-1886) | Gabriel Pereira de Oliveira
A História Ambiental vem atraindo cada vez mais pesquisadores nos últimos anos, o que resulta na expansão do seu leque de estudos. Um desses pesquisadores é Gabriel Pereira de Oliveira, mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Integra o que pode ser chamado de segunda geração de historiadores ambientais brasileiros, ou seja, foi aluno de pesquisadores que trouxeram a História Ambiental para o nosso país, a exemplo de Regina Horta Duarte e José Augusto Pádua, dois grandes professores que orientaram o mestrado e doutorado de Gabriel Oliveira, fato que aumenta as expectativas quanto ao livro aqui resenhado: “A corrida pelo rio: projetos de canais para o Rio São Francisco e disputas territoriais no Império brasileiro (1846-1886)”, publicado em 2019, em Recife, pela Fundação Joaquim Nabuco através da Editora Massangana. Recebi o livro como prêmio de um sorteio realizado no 3° Seminário Amazônico de História e Natureza (2020), organizado pelo GRHIN-UFPA (Grupo de Pesquisa História e Natureza).
Essa resenha apresenta duas divisões: tratamos inicialmente do resumo da obra, passando capítulo por capítulo e destacando os pontos fortes do livro; e uma segunda parte mais crítica, destacando algumas ausências na obra, os motivos para lê-la e os caminhos que se abrem a partir da leitura. O tema central do livro são os projetos de transposição do São Francisco no século XIX. As fontes dessa pesquisa histórica são bem variadas, passando por jornais e revistas, escritos e discursos de políticos e membros da elite do Império, com um destaque especial para os mapas e relatórios técnicos (p.19-25). Feita essa breve apresentação, vamos olhar com mais atenção para os capítulos. Leia Mais
A Justiça D’Além-mar: lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (Século XVIII) | Maria Filomena Coelho
As ideias advindas da Escola dos Annales por muito tempo constrangeram o historiador que se aventurava pelas pesquisas da História política ou administrativa. Atualmente o ponto de vista político na historiografia tornou-se não só de suma importância para a compreensão da realidade das sociedades, mas também mostrou não ter sido o verdadeiro alvo das críticas da escola francesa fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre1. Seguindo essa linha de raciocínio, Maria Filomena Coelho em seu trabalho A Justiça D’Além-Mar: Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (Século XVIII), parte do ponto de vista da administração da Justiça e aplicação do Direito na América Portuguesa em busca de vestígios de “lógicas jurídicas feudais” na Capitania de Pernambuco, como o título sugere. Para tal, doutora em História Medieval, do direito e das instituições, Filomena Coelho se fundamentou nos escritos de António Manuel Hespanha, bem como na concepção de um Antigo Regime nos Trópicos1, trazendo-nos um estudo do caso intrigante narrado por Veríssimo Rodrigues Rangel, cônego da Sé de Olinda, entre 1750-54 1.
A execução do testamento do padre Alexandre Ferreira fez de Olinda e Recife palco de um conflito protagonizado por juízes eclesiásticos e do rei, confronto jurisdicional este que durou cinco anos (1749-1753). Antônio Teixeira da Mata, Juiz de fora e Provedor dos defuntos e ausentes, capelas e resíduos, representando a Justiça secular (sua jurisdição e a da Coroa) entrou em choque com o Bispo, Frei Luiz de Santa Tereza e o Vigário geral, Manoel Pires de Carvalho. Maria Filomena Coelho nos descreve o embate ao longo de seu trabalho ressaltando, principalmente, o papel histórico e apologético do manuscrito de Veríssimo Rangel1. Leia Mais
À flor da pedra. Formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros – MOTTA (CP)
MOTTA, Antônio. À flor da pedra. Formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, 2009. Resenha de: SÁEZ, Oscar Calavia. À flor da pedra. Formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros. Cadernos Pagu, Campinas, n. 37, Jul./Dez. 2011.
Gosto também dos cemitérios porque são cidades monstruosas, enormemente povoadas. Pensem em quantos mortos não cabem nesse reduzido espaço, em todas as gerações de parisienses alocados ali para sempre, trogloditas estabelecidos definitivamente, encerrados nos seus pequenos panteões, nos seus pequenos buracos cobertos com uma laje ou assinalados com uma cruz, enquanto os vivos ocupam tanto espaço e fazem tanto ruído, os imbecis (Maupassant, 1891).
Guy de Maupassant refletia assim num relato de 1891, Les tombales, de tema entre o erótico e o humorístico, antes de dedicar mais dois longos parágrafos à arte que podia se encontrar nos cemitérios de Paris, “tão interessantes quanto os museus”. A ideia lhe interessava. Num relato anterior – La morte, de 1887 – já tinha expressado, quase com as mesmas palavras, essa densidade, ao mesmo tempo demográfica e semântica, dos cemitérios, que não oferecia dúvidas na sua época, cem anos antes que uma nova moda sepulcral, a dos cemitérios-gramados, os tornasse menos loquazes, embora não menos significativos.
No entanto – falo por experiência própria –, pesquisar um cemitério costuma ser visto como uma ideia pitoresca ou extravagante, muito mais do que pesquisar um mercado ou um boteco, mesmo que seja precisamente no cemitério onde as declarações e as reticências sejam mais expressivas. É isso que confere valor ao livro de Antonio Motta, ao mesmo tempo em que define as suas fraquezas.
À flor da Pedra é um livro primorosamente editado e agradavelmente escrito, que pinça na literatura e na arte ocidentais – com referências em nota a outras tradições – panoramas da relação entre o sujeito, a morte, a memória e os modos de dar sustento a ela nesses conjuntos monumentais que são os cemitérios. Detém-se especialmente na criação dos cemitérios como espaços de memória independentes da Igreja, aptos para dar cabida ao privatismo decimonónico; mostra como se desenvolveu neles o jazigo familiar, que dava eternidade à família burguesa, e como, mais tarde, esse doce lar tumular deixou passo a uma sepultura mais personalista, centrada nos casais ou nos indivíduos. Relata como as façanhas do trabalho, do comércio e da filantropia encontraram seu espaço de glória nas comemorações estatuárias, e tudo isso tratando dos cemitérios brasileiros, embora com referências constantes a outras necrópoles famosas, especialmente francesas e italianas. O livro oferece um interessante catálogo (que nunca poderia ser exaustivo) de sepulcros brasileiros especialmente expressivos, recolhendo a tradição de um velho estudo de Clarival do Prado Valadares, que atendia a esse setor habitualmente esquecido da arte nacional, e também desencava alguns interessantes debates públicos sobre as polêmicas higienistas, a democratização do direito a uma sepultura pessoal e as mutáveis condições de classe dos cemitérios.
Tudo isso outorga interesse a esse livro, que, no mínimo, esclarece que para saber algo sobre o Brasil – ou sobre qualquer outro lugar – não se deveria deixar de consultar os seus mortos.
A fraqueza do livro se encontra também muito perto desse mérito. Afinal, os cemitérios falam muito, de modo que para não se perder na sua conversa, sempre um tanto convencional, seria conveniente centrar-se em algum dos seus ditos, ou buscar um outro lado do discurso. Sem dúvida os cemitérios falam, como diz o livro, do indivíduo, dando uma das melhores expressões possíveis a uma cosmologia individualista que no século XIX foi substituindo à da Igreja – ou que, para ser exato, foi se impondo à mesma Igreja. Mas vale a pena lembrar que toda essa exaltação decimonónica do morto individual pouco mais fez do que estendê-la à camada superior do Terceiro Estado, já que o monumento funeral consagrado à gloria mundana do defunto já ocupava antes os interiores dos templos, em benefício da nobreza e do alto clero. O enterramento em terrenos exclusivamente dedicados a esse fim foi, sim, um feito da secularização e de um primeiro higienismo, mas de outra parte apenas restabeleceu uma tradição clássica que o cristianismo – uma das raras religiões que chegaram a aglutinar templo e sepultura – tinha interrompido. Não é nenhuma surpresa que a exaltação burguesa da família, com sua ênfase patriarcal, tenha um palco no cemitério, nem que a nuclearização dos lares e o encolhimento consequente das residências dos vivos tenham se manifestado igualmente nas últimas moradias. Afinal, o cemitério faz muito por se parecer à cidade: é desenhado de acordo com as mesmas ideologias e as mesmas teorias urbanísticas. Com a diferença de que os mortos ocupam menos espaço e são muito menos irrequietos que os vivos, e assim se sujeitam melhor ao planejamento. São dispostos, quase sem resistência, de acordo com o modelo. Justo por isso, descobrir no cemitério os modelos sociais em vigor tem algo de tautologia. E, pela mesma razão, o mais interessante que pode se encontrar nos cemitérios é aquilo que aparentemente se desvia do modelo. À flor da pedra trata dessas divergências em alguns momentos, por exemplo, quando trata do erotismo: seja qual for o grau da repressão ou da tolerância de uma sociedade, um cemitério é um dos últimos lugares em que se esperam manifestações desse tipo. E, contra essa expectativa, elas não são raras. Dois exemplos encontrados no cemitério de S. João Batista, no Rio de Janeiro, servem ao autor para sugeri-lo. Em ambos trata-se de uma relação entre esposos; mas há também essas imagens de mulher fatal, ou anjo feminino, ou belle dame sans merci, que proliferam nos cemitérios, sobre as quais não se diz nada para além de constatar sua presença intrigante. Elas tinham passagem franca na literatura da época; mas como chegaram a ser incluídas com tanta frequência num contexto habitualmente mais devoto como o dos cemitérios? Decerto, haveria outras variedades desse erotismo: efebos ou crianças apenas púberes, de mármore ou bronze, saltitando sobre os túmulos sem mais roupas que as da alegoria. Bastaria lembrar as estátuas jacentes dos Valois nos túmulos de Saint-Denis para lembrar que a contaminação mútua de erotismo e morte vem de longe, e que, curiosamente, só os cemitérios preservam algo dessa relação que o Ocidente erradicou de todo o resto dos fastos funerais.
Ou será que o erotismo surge como uma última manifestação de rebeldia? Falta no livro – se é que não falta nos cemitérios brasileiros – essa dimensão do túmulo como manifestação de heterodoxia, tão frequente pelo mundo afora.
Merece destaque no livro um detalhe a respeito da representação plástica do luto. Uma digressão prévia: é curioso observar como os estudos antropológicos sobre rituais funerais, sabendo que sua competência se exerce principalmente sobre as expressões formais de dor, assumem que haverá sempre uma outra dor, dimensão pungente e íntima, que o frio idioma da ciência não conseguirá expressar. E, no entanto, olhando com cuidado para algum desses mesmos monumentos do luto retratados em À flor da pedra, é difícil não pensar no íntimo alívio, para dizer pouco, que muitos terão experimentado ao encerrar suas relações sob pesadas inscrições de desolação; não são só as expressões obrigatórias dos sentimentos que variam, os sentimentos em si pouco têm de previsível, e é interessante observar o critério de seleção que a eles se aplica nos cemitérios. No livro ilustra-se uma exceção: a imagem de bronze de um homem com seu filho olhando melancolicamente um pão sobre uma mesa, junto à qual se vê uma cadeira vazia. Esse caso raro faz destacar por contraste uma distribuição de gênero muito diferente: são quase sem exceção estátuas femininas as que se ocupam de chorar permanentemente nos túmulos. Retratos de esposas ou filhas, ou mulheres genéricas (ou alegorias femininas da Humanidade ou a Pátria), choram no túmulo do esposo, do pai ou do Grande Homem. Quando uma mulher é a protagonista da sepultura, são crianças as que se ocupam de chorá-la. Mulher chora sempre, homem nunca, mesmo quando nada garante que ele tenha morrido antes – muitas vezes os túmulos eram encomendados com muita antecedência. Curiosamente, como o livro indica, acontece o contrário num daqueles expoentes do erotismo funeral, em que o homem nu que se inclina sobre uma mulher jacente comemora, ao que parece, um esposo que faleceu antes que a sua viúva, quem ideou o conjunto.
Definitivamente, o silêncio do túmulo é só aparente: na verdade ele fala tanto que diz o que quer e até o que não quer. À flor da pedra recolhe muito do primeiro; do segundo, um pouco menos do que caberia esperar.
Oscar Calavia Sáez – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade Federal de Santa Catarina, E-mail: occs@uol.com.br.
[MLPDB]A invenção do Nordeste e outras artes – ALBUQUERQUE JÚNIOR (RTF)
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4 ed. Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009. 340 p. Resenha de: MARTINELLO, André Souza. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.
“O Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais, políticos ou econômicos apenas, mas, principalmente, construções imagético-discursivas, constelações de sentido.” Durval Muniz de Albuquerque Jr. (1999, p.307).
No ano de 2009 tivemos uma década da publicação da tese de doutoramento em História, defendida por Durval Muniz de Albuquerque Junior na Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP. Torna-se oportuno trazer novamente ao debate algumas abordagens e temáticas lançadas pelo autor, na obra intitulada: “A Invenção do Nordeste e outras artes”. Como registra a primeira edição do livro, o historiador recebeu com essa pesquisa, no concurso promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, a classificação de melhor trabalho de História no Concurso Nelson Chaves de Teses sobre o Norte e Nordeste brasileiro, no ano de 1996. Nesses últimos dez anos, desde a publicação da premiada pesquisa, Durval tem se tornado autor cada vez mais conhecido e se destacado no campo da historiografia brasileira e das ciências humanas de maneira geral; entre suas obras mais recentes, uma aborda a pesquisa, a escrita e as teorias da História, “História: arte de inventar o passado”, publicado pela Edusc (em 2007)1 e um livro da série “Preconceitos” da Cortez editora: “O preconceito contra a origem geográfica e de lugar.” (2007)2 De maneira geral, pode-se dizer que Durval tem-se preocupado com temas que envolvam o pensamento e a utilização das reflexões de Michel Foucault, por vezes relacionada à escrita da História, e também outra temática de seus textos está no que poderia ser denominado de História dos Espaços. Além de fazer parte do corpo docente do Departamento de um Programa de Pós-Graduação concentrado na abordagem “História e Espaço” na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Durval vem realizando pesquisas e publicando trabalhos articulando literatura, (crítica à) identidade regional, discursos constitutivos de espaços, regionalismos e vínculos territoriais, como fez, por exemplo, no Encontro Nacional de História-ANPUH realizado em 2007, na conferência intitulada: “O Tempo, o Vento e o Evento: história, espaços e deslocamentos nas narrativas de formação do território brasileiro”.3 Leitor assíduo (e conhecedor) da literatura brasileira, em “A invenção do Nordeste”, Durval se lança a compreensão de como ao longo do tempo, obras e diferentes autores, de épocas e escolas diversas, descreveram o Nordeste brasileiro e inscreveram essa região no país. Mas a literatura que Durval se utiliza como fonte, não é apenas aquela entendida como “ficcional”, como romances ou novelas, mas inclui textos (sociológicos) de Gilberto Freyre, por exemplo. Quais formas, nomeações e descrições constituíram o Nordeste brasileiro? Passando por João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Rachel de Quiroz; e “outras artes”, subtítulo do livro, também são utilizadas por Durval, com intenção de apontar em um conjunto diverso de massa documental como se identificaram determinadas representações no e do nordeste, seja literatura ou não. Luiz Gonzaga, Candido Portinari, Glauber Rocha, Di Cavalcanti, Dorival Caymmi, José Lins do Rego, Josué de Castro, Luis da Camara Cascudo e Euclides da Cunha.
O que há em comum nesse conjunto tão variado de personagens descritos nesse livro está justamente, na forma peculiar com que cada um realizou suas obras, de maneira a constituir (e inventar) a nordestinização de uma parte do Brasil, como um espaço Outro em relação ao centro-sul, centro-oeste ou norte do país: p.311) “[…] o Nordeste quase sempre não é o Nordeste tal como ele é, mas é o Nordeste tal como foi nordestinizado.” A idéia principal presente no livro, parece apontar a constituição do nordeste enquanto espaço da negação, o Outro do sul maravilha que se construía em alteridade e paralelo, cada vez colocado mais distante do sul. É como se ao longo do tempo tivesse ocorrido um constante e profundo afastamento das regiões nordeste e sul, afastamento que foi se constituindo por diversos olhares, interpretações e sentidos.
Vários apelos e constatações de artistas, escritores, nordestinos e intelectuais do país, formaram uma geografia do nordeste; justifica Durval da sua opção em abordar algumas fontes por ele eleita como vozes privilegiadas e edificadoras de determinados espaços e características como sendo nordestinas. A busca por uma distinção por parte do sul, em relação ao nordeste, também contribuiu na invenção desse último. p.307) “O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste.” Linguagens constituíram uma forma espacial de sentidos e de uma comunidade imaginada, (p.23) as diversas formas de comunicação, cinema, literatura, teatro, pintura, música, produção acadêmica, poesia são exemplos de linguagens que não apenas representam o real, como instituem o mesmo. Enquanto alguns propuseram fórmulas de alterações das realidades sócio-ambientais nordestinas, para resgatá-las de certa condição de atraso ou subdesenvolvimento, outros cantavam a tristeza da seca e suas conseqüências, como a partida dessa região sofrida. Para quem emigrou, o nordeste torna-se um espaço da saudade, com embalo de muitas melodias, poesias, danças e tradições inventadas para o constantemente lembrar o que é ser nordestino.
Poesias tratavam de registrar a sensação de ter de migrar forçosamente em direção a outros espaços, o exterior, o longínquo, o fora dali; já no cinema e na pintura, pensava-se estar documentando a realidade das condições de retirantes, da natureza agreste, tórrida e cada vez mais inabitável ou desumana. Todos, diz o autor, construíram argumentação que levou a nordestinização de um espaço que está pretensamente localizado ao nordeste de um Outro. Se há uma referência como sendo a central, torna-se assim viável a visualização de um nordeste. Ou seja, a constituição, ao longo de mais de duzentos anos, do nordeste e dos nordestinos (o espaço como gente), foram vistos e caracterizados como um problema: (p.20) “O que podemos encontrar de comum entre todos os discursos, vozes e imagens […] é a estratégia da estereotipização.” As artes que mapearam ou apresentavam o nordeste como temática, tornaramse monumentos que atuaram na constante alimentação de imagens que nos chegam até aos nossos dias, como tradutoras e representantes do nordeste e de uma identidade de nordestino, seja ela física (corporal), lingüística (sotaque, expressões), econômica, moral e social. Há um conjunto variado de categorias e formas, nas quais se tornam possíveis encontrar e apontar características de nordestinos e do espaço desse povo, e isso pode ser observado nos diferentes produtores de sentidos que Durval traz em cena para falar dessa região ou criá-la como uma região, no sentido de ser homogênea, ter uma mesma identidade, uma mesma história e expressar uma única cultura, por isso, é que o autor afirma que se trata de uma invenção, entre outras, pela criação de uma imagem homogênea de uma parte do Brasil.
Não devemos esquecer também que anteriormente a essa obra de Durval, a doutora em Ciência Política, Iná Elias de Castro, havia apontado, analisando, entre outras documentações, discursos de políticos eleitos e representantes de Estados do nordeste no Congresso Nacional, entre 1946 e 1985, o processo de construção e cristalização do Nordeste como em posição de constante necessidade, frente às demais regiões do país. Inclusive, muitas das críticas e questões levantadas por Durval, já haviam sido lançadas por Iná de Castro em 1992 na obra “O Mito da Necessidade.
Discursos e práticas do regionalismo nordestino”,4 o que sugere possíveis (e quem sabe, interessantes) possibilidades de comparação entre a tese defendida na História por Durval e na Ciência Política por Iná. É claro que utilizando fontes e documentação diferentes, por si própria, já nos sugerem resultados não propriamente semelhantes, somado a isso à perspectiva disciplinares e o referencial teórico diferente mobilizado por ambos. Iná também buscou dialogar com aspectos e obras sobre regionalismos, e Durval deixa claro que sua intenção está mais por se afastar dessa temática e aproximar sua análise a instituições e construções de identidades. É claro que ainda há outras possibilidades de comparação, utilização e iniciação do debate das críticas presentes sobre interpretações do nordeste brasileiro. Principalmente quando se publica recentemente, novas re-edições do livro “A Invenção do Nordeste”.
1 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru (SP): Edusc, 2007.
2 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007.
3 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. “O Tempo, o Vento e o Evento: história, espaços e deslocamentos nas narrativas de formação do território brasileiro”. Conferência realizada XXIV Simpósio Nacional de História – ANPUH, História e Multidisciplinariedade: territórios e deslocamentos, julho 2007. Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/otempo ovento o evento.pdf.
André Souza Martinello – Universidade Federal de Santa Catarina.