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Três Vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro | Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira
Fruto do trabalho em conjunto de dois historiadores, Três Vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro é uma obra que não esconde o desejo de causar desconforto para alguns historiadores. Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira, ambos professores da Unesp, tecem uma revisão bibliográfica sobre a história do mais recente herói brasileiro, Zumbi dos Palmares. Seu trabalho problematiza o processo de construção da figura de Zumbi ao longo da historiografia brasileira. E já no título indica, provocativamente, que Zumbi não é um, Zumbi é muitos, e tudo depende de “onde” e de “quem” esta falando.
Não é uma obra escrita para ser lida apenas na academia, seu texto claro e agradável, e até mesmo o cuidado com que as citações são utilizadas, deixam evidente a intenção dos autores de atingir um público “não especializado”. Um livro aparentemente despretensioso – que não chega a atingir 200 páginas – mas que ao organizar sua análise entre três extratos narrativos que enfatizam a descontinuidade das versões sobre Zumbi, coloca em cheque a possível unidade da figura do herói. Leia Mais
Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1531-1800) – FRANÇA (HH)
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1531-1800). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, 356 p. Resenha de: GANDELMAN, Luciana. A cidade e o mar: o olhar dos viajantes sobre o Rio de Janeiro e os circuitos marítimos entre os séculos XVI e XVIII. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p.325-330, nov./dez. 2011.
Um soldado alemão rumando para a região do Rio da Prata a serviço da Coroa espanhola. Um piloto francês embarcado nos sonhos da França Antártica. Um capitão holandês de uma fragata corsária retornando de confrontos com portugueses no Golfo da Guiné. Dois irmãos galegos marinheiros em viagem à Terra do Fogo, a serviço da Coroa espanhola, comandando uma tripulação portuguesa. Um poeta e suposto religioso inglês vira-mundo que chega ao Rio de Janeiro na fragata do recém-nomeado governador português. Um marinheiro inglês que chega ao Rio de Janeiro em uma embarcação de comerciante londrino com 500 pipas de vinho. Um engenheiro francês vindo à América do Sul, a mando do rei da França, para estabelecer uma colônia-presídio no estreito de Magalhães. Um tipógrafo alemão a caminho de uma missão inglesa na Índia, carregado de 250 cópias do Evangelho de São Mateus em português. Um pastor alemão em rota para a Índia abordo de um navio inglês, repleto de adoentados e esfomeados, que ancora na Guanabara. Degredados seguindo para cumprirem suas penas na Oceania. Franceses e ingleses se aventurando na empreitada da circum-navegação. Essa é uma amostra da grande riqueza de trajetórias cujos testemunhos nos oferecem a cuidadosa pesquisa histórica e seleção de textos empreendida por Jean Marcel Carvalho França em sua antologia: Visões do Rio de Janeiro colonial.
A cidade que emerge desses testemunhos também é múltipla e em transformação. E isto torna-se bastante claro quando percorremos as descrições selecionadas pelo organizador da coletânea. Segundo o poeta Richard Flecknoe, escrevendo em 1649, A cidade antiga, como testemunham as ruínas das casas e igreja grande, fora construída sobre um morro. Contudo as exigências do comércio e do transporte de mercadorias fizeram com que ela fosse gradativamente transferida para a planície. Os edifícios são pouco elevados e as ruas, três ou quatro apenas, todas orientadas para o mar (FRANÇA 2008, p. 43).
Nas palavras do comandante inglês John Byron, escritas em 1764, por sua vez, podemos entrever a cidade enriquecida do período posterior ao auge do ouro e de seu estabelecimento como cabeça de governo e um dos portos predominantes sobre o Atlântico: O Rio de Janeiro está situado ao pé de várias montanhas […]. É dessas montanhas que, por meio de um aqueduto, vem a água que abastece a cidade. […] O palácio (do vice-.rei), além de ser uma suntuosa construção de pedra, é o único edifício da cidade que conta com janelas de vidro, pois as casas só dispõem de pequenas gelosias. […] As igrejas e os conventos locais são magníficos. […] As casas, quase todas de pedra e ornadas com grandes balcões, têm em geral três ou quatro andares (FRANÇA 2008, p. 148-149).
A cidade se modifica, portanto, não somente diante dos diferentes olhares que seus observadores lançam sobre ela, mas também em virtude das intensas transformações enfrentadas por este porto de crescente importância na América portuguesa ao longo de três séculos. Constante nas observações dos viajantes é a menção à existência de numerosa população de escravos e agregados familiares, fossem estes de origem africana ou nativos e mestiços. Igualmente predominantes são as observações acerca das manifestações religiosas e as descrições de igrejas e mosteiro, sendo essas observações previsíveis em um grupo de viajantes estrangeiros, muitos deles protestantes. Uma bibliografia bastante extensa, produzida não só por historiadores, estabeleceu e estabelece ainda um profícuo diálogo com a literatura de viagens, ainda que focada especialmente na dos viajantes do século XIX, e já discutiu as implicações e os desafios daqueles que buscam trabalhar com o olhar dos viajantes.1 Conforme referenciado pelo autor em seu texto de introdução à antologia, a obra apresenta 35 descrições da cidade do Rio de Janeiro elaboradas por viajantes de diversas procedências, cujas viagens respondiam igualmente aos mais variados propósitos, sendo a primeira datada de 1531 e a última de 1800.
Trata-se da seleção de trechos de livros, cartas e escritos que fazem algum tipo de referência ao Rio de Janeiro e seu entorno. Alguns destes trechos já haviam sido transcritos ou referenciados por historiadores e memorialistas, sem, no entanto, contar com um trabalho tão circunstanciado de contextualização e organização. Cada relato é precedido por um breve, porém bem elaborado, artigo de introdução onde são oferecidas notas biográficas do viajante em questão e explicações acerca da viagem na qual se insere o relato. Reside nesses textos explicativos uma parte da preciosidade do trabalho feito por Carvalho França e que possibilita ao leitor um aproveitamento dos testemunhos que não se limita à descrição da cidade do Rio de Janeiro, mas que oferece também, por exemplo, pistas acerca dos circuitos mercantis do período, da organização da navegação e da paulatina reestruturação dos impérios ultramarinos no período moderno.
A escolha das edições foi cuidadosa e deu preferência, como afirma o autor, sempre que possível, às primeiras edições ou edições consideradas mais completas e cuidadas das obras. Característica essa confere à antologia um caráter bastante útil, não somente para o leitor em geral, mas também para o público acadêmico. Houve por parte do autor um investimento e uma preocupação com a elaboração das versões para o português, uma vez que se trata na sua quase totalidade de textos publicados em língua estrangeira, havendo, como este reconhece na introdução, a modificação dos mesmos em nome da clareza da leitura. Isto significa que, se para o leitor em geral o texto ganha em facilidade de compreensão, para o especialista pode tornar necessário o cotejamento com os originais.
Organizados em ordem cronológica, os 35 testemunhos selecionados pelo autor podem ser divididos da seguinte maneira: 1) três são anteriores à União Ibérica e estão concentrados nas décadas de 1530-1550; 2) dois devem ser situados no período do domínio filipino; 3) dois são marcados pelo contexto dos conflitos da chamada Guerra de Restauração, entre 1640 e 1668; 4) um, pertencente a François Froger, diz respeito justamente à década das primeiras descobertas na região mineradora e aponta notícias, inclusive, sobre a região de São Paulo; 5) dois relatos são das primeiras décadas do século XVIII, sendo um deles testemunha da invasão francesa liderada pelo capitão Duguay-Trouin; 6) cinco testemunhos encerram a primeira década do século XVIII, incluindo os cruciais anos do governo de Gomes Freire de Andrade, 1º Conde de Bobadela, que se encerraria com a transformação da cidade em cabeça do governo geral do Estado do Brasil, já no governo de Antônio Álvares da Cunha; 7) vinte dos relatos dizem respeito à segunda metade do século XVIII e testemunham o definitivo adensamento da presença de reinos europeus, como a Inglaterra, na Ásia e na Oceania.
O espaço da resenha seria pequeno para tentarmos mapear devidamente os contextos aos quais pertencem todos esses depoimentos e suas respectivas implicações para esses mesmos relatos. Deve-se destacar, entretanto, a amplitude cronológica e histórica dos testemunhos reunidos.
Publicado pela primeira vez em 1999, e contando presentemente com a terceira edição de 2008,2 a antologia proposta por Jean Marcel Carvalho França tem por objetivo tirar as descrições do Rio de Janeiro da obscuridade e do desconhecimento. Os testemunhos selecionados, entretanto, como argumenta o próprio organizador, não se limitam a descrições acerca da cidade e seu cotidiano, muitas vezes nos dão indicações acerca da visão que esses europeus registraram da natureza circundante e do próprio continente americano de maneira mais ampla. Além disso, o leitor passa a conhecer bastante as características do porto da cidade e suas condições de navegação. Pode-se dizer que a obra cumpre seus objetivos e justifica, desta maneira, as reedições disponíveis, bem como as que futuramente sejam realizadas com o intuito de garantir aos leitores e pesquisadores acesso a esse rico acervo de testemunhos.
Para concluir, cabem alguns breves comentários suscitados pela própria fertilidade da antologia reunida na obra resenhada. França nos apresenta mais do que a riqueza das descrições da cidade do Rio de Janeiro e seu entorno, revela-nos igualmente um pouco das mudanças sofridas no papel da América dentro do Império colonial português e mesmo a transformação dos circuitos comerciais, da navegação e do papel desempenhado por outras nações europeias no desenvolvimento dos demais circuitos coloniais do período. Esse verdadeiro mosaico contradiz, de certa maneira, as próprias alegações de França quando este, na introdução, ressalta a política “ciumenta” da Coroa portuguesa e o consequente isolamento de sua colônia americana em relação a seus visitantes estrangeiros. Mesmo quando os testemunhos nos deixam entrever as cautelas e receios de governadores e representantes régios ou colonos em comercializar e permitir contato com navegadores e embarcação de súditos de outros 2 A antologia de França foi desdobrada ainda em outra importante seleção de relatos de viajantes, ver: FRANÇA 2000.
monarcas, a própria riqueza dos depoimentos e das circunstâncias que os envolvem nos permite pensar mais em conexões do que em isolamento.
Conexões, circulação, alianças, confrontos e compromissos, às vezes os mais improváveis, fizeram parte desse universo, como procuramos destacar no início deste texto. Entre o “ciúme mercantilista” e os entrecruzamentos de uma aventura ultramarina que se constrói por meio de diferentes níveis de interdependência e que se espalha concomitantemente nas mais diversas direções, encontramos, para retomarmos uma imagem de A. J. R. Russell-Wood, um mundo em movimento (RUSSELL-WOOD 2006). São justamente esses movimentos conectados, em alusão ao conceito de Sanjay Subrahmanyam, que aparecem belamente representados em Visões do Rio de Janeiro colonial (SUBRAHMANYAM 1999).
Referências
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. 3 vols. São Paulo: Metalivros, 1994.
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1582-1808). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
GALVÃO, Cristina Carrijo. A escravidão compartilhada: os relatos de viajantes e os intérpretes da sociedade brasileira. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 2001.
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
LEITE, Miriam L. Moreira. Livros de viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
LISBOA, Karen M. A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec, 1997.
MARTINS, Luciana de Lima O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Um mundo em movimento. Lisboa: DIFEL, 2006.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SELA, Eneida Mercadante. Desvendando figurinhas: um olhar histórico para as aquarelas de Guillobel. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 2001.
______________________. Modos de ser, modos de ver: viajantes europeus e escravos africanos no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Ed. da UNICAMP, 2008.
SLENES, Robert W. A Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected histories: notes towards a reconfiguration of Early Modern Eurasia. In: LIEBERMAN, Victor (ed.). Beyond binary histories: re-imagining Eurasia to c. 1830. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1999, p. 289-316.
VIANA, Larissa Moreira. As dimensões da cor: um estudo do olhar norte americano sobre as relações interétnicas, Rio de Janeiro, século XIX. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1998.
Notas
1 Gostaria de citar entre outros: BELLUZZO 1994; GALVÃO 2001; KARASCH 2000; LEITE 1997; LISBOA 1997; MARTINS 2001; SCHWARCZ 1993; SELA 2001; SELA 2008; SLENES, 1999; VIANA 1998.
Luciana Gandelman – Professora adjunta Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro lucianagandelman@yahoo.com.br Km 07 da BR 465 23890-000 – Seropédica – RJ Brasil Palavras-chave América portuguesa; Colônia; Relatos de viajantes.