The Country of Football: Politics, Popular Culture, and the Beautiful Game in Brazil – FONTES; HOLLANDA (RBH)

FONTES, Paulo; HOLLANDA, Bernardo Buarque de. The Country of Football: Politics, Popular Culture, and the Beautiful Game in Brazil. London: Hurst & Company, 2014. 274p. Resenha de: CORNELSEN, Elcio Loureiro. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.35, n.70 jul./dez. 2015.

O “país do futebol” – muito se escreveu e se alimentou esse mito nas últimas quatro décadas, dentro e fora do Brasil. Nesse sentido, The Country of Football oferece ao leitor um percurso pela história do futebol brasileiro, de seus primórdios aos dias atuais, percurso esse pavimentado por contribuições de vários pesquisadores brasileiros e estrangeiros.

Na introdução intitulada “The Beautiful Game in the ‘Country of Football'” (p.1-16), os historiadores Paulo Fontes e Bernardo Buarque de Hollanda, organizadores da obra, ressaltam que o Brasil continua a ocupar uma posição de destaque no cenário internacional, quando o assunto é futebol. Pela trajetória vitoriosa, coroada pela conquista de cinco títulos mundiais, a expressão “Country of Football” teria se tornado “nossa própria metáfora de Brasil” (p.2).1

O primeiro capítulo do livro, intitulado “The Early Days of Football in Brazil: British Influence and Factory Clubs in São Paulo” (p.17-40), da socióloga Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes, versa sobre os primórdios do futebol brasileiro. De início, a autora chama a atenção para o fato de que o football já era praticado como atividade física na década de 1880 em escolas religiosas do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Essa nova modalidade adotada pela elite logo despertaria o interesse também de membros das classes operárias, o que culminaria com a formação dos chamados “clubes de várzea” e, sobretudo, de clubes de fábricas, num primeiro passo rumo à popularização.

No capítulo seguinte, intitulado “‘Malandros’, ‘Honourable Workers’ and the Professionalisation of Brazilian Football, 1930-1950” (p.41-66), o historiador norte-americano Gregory E. Jackson enfoca o período de profissionalização do futebol brasileiro a partir de 1933. De acordo com esse autor, sob o jugo autoritário, o futebol representou “uma ferramenta pedagógica para construir cidadãos eugenicamente aptos e culturalmente ortodoxos” (p.43). No contexto da Era Vargas, “o jogo e a cultura do futebol apresentaram um tropo para as críticas da suposta democracia racial do Brasil” (p.61), e encontraram no sociólogo Gilberto Freyre e no jornalista Mário Filho dois pensadores fundamentais na construção do discurso em torno do “mulatismo” como traço de um suposto estilo brasileiro de jogar.

O terceiro capítulo, “Football in the Rio Grande Do Sul Coal Mines” (p.67-85), da antropóloga Marta Cioccari, dedica-se ao estudo de um caso específico: investigar “a importância social e o simbolismo da classe trabalhadora como expressos na vida de mineiros e ex-mineiros de carvão no município de Minas do Leão, no Rio Grande do Sul” (p.67). Trata-se de uma pesquisa etnográfica realizada pela autora, que residiu no período de setembro de 2006 a fevereiro de 2007 em Minas do Leão, uma pequena localidade com cerca de 8 mil habitantes, cuja fonte de renda principal é a mineração. Segundo a autora, o futebol desempenha papel importante no cotidiano do município, onde os primeiros clubes criados por trabalhadores das minas foram fundados nas décadas de 1940 e 1950 (p.69).

No quarto capítulo, “‘Futebol De Várzea’ and the Working Class: Amateur Football Clubs in São Paulo, 1940s-1960s” (p.87-101), o historiador Paulo Fontes destaca a relevância do futebol de várzea como forma de lazer, especialmente em bairros operários das grandes cidades brasileiras. Segundo o autor, “para muitos, o fervor dos torcedores e o sentimento de apego entre os clubes locais e suas comunidades fazem do futebol amador, do futebol ‘real’, herdeiro do que há de melhor nas tradições do futebol brasileiro” (p.88). Tais clubes eram autênticos centros de lazer que integravam diversas atividades para além do futebol, atraindo, assim, amplos segmentos da comunidade em que se localizavam.

O quinto capítulo, “The ‘People’s Joy’ Vanishes: Meditations on the Death of Garrincha” (p.103-127), do antropólogo José Sergio Leite Lopes, apresenta uma “etnografia do funeral” (p.103) de Manuel Francisco dos Santos, mundialmente conhecido como Garrincha. “Uma canção de gesta medieval” (p.108): assim define o antropólogo a intenção de cronistas esportivos, em jornais publicados logo após a morte do ex-jogador, em atribuir sentido épico à carreira de Garrincha, marcada por triunfo e fama no esporte, graças à extrema habilidade em driblar os adversários que o tornou uma figura legendária, não obstante a fase de decadência e a morte trágica, praticamente esquecido, vítima do alcoolismo, em Bangu, no subúrbio do Rio.

No sexto capítulo, “Football as a Profession: Origins, Social Mobility and the World of Work of Brazilian Footballers, 1950s-1980s” (p.129-146), o historiador francês Clément Astruc investiga o testemunho de 43 ex-jogadores que atuaram na seleção brasileira entre 1954 e 1978, no intuito de refletir sobre a real capacidade do futebol como meio de ascensão social da classe trabalhadora. Vários entrevistados foram taxativos ao afirmar que a sociedade, em geral, não via com bons olhos o jogador de futebol, por não considerar sua prática uma profissão. Ao invés disso, termos depreciativos lhes eram atribuídos, como, por exemplo, “vagabundo”, “malandro” ou “safado” (p.133).

No sétimo capítulo, “Dictatorship, Re-Democratisation and Brazilian Football in the 1970s and 1980s” (p.147-166), o antropólogo José Paulo Florenzano enfoca o impacto da ditadura civil-militar (1964-1985) sobre o âmbito do futebol brasileiro e estabelece “um contraponto entre a ‘utopia autoritária’, forjada no contexto de militarização, e a República de Futebol, fundada no contexto da redemocratização” (p.148). A militarização do esporte com fins de propaganda teve várias facetas. Mas, como bem aponta o antropólogo, não faltaram vozes no âmbito do futebol para se rebelar contra esse status quo, em busca de uma democratização de seu meio profissional e, igualmente, da sociedade como um todo.

O oitavo capítulo, “Public Power, the Nation and Stadium Policy in Brazil: The Construction and Reconstruction of the Maracanã Stadium for the World Cups of 1950 and 2014” (p.167-185), do historiador Bernardo Buarque de Hollanda, versa sobre a construção do Estádio do Maracanã para a Copa de 1950 e estabelece uma comparação com a sua reconstrução no contexto da organização da Copa de 2014. Nesses dois momentos, houve uma mudança sensível em relação ao público torcedor: enquanto em 1950 havia uma política inclusiva, até mesmo por se tratar de uma época em que a televisão ainda estava ausente das transmissões, nos anos 2000, com as diretrizes da FIFA e uma maior midiatização, passa a vigorar uma política de exclusão, no espaço dos estádios, de segmentos populares da sociedade, impossibilitados de arcar com os altos preços dos ingressos.

Por fim, o nono capítulo, “A World Cup for Whom? The Impact of the 2014 World Cup on Brazilian Football Stadiums and Cultures” (p.187-206), do geógrafo norte-americano Christopher Gaffney, propõe uma reflexão sobre o impacto da Copa de 2014 para os estádios e para a cultura no Brasil, examinando o desenvolvimento de projetos de construção de estádios e demais infraestruturas relacionadas ao esporte. Com extrema lucidez, o geógrafo conclui suas reflexões com um quadro nada otimista: “Esses processos têm o potencial de alterar, permanentemente, um elemento essencial da identidade cultural brasileira. Ironicamente, é o peso cultural do futebol como criado e sustentado pelo ‘povo’ que tornou possível sua potencialidade de venda no mercado global” (p.206). Afinal, não devemos nos esquecer de que, feito uma Medusa, o capital petrifica tudo aquilo que toca.

Nota

1 As traduções de trechos citados são de nossa autoria.

Elcio Loureiro Cornelsen – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: cornelsen@letras.ufmg.br

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Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista, 1945/1966 – FONTES (RBH)

FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista, 1945/1966. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008. 436p. Resenha de: DUARTE, Adriano Luiz. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.60, 2010.

Um nordeste é desses livros raros que arejam nossas ideias, ampliam nossos horizontes e abrem inúmeras janelas à reflexão. Areja nossas ideias por nos mostrar que devemos pensar a história social e política da cidade de São Paulo considerando o impacto das migrações internas, nos últimos 60 anos. Nesse período, aproximadamente 38 milhões de pessoas saíram do campo em direção às áreas urbanas, e seu principal destino era a cidade de São Paulo. A capital paulista triplicou seu tamanho, enquanto sua população de origem nordestina cresceu dez vezes. Entre 1950 e 1960, a cidade recebeu 1 milhão de migrantes, representando 60% do seu crescimento. Em 1970, o censo apontava que “70% da população economicamente ativa na cidade havia passado por algum tipo de experiência migratória” (p.46).

Norte, Nordeste, nordestino, como mostra o autor, são categorias genéricas que se referem a diferentes lugares, origens e experiências. No entanto, ao chegar à cidade de São Paulo, as diferenças eram esquecidas e todos se tornavam “baianos”. Ser “baiano” tinha uma implicação cultural e étnica, cuja função era, principalmente, marcar a sua diferença em relação aos moradores mais antigos: “[nordestinos] são essas pessoas morenas e de pele mais escura que não eram como nós” (p.78). A migração nordestina cruzava dois elementos bastante explosivos: a origem racial e o baixo grau de instrução. Pesquisas discutidas com muita propriedade por Paulo Fontes mostram que, em 1962, 60% dos trabalhadores que migravam para a capital paulista eram analfabetos (p.64). Não demorou muito para que “os nordestinos” fossem responsabiliza-dos pelas mazelas do crescimento urbano desordenado da cidade: a debilidade dos serviços públicos, o crescimento da criminalidade, a expansão de cortiços e favelas.

A segregação era tanto espacial quanto social e cultural. Uma pesquisa realizada entre universitários paulistas, em 1949, revelou que um em cada três não considerava a hipótese de matrimônio com “baianos ou nortistas” (p.69). Por isso é possível dizer que a identidade de muitos bairros paulistanos, nas décadas de 1960 e 1970, está profundamente marcada por certa percepção dos “nordestinos” como o lado obscuro do progresso: sua presença seria o preço a pagar pelo desenvolvimento. Junte-se a isso a violenta segregação espacial do processo de urbanização da cidade. O seu “padrão periférico de crescimento urbano” – que reservava áreas vazias próximas ao centro da cidade para especulação imobiliária – alterou completamente o cenário. Os trabalhadores foram paulatinamente expulsos das áreas centrais e de industrialização antiga e forçados a se deslocar para áreas periféricas desprovidas de serviços urbanos como água, luz, esgoto, correios etc. Esse processo desencadeou o fenômeno da autoconstrução, que marcou fortemente o cenário suburbano. Segundo Paulo Fontes, em 1980 calculava-se que 63% das moradias na grande São Paulo haviam sido construídas desse modo. São Miguel Paulista, a “Bahia Nova”, foi um exemplo: de um vilarejo com 7 mil habitantes em 1940, chegou a 140 mil em 1960. Mas a autoconstrução supunha a inestimável ajuda de parentes e amigos expressa no mutirão, fortalecendo os laços de solidariedade e consolidando a identidade de moradores e trabalhadores.

Um nordeste em São Paulo amplia nossos horizontes ao mostrar que não era apenas de segregação, isolamento, baixos níveis educacionais e “barbarismo” que se fazia a epopeia da migração nordestina para São Paulo. Solidariedade talvez seja o substantivo que melhor define as múltiplas redes que conectavam os migrantes. Começando pelo simples fato de que sair do Nordeste pressupunha um contato prévio na cidade grande. Ou seja, o processo de migração não era, de modo geral, desordenando e desprovido de planejamento. Era escolha racional, assentada numa cuidadosa teia de contatos que facilitava a decisão de partir, ajudava na viagem e no processo de adaptação na cidade. Essas “redes” forjavam as relações de vizinhança e alcançavam o interior das fábricas, chegando sólidas aos partidos políticos. Elas foram fundamentais para tecer uma identidade específica de trabalhador nordestino, identidade de classe, embora nem sempre suficientes para configurar uma comunidade.

A migração nordestina era fartamente descrita na imprensa como associada à ignorância, à violência irracional e à pobreza. Caracterizados como grosseiros e rudes, tinham sua “propensão natural à violência” atribuída ora à herança de um ambiente hostil e agressivo, ora a um estágio civilizacional inferior. Paradoxalmente, a imagem do “cabra-macho que não leva desaforo pra casa”, simbolizada pelo cangaceiro, foi largamente cultivada pelos migran tes como símbolo de coragem, força e determinação que os diferenciava dos sulistas. Porém, a reação mais comum diante das hostilidades que recebiam não implicava violência, mas a valorização da sua capacidade de trabalho – e, portanto, da sua identidade de operário – sob o argumento de que sem eles São Paulo não seria o que é.

Ao seu suposto atraso, responderam também com forte atuação política no pós-guerra. A despeito de suas ambiguidades, o PCB contou com forte adesão dos moradores de São Miguel e dos operários da Nitro Química. Sua popularidade expressou-se na célula Augusto Pinto, a maior célula comunista do estado, e nos mais de 35% de votos dados ao partido nas eleições para a Assembleia Legislativa, em janeiro de 1947. A cassação do registro legal do PCB pulverizou as fidelidades partidárias em São Miguel, embora não tenha arrefecido o envolvimento político no bairro. As agremiações partidárias saíram a campo para disputar o espólio do “partidão” – espólio eleitoral e organizativo. Adhemar de Barros e Jânio Quadros seriam os principais destinatários do voto operário em São Miguel. Mas não eram apenas os partidos políticos que disputavam a consciência dos operários: o Círculo Operário Cristão também contou com a adesão dos operários, embora – para tristeza dos circulistas – não pelas razões “certas”. A estreitíssima relação entre o Círculo Operário e a Nitro Química era vista com grande desconfiança pelos trabalhadores que o utilizavam como um clube, um espaço de lazer e assistência numa cidade profundamente carente de ambos, mas recusavam seu pacote ideológico.

A crescente repressão do governo Dutra e a cassação da direção do sindicato dos químicos levaram muitos militantes para as Sociedades Amigos de Bairro (SABs) que se tornaram os centros da chamada “luta pelo direito à cidade”. O golpe civil-militar de 1964 acentuaria os vínculos entre as SABs e os sindicatos, visto que muitos militantes e simpatizantes de esquerda se refugiaram nelas. Estabelecendo uma conexão entre as SABs e os chamados “novos movimentos sociais” surgidos na cidade no final da década de 1970, Paulo Fontes sugere que a existência de “uma longa e subterrânea tradição organizativa no bairro iria alimentar e ‘dialogar’ com esses novos militantes e organizações” (p.284). As SABs foram fundamentais também nas campanhas pela autonomia de São Miguel Paulista, movimento iniciado em 1962 e por três vezes derrotado. A primeira metade da década de 1960 foi marcada também pelo crescimento da ação sindical na Nitro Química e no bairro de São Miguel. A expectativa pelas “reformas de base”, prometidas pelo governo de João Goulart, mobilizou a população e desencadeou inúmeras greves. Mas esse período coincidiu também com uma profunda crise econômica na empresa, cuja resposta imediata foi o esvaziamento do famoso serviço social que ela mantiverapor mais de 30 anos. Às milhares de demissões, seguiu-se a deslegitimação do papel desempenhado pela empresa no bairro; assim, o ano de 1966 marcou o fim de uma era.

Um nordeste em São Paulo abre inúmeras janelas à nossa reflexão ao tomar com desassombro a decisão de lidar com o cotidiano operário, com a cultura popular, com as relações de gênero, as identidades étnicas, as formas de lazer e sociabilidade dos trabalhadores na chave das mais atualizadas abordagens sobre esses temas. Problematiza as relações entre campo e cidade, não apenas colocando sub judice uma versão tradicional que percebia a migração como a destruição dos vínculos de solidariedade, mas também mostrando que ela não significava, em geral, rompimento com o campo. O “problema” da comunidade, que emerge quando os historiados buscam a ampliação das análises da formação de classe para além do espaço fabril, é tratado com o devido cuidado, supondo a solidariedade não como uma consequência “natural” da proximidade geográfica, mas como resultado de um esforço humano deliberado e reatualizado cotidianamente, tanto nas redes de lazer quanto nas lutas. Comunidade emerge não como simples categoria teórica, mas como problema historiográfico a ser investigado. Um nordeste em São Paulo é leitura obrigatória não apenas para os historiadores preocupados com o problema da formação da classe operária no Brasil, mas para historiadores, sociólogos, antropólogos e outros preocupados em entender este misterioso lugar chamado Brasil.

Adriano Luiz Duarte – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Campus Trindade – Departamento de História. Av. Engenheiro Max de Souza, 620 – Florianópolis – SC. E-mail: adrianoduarte@hotmail.com.

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Um Nordeste em São Paulo: Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966) FONTES (EH)

FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo. Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966). Rio de Janeiro: FGV, 2008, 346 p. Resenha de: LOPES, José Sérgio. São Miguel apresenta os Nordestinos a São Paulo. Estudos Históricos, v.22 n.43 Rio de Janeiro Jan./June 2009.

Um Nordeste em São Paulo traz contribuições originais ao estudo dos processos migratórios no país, o maior dos quais tendo se dirigido no pós-guerra para a cidade de São Paulo, que se tornaria a maior área metropolitana do país. A partir de estudos anteriores relativos à imigração internacional no período pós-escravista (em particular a imigração italiana), nos quais a relação com a industrialização nas primeiras décadas do século XX é analisada, Paulo Fontes pôde estender essa linha de investigação (em que Michael Hall, seu orientador, é um dos autores mais importantes) ao caso da grande migração interna do pós-guerra, a migração rural-urbana concentrada no eixo Nordeste-São Paulo.1

Uma das grandes forças deste livro é a de conseguir iluminar processos sociais de amplitude nacional através do uso da escala local, prática em que o autor já tem um conhecimento acumulado desde a sua pesquisa para a dissertação de mestrado, que se tornou seu livro de estreia.A possibilidade de desvendar esse processo macrossocial em um distrito inicialmente pouco povoado da cidade de São Paulo – onde a forte ação do foco de recrutamento de mão de obra inicial, que é a Fábrica Nitro Química, ali instalada no final dos anos 1930, e que de certa forma exerce um domínio sobre o distrito como governo local de fato ostensivo ou nos bastidores até meados dos anos 1960 – é fruto dessa escolha de objeto e de um procedimento histórico-etnográfico, dando ao leitor do livro uma narrativa de densa dramaticidade. Nas décadas seguintes a localidade torna-se (e é vista como) um lugar de forte concentração de trabalhadores nordestinos.3

O fato de ser uma grande fábrica privada, de forte capital político junto ao governo federal,4 que veio a ser um dos fatores iniciais da imigração nordestina para São Paulo, e mais ainda na localidade – fábrica esta que tem uma influência preponderante na economia e na vida social do bairro – dá à observação micro, focalizada em tal distrito, um poder explicativo heurístico para a compreensão daquela grande migração dirigida à capital paulista.5

O paralelismo entre a naturalidade civil do principal proprietário da Nitro, José Ermírio de Moraes, e a origem nordestina de maior parte da mão de obra selecionada pela empresa não escapa nem aos trabalhadores e moradores locais nem ao autor. Pode-se em todo caso aprofundar, em pesquisas futuras, a presença nacional precoce de empresários nordestinos na indústria do Rio de Janeiro e de São Paulo,6 entre os quais o grupo Ermírio de Moraes ocupa um lugar singular. Ao invés de uma acumulação prévia em estabelecimento industrial e/ou comercial inicial em sua área de origem, como é o caso de outros empresários do Norte (como se dizia na época), José Ermírio entrou de forma precoce e direta num grande grupo industrial têxtil de São Paulo, a Votorantim, em Sorocaba, do industrial português Pereira Inácio, e assim passou a pertencer, desde muito jovem, à burguesia industrial que veio a ser, anos depois, o centro mesmo do poder econômico do país.7

No capítulo 2 (p. 101-102), Paulo Fontes menciona a prática, durante a década de 1940, do agenciamento direto de trabalhadores pela Nitro Química, transportados de caminhão de Minas Gerais e do Nordeste (onde o grupo Votorantim tinha implantação com fábricas de cimento, como a Fábrica Poty, em Paulista, PE, assim como usinas de açúcar).8 Nos anos 1950 o fluxo migratório se dava de forma não diretamente produzida pela fábrica, mas já era fruto seja da articulação das famílias de trabalhadores da Nitro com seus parentes provenientes de suas áreas de origem, seja da procura por parte de famílias recém-imigradas por áreas de moradia, nos loteamentos a baixos preços oferecidos a trabalhadores naquele distrito.9 Aquilo que antes se fazia em escala intrarregional (por exemplo, no interior do Nordeste, o agenciamento de famílias camponesas em estados vizinhos através de agentes pagos por fábricas têxteis por família recrutada, entre os anos 1930 e 40), agora era feito em escala inter-regional de longa distância, Nordeste-Sudeste por via terrestre (agenciamento anteriormente feito de forma internacional por via marítima de longa distância entre Europa e Sul-Sudeste do país).

O livro segue uma ordem cronológica, mas que também tem a lógica de um plano temático de exposição: começa pela análise do processo de migração Nordeste/São Paulo (condições de saída, condições de chegada) em sua dimensão geral, dando conta do mote do título principal; e passa pelas redes de chegada e estabelecimento na cidade (e em particular no bairro) de uma perspectiva étnico-regional, mostrando como pouco a pouco o que é procura por trabalho passa a ter uma dimensão étnica (um novo grupo migrante na cidade, que chega numeroso, passa a ser percebido como tal pelos próprios nordestinos em seus locais de residência, assim como pelos estabelecidos de São Paulo e a sua mídia). Assim, na passagem do primeiro para o segundo capítulo, a perspectiva maior sobre São Paulo passa a focalizar-se em São Miguel, sem, no entanto, perder a precisão na passagem do geral para o particular (no capítulo1), assim como na passagem ao geral em pontos específicos da narrativa localizada que predomina nos demais capítulos. Por outro lado, a análise do termo genérico e estigmatizante de “baiano”,10 que passa a caracterizar a interação entre os estabelecidos e os novos chegados, se localiza no fechamento do capítulo inicial “Mala de papelão e matuá nas costas”, enquanto que o seguinte, “Terra de nordestinos”, é fortemente correlacionado ao domínio do trabalho e, portanto, da presença da fábrica no bairro, que parece dar um matiz especial à localidade. Assim, o terceiro capítulo, que trata da vida cotidiana no bairro, mostrando a construção de diversidades e identidades – através do acesso às residências (da pensão ao mutirão da casa própria), da vida social do bairro no tempo livre dos trabalhadores (futebol, cinema, bares, clubes sociais e bailes), onde pode se manifestar a diferenciação no bairro entre “a elite” e a “mistura”, das carências urbanas e de transporte de São Miguel Paulista – se dá de forma thompsoniana sob a rubrica sintética de uma “comunidade operária”. Segue-se a parte propriamente política do livro, nos capítulos 4 e 5; o primeiro sobre os partidos e lideranças políticas em São Miguel Paulista, denominado “Direito de fazer política”, direito este que se estende no último capítulo aos movimentos sociais de bairro e de autonomia política municipal.11

No capítulo 4, Paulo Fontes ressalta a importância da atuação do PCB no bairro, que chegou a ter em São Miguel Paulista, nos anos de 1945 a 1947, sua maior organização de base em São Paulo (com mais de mil trabalhadores filiados) sendo então lugar proletário preferencial para aquele partido mostrar sua força (com a admiração de Jorge Amado e as visitas frequentes de Prestes). Tendo tido como ponto de partida de pesquisa o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Química de São Paulo, e, em particular, seu grêmio de aposentados, o autor teve acesso aos relatos e à experiência política daqueles trabalhadores, formados no interior ou no entorno do trabalho sindical daquele partido. Esses depoimentos dão um fio condutor não somente à política no período, mas a informações e representações sobre a vida na fábrica e no bairro. O acesso ao arquivo da polícia política organizado nos anos 1990 no Arquivo Público de São Paulo permite completar e precisar, de forma cruzada, essas informações.

Diferentemente da perspectiva de autores que produziram seus trabalhos no fim dos anos 1970 sobre a classe trabalhadora de São Paulo (como os importantes trabalhos de Francisco Weffort e José Álvaro Moisés), posicionados no interior de um debate histórico polarizado pela nova redemocratização então em curso no país, Paulo Fontes está menos impregnado pelo ímpeto incontrolado do julgamento, e mais pela intenção de compreender, a partir de uma base direta e maior de informações dos próprios trabalhadores do período (assim como do aparelho repressivo do Estado), indisponíveis aos analistas dos anos 1970. Tal perspectiva ultrapassa a capa de princípios e de práticas políticas das direções partidárias, para entender os efeitos menos intencionais que aquela ação política tem sobre a associatividade dos trabalhadores. Isso se estende à compreensão do fenômeno da chamada política “populista” nos bairros de trabalhadores, menos pela etiqueta da anomia ou do desvio político (em relação a uma política transparente de representação de interesses de classe tida implicitamente como norma), mas por uma antropologia da política efetivamente praticada nas relações de reciprocidade (desigual) entre políticos e representados (com as visitas dos políticos e suas esposas à casa dos trabalhadores, com as particularidades dos seus comícios etc.). Também nesse caso, a escolha da análise histórico-etnográfica a partir do caso, um bairro estratégico (e não do fenômeno geral, mais abstrato), tem a sua importância, fazendo o livro contribuir para uma melhor compreensão da dinâmica do ademarismo e do janismo nos bairros de trabalhadores em São Paulo (assim como suas relações com quadros egressos do partido comunista clandestino).

O capítulo final, “Trabalhadores e o bairro” é ao mesmo tempo um capítulo de clímax dos movimentos sociais e um capítulo de síntese de múltiplas determinações, que reincorpora os diversos elementos analisados em capítulos precedentes para dar conta do desfecho na metade dos anos 1960. Aqui o autor analisa o movimento das Sociedades de Amigos do Bairro, assim como três tentativas de autonomização do distrito em novo município, independente de São Paulo. A empresa Nitro aparece novamente, seu poder político sobre o bairro sendo alvo dos movimentos de autonomização (autonomia não só em relação a São Paulo, mas em oposição à Nitro). Isso se completa com a análise do que precede localmente o golpe de 1964, da crise da Nitro Química e das demissões de 1966, abalando definitivamente o caráter monoindustrial do bairro.12

Um Nordeste em São Paulo é assim um livro síntese de um novo padrão de análise, no sentido de que contém em si próprio as contribuições de gerações anteriores apropriadas e transformadas, e ao mesmo tempo o ímpeto das novas gerações de historiadores e cientistas sociais investindo no desvendamento da história social e cultural das classes trabalhadoras ou das relações que entretêm com outras classes e grupos sociais, não só nos grandes eventos, mas também no seu cotidiano.13 O livro traz assim novas contribuições para a história social das classes populares, com o trabalho perspicaz sobre fontes as mais diversas, colocando em novos termos os temas cruciais de décadas passadas sobre os operários de origem rural e sobre a grande migração de nordestinos para São Paulo.

José Sérgio Leite Lopes – Professor associado 2 do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ (jsergiollopes@gmail.com).