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Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial | Flávia de Sá Pedreira
Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial, obra organizada pela historiadora Flávia de Sá Pedreira, é escrita por diversos pesquisadores-autores que se organizaram em torno de um eixo de debate, voltado para pensar o Nordeste do Brasil e suas variadas relações com diferentes eventos e acontecimentos oriundos da Segunda Guerra Mundial. A organizadora, na Apresentação da obra, como quem convida para tomar um café na sala de estar ou no escritório, explica um pouco da trajetória da construção do livro, quando decidiu convidar outros historiadores para o debate/reflexão sobre o tema. Em suas palavras, “Um período tão rico da nossa história, que muitas vezes é negligenciado por se pensar que a guerra foi bem longe daqui…Ledo engano, pois se o front ocorreu do outro lado do Oceano, aqui também se fez presente, atingindo as mentes e os corações tupiniquins, especialmente os que habitam esta região do país” (p. 09). Movida por esse desejo de ampliar, unir e socializar pesquisas, foi que a presente coletânea teve sua origem.
O livro Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial, além da sincera e pertinente Apresentação assinada pela organizadora, é composto por quatorze capítulos, todos debatendo sobre o conflito mundial e suas vinculações com alguma cidade ou capital do Nordeste. São dois capítulos ambientados em Sergipe, dois em Pernambuco, dois na Bahia, três no Rio Grande do Norte, um no Piauí, um na Paraíba, um no Ceará, um no Maranhão, um em Alagoas. A disposição dos capítulos não segue uma “lógica” específica, nem de recorte temporal e nem de agrupamento dos estados, tendo o tema da Segunda Guerra como único elemento aglutinador. Isso, ao contrário do que se possa pensar inicialmente, atribui mais leveza e fluidez à leitura, pois promove dinâmica na exposição dos objetos selecionados. Ao final, somos apresentados aos autores dos capítulos, com um breve resumo biográfico, com suas titulações e filiações acadêmicas.
Mais que uma coletânea de artigos produzidos eximiamente por estudiosos e especialistas na temática. É um referencial para e na historiografia, sobretudo no que tange ao capricho teórico-metodológico. Não se trata de um esforço de “encaixar” o Nordeste brasileiro em um episódio ou em acontecimentos, ou ainda, de “fazer” o Nordeste parte daquele momento beligerante da História mundial. Os estudos que integram a coletânea transitam, conscientemente, entre os limites e possibilidades das questões plurais de fronteira. São autores estão compromissados em “fazer” História, que, por sua vez, está imersa em temporalidades e espacialidades que ora se cruzam, ora se distanciam. Essa alternância se justifica, em grande medida, em decorrência das escolhas e recortes que os pesquisadores fazem. Isso é inerente ao campo científico da História. A percepção desse contraditório limite/expansão do termo “fronteira” é, também, uma tentativa de desnaturalizar o regional, o nacional ou o global como conceitos essenciais, prontos e imutáveis.
O esmero da obra, de fato, já se apresenta no excelente projeto gráfico da capa, que não faz o papel unicamente de adornar o livro. A capa em si já é o compromisso com o despertar e o refletir sobre o que, de forma direta e concisa, aponta o próprio título da obra. Imagens de espaços, sujeitos, momentos e ações diferentes, agrupadas como recortes que compõem uma colagem, isso tudo leva o leitor a pensar no caráter lacunar da história e na posição indelével do historiador, sobretudo no levantamento, na interpretação e na síntese que faz com e sobre as fontes. Fontes escritas, orais e audiovisuais, somadas a mapas, dados numéricos e gráficos, são exemplos da diversificação de olhares sobre os quais os autores se debruçaram para imprimirem suas análises, na presente obra coletiva. As fontes são lidas, problematizadas e interpretadas cuidadosamente à luz da teoria e da historiografia sobre a História da Guerra, a História nacional e das particularidades locais e regionais. Por essa razão, é que, de certa forma, os capítulos travam diálogos com múltiplas especialidades da História, como a história econômica, a história política, a história urbana, a história do cotidiano, a história cultural. No tocante à História Oral, Luiz Gustavo Costa sintetiza bem o seu uso nesta coletânea, ao afirmar que “não se buscou construir ou reconstruir conceitos historiográficos, mas abordagens que permitissem contornar caminhos alternativos embasados em critérios na busca constante em pesquisar determinadas entrelinhas” (p. 272). Cada capítulo aborda entrelinhas que, até então, ainda eram carentes de pesquisa e de conhecimento de um público mais amplo.
São artigos que transitam por variadas possibilidades de interconexões do fazer historiográfico. Por se tratar de um conjunto de pesquisas sobre uma das mais impactantes desventuras do mundo moderno, a Segunda Guerra Mundial, os textos podem ser lidos e interpretados a partir de alguns vieses de entendimento, como a História Política, no esteio daquilo que René Remónd (1997), e seus colaboradores, propunham pensar o mundo da vida política em seus muitos horizontes. Nesse sentido, os artigos que compõem o Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial apontam para como, em diferentes configurações culturais, econômicas, sociais e culturais, as políticas de atuação naquele episódio beligerante eram encaminhadas. Quando se fala de atuação, aqui, fala-se em convocação, participação, resistência, apoio, negação, medo, expectativa, imaginário, representações e demais alcances da Guerra no cenário nordestino.
O espaço e as suas subjetividades, corroborando a ideia de que os limites e fronteiras devem ser percebidos e problematizados em diferentes configurações, são, também, uma perspectiva potencial com a qual o leitor vai se deparar. As inúmeras bifurcações, ou melhor, os múltiplos veios entre o global, o nacional e o regional ganham ainda mais complexidade e viabilidade quando, em meio a tantos artigos, é possível se deparar com estudos que abordam o tema tomando um bairro como recorte espacial e se constitui como objeto.
Os gatilhos para a construção de um objeto de estudo são praticamente ilimitados. O leitor vai se surpreender como os autores aqui reunidos buscaram, em diferentes fontes e matrizes teóricas, a maneira particular de analisar e de apresentar seus olhares sobre a Guerra. O cotidiano, em variadas expressões foi tomado por alguns dos autores, como o fio que os levassem à problematização e construção de suas narrativas.
O desconhecido, o conflito, o medo, a força, a violência, o sonho, a esperança são alguns dos sentimentos que, em boa medida, podem ser percebidos nos textos agrupados. Ataques por mar e terra, espionagem, censura, representações, imprensa, discursos, morte, pobreza e precarização das condições de vida são tópicos e temas analisados ao longo da coletânea, como pode ser notado nos capítulos de autoria de Luana Carvalho, de Juliana Campos Leite, de Armando Siqueira. Episódios sangrentos e violentos, como aqueles do “Pearl Harbor brasileiro”, em Sergipe, discutido por Dilton Cândido Maynard, são revisitados para compreender os alcances simbólicos, imaginários, diplomáticos e políticos e políticos daquele conflito bélico de escala mundial. O mesmo terror é analisado no capítulo assinado em coautoria por Luiz Pinto Cruz e Lina de Aras, ao abordar os ataques empreendidos dos submarinos alemães no litoral sergipano. As relações diretas e indiretas entre os norte-americanos e alguns políticos e lideranças brasileiros são discutidas em diferentes abordagens, como é abordado pelos capítulos de autoria de Anna Cordeiro e de Raquel Silva. Os impactos sociais e urbanos também são analisados nos textos de Osias Santos Filho e de Sérgio Lima Conceição.
Nesse entremeio de textos e análises, é possível historicizar a Segunda Guerra Mundial a partir das críticas e sátiras que blocos de carnaval faziam, após a Guerra, sobre como a sociedade se comportava e representava aquele momento. O carnaval pós-guerra é tomado, então, como um sinalizador para as ranhuras, relações e sociabilidades que o contato, direto ou indireto com a Guerra, causou. Esse é o caso de Fortaleza, com o bloco dos CocaColas. Tal bloco, como discute o historiador Antônio Luiz Macêdo e Silva Filho. Diversão, irreverência e crítica, como têm sido as maiores marcas do carnaval ao longo dos tempos, se encontram para pensar sobre aquele período e sobre a sociedade. O Carnaval é também mencionado por Flávia de Sá Pedreira, em capítulo de sua autoria, quando a autora sobre os discursos acerca da produção artístico-cultural da cidade de Natal, sobretudo a partir do posicionamento de intelectuais, como Luís da Câmara Cascudo. A Segunda Guerra foi uma experiência com proporções quase imensuráveis e, como afirma Antônio Luiz Silva Filho, “as marcas dessa experiência seguem convidando a novas investigações” (p. 60).
A interseção entre cotidiano e guerra é ampliada em artigos como o de Daviana Granjeiro da Silva, que aborda aspectos da identidade para pensar o cotidiano em João Pessoa no período de guerra. Assim como as noções de fronteira devem ser desnaturalizadas, a historiadora apresenta, consciente e sutil, a discussão de que as identidades são importantes para as manifestações, mobilizações, acordos e resistências. Além disso, de que, lembrando aqui das identidades plurais propostas por Stuart Hall (2006), os sentidos ou sentimentos de pertencimento perpassam pelas construções e disputas de identidades. Por esse diapasão, Daviana da Silva conclui que “os desdobramentos de um conflito como foi a Segunda Guerra Mundial trazem efeitos para além dos campos de batalhas e do tempo cronológico de duração oficial do confronto, pois alteram modos de vida e visões de mundo de milhares de pessoas, mesmo em lugares tão distantes do front, o que ratifica a relevância de continuarmos estudando e refletindo sobre este momento peculiar de nossa história” (p. 184).
Da mesma maneira que as identidades, as memórias estão afloradas e debatidas ao longo dos textos da presente coletânea. Em alguns, de forma mais evidente e direta, em outros, de maneira mais diluída em subtemas ou na maneira com o trato com as fontes. Em relação a essas, é indispensável mencionar que todos os capítulos lidam com um leque amplo, desde documentos oficiais ligados à Força Expedicionária Brasileira (FEB), bem como depoimentos escritos de intelectuais e literatos, em sua fricção com depoimentos orais. É assim que, por exemplo, a historiadora Clarice Helena Santiago Lira constrói sua narrativa, promovendo o confronto entre diferentes fontes escritas e orais, para falar sobre o processo de mobilização de guerra na sociedade piauiense, utilizando a noção de front interno como mote de reflexão. A autora concluiu seu texto, afirmando que “a memória social sobre o processo de mobilização de guerra na cidade de Teresina não se faz presente, o que também é constatado por pesquisadores que estudam outras cidades brasileiras nessa configuração” (p. 133).
O repertório e manancial teórico e historiográfico são plurais e utilizados com maestria pelos autores da coletânea. A maioria não fugiu do contato inicial com os ensinamentos de referência de Roney Cytrynowicz (2000) e de Marlene de Fáveri (2002), sobretudo no que se refere ao trabalho de mobilização de guerra no Brasil. Além desses, estudiosos como Gerson Moura (1980; 19930), Silvana Goulart (1990), Vágner Alves (2002), Luiz Muniz Bandeira (2007) e Maria Capelato (2009) foram constantemente revisitados pelos historiadores que colaboraram com a presente coletânea. O diálogo empreendido é fluente, fazendo com que historiografia, teoria e empiria sejam colocadas de forma conexa.
No campo estritamente teórico, os capítulos estão ligados pelos meandros da memória, pois, em certa escala, abordam comunidades de memória ou grupos de memória. Essa concepção de memória, no lastro do que sugere Paul Connerton (1993), em que grupo assume tanto dimensões mais particulares de pequenas sociedades, quanto as dimensões mais complexas e, territorialmente falando, mais extensas. Nesse sentido, os grupos de pessoas de um bairro, de uma cidade, de um agrupamento militar, de lideranças políticas e intelectuais estão imersos nesse deslizamento entre o particular e geral do grupo, constituindo memórias singulares e plurais sobre a Guerra, seus agentes, sobre os espaços e temporalidades. De forma mais abrangente, ainda é viável ler toda a coletânea a partir dos conceitos de sistemas denominados de finalidade e causalidade, como propostos por Jean Baptiste Duroselle (2000), pois desde a movimentação política dos Estados até as reverberações sociais e cotidianas da população, tais sistemas estão manifestados.
Grande parte da riqueza e da importância desta coletânea está no fato de que, conforme a organizadora da obra, a historiadora Flávia de Sá Pedreira, “a indiscutível posição geográfica desta região do país muito contribuiu para o desfecho vitorioso dos países Aliados. A discussão a sobre a necessidade de se construir bases aéreas norte-americanas aqui demorou cerca de três anos, com intensas negociações entre os governos brasileiro e estadunidense. Com a instalação das bases, a partir de dezembro de 1941, o contato entre a população local e os estrangeiros fez-se de forma nem sempre harmoniosa, passando de uma convivência inicialmente cordial à confrontação explícita, principalmente na fase de racionamento em prol do ‘esforço da guerra’” (p. 08). A presente coletânea é um convite ao leitor, para que histórias antes silenciadas ou pouco conhecidas sejam retiradas das trincheiras do esquecimento. É um esforço coletivo em levar para o front da historiografia sujeitos e histórias responsáveis por inúmeras experiências urbanas da Guerra do outro lado do Oceano, do lado brasileiro, do lado nordestino. É importante frisar que, mesmo que cada autor presente nesta obra já tenha publicado inúmeros artigos em periódicos especializados e ter os apresentado em muitos eventos acadêmico-científicos, este livro se materializa como um símbolo e um norte para que novos pesquisadores e estudiosos sintam-se cada vez mais impelidos ao combate, no sentido amplo defendido por Lucien Febvre (1989). Mais que uma obra cujo público seria formado exclusivamente os especialistas e estudiosos das e nas universidades. A obra tem um alcance além, pois as narrativas, mesmo atendendo ao rigor científico e metodológico, não se distanciam da facilidade de compreensão por parte de qualquer público leitor interessado. Movidos pelo dever e pela responsabilidade de (re)escrever a História, em seus múltiplos vieses e horizontes.
Referências
PEDREIRA, Flávia de Sá (Org.). Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial. São Paulo: LCTE, 2019, 340p.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. São Paulo: EDUNESP, 2009.
CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Portugal: Celta, 1993.
DUROSELLE, Jean Baptiste. Todo império perecerá. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
FEBVRE, Lucien. Combates pela História. 2. ed. Lisboa: Editora Presença, 1989.
GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado Novo. CNPq/Marco Zero, 1990.
HALL, Stuart. O Global, o local e o retorno da etnia. In: HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
MOURA, Gerson. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
______. Neutralidade dependente: o caso do Brasil, 1939-1942. Estudos Históricos, v. 6, n. 12, Rio de Janeiro, 1993.
MUNIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
REMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Fundação Getúlio Vargas, 1997.
Pedro Pio Fontineles Filho – Doutor em História Social (UFC). Mestre e Especialista em História do Brasil (UFPI). Graduado em História (UESPI). Graduado em Letras-Inglês (UFPI). Professor do Programa de Pós-Graduação em História (UFPI). Professor do Mestrado Profissional – PROFHISTÓRIA (UESPI). Professor do Curso de História (UESPI/CCM). E-mail: ppio26@hotmail.com
PEDREIRA, Flávia de Sá (Org.). Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial. São Paulo: LCTE, 2019. Resenha de: FONTINELES FILHO, Pedro Pio. Além das Trincheiras e do Front: escritas sobre o Nordeste brasileiro e a Segunda Guerra Mundial. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.10, n.1, p. 269- 275, 2019. Acessar publicação original [DR]
Entre vaqueiros e fidalgos: sociedade, política e educação no Piauí (1820-1850) – SOUSA NETO (HU)
SOUSA NETO, M. de. 2013. Entre vaqueiros e fidalgos: sociedade, política e educação no Piauí (1820-1850). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2013. 336 p. Resenha de: FONTINELES FILHO, Pedro Pio. Entre a fé, a política e a educação: Padre Marcos e traços da história do Piauí, na primeira metade do século XIX. História Unisinos 21(2):278-281, Maio/Agosto 2017.
Marcelo de Sousa Neto é um importante historiador da nova e consolidada geração de historiadores piauienses, levando-se em consideração a periodização proposta pela historiadora Teresinha Queiroz (2006) sobre a historiografia piauiense. Dentre seus muitos trabalhos de pesquisa, o que mais se destaca, sem dúvida, é Entre Vaqueiros e Fidalgos. Trabalho de excelente lavra, fruto de sua tese de Doutorado, concluída na Universidade Federal de Pernambuco.
Foi publicado após vencer, em primeiro lugar, o Concurso Novos Escritores, na categoria Realidade Histórica, da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, da cidade de Teresina, Piauí. O mesmo texto havia sido escolhido pelo Colegiado da Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, para ser publicado pela editora daquela instituição, mas preferiu fazer a publicação pela Fundação Cultural, como mais uma demonstração de sua ligação com o Piauí. Os comentários contidos no Prefácio, na orelha e na quarta-capa do livro, escritos por renomados historiadores, atestam a qualidade e a profundidade da obra, que amplia os horizontes da história do Piauí do século XIX, em suas dimensões sociais, políticas, econômicas, educacionais e culturais.
Ao tomar a figura de Padre Marcos, Sousa Neto demonstra a habilidade na construção da narrativa histórica, pois liga a trajetória do sujeito em amálgama com a história da sociedade, considerando as nuances de espacialidades e temporalidades. Nesse sentido, a obra é desenvolvida nos lastros da proposta de uma biografia histórica, que toma o sujeito como uma forma de compreender as intrigas e ranhuras que constituíram a sociedade piauiense e brasileira no período oitocentista. Para tal empreitada, o autor faz diálogo teórico-metodológico com autores especialistas na discussão sobre sujeito, sociedade e biografia. Realiza isso sem perder de vista as discussões sobre tempo e temporalidade, entendendo que o sujeito deve ser percebido em suas interrelações entre o micro e o macro, entre o passado e o presente. A estrutura de organização do livro revela, também, a astúcia do autor, não somente como pesquisador, mas como exímio escritor, pois torna a leitura técnica mais acessível, inclusive para o público não especializado ou acadêmico. Está dividido em seis capítulos, distribuídos em três partes temáticas, ou melhor dizendo, eixos temáticos: A Serviço de Deus e dos Homens; Entre o Gado e as Letras: a instrução escolar no Piauí; e Nos Bastidores do Poder: Política e Família no Piauí do Século XIX. Na primeira parte, encontram-se os dois primeiros capítulos. O primeiro, intitulado “Entre o (Re)Criado e o Esquecido”, aborda aspectos do caráter lacunar da História, enfatizando a memória, no que se refere ao lembrar e ao esquecer. Ao clamar as reflexões sobre memória, o autor chama atenção para o fato de que a inscrição do Padre Marcos de Araújo da Costa está cravada na figura de “benemérito educador”. As suas identidades de atuação política e social encontram-se, na historiografia piauiense, esquecidas, ou, pelo menos, colocadas em um plano de pouca expressividade. Segundo Sousa Neto, isso se deu em decorrência do lugar social daqueles que produziram uma memória escrita, que centra e concentra seus olhares sobre um “Padre educador”, muito embora haja um caudaloso mar documental que falem do “Padre político” e do “Padre religioso”. O estranhamento inicial se dá em decorrência de que, ao se falar de um Padre, a priori, se esperaria uma memória escrita com destaque para o viés religioso. Tentando compreender esses “esquecimentos” ou “silenciamentos”, o historiador aponta o botânico inglês, George Gardner, que teria sido o primeiro a escrever sobre o Padre Marcos. Gardner foi o único memorialista e historiador a conviver com o Padre Marcos, pois teria visitado, em 1939, a fazenda de Boa Esperança, onde também funcionava a escola de mesmo nome, de propriedade do Padre. Escola essa que se firmava, “para toda a Província, como a principal escola de Primeiras Letras e de Instrução Secundária” (p. 40). Ao falar dessa visita, Sousa Neto aproveita para traçar o panorama da situação econômica e, principalmente, na Instrução Pública da Província, que passava por uma severa crise. O autor, assim, considera o botânico como o primeiro biógrafo do padre, minimizando “sua atuação como artífice político e como religioso, ressaltando apenas sua importância como educador” (p. 38). Assim, criou-se uma espécie de “tradição” historiográfica, na qual os escritos posteriores tomavam as informações fornecidas por Gardner e as reproduziam ou as endossavam. Sousa Neto, então, afirma que essa memória escrita e narrada “cria um espaço de ficção que, mais que descrever, realiza um golpe, um movimento que (re)cria o sujeito como ‘benemérito educador’, renascido entre o lembrado e o esquecido” (p. 38). No lastro dessa memória escrita sobre Padre Marcos, Sousa Neto destaca atuação de Fernando Lopes Sobrinho, José de Arimatéia Tito Filho, Antonio Reinaldo Soares Filho, Miguel de Sousa Borges Leal Castelo Branco, Joaquim Raimundo Ferreira Chaves, Marcos de Araújo Costa Ferro, Odilon Nunes, Francisco Augusto Pereira da Costa, Itamar Brito, Celso Pinheiro Filho, Wilson Carvalho Gonçalves, José Patrício Franco e Cid de Castro Dias. Dentre todos os seus biógrafos, segundo Sousa Neto, apenas Lopes Sobrinho e Castelo Branco teriam dedicado obras completas ao Padre Marcos. Os demais mencionam o Padre de forma secundária e periférica, mas todos enfatizando a atuação do Padre na perspectiva educacional, seguindo a memória escrita iniciada por Gardner. Ir além dessa “tradição” escrita sobre o Padre Marcos, como educador, não seria difícil, como afirma Sousa Neto. Para ele, “basta, para tanto, acompanhar alguns registros em documentação preservada no APEPI, mesmo que de forma não organizada” (p. 46). Assim, o historiador destaca suas atuações em funções públicas, como a vice-presidência do Conselho de Governo da Província e vice-presidência da Província, membro do Conselho Geral da Província, a presidência da Câmara de Jaicós, dentre outras ocupações, em diferentes anos e situações, de 1924 a 1950, quando veio a falecer.
No capítulo 2, “Padre Marcos e seu sacerdócio sagrado e profano”, o autor amplia as reflexões de que “Como membro de uma importante rede familiar, Padre Marcos destacou-se em diversos espaços do cenário sócio-político piauiense. Entretanto, suas ações como sacerdote são, indubitavelmente, as menos discutidas” (p. 53). Descendente de influente grupo familiar piauiense, Padre Marcos teria transitado por diversos e diferentes espaços sociais e políticos do Piauí, mas a sua atitude de homem mais reservado seria, segundo Sousa Neto, uma das razões que dificultam mapear a sua trajetória para além da memória escrita inaugurada por Gardner. Para o historiador, para compreender a sua atuação no sacerdócio é indispensável que se observe e se analise a própria atuação do catolicismo e da religiosidade no Brasil, com suas estruturas, ligações, conflitos, disputas de poder e os aspectos do padroado. É somente no tópico “De Reza e de Política: Padre Marcos e seu sacerdócio”, ainda do segundo capítulo, que Sousa Neto traça as primeiras linhas do que seria da biografia propriamente dita do Padre. Ele apresenta o ano de nascimento do padre, 1778, mencionando seu avô materno, bem como seu pai e sua mãe. Dá destaque para a atuação política de seu pai, Marcos Francisco, que teria ocupado cargos importantes na Capitania. Nesse sentido, afirma que “Filho de pais cuja atuação política e social já se destacava, Padre Marcos herda bens e prestígio que soube multiplicar, sabendo valer-se de sua condição de “homem das letras” e “homem do Sagrado”, agregando elementos de ordem econômica e política à sua atuação sacerdotal, que, por sua vez, resultou em novos proveitos para si e para o grupo familiar ao qual pertencia” (p. 66). O autor ainda discute sobre as discordâncias entre os biógrafos acerca da formação sacerdotal do padre, notadamente sobre a realização do curso de formação em Coimbra, Portugal, ou no Seminário, em Olinda. Sousa Neto fala que há registros relativos à permanência do padre em ambos espaços, concluindo que “a atuação em um espaço não exclui a participação no outro”, diferente de como sugeriam os outros autores. O autor aproveita a ocasião para discutir sobre o papel do Seminário de Olinda, inaugurado em 1800, seguindo os moldes do Iluminismo português. O Seminário, então, assumiu importante tarefa, além das funções religiosas, na formação educacional no Brasil, pois “constituiu-se na primeira instituição de ensino do Brasil a possuir uma estrutura escolar em que as matérias apresentavam uma sequência lógica, trabalhadas de acordo com um plano de ensino previamente estabelecido, em cursos que possuíam uma duração determinada e com alunos agrupados em classes, procurando ainda reunir em seu plano de estudos, o ensino clássico e moderno” (p. 71).
Isso possibilitou, em larga medida, a formação dos filhos dos grupos dirigentes, a formação ideal e necessária para o ingresso nas universidades europeias. E é nesse Seminário que Padre Marcos teria se matriculado. O autor chama a atenção para o fato de que os sacerdotes no Brasil e no Piauí do século XIX eram mal remunerados, o que lhes levava à busca de outras formas de complemento no sustento. No Piauí, os sacerdotes se afastavam do sacerdócio, “dedicados aos cuidados com suas fazendas de gado” (p. 81). Padre Marcos era um desses “padres fazendeiros”, mas, como afirma o pesquisador, não se afastou de suas obrigações sacerdotais. Ordenou-se Padre em Coimbra, no ano de 1805, retornando ao Brasil naquele mesmo ano, para Recife. Teria ido, também, para o Rio Grande do Norte, depois Oeiras e se mudou definitivamente para a fazenda Boa Esperança, em 1820. Nesse mesmo capítulo, Sousa Neto ainda destaca o trabalho de Padre Marcos nas construções arquitetônicas, com ênfase na capela de Santo Antônio, na fazendo de Boa Esperança, e a igreja matriz de Jaicós. Além dos aspectos de se inscrever por meio dessas obras, Padre Marcos teria atuado no sacerdócio, movendo-se, também, pelo sonho da criação de um Bispado no Piauí, sendo “o seu maior sonho e com certeza a sua maior decepção sacerdotal, em virtude da veemente recusa que impediu a sua criação” (p. 111).
No capítulo 3, “Entre o Gado e as Letras: a instrução escolar no Piauí”, Sousa Neto ressalta que discutir a instrução formal no Brasil do período colonial e imperial, mesmo diante do crescente número de pesquisas acadêmicas, ainda é um grande desafio, sobretudo por causa da escassez das fontes documentais. Ao falar dos “trôpegos passos”, diferente do que se costuma esperar de uma região na qual a oferta do ensino formal não era uma prioridade para grande parcela da população, o autor assevera que “a documentação consultada pôs em destaque a preocupação governamental com as chamadas Aulas Públicas” (p. 120), que começou a ter maior relevância no início do século XIX. Os baixos salários pagos ao magistério, contudo, constituiu-se em um dos entraves para a instrução pública, não só no Piauí, mas em outras províncias, levando-os a se dedicarem a outras atividades, inclusive o magistério particular. Como enfatiza Sousa Neto, a baixa remuneração fazia “parte de uma conjuntura política e econômica, na qual, com um discurso contraditório, os gestores da Instrução reconheciam a importância social do trabalho dos professores, mas, por outro lado, isso não correspondia a ações para melhor qualifica-los e remunerá-los” (p. 136).
Assim, o autor comenta inúmeras leis e decretos que impactaram nos rumos da Instrução Pública, que versavam sobre remuneração, oferta de cadeiras e currículos. É nesse cenário que a escola de Boa Esperança “distinguiu-se no cenário piauiense, atraindo o interesse de muitos pais e alunos, despertando uma forte demanda por vagas” (p. 171). Em relação a Padre Marcos, o autor diz que “a história da Escola toca e se confunde com a história do Padre” (p. 174), ao passo que discutir um implica transitar pela história do outro, pois a Escola “é tomada com um dos pontos de contato e de troca entre o indivíduo e o coletivo” (p. 174).
Dessa maneira, no capítulo 4, “Mão de ferro em luva de pelica: Padre Marcos e sua escola”, trata especificamente da escola de Boa Esperança e como ela se tornou referência de Instrução no Piauí, sendo “considerada a primeira instituição de instrução formal a funcionar efetivamente no Piauí” (p. 173). O autor afirma que, mesmo a parte da população mais interessada nas atividades de subsistência, a escola tornou-se a “mais importante e bem sucedida experiência educacional no Piauí, até a primeira metade do século XIX, tendo seus reflexos ultrapassando as fronteiras da Província e da própria educação, ajudando a formar boa parte de seu corpo dirigente e marcando significativamente a história local” (p. 173). Mesmo nos momentos em que assume funções na vida política, sobretudo a partir de 1824, quando assume a Vice-presidência da Província, suas ausências não comprometeram o funcionamento ininterrupto da Escola, até mesmo porque utilizou monitores, que eram os alunos mais avançados, para o acompanhamento dos alunos iniciantes. Outro aspecto da Escola, que permitiu o seu funcionamento durante as ausências de Padre Marcos, foi o formato de internato, ofertando, também, um ensino prático ligado às atividades mais desenvolvidas na região, notadamente as das fazendas.
No capítulo 5, “Nos bastidores do poder: política e família no Piauí do século XIX”, Sousa Neto analisa que as muitas facetas de Padre Marcos, como “clérigo, fazendeiro, intelectual, educador, político” (p. 219) devem ser compreendidas no seio das redes de poder nas quais ele estava imerso. Isso é pertinente, pois Padre Marcos foi “herdeiro político da elite dirigente do Centro-Sul piauiense, constituída a partir das redes familiares, que se alicerçavam” (p. 219) nas bases do parentesco e favores mútuos. Nesse sentido, o autor faz uma acurada discussão teórica e metodológica sobre a produção historiográfica pautada nas relações entre família, sociedade, política, economia e poder. A partir disso, traça o panorama das redes familiares, Estado e patrimônio no Brasil e no Piauí, do século XIX. Por esse viés, “Padre Marcos representou, assim, sujeito dos mais importantes nas relações de poder no Norte do Império, expressivo representante das redes familiares do Centro-Sul piauiense” (p. 246). Segundo o pesquisador, “o sucesso da escola de Boa Esperança deveu- -se, em muito, ao prestígio desfrutado por seu idealizador e à sua condição de mantenedora da ordem social vigente, ao oferecer aos jovens uma educação apropriada aos interesses dos grupos familiares da elite da época” (p. 247).
No capítulo 6, “Tempo de Semear; Tempo de Colher”, o autor menciona as diversas manifestações a favor da Independência, que ferviam por todo o Brasil e, também, no Piauí, sobretudo nas vilas de Parnaíba e Oeiras.
A Insurreição de 1817 atingiu, além de Pernambuco, as capitanias da Bahia, Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão e Piauí. Nessa última o movimento “não ganhou maiores contornos nem firmou raízes” (p. 253), muito embora tenha havido um envolvimento concreto. Durante esse movimento de insurreição, conforme Sousa Neto, o Padre Marcos teria ficado afastado, pois não era de interesse de seu grupo familiar aderir à Insurreição, visto que, “de maneira geral, não havia entre os grupos familiares que compunham a elite piauiense, o desejo de ruptura com Portugal” (p. 254). As reverberações da Insurreição foram sentidas em momento posterior, com a agitação causada pela Revolução do Porto, em 1820. No Piauí, a inquietação se deu no ano de 1821, principalmente em Oeiras e nas vilas de Parnaíba e Campo Maior. Esse estado de agitação se prolongou durante todo o ano de 1822, cujo “projeto vitorioso de Independência foi o das elites locais, formadas a partir de influentes grupos familiares e que já faziam parte da administração provincial” (p. 266). E, no período, Padre Marcos “firmou-se como o grande articulador dos grupos familiares do Centro-Sul piauiense e da adesão da capital à Independência do Brasil” (p. 274). Para endossar seus argumentos de que Padre Marcos detinha muita influência, o historiador também fez análises de correspondências trocadas entre clérigos contemporâneos do Padre. Segundo Sousa Neto, “percebe-se que os argumentos usados por Padre Marcos foram tomados em consideração mais por seu prestígio pessoal”, em suas tentativas de intervir contra movimentos de insurreição. O respeito que o Padre possuía era de tamanha envergadura que a sua casa, “na fazenda de Boa Esperança, funcionou muitas vezes como ‘tribunal’, no qual muitas contendas políticas ou desavenças pessoais foram resolvidas” (p. 294).
Em Entre Vaqueiros e Fidalgos, Sousa Neto inscreve sua marca na historiografia como astuto pesquisador de História, desbravando as trilhas dos pensares e fazeres de uma temporalidade e de uma espacialidade circunscritas nos vários “entre” que engendram a construção de sua narrativa, contemplando os limiares entre o sujeito e a sociedade, bem como entre a história, a religião, a política e a educação.
O historiador Marcelo de Sousa Neto, de forma corajosa e competente, conseguiu construir uma narrativa esclarecedora sobre a história do Piauí e Brasil do século XIX, tomando as aproximações entre Padre Marcos e o seu período. Ele teceu “uma imagem que procurar recuperar, na narrativa, o macro através da poeira de acontecimentos minúsculos” (p. 315), com o intuito de demonstrar que, “por meio de uma trajetória individual, como as singularidades relacionam-se e podem expressar as regularidades coletivas” (p. 315). Assim, como ressalta o próprio autor, “o fato é que não era possível ignorar as páginas da história do Piauí que Padre Marcos ajudou a escrever e que continuam sendo reescritas” (p. 313) e relidas, reinterpretadas. E Entre Vaqueiros e Fidalgos é um indício provocador para novas reflexões sobre a história e a historiografia brasileira do século XIX.
Referências
QUEIROZ, T. de J.M. 2006. Historiografia piauiense. In: T. de J.M.
QUEIROZ, Do singular ao plural. Recife, Edições Bagaço, p. 141-170.
Pedro Pio Fontineles Filho – Universidade Estadual do Piauí. Campus Clóvis Moura. Rua Des. Berilo Mota, s/n, Dirceu Arcoverde I, 64001-280, Teresina, PI, Brasil. E-mail: ppio26@hotmail.com.