Fronteiras e relações transfronteiriças na América Ibérica / Almanack / 2021

Filosofia e Historia da Biologia 32 Fronteiras
Fronteira do Brasil com a Venezuela | Foto: Poder 360 |

As fronteiras e as relações transfronteiriças nas sociedades ibero-americanas, tema deste dossiê da revista Almanack, coloca em evidência algumas dificuldades no campo dos estudos históricos que sobre elese debruçam. Primeiro, o caráter polissêmico do próprio conceito de fronteira, principalmente quanto se tem em conta seu uso para diferentes objetos, situações e temporalidades, e sua relação com outros conceitos igualmente importantes para o estudo do espaço, como paisagem e território. Segundo, o recorte interdisciplinar em sua abordagem, tendo em vista as substanciais contribuições da outras ciências sociais, como a geografia e a antropologia, para seu estudo. Por fim, a ampla produção propriamente historiográfica que trata sobre os espaços concebidos como “fronteiras”, seja em relação ao período colonial ou ao nacional, entendidas como confins, limites territoriais, espaços lindeiros ou como zonas de expansão, de mobilidades, circulações, encontros e confrontos socioculturais.

O estudo das fronteiras, seja para os impérios modernos, seja para os Estados Nacionais a partir do XIX, ocupou uma parcela importante da produção historiográfica sobre a América ibérica. A própria montagem das sociedades coloniais no continente põe em relevo a vigência de operações de inclusão e exclusão responsáveis pela delimitação de fronteiras espaciais, culturais, políticas e econômicas. As revoluções de independência e os processos de construção dos Estados Nacionais, oriundos da dissolução dos impérios ibéricos, marcam novos projetos políticos de conhecimento e de controle dos espaços; desse modo, o discurso sobre os limites da nação assume papel de relevo nas projeções de futuro para os novos países e na formulação de ações concretas visando a “territorialização do Estado” [3].

Como dito anteriormente, esse dossiê não compreende somente as abordagens sobre fronteira, mas também propõe a discussão sobre relações transfronteiriças, entendidas como aquelas que vinculavam, de diferentes formas, populações, redes econômicas, discussões políticas e circulações de informação entre espaços imperiais ou nacionais confinantes. De modo geral, os estudos sobre as fronteiras internacionais foram produzidos nos marcos das histórias diplomáticas, valorizando-se as narrativas de constituição das territorialidades e as relações entre as esferas centrais dos poderes monárquicos e nacionais nas negociações sobre as demarcações de limites no espaço americano. De outro lado, as histórias de corte militar, destacando guerras e enfrentamentos nas zonas de litígio, também trouxeram importantes contribuições para as escritas historiográficas sobre as fronteiras. No entanto, pode-se perceber um deslocamento da discussão nesse campo, de um “paradigma estatal” no estudo das fronteiras para uma história mais atenta para as dinâmicas locais – os fluxos, as conexões, os arranjos e as disputas entre populações que habitam espaços fronteiriços – ou para a interação entre local e global noslimites territoriais [4]. É possível, além do mais, constatar uma produção crescente sobre fronteiras ibero-americanas a partir de recortes da história social e cultural, colocando em evidência a análise de fenômenos de mestiçagens e de intermediações em zonas de fronteira, entendidas muito mais como espaços de encontros e confrontos envolvendo múltiplos atores, e não apenas como limites territoriais de soberanias políticas [5].

Esse reposicionamento dos estudos sobre fronteiras não significa desconsiderar as tensões e condicionantes das relações internacionais que marcaram esses espaços, mas colocar em evidência conflitos e colaborações que também envolviam as populações fronteiriças, os sentidos de fronteira construídos por elas, e o impacto dessa dinâmica local na gestão das fronteiras a partir dos centros políticos [6].As interações entre habitantes nos espaços fronteiriços não devem ser compreendidas somente a partir das relações mantidas pelos Impérios modernos e pelos Estados Nacionais, mas também a partir do que Renaud Morieux definiu como uma “diplomacia vista de baixo”, focada na compreensão dos acordos construídos pelas comunidades fronteiriças [7]. Por outro lado, deve-se ter em contaos vínculos entre fronteiras internas e externas, no qual se tecem conexões entre esses espaços limítrofes e os centros administrativos internos, relações essas viabilizadas por diferentes mecanismos e agentes que concretizam as mediações entre poderes locais e centrais [8].

Os textos selecionados para este dossiê cobrem o recorte cronológico do final do século XVII à segunda metade do XIX, tratando sob diferentes enfoques as fronteiras internas e externas da América de colonização ibérica e posteriormente das nações latino-americanas. De modo geral, os trabalhos valorizam as relações, conflituosas ou colaborativas, de aproximações ou atritos, mantidas pelas populações que habitavam os espaços de fronteira. Outra questão levantada pelos trabalhos deste dossiê é a mediação política e econômica entre autoridades locais e poderes centrais, bem como a importância dos sujeitos que atuavam como intermediários entre os diferentes grupos presentes nas fronteiras.

No primeiro artigo, a historiadora francesa Soizic Croguennec aborda a multiplicidade de relações e identidades acionadas por sujeitos que habitavam as fronteiras da Lousiana e da Flórida, durante a fase de incorporação dessas colônias no Império espanhol, do final da Guerra dos Sete Anos até o começo do século XIX. Esse espaço constituía uma zona particularmente importante nas disputas imperiais entre espanhóis, britânicos e franceses na América do Norte e no Golfo do México. A partir da documentação judicial espanhola, principalmente sobre soldados e indígenas, a autora analisa como os sujeitos fronteiriços tinham de lidar não somente com as pressões geopolíticas mais amplas, mas igualmente construir suas próprias estratégias individuais e coletivas de sobrevivência e integração nesse espaço, tomando parte de um jogo fluido de alianças e conflitos, com demarcações imprecisas entre o legal e o ilegal, que também influenciou na conformação dos limites imperiais na América do Norte.

Em seguida, Jonas Moreira Vargas toma o caso do brigadeiro David Canabarro para desenvolver, a partir de uma perspectiva microanalítica, um estudo sobre sua trajetória e a formação de redes econômicas, sociais e políticas por ele articuladas na fronteira da Província do Rio Grande com o Estado Oriental do Uruguai entre as décadas de 1830 e 1860. Canabarro estabeleceu-se como grande liderança político-militar local a partir de suas atuações nas guerras que marcaram o sul do Império e a região platina na primeira metade do XIX, consolidando seu poder por meio de formas de negociação com o poder central e com outros segmentos da sociedade na fronteira. Trata-se, desse modo, de uma liderança que, antes de exercer seu poder de forma absoluta, precisavam manejar alianças com os atores do espaço fronteiriço e com o Estado Nacional em formação, destacando-se como mediador entre a burocracia imperial e as elites nos limites meridionais do país.

Jaime Rosenblitt, por sua vez, trata da atuação de quatro comerciantes britânicos na região Tacna-Arica entre as décadas de 1830 e 1860, abordando os fluxos mercantis que operavam nos limites entre Peru, Bolívia e Chile e que articulavam a costa do Pacífico e o altiplano. Muito embora se tratasse de um espaço politicamente secionado pela formação dos Estados Nacionais citados e de um período marcado por disputas político-militares, Rosenblitt destaca o espaço sul-andino como um mesmo território, o que relativizava as divisões indicadas pelas fronteiras políticas. O estabelecimento desse espaço integrado valeu-se, entre outros pontos, da existência de um mercado articulado principalmente pela entrada de manufaturas importadas e pela saída de produtos minerais. A pesquisa da documentação notarial de Arica e Tacna possibilitou ao autor analisar as estratégias e trajetórias desses comerciantes britânicos, os quais se projetaram regionalmente a partir da diversificação de atividades, da associação com grupos mercantis locais e de alianças familiares e políticas. Tomando como foco os quatro comerciantes, Rosenblitt atenta para o papel desses sujeitos na construção de redes mercantis que coordenavamessas fronteiras.

O quarto artigo deste dossiê, de autoria de Rafael Chambouleyron, Pablo Ibáñez Bonillo e Vanice Siqueira de Melo, trata dos projetos de comunicação para a difusa fronteira entre oestado do Maranhão e o estado do Brasil nas décadas finais do século XVII, almejando fortalecer o comércio interno, a comunicação intracolonial e as cooperações administrativas na América lusitana. Além de abordar as projeções enunciadas pelas autoridades coloniais do Maranhão, os autores analisam as estratégias de controle territorial postas em prática nessa fronteira, e como afetaram diretamente as populações indígenas ao promover descimentos de comunidades nativas ou ao decretar a guerra justa. As conexões projetadas para os limites entre as duas possessões portuguesasna América estavam inseridas em um contexto de expansionismo da sociedade e da economia coloniais, objetivando-se realizar a abertura de novas frentes de penetração, de incorporação de terras e de controle sobre a mão de obra indígena.

O historiador equatoriano Santiago Cabrera Hanna investiga os debates e ajustes que marcaram a montagem espacial da estrutura administrativa republicana colombiana no Distrito do Sul (equivalente aproximadamente ao território do Equador), tomando como marcos a aplicação do regime de intendências e a Lei de Divisão Territorial na primeira metade da década de 1820.As reformas aplicadas versavam sobre questões sensíveis ao exercício local do poder e as relações com a administração central, como fiscalidade, aplicação da justiça e organização das eleições. Esse processo foi caracterizado pelas disputas de poder entre cidades e municípios do Distrito do Sul, principalmente entre Quito, Cuenca e Guayaquil, cidades que irradiavam suas zonas de influência no território correspondente à antiga Audiência de Quito. As relações desses poderes locais com o central foram marcadas por ajustes e negociações com lideranças políticas e militares, o que era importante para garantir a administração e a defesa de uma área fronteiriça no sul da República da Colômbia em um contexto de guerras.

Retornando para o Império do Brasil, o texto de Mariana Thompson Flores investiga questões centrais para o entendimento da formação do Estado imperial a partir dorecorte local da fronteira, mais especificamente o oeste da Província do Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX, ao tratar de duas instâncias importantes para o exercício do poder: a justiça e a fiscalidade. Nesse espaço, a administração da justiça configura um desafio não apenas pelas dificuldades de provimento do cargo de juiz nas cidades de Alegrete e Uruguaiana, mas também pelas formas de criminalidade que grassavam na fronteira, com intensa movimentação de fugitivos entre países limítrofes. O fisco, por sua vez, era constantemente tensionado pela recorrência do contrabando entre o Rio Grande e o espaço platino, com alianças duradouras entre negociantes-contrabandistas e funcionários da alfândega. Tanto as aplicações da justiça quanto dafiscalidade dependeram, em boa medida, de ajustes e mediações entre poder central e grupos hegemônicos locais, o que tornava possível a capilaridadedessas instâncias de poder e o processo de construção do Estado Nacional “para dentro” quanto também na sua relação com outros Estados confinantes.

Adriano Comissoli, por fim, investiga a política de informação e as práticas de espionagem portuguesas a partir da Capitania de São Pedro do Rio Grande e direcionadas à região do Prata, entre as décadas de 1770-1810. Os extremos meridionais da América portuguesa foram marcados pelo estado de guerra ou pela recorrente tensão nas relações luso-espanholas, de modo que a espionagem desempenhava um papel importante para a comunicação política transfronteiriça e para os planejamentos bélicos das duas coroas ibéricas. Tomando como base a documentação produzida por comandantes militares das tropas de 1ª linha dos distritos do Rio Pardo e Rio Grande, Comissoli analisa as redes de comunicação política operadas por esses oficiais e a presença de espiões lusos na região do Prata.

Como em qualquer dossiê, a seleção aqui apresentada de artigos é extremamente parcial, não logrando abarcar o amplo quadro de objetos, fontes, debates e possibilidades dos estudos históricos sobre as fronteiras na América ibérica. A despeito das limitações próprias dessa empreitada, não se pode perder de vista os avanços que os trabalhos aqui reunidos apontam. Os diferentes espaços em foco, dentro do amplo recorte cronológico dos textos selecionados, são analisados com a devida atenção sobre a interrelação de escalas, vinculado espaços locais e dinâmicas globais. A agência dos atores das fronteiras, suas formas cotidianamente construídas de apropriação do espaço e as mediações culturais, sociais e políticas, são igualmente colocadas em destaque. O olhar atento para os espaços fronteiriços pode trazer à tona outros ângulos de análise ou novos questionamentos que elucidem processos mais abrangentes -como sugere Karl Schögel, as fronteiras oportunizam o estudo de “processos de mescla, transferências e amálgamas que trazem algo novo” [9].A partir dos textos que compõem esse dossiê, o leitor tem em mãos uma amostra qualificada desse potencial.

Notas

3. GARAVAGLIA, Juan Carlos, GAUTREAU, Pierre (ed.). Mensurar la tierra, controlar el territorio: América Latina, siglos XVIII-XIX. Rosario: Prohistoria, 2011.

4. MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Introducción. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y prácticas de integración y conflictos entre Europa y América (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017, p. 17. ZÁRATE BOTÍA, Carlos Gilberto. Amazonia 1900-1940: el conflicto, la guerra y la invención de la frontera. Letícia: Universidad Nacional de Colombia: Instituto Amazónico de Investigaciones: Grupo de Estudios Transfronterizos, 2019.

5. LANGFUR, Hal. Frontier/Fronteira: A transnationalreframing of Brazil’sInlandColonization. History Compass, Hoboken, v. 12, p. 843-852, 2014.

6. HERZOG, Tamar. Frontiers of Possesion. Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge,MA: Harvard University Press, 2015. ERBIG JR., Jeffrey Alan. Where Caciques and Mapmakers Met: Border making in Eighteenth-Century South America. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020.

7. MORIEUX, Renaud. Diplomacy from Below and Belonging: Fishermen and Cross-Channel Relations in the Eighteenth Century. Past &Present, Oxford, v. 202, n. 1, p.83-125, 2009.

8. LÓPEZ ARANDIA, María Amparo. Territorio frente a Estado. Nuevas fronteras y conflictos en la España del siglo XVIII. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras, Op. Cit.,p. 365-385.

9. SCHÖGEL, Karl. En el espacio leemos el tiempo: sobre historia de la civilización y geopolítica. Madrid: Siruela, 2007. p. 146, tradução nossa.

Referências

ERBIG JR., Jeffrey Alan. Where Caciques and Mapmakers Met: Border making in Eighteenth-Century South America. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020.

GARAVAGLIA, Juan Carlos, GAUTREAU, Pierre (ed.). Mensurar la tierra, controlar el territorio: America Latina, siglos XVIII-XIX. Rosario: Prohistoria, 2011.

HERZOG, Tamar. Frontiers of Possesion. Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2015.

LANGFUR, Hal. Frontier/Fronteira: A transnational reframing of Brazil’s Inland Colonization. HistoryCompass, Hoboken, v. 12, p. 843-852, 2014.

LÓPEZ ARANDIA, María Amparo. Territorio frente a Estado. Nuevas fronteras y conflictos en la España del siglo XVIII. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y practicas de integración y conflictos entre Europa y America (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017. p. 365-385.

MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Introduccion. In: FAVARO, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y practicas de integracion y conflictos entre Europa y America (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017.

MORIEUX, Renaud. Diplomacy from Below and Belonging: Fishermen and Cross-Channel Relations in the Eighteenth Century. Past &Present, Oxford,v. 202, n. 1, p.83-125, 2009.

SCHOGEL, Karl. En el espacio leemos el tiempo: sobre historia de la civilizacion y geopolitica. Madrid: Siruela, 2007.

ZARATE BOTIA, Carlos Gilberto. Amazonia 1900-1940: el conflicto, la guerra y la invención de la frontera. Leticia: Universidad Nacional de Colombia: Instituto Amazonico de Investigaciones: Grupo de Estudios Transfronterizos, 2019.

Carlos Augusto Bastos – Universidade Federal do Pará. Ananindeua- Pará- Brasil. Doutor em História pela USP, Professor da Faculdade de História do Campus Universitário de Ananindeua/UFPA. Professor do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História/Prof Historia. Autor de No Limiar do Impérios. A frontera entre a Capitania do Rio Negro e a Província de Maynas projetos, circulações e experiências (c.1780-c.1820). (Hucitec, 2017), além de artigos e capítulos de livros. E-mail: carlosbastos@ufpa.br.


BASTOS, Carlos Augusto. [Fronteiras e relações transfronteiriças na América Ibérica]. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]

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