Brentano e sua escola – PORTA (RFA)

PORTA, M. A. G. (Org.). Brentano e sua escola. São Paulo: Loyola, 2014. Resenha de: VALLE Bortolo. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.39, p.-899-903, jul./dez, 2014.

Certas atividades de rotina em filosofia terminam por criar “zonas de conforto”. Nestas, filósofos e suas filosofias são localizados, classificados e seu alcance é delimitado; nelas, ainda, o movimento inerente à obra é retido e a originalidade, estancada. O conjunto filosófico entra, assim, para a galeria de instâncias adormecidas à espera de um movimento, deslocado no tempo, que o situe em suas potencialidades de origem.

A atividade confortável, costumeira em filosofia, classificou Franz Brentano e sua obra como motivadores da fenomenologia husserliana, como fontes da analítica heideggeriana, bem como responsáveis pela introdução da noção medieval de intencionalidade no século XX ou, ainda, como o discípulo fecundo de Aristóteles.

O trabalho sobre Franz Brentano e sua escola, organizado por Porta, compõe um esforço que recupera, devolvendo o movimento, a um dos filósofos mais fecundos do XIX. A obra, nada rotineira, é resultado da investigação de cinco pesquisadores e, certamente, rompe a área do simples lugar comum. Intenta situar, devolvendo ao autor do projeto de uma Psychologie vom empirischen Standpunkt seu lugar fundamental nas origens da filosofia contemporânea. Busca reforçar e dar sentido à convicção de que “Brentano é uma peça decisiva na virada que se opera no pensamento filosófico da segunda metade do século XIX da qual somos ainda herdeiros e continuadores”.

Apresentada em oito capítulos e desenvolvendo temática variada, a obra mantém um eixo estrutural. Cada autor comunga da convicção de que o lugar ocupado por Franz Brentano, na segunda metade do século XIX, intensifica-se como reação ao idealismo alemão, e que tal reação tem características de “filosofia científica” ao ressaltar o vínculo positivo desta com a ciência, demandando não só o estabelecimento de um objeto como também de um método próprio para a filosofia. Além disso, os autores compartilham da ideia de que o “método psicológico” levado a termo por Brentano resiste à acusação — muito comum, também entre seus seguidores mais próximos — de psicologismo, uma vez que a filosofia entendida como ciência, utilizando do método psicológico, não se resume à mera descrição dos eventos psíquicos.

A partir de uma Apresentação que situa o autor e sua escola, Mario Ariel Gonzalez Porta é o autor de outros três capítulos. Primeiro, em “Franz Brentano: equivocidade do ser e objeto intencional”, é realizado um esforço para a recuperação da correta compreensão da teoria da intencionalidade, que só pode expressar suas potencialidades no entrelaçamento com outras teorias. Porta se propõe a “reintroduzir o texto de Brentano sobre a intencionalidade no seu contexto sistemático e genético-evolutivo para, desse modo, possibilitar uma interpretação do status ontológico do objeto ‘intencional’”. Convicto da consciência de Brentano de que só é possível fazer filosofia em diálogo com os clássicos, o pesquisador retoma o lugar de Aristóteles na obra do referido autor, no que se refere à questão ontológica e ao tema da equivocidade do ser.

Posteriormente, em “Uma análise do opúsculo de Kasimir Twardowski ‘Inhalt und Gegenstand’ na perspectiva de sua significação para a escola de Brentano”, Mario Porta mostra a importância decisiva do opúsculo de Twardowski para o desenvolvimento da escola de Brentano, ao reformular a teoria brentaniana dos fenômenos psíquicos a partir da distinção entre conteúdo (Inhalt) e objeto (Gegenstand). Nesse trabalho, o pesquisador busca superar uma histórica unilateralidade nas considerações do texto em referência, ao dar destaque àqueles aspectos que não receberam a merecida atenção por parte dos estudiosos. Finalmente, em “Horror Subjectivi: a polêmica entre Kerry e Frege em torno do método psicológico”, Mario Porta revisita o contexto do confronto entre Frege e Kerry. Partindo do fato de que, no conjunto dos estudiosos de Frege, o nome de Kerry só é referido como o obscuro autor com o qual Frege se defronta em seu texto Sobre conceito e objeto, o estudo visa recuperar o contexto da discussão com Kerry como uma instância decisiva nos enfrentamentos de Frege contra o psicologismo.

Em um capitulo intitulado “Brentano e a questão do ser”, Alberto Marcos Onate expõe resultados de sua pesquisa sobre a presença de Aristóteles no pensamento de Brentano. Onate recorda que o texto de Brentano Sobre o significado do ente em Aristóteles, publicado em 1862, constitui motivo suficiente para que se colham os indicativos do reconhecimento de Edmund Husserl sobre a obra de seu mestre, fato referido, anos mais tarde, por Martin Heidegger. É evidente a influência do modo como Brentano recolhe Aristóteles sobre Husserl e Heidegger. Nas palavras do próprio pesquisador, no estudo não são elaboradas uma defesa ou uma crítica da leitura brentaniana diante de outros comentários sobre o pensador grego. São realizadas, tão somente, uma exposição e uma avaliação do quanto ainda é relevante, filosoficamente, a apropriação das questões ontológicas de Aristóteles. Esclarece Alberto Onate que seu objetivo não é tomar posição sobre se a leitura que Brentano faz de Aristóteles é correta ou incorreta, simplificada ou profunda, sistemática ou assistemática, enquanto exercício exegético. Afirma que não lhe interessa, stricto sensu, Brentano enquanto intérprete fiel ou infiel da ontologia aristotélica, mas sim Brentano elaborador de seu próprio pensamento a partir de uma Auseinandersetzung com a ontologia de Aristóteles.

Ernesto Maria Giusti, outro autor na obra, em seu capítulo “Notas sobre a doutrina de todos e partes nas lições sobre psicologia descritiva de Brentano: psicologia e unidade da ciência”, debruça-se sobre a questão da mereologia. O autor desenvolve o termo na perspectiva de que este é empregado corretamente para definir aquela parte da filosofia que trata das relações entre todos e suas partes. O fato de muitos considerarem a filosofia de Brentano como sendo essencialmente uma ontologia justificaria sua ausência no cenário filosófico do século XX, principalmente tendo em vista a instância antimetafísica típica do Círculo de Viena. No entanto, Giusti esclarece que, com a segunda geração dos filósofos analíticos, principalmente com W. O. V. Quine, dentre outros, a ontologia retoma seu lugar como disciplina filosófica. É nesse contexto que a doutrina brentaniana de todos e partes volta a ser uma teoria na ordem do dia. O autor alerta, no entanto, que ela ainda é pouco conhecida e os comentadores hesitam quanto ao local de sua classificação. O autor se propõe, assim, a fazer uma breve apresentação da mereologia brentaniana e, a partir dela, esboçar apontamentos para possíveis interpretações de seu papel no conjunto da filosofia de Brentano.

“‘Abschied vom immanenten objekt’: concepções de intencionalidade na escola de Brentano” é o título das reflexões de Dario Teixeira. Partindo de uma nota de Brentano, de 1895, onde se lê: “minha escola distingue [da psicologia genética] uma psicognose… que expõe o conjunto completo dos componentes psíquicos últimos a partir de cuja combinação se obtém a totalidade dos fenômenos psíquicos”, Teixeira busca enfatizar o modo como Brentano destaca seu método e seu programa de trabalho como elemento unificador daqueles que se guiam por sua orientação. O que é pretendido por ocasião da distinção entre a disciplina, comumente chamada de psicologia descritiva, nas preleções de Brentano do fim da década de 1880, em relação a uma psicologia genética, diz respeito a seu caráter não explicativo — causal. Refere-se, antes, ao modo analítico-descritivo de identificar, com base nos dados da percepção interna, os elementos caracterizadores dos fenômenos de consciência geral. Assim, demonstra o autor que ser um membro da escola de Brentano seria, sobretudo, praticar com rigor científico o esclarecimento analítico-descritivo dos fenômenos de consciência e, de saída, do próprio fenômeno de ser consciente, que marca o campo genérico da psicologia.

Em outros dois capítulos, intitulados “Sobre os objetos intencionais” e “Análise intencional e semântica do conteúdo judicável”, respectivamente, Celso Reni Braida busca, no primeiro, apresentar e discutir o conceito de objeto intencional na medida em que a noção é utilizada também para explicitar o significado de expressões linguísticas. O autor considera que o problema de fundo pode ser identificado como sendo a delimitação da objetividade de frases que expressam julgamentos e proposições. Alerta, ainda, que a função teórica do conceito de objeto intencional, enquanto parte de uma teoria da expressão na escola de Brentano, sobretudo na análise do uso de expressões designadoras, como no caso dos nomes próprios e comuns, têm sido questionadas pelas soluções alternativas de Bolzano e Frege. No segundo, por sua vez, Braida se detém no problema da fundamentação das ciências do espirito e das ciências formais, legado por Kant. Indica que esse particular foi enfrentado e solucionado de diferentes maneiras no século XIX. Busca esclarecer que os procedimentos de análise intencional-fenomenológica e de análise lógico-semântica têm seu cerne na ideia de que é possível garantir a objetividade de enunciados e juízos que ultrapassam os limites impostos pela analítica kantiana. Para isso, detalha o fato de que, no referente ao ponto de partida, Brentano e Frege inovam ao tomar a atividade de enunciar e julgar enunciados como verdadeiros ou falsos como o que tem de ser explanado. A ideia é explicitar o que está envolvido na atividade de julgar, afirmar e negar pensamentos.

A leitura desta obra, em suas partes constitutivas, está bem longe de criar zonas de conforto. O alcance de cada um dos textos nos permite presenciar não só os movimentos internos e, por assim dizer, suas consequências imanentes, mas, sobretudo, os vínculos externos que fazem do pensamento do mestre alemão uma condição necessária para o desenvolvimento posterior da filosofia no século XX. A obra, definitivamente, não é um manual de noções elementares para notícias preliminares em aulas de filosofia. Seu conteúdo, de larga amplitude, permite que se coloque Franz Brentano em seu lugar de destaque como um dos iniciadores da filosofia do século XX.

Bortolo Valle – Doutor em Comunicação e Semiótica (PUCSP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Professor titular do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) e da Faculdade Vicentina de Filosofia (FAVI), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: bortolo.valle@pucpr.br

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