Dando tratos à bola: ensaios sobre futebol – FRANCO JÚNIOR (RBH)

FRANCO JÚNIOR, Hilário. Dando tratos à bola: ensaios sobre futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 464p. Resenha de: HOLLANDA, Bernardo Buarque. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.38, n.77, jan./abr. 2018.

Dez anos após a sua entrada “em campo”, o historiador medievalista Hilário Franco Júnior, professor da Universidade de São Paulo, volta a oferecer ao público brasileiro um livro sobre futebol. Se em 2007 sua estreia no tema foi marcada por um trabalho de cunho sistemático, elaborado depois de longa maturação, Dando tratos à bola colige escritos esparsos do autor no último decênio. Parte deles é constituída de ensaios inéditos, enquanto a outra vem sendo publicada sob a forma de artigos em jornais de grande circulação e em periódicos científicos especializados.

É certo que a obra anterior apresentava um projeto mais ambicioso e completo. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura propunha-se realizar uma macro e uma micro-História do mundo contemporâneo, com recortes longitudinais capazes de articular um Brasil “agrícola e mestiço, desigual e combinado” a uma Europa “industrial e colonialista, dividida e integrada”. Essas escalas e ordens de grandeza foram desenvolvidas sob uma perspectiva diacrônica, a cobrir um amplo painel histórico, que ia de meados do século XIX a princípios do século XXI. Em paralelo, o livro compreendia o esforço de examinar o futebol como metáfora dessa mesma contemporaneidade, a se valer de uma miríade de exemplos colhidos em cinco áreas de saber: a sociologia, a antropologia, a religião, a psicologia e a linguística.

Se a ambição e a completude do livro inaugural acedem aqui a textos pontuais, motivados por circunstâncias excepcionais, como a realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, o resultado atualiza o acompanhamento que Franco Jr. faz de seu tema. A adoção do ensaio como gênero narrativo, que tantos frutos legou à tradição do pensamento social brasileiro e dos estudos histórico-literários, confere ao autor liberdade para transitar pelas temáticas mais díspares e pelas situações mais inusitadas suscitadas pela prática do futebol profissional ao redor do mundo.

A publicação de inéditos em formato ensaístico compõe uma nova totalidade, estruturada no livro em seis partes: “Copa do Mundo”; “Em torno da Copa de 2014”; “Identidade, memória, sociedade”; “Personagens do jogo”; “O jogo”; e “Observando o observador”. Essa disposição dá sentido ao modo como Hilário Franco Junior pensa o Brasil contemporâneo e o fenômeno futebolístico em dimensão global.

A abordagem do autor destaca-se por seu método de pesquisa e por seu processo de levantamento bibliográfico. Residente há muitos anos na França, sua bibliografia e seu material de consulta se diferenciam tanto dos estudos acadêmicos sobre o futebol no Brasil quanto dos escritos jornalísticos da imprensa esportiva local. Característica já presente no livro anterior, o acesso a obras de menor circulação no Brasil demarca um modo próprio de expor seus conhecimentos futebolísticos. O primeiro ponto a notar é a sua erudição, que possibilita trafegar com facilidade da história antiga à moderna, da estrutura à conjuntura, do conceito abstrato ao lance anódino de um jogo. Está-se diante de um historiador equipado de um arsenal de informações, muitas delas factuais e enciclopédicas, é bem verdade, mas que dão outro tipo de historicidade, de inteligibilidade e de concretude ao universo futebolístico.

A marca expositiva do historiador ampara-se em um tema-guia, seguido de um sem-número de casos e de exemplos extraídos de uma bibliografia que procura fugir ao crivo do território nacional. Desse ângulo, Franco Jr. procura enfrentar a tão decantada brasilidade, embora não considere neste caso que boa parte dessa crítica já venha sendo praticada, seja por parte da comunidade científica (Helal; Lovisolo; Soares, 2001), seja por parcela expressiva da crônica especializada (Kfouri, 2017Tostão, 2016Giorgetti, 2017).

Os livros, as revistas e os jornais que sustentam sua argumentação são na maioria estrangeiros, e poucos deles chegaram a circular no Brasil. Trata-se de referências que versam não apenas sobre futebol, mas também sobre as ciências humanas e até mesmo as ciências exatas. Consultadas diretamente em línguas alemã, francesa, espanhola, inglesa e italiana, as citações não constituem simples gesto de distinção e repercutem na fatura da obra, a pôr em prática exercícios de deslocamentos “de fora” e “para fora” do Brasil.

Com efeito, o autor confronta os renovados debates acerca da identidade nacional, supostamente encarnada na Seleção brasileira, e elabora uma crítica própria à alcunha “país do futebol”. Se a metáfora se desgastou ainda mais após os polêmicos megaeventos esportivos e a “humilhante” derrota por 7 a 1 para a seleção alemã nas semifinais do Mundial de 2014, a coletânea traz um ensaio originalmente publicado em 2013, em que a imagem era alvo de objeções por parte do autor, somando-se a autores como Helal, Soares e Lovisolo que, em 2001, já se referiam a essa “invenção” (Helal; Lovisolo; Soares, 2001). Longe de ser uma questão de ordem apenas conceitual, o argumento agrega números concretos e estatísticas atualizadas, constituindo-se a seu juízo um critério diferencial decisivo para demonstrar a impropriedade do seu uso nos dias de hoje. Malgrado a utilização desses dados quantitativos possa ser questionada como prova cabal por pesquisadores menos afeitos a tal método, o autor levanta uma série de informações contemporâneas sobre médias de público frequentador de estádios, números de praticantes, equipamentos disponíveis, audiência de canais televisivos e vendagem de periódicos esportivos no Brasil, entre inúmeras outras variáveis, para dar evidências de que o culto ao futebol no país é inferior em cada um desses quesitos quando comparados a outros países.

Outro traço metodológico caro ao presente livro se articula com o anterior pela capacidade de armazenamento de materiais extraídos de jornais e revistas de esporte internacionais. O banco de dados acumulado pelo autor conduz o leitor por tempos e espaços distintos, iluminando, com uma torrente, às vezes excessiva, de exemplos, personagens e competições, clubes e selecionados, eventos e cenários ignotos do mundo do futebol.

Um gosto um tanto exagerado do autor pelo anedótico leva-o a dedicar muitas páginas à identificação de situações pitorescas sobre o goleiro das Índias Orientais Holandesas na Copa de 1938, sobre um jogador islandês que tomou parte na excursão do Arsenal de Londres ao Brasil, em 1949, ou ainda sobre a introdução de traves cilíndricas no Maracanã dos anos 1960. Como já frisado, tais informações só são possíveis porquanto se mobiliza uma profusão de fontes, que vão do periódico francês L’Auto à revista italiana Guerin Sportivo, do jornal britânico The Sunday Mirror ao periódico austríaco Kurier, do diário português A Bola ao semanário inglês World Soccer, entre muitos outros meios informativos a que não se tem acesso costumeiro no Brasil.

O trânsito entre “o interdisciplinar da universidade e o unidirecional do jornalismo” permite a Hilário Franco Júnior enfrentar em igual proporção as questões internas (técnicas e táticas) e externas (sociais, culturais e políticas) do futebol. Se os pesquisadores acadêmicos foram criticados por José Miguel Wisnik em Veneno remédio (Wisnik, 2007), por quase nunca tratarem da dinâmica do jogo propriamente dito, tal reparo não se pode imputar a Dando tratos à bola.

Em pelo menos três instigantes capítulos – “O treinador revolucionário”, “A geometria variável das táticas” e “O tabuleiro do futebol” –, o autor demonstra conhecimento específico de toda a evolução da linguagem futebolística, das regras que a codificaram ao longo do tempo, da racionalidade associada às estratégias de ocupação dos espaços e das infindáveis análises combinatórias, franqueadas pelos sortilégios do acaso no jogo.

Em brevíssimas linhas, eis os traços de um livro dedicado à longa duração das relações entre futebol e cultura, com interesse acadêmico, mas também capaz de satisfazer um curioso e renitente boleiro, cronista ou antiquarista esportivo. Espelho da sociedade, ao mesmo tempo cristalino e dissimulado, o futebol é aqui tomado como vetor de fenômenos estruturais e conjunturais, que permitem ao autor pensar temas transversais como a guerra, a migração, o racismo, a geopolítica, a violência, a decadência e a rivalidade, entre inúmeros outros. Quanto à sociedade brasileira, a obra traz um balanço e um retrato em nada complacentes do Brasil do século XXI, na ressaca do “Mineirazo”, do “Maracanazo social” e de tudo o mais que conturba a intrincada conjuntura política dos últimos anos.

Referências

GIORGETTI, Ugo. Dando tratos à bola. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 5 nov. 2017. [ Links ]

HELAL, Ronaldo; LOVISOLO, Hugo; SOARES, Antonio Jorge. A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. [ Links ]

KFOURI, Juca. Confesso que perdi: memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. [ Links ]

TOSTÃO. Tempos vividos, sonhados e perdidos: um olhar sobre o futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. [ Links ]

WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. [ Links ]

Bernardo Buarque Hollanda – Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV). Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Fundação Getúlio Vargas, Escola de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: bernardobuarque@gmail.com

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Os Três Dedos de Adão. Ensaios de mitologia medieval II | Hilário Franco Júnior

Com esse seu novo livro, Os Três Dedos de Adão, Hilário Franco Júnior dá continuidade aos estudos sobre a mitologia medieval iniciado com seu livro de 1996, A Eva Barbada. Desta vez, nos apresenta mais 12 artigos, subdivididos em 6 tópicos: Mito e Método, que engloba os artigos “O Fogo de Prometeu e o Escudo de Perseu: Reflexões sobre Mentalidade e Imaginário” (p. 49-91) e “Modelo e Imagem: O ensamento Analógico Medieval” (p. 93-128). O segundo tópico, Mito e Sociedade trabalha com “O Conceito de Tempo da Epístola de Preste João” (p. 131-154) e “A Escravidão desejada: Santidade e Escatologia na Legenda Áurea” (p. 155-169). No terceiro, Mito e Identidade Coletiva reúne os artigos intitulados “O Retorno de Artur: o Imaginário da Política e a Política do Imaginário no Século XII” (p. 173-192) e “Joana, Metáfora da Androginia Papal” (p. 193-215). O quarto tópico, Mito e Utopia, reúne os artigos “As Abelhas Heréticas e o Puritanismo Milenarista Medieval” (p. 219- 241) e “O Porco, o Homem e Deus: a Utopia Panteísta da Cocanha” (p. 243-269). No quinto, Mito e Exegese, “Entre o Figo e a Maçã: a Iconografia Românica do Fruto Proibido” (p. 273-301) e “Ave Eva! Inversão e Complementaridade Míticas” (p. 303- 329). No último, Mito e Liturgia Hispânica, “A Circularidade do Quadrado: Uma Hipótese Interpretativa do Claustro de Silos” (p. 333-362) e o artigo que nomeia o livro “Os Três dedos de Adão: Liturgia e Metáfora Visual no Claustro de San Juan de la Pena” (p. 363-397). O livro ainda elenca Índices Míticos (p. 399- 402) que muito nos auxilia para uma visão mais articulada dos artigos.

Para muitos, ainda parece estranha a idéia de uma mitologia cristã. Todavia, mitos, crenças, costumes, ritos, não sobreviveram ou morreram, mas vivem porque ainda fazem sentido para muitos. É interessante pensarmos que o logos cristão, em suas origens, encontrou-se perante “a contradição de ter de desembaraçar-se do mito recorrento à mitologia”1. Os Três Dedos de Adão, é apresentado por Franco Cardini que comenta ser “legítima, oportuna e necessária uma <>, entendida como <>” (p. 19). Cardini ainda afirma, referindo-se aos mitos greco-romanos, que “a recusa consciente a uma coisa não significa a inexistência dela” (p. 22). “Basta-nos, prossegue, partir de uma base mínima – narrativa anônima e coletiva que condensa metaforicamente os conhecimentos intuitivos de uma sociedade sobre sua origem, caráter e destino – para chegarmos aos problemas centrais” (p. 27-28).

A continuação de manifestações culturais, presentes em épocas bem posteriores à sua origem, sofreu a tentativa da Igreja de desqualifica-las, sob o epíteto de “sobrevivências”, de “superstições” sem se aperceber que muito de suas práticas prolongava essas manifestações culturais. Dentre outras, o culto aos santos, que visa preparar para a salvação, não deixa de ser um ato supersticioso entre os crentes, prolongando de uma maneira inadvertida para a Igreja, a questão do culto aos heróis do paganismo. Assim, nos deparamos com a “Mentalidade”, no singular, “(…) instância que abarca a totalidade humana” (p. 63). “o nível mais estável, mais imóvel das sociedades´” revelando assim “seu papel de ‘inercia, força histórica capital’”(p. 59).

É, pois, “(…) a instância que abarca a totalidade humana” (p. 63). Disto se conclui que, tentar vislumbra-la em sua totalidade seria como olhar diretamente os olhos de Medusa, sem o reflexo no Escudo de Perseu. Melhor seria ter essa intermediação clareada pelo Fogo de Prometeu. Sempre utilizado de forma “mais intuitiva e vaga que propriamente conceitual” (p. 68) o imaginário, é “o espelho da mentalidade: revela, mas deforma” (p. 72). Ou, ainda, de maneira mais sintetica, imaginário é um tradutor histórico e segmentado do intemporal e do universal” (p. 70). Isto torna seu estudo “(…) mais exeqüível do que o da mentalidade com sua subjetividade quase etérea” (p. 90).

Devemos ter em mente que, na Idade Média, “prevalecia o gosto pelo semelhante, não pelo idêntico” (p. 95). Tal gosto, por seu turno, não excluiria o raciocínio lógico, que era estimulado pelo cristianismo. Também porque, em toda sociedade, “pensamento analógico e pensamento lógico são complementares, não excludentes” (p. 99). Assim, “(…) pensar por analogia significava estabelecer conexões entre o mundo divino e o mundo humano, entre o Modelo e suas imagens” (p. 105). Por seu turno, a Imagem “torna-se ela mesma modelo e passa a funcionar como mediadora para que todas as imagens alcancem o Modelo” (p. 128).

Após essas considerações, Hilário Franco Júnior passa a investigar a idéia de tempo questionando o conceito de Utopia (lugar nenhum) que “como qualquer criação humana, não sabe trabalhar fora de parâmetros temporais”. Mesmo se estes sejam “usados para marcar justamente a condição intemporal da sociedade utópica, por definição colocada no além-história” (p. 132), que seria o caso da Epístola de Preste João. A investigação de Hilário segue ainda a idéia da escravidão espiritual na Legenda Áurea, entrecruzando escatologia e urbanização, onde “O bom cristão deixa de ser vassalo e torna-se escravo, entrega-se totalmente ao Senhor” (p. 165) não importando aí as hierarquias sociais humanas. Por sua vez, o personagem Artur rei, que para alguns teólogos, “é também Deus e Cristo” (p. 181) através da sagração e da unção. Este Artur, por fim, demonstra que, “na longa duração histórica, o imaginário da política mantinha autonomia em relação à política do imaginário” (p. 192).

A sequência dos artigos passa pela metáfora da androginia papal, com o famoso caso da papisa Joana, crença que foi generalizada até o século XVI e permaneceria não “fosse a controvérsia gerada pela Reforma Protestante” (p. 195). Prossegue com a simbologia de certos animais como a abelha em narrativas de Raul Glaber e Landolfo, o velho, e que, metaforicamente aproximava-se do igualitarismo, da pureza e androginia, num contexto de heresias, de uma espiritualidade moralizante em que “católicos e hereges pensavam numa vida evangélica, num retorno ao passado que criticava o presente e acentuava a espera escatológica” (p. 223). A efervescência e transformações do século XII traz à tona a questão panteísta. Hilário argumenta que o aparecimento oral do Fabliau de Cocagne pertence a meados desse século (p. 252), onde ganha destaque a figura do porco. O animal é visto na perspectiva antropológica, econômica, literária, escatológica e religiosa buscando-se assim as razões de sua sacralidade (p. 256-258).

Quanto à iconografia do fruto proibido, Hilário apresenta várias possibilidades e, inclusive, com mistura de características. Mas “mesmo assim hesitava entre o figo e a maçã” (p. 277). O primeiro, estava ligado ao simbolismo do fígado (o que nos lembra o mito de Prometeu Acorrentado); mas a iconografia românica “usou como fruto proibido principalmente a maçã” (p. 283), (que também nos faz lembrar do Jardim das Hespérides) escolha ainda não muito clara, mas que “possivelmente estava ligada à sua forma arredondada e à sua cor vermelha, que a aproximavam do coração (…)” (p. 284- 285). A seguir, com artigo Ave-Eva, Hilário transporta-nos para o binômio Eva-Maria, acompanhando o crescimento da figura de Maria dentro do cristianismo a partir do século XII. Nesse mesmo século, um hino trata o binômio Eva-Maria como “a primeira mãe que abriu as portas da morte, a segunda mãe que as fechou” (p. 310), encerrando suas especulações com a idéia de que Maria era “mais uma complementação que uma negação da primeira mulher” (p. 329).

Em seu último segmento, no penúltimo artigo, Hilário avança suas análises sobre a simbologia numérica que inspirou a edificação do claustro do mosteiro de Silos. A proposta é a de que, apesar da imposição da liturgia romana, a leitura iconográfica resgatava antigos elementos da liturgia moçárabe. Sinal disso seria o baixo relevo do ângulo Sudeste, no qual a mão divina recorre aos dois dedos estendidos. A explicação pode estar no fato do escultor optar por uma mensagem “antigregoriana do claustro” (p. 338) pensa Hilário. O número oito é mysticum numerum (p. 346), cuja força simbólica é muito antiga, ligado à idéia de “rito de passagem” (p. 346). Com um sentido ritual, encantatório, sacramental e até mesmo mágico, as interpretações de Hilário poderiam ser acrescidas aí pela análise da harmonia musical.

Por fim, o artigo que dá título ao livro. Trata do gesto de Adão em um dos capitéis de San Juan de la Peña levando apenas três dedos entre o pescoço e o peito. Hilário se questiona se não haveria aí uma arbitrariedade do escultor e, mesmo com essa hipótese, aprofunda algumas possíveis interpretações. Também considera a polissemia dos símbolos e o conhecimento executor do capitel sobre “as imagens canônicas do pecado” (p. 366). Situado na rota de peregrinação a Santiago de Compostela, em nenhum outro mosteiro encontra-se uma iconografia que se aproxime, que seja ao menos semelhante. Seria uma forma de protesto contra a imposição do rito romano (1080) e uma confissão de fé no dogma trinitário? (p. 382) Certo é que trata-se de uma forma de se evocar o pecado original. Seria, pois, uma forma de “resistência cultural”? (p. 383). Após diversas considerações, Hilário levanta a hipótese de que “o inusitado gesto do capitel de San Juan de la Peña funcionava de fato como crítica velada à nova liturgia [a imposição do rito de Roma] e todas suas implicações” (p. 385).

Dessa forma, Hilário encerra esse brilhante arrazoado sobre a mitologia medieval. De fato, com Os Três Dedos de Adão, ele não apenas solidifica a existência dessa mitologia como possibilita também uma compreensão mais densa de seus primeiros ensaios em A Eva Barbada. Percebemos, na verdade, que essa “mitologia cristã” apresentou-se, inicialmente, como uma mitologia cristianizada, pois o cristianismo não se ergueu sozinho no Ocidente e não se constituiu a partir do nada. Teve que realizar diversas negociações religiosas em razão das quais, fica difícil distinguir o que corresponde à ortodoxia cristã e aquilo que foi importado de outras diversas tradições. Livro muito denso, Os Três Dedos de Adão representam um marco extremamente significativo e importantíssimo na evolução dos estudos sobre a Idade Média Ocidental.

Notas

1. CAPRETTINI, G.P. et. al. “Mythos/logos” in ROMANO, R. (Dir) Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987, p. 91, v. 12.

Ruy de Oliveira Andrade Filho – UNESP-ASSIS. E-mail: ruy.andrade@uol.com.br


FRANCO JR., Hilário. Os Três Dedos de Adão. Ensaios de mitologia medieval II. São Paulo: EDUSP, 2010. Resenha de: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Mitologia medieval. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.11, n.1, p. 107-109, 2011. Acessar publicação original [DR]

A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura | Hilário Franco Júnior

Comecemos com um clichê imperdoável: existem 180 milhões de técnicos de futebol no Brasil. Todo mundo pensa que entende do assunto. É uma reconhecida tradição nacional que praticamente a totalidade desse imenso exército de amadores chame o profissional que comanda a Seleção Brasileira de burro. Muitos, mesmo sem entender totalmente a lógica da regra do impedimento, declaram aos berros que podem fazer melhor. Melhor que os técnicos e melhor que os jogadores. Tudo ou nada é o lema. Um segundo lugar na Copa, medalha de prata ou bronze nas Olimpíadas são consideradas campanhas fracassadas. Erros não são permitidos. Perder um pênalti é imperdoável. Sofrer um frango é motivo de vexame eterno. Fazer gol contra é uma heresia.

A cultura do futebol está entranhada na cultura nacional. Seu jargão, seus hábitos, seus mitos. Estranhamente, até mesmo sua história. Não é tão raro que indivíduos que não sabem dizer quem foi Tiradentes ou D. Pedro I sejam capazes de dar a escalação completa do Guarani de Campinas, campeão brasileiro de 1978. O brasileiro médio que, outro clichê, não faz a mínima questão de cultivar a memória nacional, cultiva cuidadosamente sua história futebolística. Diversos programas esportivos de televisão ajudam nessa preservação, passando diariamente cenas de arquivo. Algumas imagens, de tão repetidas, entraram para o imaginário coletivo. Os resultados práticos desse amplo esforço educacional são continuamente comprovados ao final de cada partida de futebol, profissional ou amadora. Os torcedores, por mais simplórios que sejam, destilam orgulhosamente sua erudição esportiva nas rodas de conversa após os jogos. Enfim, todo brasileiro, de modo macunaímico, além de técnico de futebol também é um historiador do futebol. Leia Mais

Idade Média: Nascimento do Ocidente | Hilário Franco Júnior

O objetivo do livro “A Idade Média e o Nascimento do Ocidente” é analisar o período medieval levando em conta suas estruturas sociais, políticas, econômicas, eclesiásticas e mentais. O texto foi organizado de forma que cada capítulo do livro descreva uma dessas estruturas dentro da ordem cronológica dos fatos.

Nossa reflexão sobre o texto começa destacando a transformação social que ocorreu entre os séculos IV e XI de nossa era. Segundo Franco os séculos III a VIII da era cristã houve um desmantelamento da sociedade romana ocidental e de construção daquilo que mais tarde ficaria conhecida como Europa cristã-medieval.

O período tardo antigo foi o período de quebra dos paradigmas sociais, mentais, culturais e econômicos políticos e religiosos da sociedade romana antiga. Para tentar recuperar a estabilidade de outrora a elite romana reorganizou e petrificou a estrutura social do Império. O objetivo dessa ordem era garantir a estabilidade do Império. Essa calcificação apenas dificultou a vida dentro da sociedade romana. Graças a essas medidas a desigualdade social atingiu níveis abissais. Essa política contribui para o achatamento e desaparecimento das camadas médias da sociedade. Por fim esse sistema limitou a participação do indivíduo como agente social aumentou consideravelmente o papel do Estado na sociedade (p.65).

Três pontos contribuíram para a fusão de duas culturas tão diferentes. O sistema de hospitalidade e posteriormente a alianças entre romanos e germânicos feuderates que defendiam as fronteiras do Império de outros povos “bárbaros”. A utilização do latim como idioma administrativo Por fim a conversão gradual dos germânicos ao cristianismo católico.

A infiltração e mais tarde a fusão da sociedade germânica não mudou esse quadro. A fusão das sociedades germânicas e romanas se deu em um nível horizontal. Essa realidade só contribuiu para que as várias diferenças entre a elite e o povo apenas aumentasse. Dessa forma na sociedade latino-germânica existem apenas duas camadas sociais: a elite formada pela Igreja e os ricos proprietários de terra leigos, do outro lado os pobres (camponeses empobrecidos, homens livres sem terras e escravos).

Diante do empobrecimento o pequeno produtor rural se vê obrigado a entregar sua pequena propriedade aos grandes agricultores em troca do direito de trabalhar em suas terras. Nesse mesmo período muitos senhores de escravos cedem a esses o direito de trabalharem em suas terras se apropriarem de parte da colheita. Da conjunção dessas duas realidades, empobrecimento do campesinato e melhoria do trabalho escravo, surge um novo personagem social: o colono. Dessa forma sociedade baixo medieval é composta a penas por duas camadas no topo estavam as elites eclesiásticas e laicas. No outro lado da sociedade estão os colonos.

As riquezas da Igreja provinham de conjunto de propriedades recebidas do Estado durante período que Igreja esteve sob proteção do Império. Além disso a Igreja também recebeu muitas propriedades da aristocracia laica. Essas terras eram concedidas em regime de benefício (autorização para trabalhar na terra de outrem) e também em herança de ricos aristocratas diante da morte. A riqueza da aristocracia laica provinha de duas fontes. Em primeiro lugar sua riqueza provinha das terras que se mantinham na família a várias gerações. Muitas vezes, também esses nobres recebiam terras em regime de benefício como pagamento por serviços prestados a coroa.

O benefício, ato de o rei permitir que alguém explorasse suas terras, foi um instrumento muito usado na sociedade medieval. Durante o governo de Carlos Martel esse instrumento foi fundido com o sistema de vassalagem para pagar o exército franco. Esse soberano confiscou terras da Igreja e as cedeu como benefício a seus oficiais.

A atitude de Carlos Martel deu uma nova caracterização ao sistema de vassalagem. No século VI a vassalagem estabelecia uma relação serviçal de um menor para outro maior. No século essa era acordo entre homens livres inferiores. No século VIII a vassalagem se torna uma relação entre elementos da aristocracia. A partir desse período

“apenas um vassalo (servidor fiel) poderia receber um benefício ( termo substituído por feudo entre os séculos I X e XI ) como remuneração pelos seus serviços. Por tanto as relações entre os membros da aristocracia davam se por práticas econômicas (terra entregue e terra recebida), políticas (poderes sobre essa terra) e religiosas (juramento e fidelidade)”. (p.69)

Essas novas características sociais deram origem a uma nova estrutura que duraria muito tempo, o feudalismo. Hilário Franco Junior dá a seguinte definição para feudalismo. Segundo Franco feudalismo “é o conjunto da formação social no ocidente durante a Idade Média Central com suas facetas políticas, econômicas, ideológicas, institucional, social, religiosa, e cultural” (p.71). Durante esse período a Igreja que era a maior detentora de terras da Europa ser tornou também a produtora da ideologia oficial. De acordo com o pensamento eclesiástico sociedade cristã era o reflexo da sociedade celeste. Essa sociedade, como a celeste é una em questão de governo e fé, as devido à necessidade de organização funcional ela, a exemplo da organização celestial ela se torna múltipla.

Para agradar a Deus e cumprir sua vontade a Cidade de Deus é dividida em três ordens: o clero, a nobreza e camponês. Dentro dessa sociedade cada ordem tem uma função diferente. O clero intercede diante de Deus pelos demais. Por essa razão a Igreja está à cima das outras ordens sociais. A segunda ordem é a nobreza. Os nobres devem defender a Cidade de Deus. Quanto aos camponeses foram criados por Deus para sustentar os demais.

Franco cita Aldeberon bispo da cidade de Laon para ilustrar a forma que a Igreja entendia a sociedade naqueles dias.

“ele chegou a seguinte formulação: o domínio da fé é una, mas há um triplo estatuto na Ordem. A lei humana impõe duas condições, o nobre e o servo não estão socialmente no mesmo regime. Os guerreiros são protetores da Igreja. Eles defendem os poderosos e os fracos, protegem o mundo, inclusive a si mesmos. Os servos por sua vez têm outra condição. Essa raça de infelizes não tem nada sem sofrimento. Fornecer a todos roupas e mantimentos, eis a sua função sempre. A casa de Deus que parece una é tripla. Uns rezam, outros combatem, e outros trabalham. Todos os três formam um conjunto que não se separa, a obra de uns, permite o trabalho dos outros dois e cada um por sua vez presta apoio aos outros dois.” ( p.71).

Aldaberon deixa claro como a sociedade de seus dias se enxergava. Ele apresenta uma justificativa para a existência de tal sociedade. Segundo ele, o clero está acima das de mais ordens. Isso ocorre graças a seu papel de intercessor em favor dos homens diante das divindades. Logo a seguir vem os nobres pois esse nasceram com uma vantagem genética em relação à plebe. Graças a essa vantagem Deus escolhe dentro dessa classe os membros que garantirão a perpetuação do clero. Quanto ao servo Aldaberon entende, assim como seus contemporâneos, a natureza lhes reservou o trabalho para compensar condição pecaminosa.

A maneira de pensar medieval cumpre duas funções. Ela busca unir toda a sociedade. Para isso mostra a interdependência dos diferentes grupos sociais. Por outro lado ela é altamente excludente pois isola cada um dos três atores que compõe a sociedade.

Dentro desse contexto social existem três tipos de relação. Existe um relacionamento horizontal entre as elites. Depois há uma relação vertical entre as elites e os colonos. Por fim há uma relação horizontal entre os diferentes grupos da camada inferior da sociedade. Com o início da dinastia carolíngia surgiu um novo elemento. O cavaleiro. Esse grupo não deu origem a uma nova ordem mas fundiu-se com a nobreza.

Nos séculos XI e XII a Igreja quase viu seu sonho de implantar uma comunidade divina na terra se tornar realidade. Mas uma série e fatores destruíram o projeto cristão. Segundo Hilário Franco Junior o conflito entre camponeses e senhores pelo excedente da produção, os conflitos entre as aristocracias eclesiásticas e laica pelo controle das riquezas produzidas e o fracasso no empreendimento das cruzadas contribuíram para a ruína da Cidade de Deus.

Depois apresentar as características da estrutura social do período medieval Franco passa a dissertar o processo de fortalecimento do bispo e da Igreja romanos. Segundo ele a partir do século IV com a oficialização da Igreja cristã esta se viu obrigada a se organizar para cumprir novas funções designadas pelo Império. Supervisionar os serviços religiosos, prover orientação doutrinária aos novos conversos, executar os serviços sociais do Império e combater o paganismo. Foram tarefas que obrigaram a Igreja a hierarquizar-se e separar-se do ambiente secular.

Os demais elementos da comunidade cristã entenderam que essa nova estruturação da Igreja era indispensável mesmo porque o poder da Igreja foi outorgado por Deus. Nesse processo de hierarquização da Igreja houve uma elitização do clero. O surgimento de heresias contribuiu também para conduzir a Igreja a um sistema monárquico. A tendência de monarquização e sobreposição do bispo de Roma sobre os demais bispos se deve em parte ao surgimento das heresias. Além disso a oficialização do cristianismo também ocupou espaço fundamental.

Durante os três primeiros séculos do cristianismo não havia a idéia de supremacia do bispo romano. A situação mudou coma oficialização da Igreja. A idéia, criada pelos bárbaros e aceita sociedade latina da relação da geografia eclesiástica e geografia de poder civil teve como conseqüência à valorização do bispo romano. O apoio do Imperador à Igreja de Roma e dos demais bispos serviu para firmar a autoridade do papa romano. Esses fatos contribuíram para que em 378 a Igreja e o Império reconhecessem através de decreto a supremacia do bispo romano. Esse reconhecimento foi confirmado em 445.

A supremacia do bispo romano foi um dos fatores que contribuiu para o fortalecimento da Igreja em sua escalada para o controle da sociedade medieval. O monasticismo comunal e aliança da Igreja com o reino franco foram os dois outros fatores que contribuíram para tal projeto.

A aliança entre o bispo romano e o reino Franco pode ser dividida em três fases. No primeiro estágio a Igreja pode ser considerada sócia menor dos Francos. Essa primeira fase começou quando Clóvis, rei dos francos se converteu ao cristianismo no ano 508. Alguns anos depois Pepino o Breve, socorreu a Cidade de Roma bem como o bispo dessa Igreja contra a invasão lombarda. Graças a esse ato o bispo romano lhe conferiu o título de rei de Roma.

O papado porém entrou numa condição de sócio dos francos durante o reinado de Carlos Magno. Magno deu a Igreja um lugar no conselho real. Através desse ato os bispos se tornaram autoridades civis sobre os locais onde exerciam seu episcopados. Além isso graças ao avanço dos exércitos carolíngias sobre outras tribos não cristãs a Igreja viu se poder aumentar.

A decadência da dinastia carolíngia fez com que a Igreja se tornasse única senhora da porção ocidental do antigo Império romano. Nesse período graças às idéias e ações reformistas de papas como Gregório VII, e reis como Luís (o Piedoso) a Igreja se fortaleceu ainda mais. Nesse período foi implantado na Europa o Agostinianismo político que nada mais era do que soberania da Igreja sobre todas as demais Instituições sociais. A implantação desse projeto político levou a Igreja a realizar um sonho a muito desejado. Nos séculos XI e XII a Igreja fez com a Europa se tornasse a sociedade divina na Terra.

Essa sociedade utópica, porém não durou muito pois as transformações econômicas da Europa, a disputa entre as aristocracias clerical e laica, as divisões do clero pelo controle da sociedade civil e o fracasso no empreendimento das cruzadas geraram um grande desgaste da sociedade feudo clerical. Esse desgaste deu o início a um novo contexto social que daria origem a sociedade moderna. Quando estudamos a sociedade medieval precisamos levar em conta a forma de pensar daquela comunidade. Segundo Franco a sociedade medieval tem uma visão sobrenatural do universo. Essa visão se sustenta em três colunas: O simbolismo, o belicismo e o contratuísmo.

Para o homem medievo, forças sobrenaturais controlam o universo essas forças se revelam ao homem através da linguagem simbólica. Nosso grande desafio portanto como seres humanos é entender esses símbolos.

As ferramentas necessárias para entender esse simbolismo são encontradas na Igreja. A Igreja é pois o lugar onde Deus se revela ao ser humano. Nesse processo de decodificação dessa simbologia a eucaristia, a palavra do sacerdote, os sacramentos, as relíquias dos santos, são ferramentas indispensáveis. O segundo elemento da visão sobrenatural do universo é o belicismo. Para a sociedade medieval o universo é o grande palco de conflito entre o bem e o mal. Esse conflito cósmico se reproduz também na mente humana. O controle da mente e vida humana é alvo de disputas entre esses dois rivais. A vontade humana é pois fundamental nesse conflito. O último pilar que sustenta a mentalidade medieval é a relação contratual entre o homem e as forças que se opõe. Toda relação entre o ser humano e as forças sobrenaturais se faz através de contratos. Essa visão contratual é fruto da vida cotidiana do homem medieval. Afinal de contas o dia a dia dessa sociedade era feita através de acordos contratuísticos tanto entre iguais como de elementos de níveis sociais distintos.

Nos próximos parágrafos avaliaremos como discurso produzido pelo clero manteve a ordem social por um longo período de tempo. A Idade Média é o palco onde a Igreja Cristã Católica Romana nasceu se desenvolveu atingiu seu ápice como Instituição dominante e depois perdeu. Durante esse período três estruturas travaram uma disputa pela imposição de seu discurso ideológico. No início discurso da religião estatal-pagão greco-romana disputou com o cristianismo o controle ideológico sobre a sociedade ocidental. Com o final do processo de expansão e o começo da desintegração do Império Romano, discurso cristão ganhou força e se tornou o discurso dominante.

Esse discurso gerou e manteve uma sociedade baseada em Ordens ( Ordo ou Ordines). O pensamento de uma comunidade ordenada por “Deus” era na verdade uma forma de controlar a sociedade. De acordo com esse discurso a separação dos três grupos era uma necessidade para o bem estar de todos. Como Franco reconhece essa ordem estabelecida tinha duas funções. Por um lado a sociedade organizada em Ordens unia o os diferentes grupos em um único corpo social baseado no argumento que todos são necessários e que um depende do outro. Por outro lado esse discurso era totalmente excludente uma vez que não abria espaço para que membros da ordem dos laboratores não tivessem acesso a ordem dos milites e dos oratores.

Percebemos também que na disputa pelo direito de exercer a violência legítima, Igreja, monarquia e nobreza criam discursos alternativos. Esse discurso resultou numa prática social onde o único interesse era manipular a população a serviço dos interesses de um ou de outro grupo.

Esse jogo de exploração simbólica em busca da imposição de sua ideologia contribuiu para o desgaste da sociedade feudo-clerical. Nesse contexto o nacionalismo, juntamente com o surgimento do pensamento herege, levaram a uma nova conjuntura. A valorização da mulher e da criança, a visão antropocêntrica do universo, o processo de urbanização da Europa, o desenvolvimento da burguesia foram sinais de que a estrutura medieval feudo-clerical ruira e que o Estado nacional burguês tomara seu lugar.

Daniel Rocha Junior – Graduação em História FAFIUV


FRANCO JUNIOR, Hilário. Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2000. Resenha de: ROCHA JUNIOR, Daniel. Idade Média e o nascimento do Ocidente-estruturas sociais e mentais. Sobre Ontens. Apucarana, p.31-41, 2008.

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Cocanha: A história de um país imaginário – FRANCO JÚNIOR (VH)

FRANCO JUNIOR, Hilário. Cocanha: A história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Resenha de: PAIS, Marco Antonio de Oliveira. Varia História, Belo Horizonte, v.14, n.19, p. 205- 208, nov., 1998.

No início da presente década o Prof. Hilário passou a dedicar-se a uma linha de pesquisa direcionada para o estudo da mitologia medieval e cujos resultados podem ser encontrados nos seus livros As utopias medievais, A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval e Cocanha: lianas faces de uma utopia. Mas é com a presente obra que o autor mais avança nos seus estudos, na qual aborda um tema de grande interesse para os estudiosos da civilização medieval. 0 livro coloca ponto final numa discussão que ocorre nos meios acadêmicos nacionais e Órgãos financiadores de pesquisa sobre a possibilidade, ou não, de ocorrer avanços na historiografia medieval conduzida por um pesquisador brasileiro, trabalhando no Brasil. Seu trabalho serve de estimulo para o professor que diante das dificuldades colocadas pela pratica da pesquisa nesta área aqui no Brasil muitas vezes deixa-se vencer pelo desanimo. Penso que com este livro a historiografia medieval brasileira atinge a maturidade, abrindo perspectivas para a realização de novos trabalhos.

A excelência da obra e reconhecida inclusive por um dos maiores medievalista contemporâneo, o professor francês Jacques Le Goff, que no prefacio, entre outros temas, agradece ao autor pela seu trabalho sobre o pais de Cocanha, pois mesmo apesar de atrair a atenção de diversos historiadores, nunca tinha sido tratado de forma abrangente e sistemática. A partir de agora o livro deverá tornar-se citação obrigatória na bibliografia sobre o assunto.

A utopia de um país maravilhoso, de uma terra de abundancia e felicidade, da eterna juventude pode ser encontrada em diversas formações sociais pré-industriais, ocidentais e orientais, sejam elas letradas ou iletradas, tanto no mundo antigo quanto no contemporâneo. Estes sonhos que povoam o imaginário de inúmeros povos vão aos poucos sendo desvendados pela pesquisa histórica, ampliando nosso conhecimento sobre as sociedades onde surgiram. E partindo do pressuposto de Duby — de que para conhecer a ordenação das sociedades humanas o historiador deve prestar a atenção tanto nos aspectos econômicos quanto mentais que o Prof. Hilário desenvolve seu trabalho.

Movimentando-se numa área onde são muitas as imprecisões conceituais, aquela do imaginário e da intersecção cultura popular/erudita, o autor consegue se locomover com habilidade, discutindo e esclarecendo os pressupostos teóricos que utiliza, apresentando hipóteses precisas e bem elaboradas. Demonstrando ser um discípulo da história social, o autor abre-se a interdisciplinaridade movimentando-se com desenvoltura na área da história, literatura, semiótica, etimologia, filosofia, antropologia, sociologia, e mesmo algumas escapadas pela psicanalise.

O livro demonstra uma grande erudição e acesso a uma vasta bibliografia, mas nem por isto deixa de ser urna leitura agradável. O autor evita as citações em idiomas estrangeiros, tediosas e incompreensíveis para muitos, e com isto favorece a leitura a um público mais amplo do que aquele restrito ao interessados pela história medieval. A tradução completa do fabliau da Cocanha nas primeiras páginas presta um auxilio inestimável ao leitor e favorece a compreensão das idéias do autor no decorrer da obra.

No primeiro capítulo, O Fabliau de Cocagne, mosaico textual, localiza o texto manuscrito cronológica e geograficamente e faz algumas incursões pela área do maravilhoso em várias culturas do mundo antigo, concluindo que o “fabliau da Cocanha pode ser considerado um exemplo típico da utilização de lugares-comuns, de imitação, de empréstimos, de compilação enfim, pratica muito difundida nas elaborações literárias medievais.” (p. 50) Quanto ao público alvo do fabliau não há acordo entre os especialistas, e o autor prefere sustentar a hipótese de que o mito de Cocanha funciona como uma compensação imaginaria para os principais grupos sociais urbanos dos séculos XII e XIII, período muito agitado na Europa em consequências das transformações oriundas do crescimento comercial e urbano ocorridas naquela época. Mas Cocanha não e só uma terra de sonho, pois representa também urna crítica social, além de urna sátira ou paródia da cultura oficial.

No segundo capitulo A terra da abundância parte do princípio de que a fome representava um dos piores inimigos da população da Europa medieval, daí o surgimento de várias utopias que poderiam dar cabo daquela desgraça de uma forma imaginaria. Ao que tudo indica nem mesmo o nome do país — Cocanha estaria livre de associações com o terna dos alimentos. A dieta dos cocanianos e alvo então de interessante analise e comentário, e nos dá uma visão panorâmica dos hábitos alimentares da civilização medieval.

No capitulo terceiro A terra da ociosidade, a partir do verso de que “La, quem mais dorme mais ganha” (FC v.28), aborda-se um dos tragos marcantes dos cocanianos, herança talvez dos preconceitos contra o trabalho oriundos da civilização greco-romana, da cultura germana e do cristianismo. E o interessante foi a valorização da ociosidade num momento em que o trabalho começava a ser reconhecido, refletindo talvez unia postura aristocrática contra as atividades dos burgueses. Neste capitulo o autor defende a tese de que “a natureza cocaniana e divina.” (p. 90), o que leva ao panteismo, isto e, doutrina na qual a idéia de Deus e do mundo representa urna (mica realidade. Dedica também algumas páginas na análise do carnaval e outras festas populares, pois “A terra maravilhosa com seus excessos alimentares, alcoólicos e sexuais é um carnaval ininterrupto.” (p. 97/98.)

No quarto capitulo, A terra da juventude aborda-se este tema tão sonhado pelas sociedades pré-industriais, mas que permanece obcecando o mundo pós-moderno. As condições econômicas, médico-sanitárias e alimentares da sociedade medieval conspiravam para que os indivíduos tivessem uma vida reduzida, daí a ênfase dada ao assunto pelo autor do fabliau, que inicia e fecha seu texto fazendo referências a Fonte da Juventude. Ser jovem era urna condição sine qua non para desfrutar das delicias e maravilhas de Cocanha. O próprio autor do fabliau era um jovem, corno ele mesmo afirma no texto, e que o imaginário transposto para país maravilhoso seria aquele da juventude aristocrática feudal. Mas para o Prof. Hilário o público alvo do fabliau não seria exclusivamente esta jovem aristocracia, pois atenderia também aos anseios e sonhos dos grupos urbanos burgueses.

No capitulo quinto, A terra da liberdade, discute-se as restrições que ela passou a sofrer no início da baixa idade média quando passou a ser cerceada pelo grande conjunto de normas imposto pelas monarquias centralizadas, pelos núcleos urbanos e pela igreja. Estas medidas deram origem a um clima de intolerância inexistente até então e que gerou a segregação de diversos segmentos da sociedades como enfermos, prostitutas, homossexuais, pobres de urna maneira geral, estudantes itinerantes, por exemplo. A ênfase na liberdade cocaniana seria urna compensação da liberdade real negada pelas realidade histórica daquele momento. Num momento de conflitos entre os partidários da ortodoxia da igreja e os diversos grupos heréticos que surgiram por várias partes da Europa, Cocanha desfruta de urna liberdade religiosa, e, melhor ainda, e um país não sacerdotal, conforme afirma o autor na página 139. Com uma igreja obcecada em impedir os prazeres oriundos do sexo, os cocanianos contra-atacam estabelecendo urna liberdade sexual que atinge a violência, pois os homens e a mulheres poderiam tornar a iniciativa de “pegar” os parceiros que quisessem, independente do seu consentimento, sem que isto gerasse algum descontentamento. O apelo da natureza era a única motivação a orientar a vida sexual dos cocanianos. No capitulo busca-se urna vez mais as possíveis origens do autor do fabliau e o Prof. Hilário enfatiza a hipótese de que vários indícios apontam para um goliardo que se investe contra a corrupta e avarenta estrutura papal e eclesiástica.

No sexto capitulo o autor aborda urna versão medieval inglesa do fabliau, cuja tradução e apresentada. Diferententemente da versão francesa, esta é bem mais limitada, concentrando-se na paródia de uma instituição monástica, ao que tudo indica a poderosa ordem de Cister, e seu autor seria um poeta franciscano, adepto da pobreza e simplicidade. 0 texto teria sua gênese então nos conflitos enfrentados pelas ordens monásticas a respeito dos valores e funções que as mesmas deveriam manter.

O sétimo e último capítulo trata de versões tardias que por surgirem num contexto histórico diferente do medieval incluem alguns elementos novos, apesar de manter constante o sonho de urna terra maravilhosa. Como o autor afirma, houve urna certa popularização do país da Cocanha e muitas versões representam críticas sociais as condições de vida levadas pelas classes mais pobres da sociedade, principalmente os camponeses. Algumas versões marcadas pela ideologia burguesa voltaram-se contra o clima de ociosidade e descontração da antiga Coconha. Por outro lado o realismo, o racionalismo e o iluminismo cuidaram de dar um cunho mais realista e sóbrio a algumas versões. Muito interessante para os leitores brasileiros são as páginas dedicadas a adaptação dos ideais cocanianos para o Novo Mundo a partir do final do século XV, funcionando como incentivo para o deslocamento de grandes contingentes de europeus para a América. A vegetação exuberante, a fauna variada, as aves coloridas, os rios caudalosos, a abundância de metais preciosos, a nudez indígena, levaram a transferir para a América a realidade da Cocanha. E para encerrar o livro o autor, como medievalista e brasileiro, não poderia ser mais feliz ao abordar uma interessante e cômica versão nacional do fabliau, o livreto de cordel intitulado o País de Sa -o Saruê, cujo autor transpôs para a realidade nordestina as maravilhas do país de Cocanha.

Na análise de um recorrente sonho da civilização ocidental — a utopia de uma terra maravilhosa o Prof. Hilário faz uma grande viagem pelo tempo, pois inicia seu livro abordando o famoso Poema de Gilgamech escrito por volta de 2500 a.C. no Oriente Media, e o conclui com um texto brasileiro de meados do século vinte.

Finalizando só resta-me recomendar a leitura do livro não só para os interessados pela cultura medieval, mas para todos aqueles dedicados aos temas relacionados ao imaginário, ideologia e cultura popular/erudita. E como aprofunda o tema referente ao carnaval deve ser leitura obrigatória para todos interessados pela cultura brasileira, pois afinal, para muitos, o Brasil e o país do carnaval.

Marco Antonio de Oliveira Pais – Professor do Departamento de História da UFMG.

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A Eva Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval – FRANCO JUNIOR (VH)

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: EDUSP, 1996. Resenha de: RIBEIRO, Daniel Valle. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.16, p. 174-177, set., 1996.

A Editora da USP acaba de lançar estudo acerca da mitologia medieval. Trata-se da coletânea de trabalhos antigos e novos ensaios com que Hilário Franco Júnior se apresentou ao concurso para a livre-docência na Universidade de São Paulo. Autor de inúmeros estudos na área de História Medieval, Franco Júnior busca neste livro captar o inconsciente da psicologia coletiva através da análise do imaginário da sociedade. Para tanto, selecionou com sensibilidade o essencial e colheu com argúcia o importante no social.

O emprego da palavra mitologia no contexto da cultura medieval pode parecer inadequado, já que a tradição cristã da época sempre opôs aos mitos a verdade da Revelação, como nota com pertinência Jean-Claude Schmit no prefácio. Assim, mito e cristianismo aparentam incompatibilidade insanável. Franco Júnior, entretanto, sobrepõe-se às dificuldades e desempenha com brilho a tarefa a que se propôs. História Medieval no Brasil é uma fatalidade a que estão condenados heróis ensandecidos. Ora, em país pouco voltado para o estudo do medievo, de historiografia quantitativamente pobre na área, é meritório um trabalho de alto nível como o de Franco Júnior, que alarga o horizonte de pesquisa quase sempre voltado para temas nacionais.

O livro reúne doze ensaios bem articulados, distribuídos em capítulos com subdivisões, tendo o mito como tema central. Há, pois, sólida unidade temática. Alguns deles resultam de longa pesquisa em arquivos da França, e de trabalho ao lado de Jacques Le Goft e Jean-Claude Schmitt, da Écola des Hautes Études en Sciences Socialies. Franco Júnior lança-se a território novo. Tendo inventariado, em 1991, a produção historiográfica dos medievalistas franceses nos últimos vinte anos, Jacques Berlioz, Le Goft e Anita Guerreau-Jalabert concluíram que o campo ainda está por explorar. Com efeito, estudar o universo mitológico da Idade Média pode parecer desconcertante, pois a mitologia era vista (e ainda parece estranha aos medievalistas) como uma expressão cultural da Antigüidade e das culturas primitivas. As referências bibliográficas e o competente uso das fontes comprovam a autoridade do professor da USP. Franco Júnior deu ao cristianismo tratamento histórico, ou seja, procedeu à análise crítica e interpretação que se aplicam às outras religiões. Para ele, estudar o universo mitológico da Idade Média “é um caminho fundamental para se entender em profundidade a sociedade medieval e, portanto, as origens da civilização ocidental” (p. 20).

Hilário Franco Júnior vê o cristianismo como mitologia. Identifica o mito ao folclore, ou seja, o conjunto de tradições orais e ritos que se formaram e se desenvolveram à margem da cultura religiosa oficial e de resistência aos valores eclesiásticos. O historiador analisa o contexto social em que se manifestam, e retoma as observações de Jacques Le Goft, pondo em relevo o papel da pequena e média aristocracia no reflorestamento do folclore através de seus representantes – os cavaleiros ou milites. Hilário Franco Júnior mostra como esses mitos folclóricos enriqueceram acultura medieval cristã, através da “cultura intermediária”. Mas está atento também às versões e alterações dos mitos cristãos, como se nota na sua aguda interpretação da “Eva Barbada”, afresco da abóboda da abadia de Saint-Savin-sur-Gartempe.

O historiador consagra a primeira parte do volume a duas discussões teóricas: o conceito de cultura intermediária e o problema historiográfico relativo ao cristianismo e mitologia. Hilário Franco Júnior pondera a seguir a importância das atitudes mentais em relação à política. O conflito entre os poderes temporal e espiritual insere-se no ensaio Construção de uma Utopia, quando examina a figura lendária de Preste João. Sustenta que “no século XII a formulação eclesiástica ofical era a célebre teoria dos dois gládios de São Bernardo” (p. 89-90). Na verdade, o abade de Claraval retoma no De conversatione a alegoria das duas espadas, com base em textos evangélicos (Luc 22, 26 e Mat 16, 52). Registre-se ainda que, não obstante sustente o poder eminente do pontífice romano – a plenitudo potestatis -, mais que Honório Augustodunensis e Hugo de Saint-Victor, São Bernardo reconhece certa autonomia do pode temporal. Hilário Franco Júnior notou com argúcia que a adoção do epíteto sacrum, dado por Frederico Barba Ruiva (1157) ao Romanum Imperium, tinha a clara intenção de atribuir ao imperador o direito de intervir nas questões eclesiásticas. De fato, o Império se tornou Sacrum Imperium para competir, em condições de igualdade, com a Sancta Ecclesia e fazer frente a ela. Frederico I ancorava-se na legislação romana e na tradição carolíngia, segundo as quais os direitos imperiais se baseavam não na outorga do papa, mas na conquista. Tanto que perguntado de quem recebera o poder, Barba Ruiva respondeu: “De Deus, apenas”.

Quando Hilário Franco Júnior assevera que “o modelo oriental [Império de Preste João] servia perfeitamente aos propósitos da Igreja, apenas naturalmente depurado de nestorianismo e com o papa no papel de rei-sacerdote” (p. 99), o que diz tem fundamento. Ora, Inocêncio III (1198-1216) evocou Melquisedeque, rex etsacerdos, e deixou claro que, se o sacerdócio e o reino estavam unidos na pessoa do patriarca, em troca estavam separados na sua jurisdição e sua atividade. Pretendia com isso demonstrar que o chefe da Igreja era, de uma parte, o supremo pontífice, e, de outra, o rei supremo. A argumentação de Inocêncio, no entanto, repousava em nova concepção do papado, que fazia do papa não apenas o detentor de poderes essencialmente religiosos, mas o vigário de Cristo exercendo os poderes de Cristo, soberano tanto dos corpos como das almas, sacerdote supremo e rei (PL 226,721). O ensaio Valtário e Rolando: Do Herói Pagão ao Herói Cristão retrata a realidade cotidiana da “doce França”. Para Rolando, os francos são o novo povo eleito. Note-se como um autor do século XII retoma a idéia de grandeza e do caráter providencial da missão dos francos, expressa inicialmente quando do advento da dinastia carolíngia na correspondência emanada da Chancelaria da Sé Romana para a corte franca.

A parte final do livro é uma análise segura e densa do papel da alquimia na realização da utopia de Dante Alighieri. O texto revela, mais uma vez, a cultura e o domínio do tema por Hilário Franco lúnior. Despertará provavelmente grande interesse, tendo em vista a pouca informação que ordinariamente se tem da história da ciência medieval. É indicada, aí, a estreita relação entre alquimia e astrologia. Poder-se-ia dizer que a alquimia e a astrologia são relacionadas porque, enquanto a primeira procura estabelecer uma relação horizontal do homem com o mundo que o rodeia, a segunda busca ligar verticalmente o mesmo homem com o mundo intangível acima de sua cabeça. Ambas têm como objetivo o conhecimento dos princípios e das operações que governam aqueles dois tipos de relação. Na perspectiva acentuadamente escatológica de Dante, havia necessidade da recuperação da androginia primordial, única condição para se retornar à justiça dos primeiros tempos. Para se chegar a isso, a alquimia procurava obter a fusão das partes masculina e feminina da matéria – a androginia dos minerais. Através do elixir ou da pedra filosofal seria possível o retorno às origens. Tenha-se em mente que a busca do elixir na alquimia chinesa, de origem teoísta, adquiriu característica diferente do que sucedia entre os alexandrinos, árabes e europeus. Sendo a China um país pobre em ouro, ao contrário do Egito, por exemplo, a busca do elixir consistiu em transformar o ouro (metal incorruptível) em uma forma assimilável pelo corpo humano, de modo a dotá-Io da mesma incorruptibilidade do metal precioso.

Os historiadores da cultura parecem atualmente fascinados pelo uso da linguagem como metáfora. Também Hilário Franco Júnior mostra-se atraído pela decodificação de ações simbólicas. Mas é cuidadoso e não comete os excessos de muitos. Procura com seu belo livro abrir novas perspectivas e possivelmente permitir, como se escreveu, que o historiador moderno possa sentir o cristianismo medieval através do seu próprio caráter mítico. A Eva Barbada – Ensaios de Mitologia Medieval, obra de um historiador fecundo e criativo, é comparável ao que de melhor produz a historiografia européia sobre o tema.

Daniel Valle Ribeiro

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