Franciscanos e franciscanismos: origens e difusão / Territórios & Fronteiras / 2016

Da solidão dos claustros ao convívio nas cidades; do interesse pelo mistério de Deus à imitação de Cristo, é com esses deslocamentos que a vida religiosa se redefine no século XIII e traz à cena a figura de Francisco, religioso que busca sua aproximação com Deus já não por meio da clausura, como seus antecessores, mas por meio da atuação no mundo e do contato com os seus semelhantes. Desvinculando-se do monaquismo que procurou a mediação com o além no interior dos muros dos mosteiros e sob rígidas regras de contenção para combater as tentações mundanas, os irmãos franciscanos buscaram a inspiração de Cristo e dos apóstolos e passaram a se conduzir por um ideal evangélico, ornado com o da pobreza, que se traduziu em uma vida ascética, consagrada à oração e à caridade.

O compromisso de anúncio do Evangelho, a ser vivido em fraternidade, e a pregação da penitência como forma de aproximação a Deus, inspirada mais em um testemunho do que em uma doutrina bem delineada, foram alguns dos fatores decisivos que deram origem a uma nova predicação e contribuíram para fortalecer a unidade Cristã no século XIII, quando os movimentos heréticos ameaçavam tal unidade. A nova espiritualidade que então se configura ganha força por estar articulada à moral, ou seja, por estar orientada pela prática de fazer o bem, tendo sempre em vista a bem-aventurança eterna.

A busca de coerência entre crer e viver, vale destacar, foi uma das principais marcas de um movimento que mais tarde veio a ser chamado de franciscanismo. Sustentado na mediação de Cristo, este movimento traçou um caminho a ser percorrido que era ornado pelas virtudes teologais, fé, esperança e caridade. Foi este o emaranhado que serviu de esteio à moral franciscana e deu a forma do itinerário para a transcendência, sempre na esteira do modelo pleno das virtudes: Cristo.

É a partir desses pilares que aos poucos se vai delineando uma moral amparada na ideia de fraternidade, ou seja, uma moral da solidariedade, porque fundada em ideias como o de que o homem, por possuir uma dimensão ética, social e religiosa que o distingue dos animais e o identifica, não se basta a si e precisa essencialmente do outro. A vida em fraternidade, pregada por Francisco, e retomada pelos seus seguidores, é assim definida como o caminho seguro rumo à plenitude; razão pela qual a caridade se anuncia como o eixo dessa moral, em que o amor a Deus que a inspira ganha forma e materialidade no amor ao próximo.

Uma teologia afetiva e prática, em que a caridade, porque vincula as almas ao seu fim último, é a forma da virtude – como sintetiza Boaventura –, bem como o instrumento para três ações rumo à perfeição moral: descartar o mal, praticar o bem e sofrer as adversidades. A este núcleo dessa moral se junta a justiça e a paz. A primeira garantidora da ordem, da equidade e do culto a Deus; a segunda, entendida como fruto do senhorio de Cristo.

Tal caráter inovador e ao mesmo tempo simples e prático, pode-se dizer, foi o que garantiu uma certa longevidade a uma ordem que se constituiu sem um programa bem definido, mas cuja mensagem, dada a sua acessibilidade, teve uma longa fortuna, tendo atravessado os séculos e se deslocado da Europa para os territórios conquistados, atualizando seus princípios por meio de uma expansão não apenas econômica ou religiosa, mas também cultural.

Representantes letrados da lei, do rei e da fé, os missionários franciscanos atuaram como cronistas do novo mundo, mas também como ordenadores, senão juízes, dos interesses monárquicos nos quatro cantos do mundo. No seu processo de expansão por várias partes do mundo, denunciaram a idolatria como um dos principais pecados do homem selvagem, fosse ele índio, amarelo ou negro. Dessa comparação surgiram ainda os primeiros discursos definindo e legitimando a noção de raça e de racismo.

À luz do púlpito ou nas sombras do confessionário, cultivaram, nas novas terras do orbe, as letras e o conhecimento como um distintivo social que garantia sua afirmação e dos valores cristãos – identificados com os de civilização – nas franjas do mundo. Apesar dos novos desafios, é possível dizer que mantiveram algo da vocação que os distinguiu, os votos de pobreza e vida simples, notáveis na identificação com a população local e no reconhecimento da natureza como prova da afeição divina pela terra nova que, assim como a boa nova germinada na Umbria, possibilitava a utopia de uma cristandade reinventada.

Neste dossiê, as origens do culto franciscano e a propagação de seu evangelho estão em foco. Nosso esforço foi o de reunir estudos significativos sobre o conteúdo prático-teológico do franciscanismo em seus desdobramentos. Os textos originalmente escritos em italiano serão disponibilizados com tradução para o português, realizada por Marta Zanini, mestre em Letras pela Universidade Federal de Goiás).

O leitor terá a oportunidade de conhecer, a partir do texto de abertura de Grado Giovani Merlo, presidente da Società Internacionale di Studi Francescani, a releitura do célebre testamento de Francisco de Assis, em que sua experiência religiosa como memória cristã é trazida à tona. Na sequência, Stefano Brufani, primeiro secretário da Società internazionale di Studi francescani e professor de História Medieval na Università degli Studi di Perugia, traz-nos um estudo sobre os desdobramentos da fraternidade fundada por Francisco, esmiuçando as linhas de pensamento que lhe garantiram vida longa e fecunda.

Os estudos que se seguem abordam aspectos específicos da mensagem e do movimento. Temos, no conjunto, a oportunidade de conhecer mais sobre a relação entre Francisco e os animais como caminho para pensar como o seu poder sobre eles era fruto das suas elevadas virtudes, a serem modelares para os fieis no texto de Rafael Afonso Gonçalves, doutor pela UNESP / Franca.

Com “As primeiras clarissas portuguesas e suas vivências cotidianas”, de Teresinha Maria Duarte, da Universidade Federal de Goiás, ficamos igualmente a saber sobre a versão feminina da ordem em sua configuração portuguesa e vivências cotidianas ao longo do século XIII. E não só. Um dos estudos explora, ainda, um ângulo pouco comum, o dos desvios e distorções do papel dos franciscanos, dada a sua participação na Inquisição. Eis o trabalho de Marina Benedetti, da Università degli studi di Milano, com o texto “Frades Menores e Inquisição”.

Por fim, o leitor terá a oportunidade de conhecer um pouco sobre a iconografia franciscana presente no mais antigo dos quatro códices da obra Franceschina, composta no século XV por Giacomo Oddi, no “Miniaturas franciscanas: a construção da imagem e herança de Francisco de Assis na ‘Franceschina’ (1474)” de Angelita Marques Visalli, da Universidade Estadual de Londrina.

Bem como sobre a tipologia e importância dos sermões franciscanos nos idos de um Portugal Moderno em “Entre Religião e Política: a Parenese Seiscentista de Fr. Amador da Conceição” de Isabel Drumond Braga, da Universidade de Lisboa.

O dossiê conta, ainda, com uma seleção de imagens, preparada por Roger Brunório, OFM, diretor do Setor de Bens Culturais da Província Imaculada Conceição – uma das maiores províncias franciscanas do país –, que documenta sua participação nas artes, na ciência e na educação no nosso país.

Boa leitura!

As organizadoras.

Maria Renata da Cruz Duran – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP / Franca). Professora adjunta de História Moderna e Contemporânea na Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: mariarenataduran@gmail.com

Susani Silveira Lemos França – Doutora em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa. Professora livre-docente em História Medieval da Universidade Estadual Paulista (UNESP / Franca). E-mail: susanilemos@uol.com.br


DURAN, Maria Renata da Cruz; FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.9, n.1, jan / jun, 2016. Acessar publicação original [DR]

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