Fronteiras, Migrações e Identidades nos mundos pré-modernos / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2020

A Ciência da História está interessada em compreender como as sociedades, nas mais distintas temporalidades, produziram para si e para os outros, diferentes formas de orientação e sentido no tempo, tanto para ações individuais quanto para as coletivas. Trabalhando com os indícios documentais e diversas historiografias disponíveis, o historiador consegue propor análises e reflexões que objetivam compreender, entre tantas possibilidades, os mecanismos de identificação, regulamentação social, processos conflituosos ou diplomáticos entre diferentes grupos sociais ou sociedades distintas. Em tempos de interações e conexões entre o local e o global, as ciências humanas tem se dedicado cada vez mais aos estudos das fronteiras, processos migratórios e identidades, de modo a discutir como estes fenômenos relacionam-se com a produção de orientação e sentido no tempo.

O dossiê Fronteiras, Migrações e Identidades nos mundos pré-modernos, proposto pelos professores Dominique Vieira Coelho dos Santos (FURB / Blumenau) e Renato Viana Boy (UFFS / Chapecó), abre espaço para questões dessa natureza, contemplando reflexões interdisciplinares que debatam as complexas relações entre fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. Reunimos aqui um grupo de seis artigos de pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam ao estudo de temáticas situadas cronologicamente antes do período que chamamos de Modernidade, além de uma entrevista com o professor de História da África da Universidade Federal do Paraná, Otávio Luiz Vieira Pinto.

Dois artigos escolheram abordar a temática das sociedades pré-modernas enfatizando Roma Antiga. O primeiro deles, As trocas de correspondências entre Tibério César e a aristocracia senatorial durante seu afastamento para Capri (26 – 37 d.C.): uma análise dos crimes de traição nos Anais de Tácito, escrito por Rafael da Costa Campos, teve como objetivo expor a importância das trocas de correspondências como fundamental ferramenta política e administrativa do Principado. A análise ficou concentrada no período em que Tibério César se afastou de Roma e residiu na ilha de Capri (26 – 37 d.C.). O afastamento do princeps foi um marco de inflexão política em seu governo, e as trocas de correspondências apresentadas por Tácito em seus Anais expõem o seu impacto sob a aristocracia mediante a intensificação dos casos de acusações e condenações pelo crime de traição (maiestas). O segundo artigo, intitulado Uma República degradada: breve estudo da guerra de Jugurta de Caio Salústio Crispo, de Alice Maria de Souza, por sua vez, analisa a obra Guerra de Jugurta, de Caio Salústio Crispo, escrita durante o Segundo Triunvirato. Considerando os elementos exteriores ao texto em si – tais como contexto, objetivos do autor e gênero – interpreta o referido documento não somente como produto de apropriações do passado, mas, também como produtor de novas representações, servindo como veículo de transmissão e ressignificação da memória. Vemos, então, uma problemática envolvendo História e Memória. É o que faz Erick Carvalho de Mello, mas, agora, abordando a temática do celtismo e da celticidade. Sua reflexão, proposta no artigo O Mito e a cultura de memória Celtas: Uma convergência de imaginários, parte do campo da Memória Social, não da Ciência da História, mas, em um constante diálogo interdisciplinar, aborda o papel das diferentes apropriações do que se entende por “cultura celta” na formação das identidades nacionais de grupos como irlandeses, escoceses e bretões franceses. O autor procurou identificar como o mito do celtismo é construído na História recente e como a partir deste mito uma cultura de memória é formada e nos possibilita ter uma compreensão mais aprofundada sobre os conflitos históricos que esses grupos enfrentam hoje, sem deixar de dialogar com a forma como a temática tem sido tratada quando o foco são as populações prémodernas, se decidirmos denominá-las de “celtas” ou não.

O artigo Multiculturalidade e a Christiana Civilitas na Britannia de Guildas (s. VI), escrito a quatro mãos por Helena Schütz Leite e Renan Frighetto, se propõe a discutir sobre as transformações observadas no século VI na Britannia do século VI não sob o prisma da decadência e destruição do mundo romano no Ocidente europeu, visão muito presente na tradição historiográfica sobre o período. Diferente disso, os autores propõem, através do estudo da obra De Excidio Britanniae, de Gildas, perceber a pluralidade cultural que é possível observar ali, e a busca por uma identificação que aproximasse dos diferentes reinos da Britannia na Antiguidade Tardia.

Outro artigo que também lida com a questão das identidades e historiografia é A fronteira entre cristãos e muçulmanos: uma terra de ninguém?, escrito por Márcio Felipe Almeida. Entretanto, o ponto central das análises do autor está no espaço de fronteira disputado por populações cristãs e islâmicas no século XIII. Vale ressaltar que a fronteira, neste caso, não é uma linha divisória entre dois territórios, como se pode pensar à primeira vista. Diferente disso, neste artigo, Márcio Almeida discute a fronteira como sendo, ela mesma, um território pretendido pelos dois grupos em questão.

O último artigo deste dossiê é aquele que avança mais próximo do fim do período chamado de pré-moderno, intitulado A Colonização Oriental e os Processos de Reformulação Rural em Brandemburgo (séculos XII–XIV). Neste artigo, Álvaro Mendes Ferreira se dedicou a analisar o processo de transformações no espaço rural do Europa oriental, ocorridas no período assinalado, em virtude do processo de consolidação do regime senhorial. Tendo os processos na Marca de Brandemburgo como estudo de caso, o autor busca compreender como os vilórios eslavos se enquadravam neste cenário de transformações.

Por fim, apresentamos ainda uma entrevista com o professor Dr. Otávio Luiz Vieira Pinto, que tem dedicado suas pesquisas ao mundo persa e às trocas culturais entre os grupos da costa Suaíli, na África, e os grupos árabes e iranianos do Oriente Médio, entre os séculos VI e XI. Atualmente, Otávio Vieira Pinto é professor de História da África da Universidade Federal do Paraná, pesquisador do Middle Persian Studies (MPS) e do NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos), além de colaborador do projeto internacional Networks and Neighbours.

Além dos textos que compõem o dossiê, este número traz também dois artigos e duas resenhas. O artigo de Darlan Damasceno e Gilmar Arruda, intitulado Religiosidade e Natureza: imigrantes ucranianos e a transformação do meio ambiente (Paraná 1890-1915), aborda como a religiosidade dos imigrantes ucranianos atuou no processo de ressignificação e transformação do meio ambiente entre os anos 1890 e 1915, na região centro-sul do Estado do Paraná. As fontes utilizadas pelos autores, indicam que a religiosidade dos imigrantes foi fundamental no processo de (re)construção da realidade social nas colônias, e para moldar o modo de vida dos indivíduos através de esquemas de percepção inscritos em suas ações.

No texto de Cássila Cavaler Pessoa de Mello, De estrangeiro a cidadão: o processo de naturalização instaurado em 1832 e seus limites, a autora discute o processo de naturalização instaurado no Império do Brasil a partir da Lei de 23 de outubro de 1823. Aponta os motivos que estimularam os estrangeiros a buscarem o título de cidadão brasileiro e expõe os trâmites e as dificuldades enfrentadas por aqueles que optavam por se tornar cidadãos. O texto explora tanto a perspectiva estatal, quanto a dos indivíduos neste percurso.

Na seção resenha, temos dois instigantes textos. Um novo estudo sobre a vida de Marx, uma resenha de Daniel de Souza Lemos, trata da obra Karl Marx: uma biografia dialética, publicada no Brasil em 2019, de autoria de Angelo Segrillo, professor de História Contemporânea e coordenador do Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História, na USP. O texto de Isabel Schapuis Wendling, intitulado Modelando Condutas: uma resenha da obra sobre os poderes nas escolas católicas masculinas no Brasil, resenha a obra Modelando Condutas: educação católica em escolas masculinas de Roseli Boschilia, publicada pelo museu Paranaense em 2018.

Este dossiê e os demais artigos que compõem o número 35 da Fronteiras: Revista Catarinense de História estão fundamentados na proposta de uma história plural, que dispõe de espaço às múltiplas possibilidades de análises históricas de populações, personagens e acontecimentos em tempos recuados, definidos aqui como pré-modernos até a atualidade mais recente, focos dos textos que se enquadram fora do nosso dossiê. Afinal, se a História é a Ciência dos seres humanos no tempo e quem faz História é como o ogro da lenda, que, ao farejar carne humana, vê ali sua caça, para lembrarmos uma célebre reflexão do medievalista francês March Bloch, não é possível nos contentarmos com qualquer narrativa supostamente historiográfica que deixe de contemplar estas outras dinâmicas espaço-temporais tão importantes para compreendermos nossa própria historicidade.

Desejamos uma proveitosa leitura!

Dominique Vieira Coelho dos Santos (FURB)

Renato Viana Boy (UFFS)

Organizadores do Dossiê

Samira Peruchi Moretto (UFFS) Editora


SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos; BOY, Renato Viana; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.35, 2020. Acessar publicação original [DR]

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