Patrimónios de influência portuguesa: modos de olhar – RIBEIRO (A-EN)

RIBEIRO, Margarida Calafate; ROSSA, Walter (Org). Patrimónios de influência portuguesa: modos de olhar. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Niteroi: Editora da UFF, 2015. Resenha de: PÉCORA, Alcir. Alea, Rio de Janeiro, v.18 n.3, dez., 2016.

I

Acaba de ser lançado em Portugal e no Brasil, em coedição da Imprensa da Universidade de Coimbra, da Fundação Calouste Gulbenkian e da Universidade Federal Fluminense, o trabalho mais abrangente já produzido em português sobre a noção de Patrimônio – em suas várias dimensões éticas, estéticas, técnicas, culturais, sociais, históricas, políticas etc. –, no bojo dos estudos e contextos pós-coloniais, que tanto apõem desconfianças e dificuldades, como abrem veredas ainda pouco exploradas e, por vezes, sequer pensadas antes entre nós, digo, os que se podem identificar como sendo de culturas de influência portuguesa.

Pretendo comentar a grandeza desse trabalho, de um lado, fazendo sínteses rápidas, necessariamente esquemáticas (mas espero que não estúpidas), dos vários textos do livro, que cobrem questões muito novas em relação ao Patrimônio português nos vários países e regiões que os partilharam, modificaram, contaminaram etc.; de outro, propondo-lhes questões gerais que pensam o conjunto e apontam desafios a ser considerados na sua continuação.

Há um gesto de coragem no início desse projeto: sem esconder ou amenizar as assimetrias contundentes no âmbito do processo colonial, ele se propõe como gesto concreto de integração do patrimônio das diferentes culturas, países e territórios envolvidos. Como alertam os organizadores, não se trata de gesto de nostalgia romântica, mas de ação intelectual cujo propósito é subsidiar políticas de ação favoráveis à cidadania.

Em particular, o projeto pretende integrar a noção de Patrimônio à ideia de sustentabilidade cultural (não apenas social, econômica e ambiental), o que implica entendê-lo como plataforma para interação de áreas de preservação e de ação político-cultural em favor da construção da paz, da cooperação e do reconhecimento da cultura do outro.

Enquanto trabalho interdisciplinar análogo aos dos critical heritage studies, de inspiração anglo-saxônica, os estudos de Patrimônio aqui levados a cabo têm como pressuposto a crítica do eurocentrismo. Os seus dois desafios básicos são o reconhecimento das alteridades no interior de uma comunidade ampla e diversificada, e a imaginação de caminhos do desenvolvimento sustentável de cada uma delas.

Supor um Patrimônio plural significa admitir uma pluralidade de olhares e contatos, que, muita vez, obriga a questionar a ideia de “influência portuguesa”. Como dizem os organizadores do volume, a noção de influência, aqui, é basicamente entendida como um “operador histórico”, estruturado pela língua e ativado por Portugal, mas dinamizado por outras geografias e tempos diversos. O resultado pretende ser mais uma celebração de diferenças numa rede de territórios que a identificação de uma essência comum.

Também é obrigatório dizer que o livro não é uma coletânea de textos avulsos, mas uma coleção interdisciplinar cuidadosamente organizada, nascida dos debates empreendidos por duas reuniões gerais, em Bolonha e Coimbra. Está composto em duas partes separadas por uma entrevista dos organizadores com o conhecido crítico português Eduardo Lourenço, que já teve várias passagens pelo Brasil, incluindo uma bastante marcante para mim no Instituto de Estudos da Linguagem, da UNICAMP.

A primeira parte discute criticamente os conceitos tradicionalmente afeitos ao patrimônio como memória, herança, identidade, comunidade, colonialismo, origem, influência etc. e a segunda trata das disciplinas envolvidas e dos novos instrumentos de investigação propostos por elas. Passo, pois, a referir muito sinteticamente o escopo de cada um desses textos.

II

A abertura dos estudos coube a Helder Macedo, que discutiu as noções de língua, comunidade e conhecimento para indicar inicialmente que eles não compõem uma sequência lógica. Nem a língua é indispensável para definição de uma comunidade, nem esta precisa significar um conhecimento efetivamente partilhado, uma vez que, mesmo dentro de um país, as populações podem ter um persistente desconhecimento mútuo. No sentido contrário, diz o autor, escritores africanos que escrevem em línguas europeias podem eventualmente ter mais em comum com os pares europeus do que com as comunidades de origem.

O contato com a língua do poder pode efetivamente levar ao desaparecimento de línguas nativas, pois a central tende à manipulação das outras culturas e conhecimentos em favor próprio, reduzindo-as a um lugar periférico –, o que é reforçado pelo que o autor chama de “solipsismo de centro”, isto é, enxergando-se apenas a si próprio, não pensa a língua senão como instrumento de um imperialismo nacional.

Em oposição a essa política de distinção entre centro e periferia, o autor imagina a possibilidade de um centro sem lugar definido, revitalizado por alternativas não centralizadas e pela emergência de novas potências nacionais, antes periféricas, como, por exemplo, Índia, China e Brasil – países nos quais a língua portuguesa teve lugar histórico, conquanto diverso.

Tal redistribuição democrática de lugares não precisaria significar uma ameaça a nenhuma das línguas de origem, pois, para o autor, quanto mais integrada e segura da sua própria cultura, mais uma língua pode contribuir para a sobrevivência de outras, num mundo de diversidades coexistentes – pensamento que me trouxe à lembrança a afirmação pessoana de que quanto mais forte a identidade de um povo, maior a sua capacidade de importar ideias de outros.

A seguir, Renata Araújo, Professora do Departamento de Artes e Humanidades da Universidade do Algarve, discute os conceitos de influência, origem e matriz. Na de influência, enxerga menor peso hierárquico e, portanto, maior possibilidade de incorporar noções de reciprocidade e de postular um futuro para o passado que dê menos margem a mistificações nacionalistas.

A autora também observa que a ideia de Patrimônio refere “o que fica do pai”, vale dizer, guarda certo caráter fúnebre: objetos de rememoração associados a restos mortais. Daí que a necrópole seja o monumento por antonomásia: o que lembra a morte do antepassado e, ao mesmo tempo, assegura a continuidade da comunidade.

Numa perspectiva cosmopolita e contemporânea, outros pontos de vista se abrem para o enfrentamento dos fantasmas do passado: culturas híbridas, traduzidas umas das outras, que produzem polissemia e maior consciência ética das diferenças entre elas. Daí também a ideia da “tradução” como metáfora do Patrimônio, segundo a qual culturas em contato podem se tornar mutuamente Inteligíveis, sem sacrifício da sua diferença.

Uma nova geografia de difusão influente teria de ser mais centrífuga que centrípeta; menos matricial e mais ambígua, cuja vantagem decisiva está em pensar trocas, resistências e hibridações imprevisíveis em contraste com os aspectos mais coercitivos da ideia de matriz. Nesse novo registro, espera-se tanto a superação do mito étnico, como a admissão de processos de contaminação recíprocos, nos quais os mortos de comunidades diversas se enterram como “parentes” e dão margem à partilha das heranças.

Roberto Vecchi, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Bolonha, trata dos conceitos de identidade, herança e pertença. Propõe uma virada na concepção de identidade, entendendo-a na relação com o Outro, de tal modo que, analogamente, o Patrimônio seja pensado não como igual, mas como “em-comum”, o que também implica redefinição da ideia de comunidade. De uma identidade integral usualmente nostálgica passa a referir uma comunidade incompleta, não homogênea, estruturada pela falta: em construção.

Patrimônio, aqui, teria de perder a essência identitária em favor de singularidades que pactuam novas comunidades. O laço da tradição perderia força para um traço transformador, no qual as culturas são entendidas como traduções sempre incompletas e os espaços da língua portuguesa não são homogêneos, nem têm centro, admitindo mesmo a dispersão como um ganho em relação à noção tradicional de lusofonia.

Assim, contra a ideia de um poder soberano, pleno, central, apresenta-se o que o autor chama de “força débil”, assentada em projetos compartilhados sobre bens culturais “em-comum”, que não admitem grandes narrativas, mas obrigam a repensar o campo inteiro do Patrimônio. Este abandonaria os seus aspectos de museificação e monumentalização de restos dos passados, cuja narração atual já não é capaz de obter identificação de nenhuma comunidade, para se reapresentar como Patrimônio de arte residuária, menos deslumbrante e eloquente: arte modesta feita de indícios, que deve repensar a monumentalidade fora da violência e de categorias plenas. Vale dizer, como contramemória: patrimônio do outro.

Antonio Sousa Ribeiro, professor do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, trata da questão da memória, avançando na mesma direção de modos contra-hegemônicos, em que a memória representa tanto uma crítica do presente como uma estratégia de produção do contemporâneo.

Para ele, o campo de estudos da memória abriga uma visão transdisciplinar, favorável à evidência dos seus quadros sociais, não em termos de um sujeito coletivo romântico, mas antes como memória pública capaz de valorizar o reverso das histórias dominantes: um trabalho de memória consciente das histórias catastróficas do século XX. Ganham força aí os estudos da violência, do holocausto e os estudos pós-coloniais, nos quais se é obrigado, muitas vezes, a considerar patrimônios de silêncio, imateriais.

Não se imagina que essa memória seja consensual, mas sim recoberta por tensões e conflitos. Ter-se-ia de pensar numa transnacionalização da memória, o que inclui fenômenos de deslocalização e de lógicas interculturais ambivalentes.

Outro conceito relevante aqui seria o de “pós-memória pública”, que refere a relação da segunda geração de descendentes em relação a essas experiências conflitantes. A ideia a acentuar é a de que a memória tem uma dimensão multidirecional, nas quais as diferenças não se anulam, articulam-se.

Miguel Bandeira Jerónimo, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, trata do colonialismo moderno e sua justificativa usual como “missão civilizadora”, vale dizer, como empresa de “elevação moral dos povos atrasados”. Talvez o mais duro dos textos do livro, mostra como as leis imperiais evidenciavam um “racismo institucionalizado” a operar como legalização do trabalho forçado. A finalidade última delas seria a autoperpetuação, a preservação do Império, ainda que as ideologias imperiais se recobrissem de certa plasticidade que lhe permite, por vezes, tomar a forma de uma ação benevolente, como a supressão da escravatura, do tráfico, e mesmo incorporar motivações religiosas e humanitárias. Tais ideologias também podem tomar a forma de inevitabilidade histórica ou de consequência natural da superioridade europeia ou ocidental, numa variante da seleção natural, e mesmo de uma tutela progressista, que avança até o momento descolonizador.

As múltiplas doutrinas de missão civilizadora promoveram o que autor chama de “racialização” do mundo imperial, com diferentes políticas de enquadramento das populações nativas, e com diferentes lógicas de assimilação seletiva e de discriminação racial.

Outro aspecto examinado é a propaganda da missão portuguesa nos manuais de administração colonial, nos quais a educação, muitas vezes tratada com o apanágio de ciência, constituía-se sempre como educação para o trabalho.

Ou seja, abuso do trabalho nativo, racialização social, política discriminatória, ausência de estruturas educativas, escassez da presença eclesiástica, insuficiência de desenvolvimento econômico são elementos de continuidade histórica do império colonial que obrigam a refletir judiciosamente sobre o que pode receber o estatuto de patrimônio linguístico e cultural numa situação de afirmação da independência e de tratamento igualitário das antigas colônias. Diante desse quadro duro, mas realista, composto pelo autor, o que se pede é um debate sobre Patrimônio que seja, como diz, “menos etéreo”.

Francisco Bethencourt, professor do Departamento de História no King’s College, investiga os sentidos de colonização e pós-colonização, destacando tanto o processo de coisificação do colonizado pelo colonizador, em que cada um deles habita mundos excludentes, como a interiorização da repressão pelo oprimido. Tais fatos acabam relativizados pela crítica pós-moderna que observa interstícios importantes de negociação e de resistência no colonizado, ou seja, formas de sobrevivência cultural e social mesmo em situação repressiva. Seriam trocas desiguais, mas capazes de produzir formas de articulação entre tradições locais e modos de domínio.

Já a crítica pós-colonial, que avança análises de teor marxista em sociedades não europeias, produz novas análises das consequências do domínio colonial, com destaque tanto para a ideias de emancipação dos povos colonizados da mentalidade de oprimido, como para as contradições no cerne das perspectivas anti-colonialistas, como a realidade desigual do exercício do poder nos países independentes, a apropriação do aparelho do estado por pequenos grupos, a irrupção de neopatrimonialismos e clientelismos etc.

Derivam daí questões cruciais para se pensar os patrimônios da presença portuguesa em outros continentes, a começar pelo emprego de uma terminologia geralmente tributária do passado colonial. O termo “influência”, por exemplo, no dicionário Morais, está associado ao sentido de domínio, de uma submissão pessoal a quem tem direito sobre nós – o que parece produzir uma espécie de retorno do recalcado já no título do volume. De fato, não é crível que, no atual estado dos debates, seja possível não incorrer nessas contradições que são exatamente o foco dos trabalhos aqui reunidos.

O autor examina os empregos históricos de termos como colono, colonização, colonialismo, e também anticolonial e anticolonialista; detém-se no sentido de “descolonização”, onde, paradoxalmente, o domínio do território pela potência em expansão ofusca o papel das lutas das populações submetidas. Em especial, a noção de “retirada” aí implícita perpetua uma visão histórica centrada nas potências colonizadoras. Ou seja, os povos coloniais, ainda depois da independência, são “desapossados” de seu orgulho de conquista da autonomia, como se esta existisse, no limite, por capricho do colonizador.

Nessas circunstâncias, mais uma vez, como pensar o patrimônio? Para o autor, qualquer resposta deve entender que, enquanto relativo à memória coletiva, o Patrimônio é resultado de uma luta pela memória no bojo de lutas sociais e de projetos políticos divergentes.

Em sua breve intervenção, Eduardo Lourenço observa que Camões não teria escrito Os Lusíadas que escreveu se não tivesse empreendido a viagem às Índias, e é este o primeiro poema europeu a ver ou interpelar a Europa de fora. E, em outra de suas brilhantes intuições, observa que, no caso do Brasil, o Império só existiu a título póstumo: reivindicado por D. Pedro I, quando da independência. Em termos portugueses, a centralidade imperial estaria na Índia.

Conquanto o empreendimento imperial português seja do Rei, e da Nação, diversamente da Espanha cuja expansão se deu pela iniciativa privada, de comerciantes, para ele, Portugal nunca chegou a ter uma ideologia imperial, mas apenas religiosa. Como missão religiosa justificaram-se as viagens portuguesas e, em particular, como missão jesuítica, que se institui como ordem cosmopolita destinada a salvar almas para Deus.

No caso do Império do XIX, que distingue essencialmente da primeira expansão fundacional, considera que ele se dá num período em que boa parte das nações europeias tornaram-se colonizadoras, sendo que boa parte delas colonizadoras mais eficazes que Portugal.

Ainda, a reflexão sobre as colônias, no conjunto da sua obra, surge como um esforço de imaginar que não está totalmente perdido o que se perdeu. No Brasil, mais facilmente, porque a ausência de insurreição permite uma ideia de continuidade e de passado português que o inclui. Já em relação à África, há uma tragédia, cuja marca inapagável é a promoção do reino pela escravidão dos povos em contato e o fato de que os agentes decisivos dela não têm qualquer cultura humanística ou fascínio estético que permita sublimar a brutalidade da conquista, a superficialidade das trocas, ou sequer reivindicar a grandeza de uma interpelação das próprias contradições imperiais, como é a de Camões.

A segunda parte dos estudos, denominada Discursos e Percursos, começa com o estudo de uma das organizadoras do volume, Margarida Calafate Ribeiro, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Para ela, uma vez que as literaturas de língua portuguesa foram impostas a todo o Império, trata-se de verificar como uma lei do poder colonial admite a inscrição de diferenças ou a sua reversão como instrumento de emancipação – onde o fluxo também dá lugar ao refluxo.

Nas primeiras narrativas do novo mundo, eurocêntricas e religiosamente motivadas, a autora observa que tanto procuram descrever o novo mundo, o que lhes dá a oportunidade de ver a Europa de fora, como o fazem por meio de uma retórica descritiva que tem a marca do olhar europeu, uma visão por analogia ou semelhança, construída pela fabulação. Tais equivalências assimétricas insinuam um confronto do olhar: dúvidas e questionamentos das realizações imperiais. Ou seja, no desejo de poder e expansão também se manifesta um valor dinâmico de descoberta de autoanálise e do Outro, como se dá em Fernão Mendes Pinto.

Para a autora, a condição moderna de Portugal provém justamente dessa condição de mediadora de mundos, num registro planetário, cujo gesto cosmopolita não apenas torna a Europa um agente de transformação, mas um resultado dela, pois o Atlântico sul não se torna apenas passagem, mas lugar de circulação.

Na carta de Caminha, a autora observa não interiorização do Outro, mas espanto e dificuldade diante da diferença: uma hesitação entre a visão idílica e o comprometimento religioso. A despeito de si mesmo, o poder vinculado à língua imperial é também testemunho de um encontro. Portanto, numa perspectiva crítica contemporânea, trata-se, para a autora, de resgatar discursos nas margens do discurso colonial. De gerar o resgate de identidades rasuradas e histórias silenciadas: levantar inscrições de diferenças na língua portuguesa que rompem o risco de uma história única.

Trata-se de tomar a língua como plataforma de uma conversa possível, pois a hegemonia do poder colonial nunca é completa e a língua do colonizador acaba construindo a base da promoção de um diálogo. No caso africano, a subalternização das línguas nacionais pelo português oficial não impede o que a autora chama de “reescrita da libertação”: a assunção da língua escrita que seleciona e rearranja as suas partes de modo a produzir novos olhares discursivos e interdiscursivos.

Em vez de recusar a herança e o patrimônio literário da língua portuguesa, a questão está em habilitar novos herdeiros. Discutir transferências culturais, num trabalho de tradução, isto é, sem rejeição, mas também sem aceitação passiva, pois os novos cânones ainda têm de ser construídos. Em termos portugueses, trata-se de admitir que a história das literaturas das colônias são também parte da história de Portugal, e que as imagens múltiplas de culturas singulares contribuem para um desenvolvimento mais harmônico do conjunto.

Francisco Noa, professor de Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, vem a seguir. Tratando das narrativas em língua portuguesa, em particular no âmbito de Moçambique, o autor considera que a literatura colonial oficial tende a produzir igualmente um imaginário colonial, de rebaixamento dos povos dos territórios conquistados. Insurgir-se contra ela significou revelar pluralidades que, como tais, eram ameaças às formas de controle.

Desde o início, os autores africanos sabiam que o poder comunicacional e transformador das narrativas é exercício de gestação de poder, que toma por vezes a forma de denúncia e de confrontação, mas que tem também um projeto fundacional. Assumido pelos escritores, tal projeto estava associado à obrigação de não esquecer e de narrar uma catástrofe coletiva, culminada nas guerras de África.

Aqui, narrar a violência e a morte são aspectos necessariamente implicados na afirmação de um patrimônio moçambicano, que apenas desta forma conquista singularidade, o que implica em apropriações, rejeições, sínteses e, enfim, diálogos entre meios e tempos distintos.

Sílvio Renato Jorge, professor de Letras da UFF, retoma a piada do brasileiro Osvald de Andrade segundo a qual só a Antropofagia nos une, para dizer que da deglutição do estrangeiro depende a constituição do diferente. Retomando os concretistas junto a Derrida, afirma o princípio de tradução e de transcriação entre as culturas, quando traduzir significa reconhecer multiplicidades irredutíveis ou equivalências sem identidade.

Numa cena político-literária de traduções, a violência é inerente: o privilégio de um aspecto implica na redução de outro. O gesto interpretativo observa espaços de negociação e de fricção, entre-lugares nos quais se favorecem processos de cisão e de hibridização que forneceriam a base dos Patrimônios de influência portuguesa, a valorizar ambivalências.

No horizonte de uma poética de descontinuidades, também a citação ocupa lugar destacado, pois no deslocamento de sentido há descontextualização e recontextualização, procedimentos marcados por uma noção de sujeito, o percurso de uma existência, os pontos de passagem numa relação tensa entre passado e presente.

Se o ponto de partida incontornável dessa poética está na língua portuguesa imposta, o ponto de chegada é o resultado de conflitos de econômicos, políticos, culturais que podem ser pensados pela metáfora da antropofagia como estratégia singular de lidar com a cultura do colonizador, de reler tradições diversas e de situar uma dinâmica própria das diferenças.

Graça dos Santos, professora da Universidade Paris Ouest Nanterre, trata dos Patrimônios de emigração, tomando por base a situação dos portugueses que foram para a França nos anos 60 e que passaram a viver um duplo deslocamento: da origem para o novo destino, e também o inverso, isto é, do novo país em relação à identidade de origem.

Como atriz e encenadora bilíngue, a autora considera haver uma imaginação própria das línguas, explorada pelo grupo de teatro Cá e Lá, criado por imigrantes portugueses na França, no âmbito da Marcha pela Igualdade e contra o Racismo de 1985. Os temas da dupla cultura, dupla pertença, de comportamentos defasados face aos de modelo francês constituem o núcleo das representações do grupo, no qual o humor é estratégia para rir de si como para levar a sério a questão de uma “cultura bastarda”.

O propósito a mover o grupo não é o de desenraizar, mas o de conceber a raiz de modo menos sectário e mais inclusivo, o que só julga possível por meio da tomada de consciência de automatismos da cultura e de sua superação.

Maria Fernanda Bicalho, professora de História da UFF, trata de novos recortes do objeto historiográfico a partir das décadas de 80 e 90, sobretudo originados de estudos anglo-americanos que ofereceram novas perspectivas em relação à historiografia anterior cuja base era o Estado-nação. Ganharam relevo tanto a História Atlântica – o complexo banhado pelo Atlântico e seu sistema de trocas econômicas, sociais, culturais etc. –, como a História Global, que estuda relações internacionais e processos que transcendem regiões, Estados e nações.

Nessas obras, estudam-se conexões até então pouco visíveis entre Portugal e os territórios ultramarinos, e isto não apenas em relação aos sistemas econômicos, mas à apropriação de espaços, reorganização de territórios, disseminação de povos, dinâmicas sociais, configurações temporais do império e práticas de identidade. São estudos que demandam novos conceitos, como o de “rede”, isto é, instrumentos de comunicação entre vários espaços, com descontinuidade territorial, pluralismo institucional e jurídico, bem como coexistência de diferentes lógicas políticas.

A consequência desse novo olhar foi, por exemplo, a percepção de que rotas imperiais eram muitas vezes controladas a partir de áreas periféricas. A noção de Império é afetada pela sua vinculação a famílias empresariais até então insuspeitas ou improváveis. Surgem, enfim, novas histórias que rompem o modelo único da transferência da trajetória europeia para as análises de outras realidades. O comércio, por exemplo, passa a admitir uma versão não-unidirecional, no qual o comparatismo eurocêntrico sofre a concorrência de um novo modo de conectar histórias, de estabelecer negociações potenciais e imprevistas de autoridade, que valorizam relações locais e regionais.

Luís Filipe Oliveira, professor do Departamento de Artes e Humanidades da Universidade do Algarve, recapitula a grande mudança sofrida pela Historiografia nos últimos anos decorrente da crítica do valor instrumental atribuído por ela aos documentos e ao monopólio da História como investigação científica do passado. Quando os documentos deixaram de ser vistos como naturais, que falavam por si mesmos, outros agentes interpretativos, até então considerados subalternos, ganharam estatuto investigativo, como a arquivística, a paleografia, a diplomática, a heráldica e a sigilografia.

A própria natureza dos arquivos entrou em causa com o debate em torno dos objetivos políticos de sua constituição, muitas vezes sob encomenda da Coroa. A partir daí, a história da nação passa a exigir a ampliação de sua investigação aos arquivos familiares e pessoais. Valorizaram-se inventários variados, textos literários, narrativas. Torna-se decisiva a questão da seleção e interpretação dos fatos pelo historiador, bem como as questões relativas a culturas, ideologias e mentalidades.

No período pós-moderno generaliza-se a desconfiança em relação aos grandes temas, que se pulverizam e passam a ser substituídos por estudos de caso, que demandam uma pluralidade de pontos de vista. Vem para o primeiro plano a consciência da metaposição do observador como alguém vinculado ao presente e, por isso mesmo, suscetível a teorias e modelos das ciências sociais.

Hoje, o caráter discursivo e construído das representações do passado estão no centro da investigação histórica, de tal modo que o historiador sofre a concorrência de críticos literários, arquivistas, antropólogos, sociólogos, jornalistas etc. As regras do ofício estão na berlinda, e nada diz mais a respeito disso do que a mudança do estatuto dos documentos. Longe de, isoladamente, entregar o mundo para o historiador, dão-lhe termos parciais, suspeitos, que precisam ser dispostos em séries, confrontados com outros indícios, informações, testemunhos, além de gestos, imagens e vestígios arqueológicos.

Há ainda o reconhecimento da dimensão monumental dos documentos, que expressa a determinação de criar leituras específicas do passado, de modo a impô-las aos pósteros. A percepção crítica dos arquivos documentais, que passam a ser entendidos como espaço de poder sobre o passado e a memória, obriga a uma maior atenção do investigador a suportes, escribas, cópias, ou seja, aos documentos percebidos como objetos sociais plenos e não apenas como fontes. O interesse pela materialidade dos documentos é uma evidência do conjunto desse processo crítico.

Se os arquivos são espaços de poder, lugar da construção de um discurso sobre o passado, outras dimensões deles passam a ser estudadas, como sua existência numa pragmática social, suas técnicas nunca neutras de organização, seus rearranjos segundo linhagens específicas. O arquivo já não é um depósito estático e alheio à vida. Revela-se em movimento e articulação permanente com a história, que tanto garante a memória, como se dispõe a ocultá-la, assegurando estatutos e privilégios, já que invariavelmente os territórios pior documentados são sempre os mais distantes dos centros de poder.

Em seguida, Sandra Xavier e Vera Marques Alves, antropólogas e professoras do Departamento de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, observam que, com o pós-modernismo, cresceram as críticas aos trabalhos antropológicos de campo, seja pela falta de polifonia dos dados, seja pelo questionamento de oposições como nativo e não nativo, seja ainda pelas relações de poder pouco discutidas em relação à própria investigação.

Admitindo a crítica, mas acentuando a importância de se manter a fronteira entre crítica textual e relações intersubjetivas em presença, as autoras traçam o surgimento de novas práticas etnográficas, com manutenção das exigências de pesquisa quotidiana, conhecimento informal e de envolvimento com as comunidades estudadas. No âmbito dessa etnografia reformada, entendem que a sua contribuição ao projeto “Patrimônios de Influência portuguesa” dá-se em termos da superação de oposições esquemáticas entre colonizador e colonizado, em favor de um olhar mais sutil para o complexo colonial, fazendo emergir vozes dissonantes, narrativas divergentes, conflitos de interesse, políticas incompletas de modo a entender o encontro colonial como efeito de processos dinâmicos.

Nesse novo ambiente, os estudos pós-coloniais, centrados na crítica textual, e as novas práticas antropológicas, de dimensão intersubjetiva, podem agir de modo articulado, com base numa “viragem material”, isto é, no estudo das formas materiais de diversos mundos sociais, cujos objetos não apenas significam ou simbolizam, mas influenciam o campo de ação social. A fotografia, por exemplo, passa a ser entendida como lugar de interações sociais e não apenas como consumo visual passivo.

Neste ponto, trata-se de descolonizar os patrimônios, antes dados como processos monolíticos ou homogêneos, dentro de uma etnografia descentrada, colaborativa, polifônica.

Mirian Tavares, professora de Cinema na Universidade do Algarve, considera, inicialmente, que os filmes de modelo hollywoodiano são uma representação simulada do real contra a qual se opõe uma cinematografia divergente, pensada tanto como lugar possível de poesia quanto como revelação de uma história periférica, mantida invisível. No entanto, constata que essa produção, no contexto do cinema africano, é usualmente tratada como world cinema, como se fosse etnografia e não propriamente cinematografia.

Mesmo visões simpáticas a ele tendem a reproduzir a visão da África como “paraíso da etnografia”, aprisionada à tradição. Ao fazê-lo, negam-lhe subjetividade real, pois ela se dissolve em traços comunitários a ser preservados como memória à beira da extinção. Ou seja, não veem o cinema ou a filosofia africana como lugar de pensamento de indivíduos independentes, com capacidade de abandonar o lugar de objeto para o de sujeitos íntegros de seu próprio presente. No fundo, trata-se sempre de uma ideia condescendente, que confirma o discurso hegemônico: defender uma cultura que não pode sobreviver sozinha.

Considerando que o cinema moçambicano, numa primeira fase pós-independência, estabeleceu-se como propaganda do novo regime, observa que, posteriormente, deu lugar a uma filmografia variada, com consequente diminuição do apoio estatal. É um cinema de resistência, uma “insanidade”, com desejo de criar alternativas, de apropriar-se da cidade fragmentada como espaço múltiplo. Cinema marginal, disruptivo, que não replica o cânone, que não se resolve na questão da memória, mas produz reflexão sobre o que vê de forma a promover ação transformadora no presente.

Ana Maria Mauad, professora do Departamento de História da UFF, observa que a ideia corrente da fotografia como realista obscurece as mediações e escolhas que se dão no ato fotográfico entre o sujeito que olha e a imagem elaborada. Uma análise fotográfica consequente também deve considerar o valor atribuído pela sociedade à imagem, bem como a grande capacidade que ela tem, como diz a autora, de potencializar a matéria e engendrar narrativas. Ademais, no caso de fotografias públicas, há que se considerar todo o processo de agenciamento, que diz respeito à sua publicação, arquivamento e guarda.

A fotografia pública, definida como registro de situações associadas ao Estado, à memória visual do poder público ou, enfim, à dimensão social dos fatos, interessa à autora como redefinição de formas de acesso aos acontecimentos históricos e de sua inscrição na memória por meio da produção de imagens com ressonância no campo social. Pode-se então falar propriamente de uma prática artística, de expressão autoral do fotógrafo (que não existe apenas como paciente de um registro realista) e também de uma prática documental, na qual se observam as condições de vida de determinados setores sociais. Tal prática, no âmbito do Patrimônio, pode recobrir informes sobre o passado, mas também a sua própria instauração como monumento, enquanto esforço deliberado de construção de símbolos a ser lançados para o futuro.

Ao analisar um álbum de fotografias realizado em 1938, em Luanda, depois publicado pela Agência Geral de Colônias, a autora observa que ele revela dois objetivos em disputa: a inauguração da exposição, que atendia aos interesses da elite local de Angola, e o registro da visita do presidente português, que atendia aos interesses do governo central de demonstrar a sua presença nas colônias. É um exemplo de como uma pluralidade de discursos pode comparecer nessas fotografias públicas, cuja função é a construção imaginária da nação. Como tais, são patrimônios visuais valiosos: não apenas registros factuais, mas lugar de manifestação de políticas de memória pública.

Luísa Trindade, professora de História da Arte na Universidade de Coimbra, trata da imagem desenhada como instrumento das áreas de Patrimônio, no tocante à arquitetura e ao urbanismo. Limitando o seu enfoque aos séculos XV-XVI e aos territórios de ação portuguesa, observa que o desenho era entendido como representação gráfica, geralmente feito na presença do objeto, com propriedade de verossimilhança. No caso das imagens de cidade, pode ser focado na urbs, vale dizer, a materialidade física dela, ou na civitas, sua comunidade humana ou genius loci.

Em qualquer dos casos, o resultado nunca é cópia fiel, mas nem por isso menos verdadeira. Há necessariamente artifício, quando o desenho tem de descrever detalhes e também propor uma inteligibilidade do todo. É sempre retórico, pois atende a uma encomenda e visa a um propósito. Pode ter a função de demonstração para a Corte de certas soluções propostas ou de ilustração de narrativas; pode ser útil na guerra, em suas formas de cartografia de defesa.

Há uma eloquência própria dos mapas, uma linguagem de poder ali articulada. A moldura técnica partilha da moldura político-social. Por exemplo, nota a autora que, no caso de representação da civitas, apenas Lisboa é desenhada, o que obviamente associa a ideia de cidade à de centro de poder.

Tais observações validam a necessidade de tratar o desenho num quadro interpretativo interdisciplinar, em que têm parte a Literatura, a Geografia, a História, a Arquitetura, a História da Arte etc. Ademais, o desenho pode ser tanto entendido como patrimônio em si mesmo, além de meio para outros fins.

José Pessôa, professor de Arquitetura na UFF, observa que é justamente do campo da arquitetura a prerrogativa de ter sido o objeto principal das construções do patrimônio histórico nacional, desde o século XIX – entendendo-se por monumento histórico sobretudo a arquitetura do passado, com suas igrejas, palácios, castelos etc. Em termos gerais, entende-se o monumento arquitetônico como o que fornece identidade às nações e também o que, enquanto documento histórico, é objeto de restauro e de ações de conservação. Nessa perspectiva tradicional, tem mais peso na ideia de patrimônio a qualidade plástica do edifício do que o valor histórico da arquitetura.

Na Carta de Veneza, de 1964, talvez o documento mais importante para o patrimônio arquitetônico, a ideia de monumento histórico é alargada até alcançar, além da arquitetura erudita, também a arquitetura vernacular, relativa a prédios mais modestos, urbanos e rurais.

No tocante à ideia de restauro é importante entender que ela se aproxima da de recriação: uma reinterpretação do passado pela consolidação de determinada imagem arquitetônica privilegiada em determinado momento histórico, segundo determinada concepção de Patrimônio. Como diz o autor, não é possível lembrar sem inventar.

No caso brasileiro, em que são raras as imagens de cidades anteriores ao século XIX, a recuperação da arquitetura colonial muitas vezes opera por meio de uma imagem idealizada que toma por analogia edifícios similares de outras regiões ou lugares. Dá o exemplo da Capela do Padre Faria, em Ouro Preto, refeita não pela descoberta de sua planta original, mas segundo o modelo da capela contemporânea de S. João Batista. Evidentemente, o procedimento é controverso: refaz-se o passado com base numa ideia de linguagem arquitetura comum, que não é rigorosamente demonstrável.

Nesse contexto, como falar de uma Patrimônio arquitetônico comum aos países de língua portuguesa? Para um arquiteto como Lúcio Costa, há uma mistura de influência e de autonomia nos edifícios coloniais de modo que, no final, os modos de ser portugueses ali encontrados, diz ele, “foram sempre brasileiros” – o que naturalmente (digo eu, não o autor) trai um princípio nacionalista bastante duvidoso para ser aplicado ao período colonial.

Ao autor do estudo, entretanto, interessa mais destacar a existência de uma dialética entre influência portuguesa e mútua influência, na qual aos modelos somam-se soluções autônomas (como a casa de taipa de pilão paulista) e adaptações locais de soluções trazidas de Portugal.

Fecha o volume o texto de Walter Rossa, um dos organizadores do volume e professor do Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra. Após considerar que apenas culturas urbanas sobrevivem e que o mundo em 2008, pela primeira vez, tornou-se mais urbano que rural, o grande desafio é produzir uma alteração de paradigma que permita evoluir de um estado cada vez mais comum de aglomeração para uma nova conceptualização de cidade, capaz de a reinventar como ecossistema ideal.

Para isso, julga que será preciso observar a complexidade total do fenômeno da cidade, que hoje vai muito além do antigo limite muralhado ou da ordem disposta a partir do centro. Os processos de urbanização, que têm a ver com a construção física mas também com a vivência das gentes, admitem um estudo em tríade, composta de estrutura (parte mais perene), forma e imagem (a mais volátil), concentrando na primeira as ações mais comuns do Patrimônio.

Após considerar que a Unesco, em 1972, passou a incorporar uma vertente urbana associada à noção de paisagem (tanto natural como cultural), a área ganhou um alento interdisciplinar, consolidado em 1992, com a categoria de “paisagem cultural”, que ultrapassa a noção de centro histórico para representar sítios culturais articulados à vida presente e não apenas à ruína arquitetônica. No entanto, para o autor, os doutrinários da Unesco são apegados a clichês patrimoniais que impedem um salto epistemológico que descolaria a noção de Patrimônio das teorias de conservação e restauro de bens artísticos autônomos, sem nexo com o território e a cidade. O salto, até agora, tem-se dado em torno do conceito de paisagem urbana histórica, ou HUL (Historic Urban Landscape), aprovado apenas como “recomendação”.

Trata-se de uma evolução da ideia de Patrimônio urbanístico, pois possibilita uma abordagem integradora do patrimônio com a cultura e o dia a dia dos cidadãos. Um conceito desse tipo pode também ser aplicado a comunidades distintas, mas com afinidades culturais, como as de influência portuguesa. No entanto, diferentemente de entender essas comunidades como projeção colonial da cultura europeia, o HUL concebe formas de expressão comuns de um conjunto cultural com matizes diversas, valorizando as suas contaminações, e em franca oposição à exclusiva remissão delas às regras de um modelo fundador.

III

Isto dito, e tendo-me já desculpado de antemão pela inépcia de minhas traduções de tantos trabalhos, cuja intensidade não deveria senão aplaudir agradecido e depois calar-me, não me furto, porém, a deixar aqui três questões breves que, ademais, são uma forma de agradecer intelectualmente o grande trabalho testemunhado pelo livro ora lançado.

A questão da teoria

A primeira diz respeito ao fato de que, entendido como está sendo feito aqui, o Patrimônio tende, em certa medida, a desmaterializar-se e, por isso mesmo, passa a exigir uma teoria, ou a depender de uma teoria. Não se trata mais de conservar obras particulares, com qualidade estética ou histórica, mas de formular um campo teórico em que o patrimônio se reinventa, estendendo-se das obras aos conceitos, mais que dos conceitos às obras. Isso é perfeitamente lógico no contexto atual, mas é também ineludivelmente problemático, já que a própria interdisciplinaridade proposta aqui é, antes de mais nada, transferência das disciplinas para um espaço de modelagem teórica, em que a prática delas perde passo para a conceitualização metalinguística e metateórica.

Se essa operação de modelagem é produtiva e pode levar a dissolver vários enganos da política patrimonial do passado, é também um processo de abstratização do patrimônio, que, em determinados momentos, parece depender mais da imaginação do estudioso que da existência histórica das formas e estruturas. E o problema da imaginação do estudioso é que ele imagina por paradigmas redundantes, de tal forma que a teoria é ao mesmo tempo nova e repetida.

Não fiz um levantamento estatístico, mas é evidente que alguns autores comparecem sistematicamente no livro. E um bom autor pode ser bom, claro, mas muitas vezes um mesmo bom autor pode ser redundante ou dar a impressão de que é pouco o que se tem efetivamente à vista ou nas mãos. Acaba dando uma cara comum a uma invenção que, para ser real, precisa ser selvagem, em alguma medida, isto é, enfrentada no corpo a corpo, a cada vez, pelos diferentes pesquisadores, cujas armas interpretativas são mais fortes conforme se ajustam a sua própria experiência e estudo. Uma grande teoria brandida dezenas de vezes pelos pesquisadores mais diversos, em relação a objetos igualmente diversos, dá a impressão menos da força dessa teoria do que do exame exíguo da singularidade da obra.

A questão dos estudos culturais

Além da precedência teórica, os estudos deixam entrever uma perspectiva culturalista, usualmente edificante, isto é, que mostra boa vontade geral diante das relações assimétricas entre os povos recobertos pela ideia de influência portuguesa, e que favorece quase como parti pris as ideias de multiplicidade, pluralidade, diferença etc. Esse é um problema que diria que é inerente aos estudos culturais, e que comprometem as teses pós-colonialistas: nascem de perspectivas que têm um grande sentido de justiça e de ética do tratamento das diferenças e pluralidades das diversas comunidades, mas, no final das contas, além ou aquém dessa boa vontade, estão as obras, as cidades, as culturas, que em geral existem na contradição, na concorrência por vezes insolúvel entre as partes, e, mais ainda, no terreno minado da globalização.

Se é óbvio que todos esses trabalhos não querem bater bumbo para o passado nacionalista, também é importante que não incorram numa espiral de idealismo que se desprenda do solo duro em que todos vivemos e no qual invariavelmente predominam políticas muito parciais, senão muito toscas. Ou seja, se não queremos mais que a questão do Patrimônio seja uma epopeia do colonialismo, temos de estar muito atentos para não fazer dos estudos pós-coloniais uma épica da globalização, como suspeito que usualmente fazem os norte-americanos.

A questão estética

Por fim, um terceiro e talvez o ponto mais importante que deixaria aqui para ser pensado é que é evidente o recuo da estética nessa nova perspectiva integradora do Patrimônio. Se cresce a atenção aos direitos e diferenças, diminui na mesma intensidade a nossa capacidade crítica de avaliação do que se postula como diferente. Pois que categorias seriam adequadas para um juízo estético – e como sequer postular a noção de valor advinda de uma experiência estética — quando o patrimônio se associa sobretudo à criação de comunidades plurais com direito a partilhar um espaço até então ocupado exclusivamente pelas culturas de um centro hegemônico que nunca foi nem um pouco compreensivo?

Desse ponto de vista, fico pensando, incomodado, se o custo das teorias da partilha deve significar necessariamente o sacrifício do estético, do objeto, e, enfim, da forma (pois os conteúdos se dobram mais facilmente ao bom mocismo). Quando a forma – esta, que é o cerne de qualquer questão artística que não se esgote nas conciliações culturais edificantes – deixa de ser decisiva, pode-se ter comunidades de direito, sociedades justas e que convivem bem, mas desgraçadamente já não há Patrimônio artístico.

Nesse caso, para encerrar, gostaria de ecoar aqui a consideração da autora que reivindicou para o cinema moçambicano não uma etnografia, mas uma cinematografia: não a admissão do testemunho de uma memória coletiva em extinção, mas realmente a construção de um cinema contemporâneo, que, por isso mesmo, tenha direito a receber um juízo crítico como qualquer outro cinema. Nesse caso, se o julgarmos digno de ser proclamado mau não será um gesto de reconhecimento maior do que o julgarmos bom por condescendência ou por amor ao folclore?

São questões graves, que formulo não como crítica direta aos ensaios que tentei apresentar aqui, mas como desdobramento do momento tumultuado em que vivemos de que o Patrimônio, prova-o sobejamente o livro, revela justamente seus impasses, contradições e dilemas mais entranhados.

Recebido: 21 de Maio de 2016; Aceito: 14 de Junho de 2016

Alcir Pécora é Professor Titular de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1A. Tem Mestrado em Teoria Literária, pela UNICAMP (1980) e Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP (1990). Livre-docente, pela UNICAMP, em 2000. Pós-doutorado no Dipartamento di Studi Romanzi della Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (2004-5).

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Sidereus nuncius – O mensageiro das estrelas – GALILEI (SS)

GALILEI, Galileu. Sidereus nuncius – O mensageiro das estrelas. Tradução, estudo introdutório e notas de Henrique Leitão. Porto:  Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. Resenha de: SILVA, Paulo Tadeu da. A mensagem, o mensageiro e o tradutor: a propósito da tradução portuguesa do Sidereus nuncius. Scientiæ Studia, São Paulo, v.11, n. 4, p. 937-46, 2013.

A Fundação Calouste Gulbenkian publicou, em 2010, a primeira tradução portuguesa de um dos textos mais importantes da história da ciência e, sem qualquer dúvida, aquele que causou o mais profundo impacto no mundo científico europeu das primeiras décadas do século xvii, a saber, o Sidereus nuncius, de Galileu Galilei. A publicação dessa tradução ocorreu quatrocentos anos após a primeira publicação do Sidereus nuncius, ocorrida em março de 1610 e, como diz Sven Dupré (p. 8), que escreve a nota de abertura à tradução portuguesa, no momento em que o pó de intensas e numerosas atividades e eventos comemorativos do Ano Internacional da Astronomia começava a assentar. Segundo Dupré, diversos estudiosos têm voltado sua atenção para esse pequeno texto, explorando diferentes aspectos, como, por exemplo, a importância do mecenato, a relação entre o contexto artístico e as imagens lunares produzidas por Galileu, os aspectos literários do texto ou, ainda, os aspectos técnicos relacionados com a produção de lentes e a invenção do telescópio. Essa diversidade de abordagens, como afirma Dupré (p. 8), coloca em evidência o caráter interdisciplinar dos estudos dedicados ao texto, bem como mostra a sua importância não apenas no contexto científico mais restrito, mas também no âmbito cultural mais amplo.

Apenas a tradução do texto para a língua portuguesa já mereceria destaque e reconhecimento. Contudo, Henrique Leitão vai além de uma tradução segura e cuidadosa do original latino. Além dela, Leitão oferece ao seu leitor um estudo introdutório e um bom conjunto de notas explicativas que contribuem para uma melhor compreensão dos aspectos históricos, filosóficos e científicos com os quais o livro de Galileu esteve envolvido. Antes de considerar o estudo introdutório, convém destacar alguns pontos do prefácio de Leitão.

Henrique Leitão inicia o prefácio afirmando que o Sidereus nuncius é “uma obra que pode, sem qualquer exagero, ser considerada a mais emblemática, a mais perturbadora, mas também a mais acessível de todas quantas compõem o excepcional panteão dos textos da ‘revolução científica’” (p. 11). Tal importância, entretanto, contrasta justamente com a ausência, em Portugal, de uma tradução desse texto. Como sabe o leitor brasileiro, não se trata da inexistência de qualquer tradução para a língua portuguesa. E, de fato, Leitão não deixa escapar esse detalhe. Depois de uma breve referência no prefácio, Leitão faz uma menção mais detalhada no estudo introdutório, avaliando as duas edições da tradução brasileira, feita por Carlos Ziller Camenietzki, bem como o estudo introdutório e as notas que a acompanham. De acordo com Leitão, a tradução brasileira visou um público bastante amplo, ao passo que a tradução portuguesa, ainda que não esteja endereçada ao especialista na obra de Galileu, tem em vista um público culto e informado. O principal motivo da afirmação quanto ao escopo da tradução portuguesa está no fato de que “o especialista nunca dispensará a leitura do texto de Galileu na sua versão latina original” (p. 12). Não obstante os propósitos alegados por Leitão, cumpre avaliar a natureza e o alcance desta edição do Sidereus nuncius, bem como o lugar deste pequeno texto de Galileu no longo processo que marcou a defesa do copernicanismo.

O primeiro aspecto que chama a atenção é justamente o título da primeira seção do estudo introdutório: “Uma Gazeta Sideral com ‘osservazioni di infinito stupore”. Como Leitão adverte na nota 8 do estudo, bem como na nota 1 da tradução, o termo gazeta foi adotado por Carlos Solís Santos, responsável pela tradução espanhola do Sidereus nuncius. Santos, além de deixar clara sua decisão de romper com a tradição, justifica que o termo avviso,1 além de significar “notícia” ou “noticiário”, pode ser entendido como “gazeta”. A decisão de Santos, como afirma Leitão, pretende colocar em evidência o caráter “sensacional e jornalístico do livro de Galileu”. Leitão, pelo contrário, opta pela tradução que, segundo ele, é a mais habitual. O debate em torno da tradução do título do livro de Galileu é um assunto largamente discutido, sabemos disso. Contudo, gostaria de apresentar algumas rápidas considerações sobre a decisão de Leitão, em contraste com outras soluções de tradução como, por exemplo, aquela adotada na primeira edição da tradução brasileira. Em primeiro lugar, Leitão discute nas notas 1 e 22 da tradução as duas opções quanto ao título (cf. p. 207 e 212), entretanto, ele mesmo reconhece que o sentido que Galileu tinha em mente era de “mensagem”. Em segundo lugar, na primeira nota, Leitão observa que a segunda edição da tradução brasileira apresenta uma alteração com respeito à primeira edição, substituindo “mensagem” por “mensageiro”. Mas é importante notar que essa decisão foi tomada pelos editores da segunda edição da tradução brasileira e não por Carlos Ziller Camenietzki. Como adverte Ulisses Capazzoli na nota de apresentação à segunda edição, a opção por “mensageiro” teve em vista seguir a tradição, ainda que Camenietzki “tenha justificado devidamente a opção que fez” (Galilei, 2009[1610], p. 6). De fato, Camenietzki justifica sua escolha tendo em vista o modo como Galileu referiu-se ao livro em algumas cartas. Mas certamente um dos pontos importantes quanto à tradução “mensageiro das estrelas” está relacionado a Kepler. Como adverte Mourão na apresentação da primeira edição da tradução brasileira, “é a Kepler que se deve o sentido de ‘o mensageiro das estrelas’ para a obra de Galileu que, na realidade, usou a expressão sidereus nuncius no sentido de ‘a mensagem das estrelas” (Galilei, 1987 [1610], p. 6).2 Entre a manutenção daquilo que Galileu tinha em mente e o respeito à tradição, Leitão prefere a segunda alternativa. Mas então qual a razão do título da primeira seção do estudo introdutório de Leitão? Ao referir-se a “Uma Gazeta Sideral com ‘osservazioni di infinito stupore”, o tradutor português não estaria reconhecendo justamente a pertinência do título “A mensagem das estrelas”? Feitas essas breves considerações, voltemos ao estudo introdutório.

Leitão abre sua exposição enfatizando os impactos do livro de Galileu: “é difícil encontrar na história científica um outro exemplo que se lhe compare, quer na estrondosa comoção que causou imediatamente, quer nas dramáticas consequências a que deu origem” (p. 19). Tais impactos serão destacados por Leitão nos parágrafos seguintes, quando ele trata, por exemplo, da propagação das descobertas galileanas não somente no mundo europeu, mas também para além dele, na Índia e na China. A ênfase na relevância dessas descobertas se vê fortalecida na continuidade do texto de Leitão, na medida em que discorre sobre um conjunto de aspectos relacionados à natureza das observações telescópicas de Galileu, sua adesão às teses copernicanas, as consequências da publicação do texto de 1610 para sua carreira e os efeitos das novidades por ele relatadas no meio científico e filosófico da primeira metade do século xvii. Tais aspectos estão presentes nos blocos temáticos do estudo introdutório, os quais poderiam ser resumidos da seguinte maneira: (1) breve exposição sobre a história do telescópio; (2) descrição da estrutura do Sidereus nuncius e das observações telescópicas nele contidas; (3) a redação da obra e sua relação com os Medici; (4) as observações astronômicas de Galileu depois da publicação do Sidereus nuncius; (5) os impactos da obra na comunidade científica e filosófica do período; (6) a recepção das novidades telescópicas de Galileu em Portugal.

O trajeto percorrido por Leitão ao longo desses blocos temáticos conduz seu leitor a compreender, em linhas gerais, o contexto no qual o livro de Galileu está inserido. O destaque inicial, claramente vinculado ao estupor ocasionado pelas novidades anunciadas por Galileu, dá lugar ao desenvolvimento de um panorama que coloca sob nossos olhos os aspectos técnicos, cosmológicos, filosóficos e sociais que cercam a obra em questão. Tal panorama começa com um breve histórico sobre a invenção do telescópio, a maneira como Galileu toma conhecimento do mesmo, seu trabalho na construção de telescópios cada vez mais potentes e as dificuldades práticas envolvidas nesse processo (como, por exemplo, o polimento adequado das lentes). Esse histórico prepara o leitor para o significado das observações contidas no Sidereus nuncius e, consequentemente, fortalece o papel decisivo e revolucionário desse instrumento científico. Como afirma Leitão: “o telescópio é, pois, parte integrante e essencial da ‘mensagem’ que Galileu queria dar” (p. 29). E, de fato, isso se faz notar nas primeiras páginas do texto de Galileu, nas quais encontramos o seguinte.

Grandes coisas, na verdade, são as que proponho neste pequeno tratado para que sejam examinadas e contempladas por cada um dos que estudam a natureza. Coisas grandes, digo, pela própria excelência do assunto, pela sua novidade absolutamente inaudita e ainda por causa do instrumento com o auxílio do qual elas se tornaram manifestas aos nossos sentidos (Galilei, 2010 [1610], p. 151).

Tais grandes coisas, resultado das observações astronômicas de Galileu, serão anunciadas logo após um brevíssimo relato sobre como a notícia do surgimento do telescópio chegou ao seu conhecimento e de como ele construiu esse instrumento. De acordo com Leitão, o Sidereus nuncius contém basicamente dois tratados: o primeiro sobre a Lua e o segundo sobre Júpiter, separados por algumas páginas dedicadas às estrelas fixas. Cada uma dessas partes possui caráter e consequências particulares. Como sabemos, as observações da superfície lunar determinam sérias dificuldades para a cosmologia aristotélica. Se a existência de vales, crateras e montanhas (o que se conclui a partir das imagens obtidas por intermédio do telescópio) demonstra que a superfície da Lua não é “perfeitamente polida, uniforme e exatamente esférica, como um exército de filósofos acreditou” (Galilei, 2010 [1610], p. 156), a natureza da luz secundária que banha o corpo lunar reforça a sua similaridade com a Terra para além das suas semelhanças de relevo.

As páginas que seguem ao relato sobre a superfície lunar, ainda que denominadas por Leitão como uma digressão, abordam outro aspecto importante para a cosmologia e a astronomia do período. A observação telescópica das estrelas fixas revela aos olhos do observador moderno um número muito maior desses astros e o seu papel na constituição de determinadas regiões celestes, como a constelação de Órion (até então compreendida como uma nebulosa) e a Via Láctea. Duas passagens do texto de Galileu ilustram muito bem tais aspectos.

Na verdade, com a luneta poderá ver-se uma tal multidão de outras estrelas abaixo da sexta grandeza, que escapam à vista desarmada, tão numerosa que é quase inacreditável, pois podem observar-se mais do que seis outras ordens de grandeza (…). Aquilo que foi por nós observado em terceiro lugar foi a essência ou matéria da própria Via Láctea que, com auxílio da luneta, pode ser observada com os sentidos, de modo que todas as disputas que durante gerações torturaram os filósofos são dirimidas pela certeza visível, e nós somos libertados de argumentos palavrosos. De fato, a galáxia não é outra coisa senão um aglomerado de incontáveis estrelas reunidas em grupo (Galilei, 2010 [1610], p. 175-7).

A última parte do Sidereus nuncius é dedicada ao anúncio dos quatro satélites de Júpiter, cujas implicações vão desde a sua nomeação de “estrelas mediceias” até seu papel como argumento em favor do copernicanismo. Os comentários de Leitão a respeito dessas implicações são, mais uma vez, bastante esclarecedores. Quanto ao primeiro tipo de implicação, ele dedica atenção não somente na breve análise que faz desta parte do texto de Galileu, mas também em outro momento do estudo introdutório, no qual discorre exclusivamente sobre a relação entre a publicação do Sidereus nuncius e a homenagem de Galileu à família Medici. Quanto ao segundo tipo de implicação, Leitão recupera o processo de observação de Júpiter, evidenciando a crescente importância do fenômeno para a conversão explícita e militante de Galileu ao copernicanismo (cf. p. 82). As observações posteriores à publicação do Sidereus nuncius, como foi dito acima, são brevemente tratadas por Leitão no estudo introdutório. Dentre elas, as observações das fases de Vênus e das manchas solares fortalecem a convicção de Galileu em prol do copernicanismo e, portanto, são elementos igualmente importantes para a sua defesa do novo sistema astronômico. De fato, encontramos na carta endereçada a Benedetto Castelli, datada de 21 de dezembro de 1613 (cf. EN, 5, p. 281-8), o uso de um argumento em defesa de Copérnico claramente vinculado às observações das manchas solares. A fim de demonstrar de que maneira a famosa passagem de Josué é compatível com o sistema copernicano e, por outro lado, não pode ser explicada pelo sistema ptolomaico, Galileu afirma no penúltimo parágrafo da carta:

Tendo eu, portanto, descoberto e demonstrado necessariamente que o globo do Sol gira sobre si mesmo, fazendo uma rotação completa em cerca de um mês lunar precisamente naquele rumo em que se fazem todas as outras rotações celestes; sendo, ademais, muito provável e razoável que o Sol, como instrumento e ministro máximo da Natureza, como que coração do mundo, dê não apenas, como ele claramente dá, luz, mas também movimento a todos os planetas, que giram em torno dele (Galilei, 2009, p. 25-6).

Se as observações astronômicas tiveram consequências importantes no posicionamento adotado por Galileu, o conhecimento daquelas que estão presentes no Sidereus nuncius causaram, por sua vez, profundos efeitos no ambiente científico e filosófico do período. Leitão avalia esses efeitos nos dois últimos momentos de seu estudo introdutório. O primeiro deles apresenta um exame geral desses impactos no mundo científico da época, ao passo que o segundo é particularmente dedicado à análise das novidades telescópicas de Galileu em Portugal. Mas os dois momentos não estão separados. Pelo contrário, aquilo que Leitão descreve acerca do que ocorreu em Portugal está claramente associado às repercussões das observações astronômicas de Galileu na Companhia de Jesus e entre os astrônomos do Colégio Romano. De modo geral, a exposição de Leitão sobre o impacto do Sidereus nuncius procura colocar em evidência a recepção e a avaliação dessa obra por Kepler e pelos astrônomos do Colégio Romano. No primeiro caso, trata-se da aprovação do maior astrônomo do período, a quem Galileu solicita expressamente a opinião. A resposta de Kepler à solicitação de Galileu ocorre alguns dias após receber uma cópia do Sidereus nuncius. A carta enviada por Kepler a Galileu é posteriormente corrigida e ampliada, sendo publicada sob o título Dissertatio cum nuncio sidereo. A avaliação de Kepler é marcada pelo tom elogioso e entusiasmado, não obstante ele advirta que Galileu não inventou o telescópio, como também não foi o primeiro a “falar da natureza rugosa da superfície lunar e que não fora também o primeiro a referir que havia muito mais estrelas no céu” (p. 106). Se a avaliação de Kepler depositava nas mãos de Galileu um trunfo de enorme valor, a confirmação de suas observações por parte dos astrônomos do Colégio Romano lhe conferia crédito importantíssimo no âmbito institucional e científico vinculado ao poder eclesiástico. A resposta às demandas encaminhadas pelo cardeal Roberto Bellarmino (cf. EN, 11, p. 87-8) aos membros daquela instituição não confirma apenas as observações presentes no pequeno texto de 1610, mas ainda as outras que se seguiram à publicação do Sidereus nuncius (cf. EN, 11, p. 92-3). Embora essa fosse uma vitória da maior relevância, ela não significou, no âmbito dos jesuítas, a adoção do sistema copernicano. As dificuldades oriundas das observações astronômicas requeriam uma nova explicação dos céus e dos movimentos planetários e durante algum tempo os jesuítas estiveram envolvidos com os problemas cosmológicos que então se apresentavam, resultantes das observações astronômicas com o auxílio do telescópio. Depois da morte de Clávio, em 1612, os debates continuaram de modo intenso na Companhia de Jesus. Segundo Leitão, “a verdade é que, em 1620, com a publicação da Sphaera mundi seu cosmographia, de Giuseppe Biancani (1566-1624), o sistema de Tycho Brahe passou a ser ‘oficialmente’ adotado pela Companhia de Jesus” (Leitão, 2008, p. 31).

Os reflexos das descobertas astronômicas de Galileu têm, na última parte do estudo introdutório de Leitão, um destaque especial, ainda que não exaustivo. É neste momento que o tradutor português trata particularmente das repercussões da invenção do telescópio e das observações astronômicas de Galileu entre os jesuítas da Companhia de Jesus, mais precisamente na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão. A chegada dessas notícias foi favorecida em virtude das relações entre a Companhia de Jesus e o mundo europeu culto daquele período, como, por exemplo, a estreita relação entre a “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão com a Academia de Matemática de Clávio. Se a chegada dessas notícias a Portugal foi resultado desse tipo de relação, é igualmente o papel desempenhado pela Companhia de Jesus que permite que as novidades astronômicas sejam recebidas em países mais distantes da Europa, como a Índia e a China, nos quais se encontravam, respectivamente, o padre Giovanni Antonio Rubino (cf. p. 118) e o jesuíta Manuel Dias Júnior (cf. p. 120). Mas a atenção de Leitão está dirigida para a recepção e desenvolvimento da astronomia na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão, o que o leva a tratar do debate cosmológico que então se desenvolveu naquela instituição com as notícias sobre as observações telescópicas de Galileu. Nesse contexto, dois personagens merecem destaque, Giovanni Paolo Lembo, responsável pela construção de telescópios no Colégio Romano, e o jesuíta italiano Cristoforo Borri, que teve um papel importante nos debates cosmológicos do período (cf. p. 129). O primeiro deles, Lembo, foi o grande responsável pela introdução de Galileu e suas descobertas astronômicas em Portugal, ao passo que Borri foi um notável divulgador das novidades astronômicas naquele mesmo país. Ambos têm passagem pelo Colégio de Santo Antão, no qual lecionaram alguns cursos. Lembo lecionou entre 1615 e 1617, período no qual se desenvolveu o longo e intenso debate cosmológico e teológico em torno das hipóteses copernicanas e, Borri, entre 1627 e 1628. É por meio da trajetória desses dois personagens na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão que Leitão oferece ao seu leitor um quadro geral sobre a introdução das observações celestes de Galileu em Portugal, bem como sobre o posicionamento dos jesuítas portugueses frente ao debate cosmológico das primeiras décadas do século xvii. Nesse último contexto, ele mostra que os matemáticos jesuítas, embora abandonem o modelo astronômico ptolomaico (pois ele não se mostrava mais sustentável frente às descobertas feitas com o telescópio), não adotam o sistema copernicano. Como dito anteriormente, os jesuítas optam pelo modelo proposto por Tycho Brahe, ou alguma variante desse modelo.

Como dito no início desta resenha, Leitão afirma que a tradução portuguesa está endereçada ao público culto e informado e que o especialista jamais dispensará a leitura do original latino do Sidereus nuncius. Além disso, no prefácio, ele lamenta que “quase nada do que Galileu escreveu foi alguma vez traduzido em Portugal” (p. 11). Tais declarações merecem agora algumas ponderações, uma vez que a tradução é dirigida àquele público ao qual Leitão se refere. O trabalho de Leitão merece o justo reconhecimento, não apenas pela tradução cuidadosa, mas também pelo estudo introdutório. Trata-se, sem dúvida, de uma leitura fundamental para todos os interessados na obra de Galileu. Contudo, esse mesmo público, culto e informado, não deixará de perceber algumas ausências notáveis naquilo que diz respeito às traduções disponíveis, seja de textos do próprio Galileu, seja de outros que estão diretamente relacionados com a contenda em torno do copernicanismo. Nesse sentido, lamenta-se, por exemplo, a falta de referência a algumas traduções brasileiras, dentre as quais destaco as seguintes: (1) a tradução brasileira de O ensaiador, realizada por Helda Barraco (cf. Galilei, 1978); (2) a tradução brasileira comentada do Commentariolus, de Copérnico, feita por Roberto de Andrade Martins (cf. Copérnico, 1990); (3) a tradução brasileira das cartas relacionadas com o debate teológico e cosmológico com o qual Galileu esteve envolvido, realizada por Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento (cf. Galilei, 2009); (4) a tradução brasileira comentada do Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, feita por Pablo Rubén Mariconda (cf. Galilei, 2011 [1632]); (5) as traduções brasileiras comentadas da Carta de Galileu a Francesco Ingoli e da Discussão a respeito da posição e do repouso da Terra contra o sistema de Copérnico, de Francesco Ingoli de Ravena, realizadas por Pablo Rubén Mariconda (cf. Galilei, 2005; Ingoli, 2005). Essas últimas traduções, feitas por Mariconda, merecem destaque especial tendo em vista a relação dos estudos que as acompanham com a defesa galileana do copernicanismo. A tradução do Diálogo, cuja primeira edição é de 2001, conta com um valioso estudo introdutório, intitulado “O diálogo e a condenação”, a partir do qual é possível compreender, com riqueza de detalhes e profundidade de análise, todo o período no qual Galileu esteve envolvido com a defesa do modelo copernicano. As traduções do texto de Ingoli e da resposta de Galileu são, por sua vez, acompanhadas de um estudo intitulado “O alcance cosmológico e mecânico da carta de G. Galilei a F. Ingoli” (Mariconda, 2005). Tais estudos ampliam significativamente o quadro apresentado por Leitão. Todas essas traduções são anteriores àquela de Leitão e, assim, esperaríamos que estivessem referidas no prefácio, no estudo introdutório ou nas notas à tradução.

Não há dúvida de que trabalho realizado por Leitão deve ser colocado ao lado das traduções acima referidas, bem como da tradução portuguesa de As revoluções dos orbes celestes, de Copérnico, feita por A. Dias Gomes e Gabriel Domingues (cf. Copérnico, 1996 [1543]). De fato, não é difícil notar que a tradução do Sidereus nuncius preenche uma lacuna importantíssima naquela prateleira da estante, nossa e principalmente de nossos alunos. A meu ver, são especialmente estes últimos que ganham uma contribuição de valor inquestionável com o trabalho de Leitão. É por meio da tradução da mensagem enviada por Galileu, que o tradutor português lega ao futuro especialista mais uma peça para montagem do quadro de uma época que ainda reclama nossa atenção. De fato, este novo volume na estante não mostra apenas um retrato do céu que os filósofos naturais da primeira metade do século xvii descobriram, mas nos auxilia a compreender o significado de um dos períodos mais importantes da história da ciência. Cabe ao leitor manter seus olhos atentos aos detalhes desse retrato, bem como às interpretações que dele já se fizeram.

Notas

1 Note-se que ele não utiliza o termo “nuncius”, mas refere-se ao termo italiano utilizado por Galileu em algumas ocasiões como, por exemplo, em uma carta redigida em 30 de janeiro de 1610 e endereçada a Belisario Vinta (cf. EN, 10, p. 280-1).

2 Seguramente Mourão refere-se nesse momento ao texto no qual Kepler apresenta sua avaliação sobre o livro de Galileu, intitulado Dissertatio cum nuncio sidereo.

Referências

COPÉRNICO, N. As revoluções dos orbes celestes. Tradução A. D. Gomes e G. Domingues. Introdução e notas L. Albuquerque. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996 [1543].

_____. Commentariolus. Pequeno comentário de Nicolau Copérnico sobre suas próprias hipóteses acerca dos movimentos celestes. Tradução, introdução e notas R. de A. Martins. Rio de Janeiro: Coppe/Mast, 1990.

FAVARO, A. (Ed.) Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei. Firenze: Barbera, 1933 [1891]. 20 v. (EN)

GALILEI, G. O ensaiador. Tradução H. Barraco. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).

_____. A mensagem das estrelas. Tradução, introdução e notas C. Z. Camenietzki. Revisão crítica A. da G. Kury. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins/Salamandra, 1987 [1610].

_____. Carta de Galileu Galilei a Francesco Ingoli. Tradução P. R. Mariconda. Scientiae Studia, 3, 3, p. 477516, jul./set. 2005.

_____. O mensageiro das estrelas. Tradução, introdução e notas C. Z. Camenietzki. São Paulo: Scientific American Brasil/Duetto, 2009 [1610].

_____. Ciência e fé: cartas de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano com a Bíblia. Organização e tradução C. A. R. do Nascimento. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

_____. Sidereus nuncius: o mensageiro das estrelas. Tradução, estudo introdutório e notas H. Leitão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 [1610].

GALILEI, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Tradução, introdução e notas P. R. Mariconda. 3. ed. São Paulo: Editora 34/Associação Filosófica Scientiæ Studia, 2011 [1632].

INGOLI, F. Discussão a respeito da posição e do repouso da Terra contra o sistema de Copérnico. Tradução A. M. Ribeiro e L. Mariconda. Scientiae Studia, 3, 3, p. 467-76, jul./set. 2005.

LEITÃO, H. O debate cosmológico na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão. In: Leitão, H. (Org.) Sphaera mundi: a ciência na “Aula da Esfera”. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2008. p. 27-44.

_____. Estudo introdutório. In: Galilei, G. Sidereus nuncius: o mensageiro das estrelas. Tradução, estudo e notas H. Leitão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 [1610]. p. 19-136.

MARICONDA, P. R. O alcance cosmológico e mecânico da carta de Galileu Galilei a Francesco Ingoli. Scientiae Studia, 3, 3, p. 443-65, jul./set. 2005.

_____. Introdução. O “Diálogo” e a condenação. In: Galilei, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Tradução, introdução e notas P. R. Mariconda. 3. ed. São Paulo: Editora 34/Associação Filosófica Scientiæ Studia, 2011 [1632]. p. 15-76.

Paulo Tadeu da Silva – Centro de Ciências Naturais e Humanas. Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo, Brasil. E-mail: paulo.tadeu@ufabc.edu.br

[DR]

 

Bibliotheca manuscripta Petri Hispani. Os manuscritos das obras atribuídas a Pedro Hispano – MEIRINHOS (V)

MEIRINHOS, J. F. Bibliotheca manuscripta Petri Hispani. Os manuscritos das obras atribuídas a Pedro Hispano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2011, 709p. ISBN 978-972-31-1387-7. Resenha de: OLIVEIRA e SILVA, Paula. Veritas, Porto Alegre v. 57 n. 2, p. 213-215, maio/ago. 2012.

Esta obra, que consiste em um volumoso catálogo dos manuscritos das obras atribuídas a Pedro Hispano, é resultado parcial da investigação do autor com vista à elaboração da sua dissertação de doutoramento em Filosofia Antiga e Medieval, apresentada em 2002, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Trata-se da edição de um primeiro tomo da mesma dissertação, da qual, no que se refere ao resultado da investigação codicológica, o autor anuncia ter em preparação um segundo volume (Introdução, p. XXXII). O volume organiza-se do seguinte modo: I – Introdução, II – Compendium e III – Bibliotheca manuscripta Petri Hispani. Contém ainda dois apartados de Índices: A – Pedro Hispano e B – Gerais.

Na Introdução, o autor dá conta do estado da questão acerca do que designa como “questão petrina”, a saber, a que envolve a discussão gerada pelo fato de um amplo conjunto de obras serem atribuídas a um mesmo autor de nome “Petrus Hispanus”. O autor começa por referir o percurso da investigação acerca do espólio atribuído a Pedro Hispano, desde os primeiros repertórios e estudos publicados por M. Grabmann entre 1928 e 1938 (baseando-se em estudos realizados no século 18 e 19), que fazem convergir toda a documentação manuscrita e historiográfica sobre a figura de “Petrus Hispanus” para o Pedro Hispano papa no século 13, sob nome de João XXI; até aos estudos de J. M. Cruz Pontes, que se posicionam de modo mais aberto e flexível sobre a “questão petrina”, no confronto com o legado codicológico e a informação historiográfica (cf. Introdução, p. XX-XXIII). Resultados de investigação mais recente, elaborada já por J. F. Meirinhos, colocariam abertamente em questão a tese da identificação de todos os manuscritos atribuídos a “Petrus Hispanus” com uma e a mesma pessoa, colocando a tese da possibilidade de uma diferenciação de autores. De fato, como nota, o autor já tinha publicado alguns estudos nos quais manifestava a perplexidade perante contradições biográficas e intelectuais verificadas a partir da crítica

interna dos diversos manuscritos, formalizando, em artigo publicado em 1996 na Revista Española de Filosofía Medieval, a hipótese da existência de pelo menos três autores referenciados sob o mesmo nome, e indicando a dificuldade de atribuição de um conjunto diversificado de obras a um só e mesmo Pedro Hispano. (Cf. Introdução, p. XXIV-XXV; XXIV, n. 16 e 17; p. XXV, n. 19). O autor insiste na importância, para a correcta compreensão historiográfica e doutrinal, da elaboração de inventários de manuscritos e de repertórios, como instrumentos heurísticos para o estudo dos autores medievais. Meirinhos inscreve, assim, a sua metodologia do exercício da filosofia medieval na boa prática do exercício da medievística filosófica contemporânea, para a qual é indispensável a edição crítica de textos, o constante apuramento das fontes primárias e a criação de repertórios com vista à identificação dos diversos corpora literários dos autores do período medieval. É nesse contexto que elabora e edita esse repertório dos manuscritos petrínicos, no qual sinaliza e descreve, em toda a extensão possível, os 1.033 códices aqui referenciados, cujo objetivo é permitir “que a investigação prossiga em bases mais sólidas, alargando a análise direta a uma amostra mais significativa de manuscritos, pelo menos daqueles que se identifiquem como mais importantes, quanto ao conteúdo ou data de cada um” (cf. Introdução, p. XXXI). Dado que esse estudo mostra a existência de diversos “Petrus Hispanus” no século 13, essa biblioteca de manuscritos corresponde a obras de qual deles? A resposta encontra-se na Introdução, p. XXXIII: trata-se “do português do século 13, autor de obras de lógica, comentador de Aristóteles e de Dionísio, médico em Siena, comentador da Articella, compilador de receituários, talvez alquimista, conhecido também pela sua carreira eclesiástica tendo sido bispo de Braga, cardeal de Túsculo e por fim papa sob o nome de João XXI, dignidade que Pedro Julião ocupava quando faleceu em 1277”. Nas páginas XXXVIII e XXXIX da mesma Introdução, o autor esclarece quais as obras cujos manuscritos reportará nesse catálogo e apresenta uma lista delas, esclarecendo que excluiu os documentos papais, pois o seu tratamento diz respeito mais especificamente à diplomática, constituindo um gênero literário completamente distinto (cf. Introdução, p. XL). Não obstante, inclui nesse catálogo o Bularium e os Dictamina de Bernardo de Nápoles, justificando os motivos (cf. Introdução, p. XL). No ponto 2. da Introdução, expõe elementos de caráter formal: objetivos do catálogo e metodologia utilizada (p. XLV-L) e os critérios e modelos da descrição. Por fim, indica as partes em que se encontra dividida esta Bibliotheca manuscripta (p. LVIII).

A Parte II desta obra, designada Compendium, subdivide-se em três pontos, desse modo: 1. Siglas de obras citadas (catálogos, repertórios, bases de dados e estudos); 2. Abreviaturas; 3. Sinais e convenções. Uma vez descrita a metodologia e o objeto de trabalho, bem como assinaladas as convenções utilizadas na descrição dos manuscritos, segue-se a Parte III, Bibliotheca manuscripta Petri Hispani, contendo o inventário e a des-crição detalhada dos códices investigados. A Bibliotheca encontra-seorganizada em sete apartados, como segue: 1. Códices com obras atribuídas a Pedro Hispano: descrevem-se 869 códices, 368 dos quais consultados diretamente (p. 3-516). 2. Códices perdidos ou não localizados: descrevem-se 43 manuscritos (p. 517-529). 3. Códices com referências a Pedro Hispano ou às suas obras: descrevem-se 26 manuscritos, dos quais 3 consultados diretamente (p. 531-541); 4. Códices erradamente citados como contendo obras de Pedro Hispano: descrevem-se 48 manuscritos, dos quais 15 consultados diretamente (p. 543-555); 5. Códices com atribuição a Pedro Hispano de obras de outros autores: descrevem-se 5 códices, todos consultados diretamente (p. 557-564). 6. Códices com atribuições equívocas ou por confirmar: descrevem-se 29 códices, dos quais 10 consultados diretamente (p. 565-582). 7. Códices excluídos: descrevem-se 9 códices, 1 consultado diretamente (p. 583-585). A obra inclui ainda dois apartados de Índices: A – Pedro Hispano, contendo: 1. Obras atribuídas a Pedro Hispano (p. 588-594); 2. Comentários a obras de Pedro Hispano (p. 595-604); 3. Incipitário (p. 605-614). B – Gerais, contendo: 1. Autores Antigos e Medievais (p. 615-638); 2. Obras anônimas e não identificadas (p. 639-660); 3. Incipitário (p. 661-686); 4. Códices datados (p. 687-688); 5. Dispersão geográfica dos códices por países (p. 689-690). 6. Índices dos códices (p. 691-709).

Esta obra é um instrumento de trabalho realizado mediante o exercício das mais apuradas e actualizadas técnicas codicológicas, que atualiza toda a informação de base textual de fontes para o estudo de Pedro Hispano e dos manuscritos relacionados com a “questão petrina”. Dada a riqueza codicológica aqui descrita, espera-se que esta obra dê origem à multiplicidade de estudos no domínio da filosofia medieval e nas diversas áreas de estudo que a pessoa e obra de Pedro Hispano abordam, desde a lógica, à filosofia da mente, da filosofia natural à medicina. Esse instrumento agora publicado por J. F. Meirinhos torna agora possível prosseguir sobre Pedro Hispano uma investigação documental fiável, tornando-se desde agora indispensável para o estudo da obra de Pedro Hispano, em qualquer contexto académico, em Portugal e extra fronteiras.

Paula Oliveira e Silva – Instituto de Filosofia. Universidade do Porto.

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Principia ethica – MOORE (C)

MOORE, George Edward. Principia ethica. Trad. de Maria Manuela Rocheta Santos e Isabel Pedro dos Santos 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Resenha de: SCARIOT, Juliane. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 234-237, jan/abr, 2012.

Qual é o âmbito da ética? O que é bom? O que é o bem? O que é bom em si mesmo? O que significa dizer que determinada ação é um dever? Essas são questões abordadas pelo filósofo inglês Moore (1873- 1958) no livro Principia ethica, um clássico da ética, publicado em outubro de 1903. Originalmente, a obra era composta de seis capítulos e um prefácio, mas a edição aqui utilizada inclui o prefácio à segunda edição, no qual Moore analisa as críticas tecidas ao seu texto e aponta algumas alterações que seriam necessárias; também há o artigo “O conceito de valor intrínseco”, publicado em 1922, e o texto “O livrearbítrio”, que integra Ethics, obra publicada em 1912 e reeditada em 1966.

É importante mencionar que, além dos textos de Moore, a obra tem uma introdução na qual apresenta, brevemente, o autor e a obra. Leia Mais

Les Ouvriers D’Une Vigne Stérile. Les jésuites el la conversion des Indiens au Brésil 1580-1620 | Charlote Castelnau-L’Estoile

Nas últimas décadas, índios e jesuítas têm ganhado espaço pesquisas interdisciplinares que procuram repensar suas relações de contato. Nestes estudos, os índios, em geral, surgem como principal foco de interesse dos pesquisadores que em procuram refletir sobre as mudanças por eles vivenciadas, considerando-os também agentes destas mudanças. O aspecto religioso costuma ser priorizado e os jesuítas aparecem como importantes atores com os quais interagem os índios nestes processos de metamorfose. Cristina Pompa, Eduardo Viveiros de Castro, John Monteiro, Manuela Carneiro da Cunha e Ronaldo Vainfas são alguns exemplos de historiadores e antropólogos que, dos anos 1990 para cá, têm abordado o tema nesta perspectiva. Nestes trabalhos, bem como em outros que os antecederam, em perspectiva diversa, os inacianos desempenham papel essencial como agentes transformadores das culturas indígenas e, sobretudo, como produtores de fontes primárias fundamentais para o tema, porém não constituem o foco central de suas abordagens. Mais recentemente, José Eisemberg inovou ao abordar as missões, privilegiando o pensamento político da ordem jesuítica e refletindo sobre suas mudanças a partir da prática missionária. Leia Mais