O Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte como fonte de pesquisa da cidade | Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte | 2021

O Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte como fonte de pesquisa da cidade. Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte, v.8, dez. 2021. Acesso somente pelo link original.

 

Processos judiciais como fonte para o historiador / Revista de Fontes / 2014

Os processos judiciais tem sido uma fonte praticamente inesgotável para os historiadores desde há muito tempo. Ao menos desde que a história passou a ser contada não apenas com grandes personagens e heróis, com a definitiva entrada em cena de novos agentes cuja abrangência social impôs a necessidade de buscar suas pistas, trajetórias e formas de ação e pensamento em uma maior multiplicidade de resquícios do passado. Não há dúvida que, com isso, ganhou a realidade histórica uma dimensão mais humana, marcada por conflitos, tensões e / ou acomodações nos seus vários níveis, e seu conhecimento com novos problemas e perspectivas de análise. O dossiê que ora se apresenta pretende revisitar, aqui, algumas dessas perspectivas tendo em vista dois pontos de discussão que consideramos de fundamental importância quando falamos hoje de processos: sua dimensão institucional e a necessidade de se pensar a justiça para além do espaço propriamente judicial.

Quanto ao primeiro ponto de discussão, não se pode negar o impacto profundo e positivo que houve na historiografia, ao menos no Brasil, com o estudo dos casos de litígios na justiça, sobretudo criminais, para se entender a vida social com a inclusão das categorias que outrora se classificava de “subalternas” – pobres, escravos, libertos, etc. – como sujeitos ativos de sua própria história.

Assim, convém destacar que a normatividade a que dá corpo este tipo de fonte não tem, recentemente, passado despercebida, como os textos aqui apresentados expressam. Ao contrário, a análise institucional de funcionamento dos órgãos, tribunais e seus agentes, que há poucos anos poderia cheirar a uma história de tipo tradicional, com uma dimensão administrativa identificada com um caráter oficioso, gerando certa ojeriza a muitos dos dedicados a nosso ofício, tem se revelado fundamental. Não como pastiche, como um arrazoado vazio de normas e regulamentos, mas sim enquanto uma cultura de práticas, ritos e formas que revelam não só o que punir, mas como fazê-lo, bem como o que deve ser perdoado e mesmo valorizado em uma verdadeira gramática social.

A contribuição de Alejandro Agüero caminha por essas sendas, ao mostrar como o pensamento social impactava nas práticas da cultura jurídica hispânica, a partir do exemplo da mais distante periferia da estrutura judicial do império espanhol, sem que essas práticas fossem exclusivas desse contexto periférico.

Em relação aos estudos sobre a justiça propriamente dita, além da percepção e análise de suas várias instâncias como extremamente importantes, impõe-se cada vez mais a ampliação de seu entendimento para espaços de resolução de conflitos além dos que mais tradicionalmente interessam à História do Direito moderno (os foros criminal e civil). O artigo de Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz mostra, nesse sentido, a incrível potencialidade dos arquivos dos tribunais episcopais para uma visão mais ampla da realidade múltipla dos foros de uma sociedade estamental.

É verdade que, para o caso particular do que se convencionou chamar de Antigo Regime, a justiça estava na base da concepção social que se traduzia nas mais distintas formas de manutenção da ordem. Nessa sociedade, o rei seria o supremo provedor dos distintos corpos, concebidos como desiguais por natureza. Este papel do soberano se expressava na concepção de administração – profundamente manipulada por autoridades dotadas de jurisdição, ou seja, de poder de julgar -, na pluralidade de tribunais específicos que muitas vezes se sobrepunham em suas funções com outros; e também nos diferentes meios de ascensão social, que também se valiam de procedimentos processuais, ou seja, da justiça. Esse papel da justiça como meio de legitimação social e assim também de mobilidade, é perceptível na contribuição de Aldair Rodrigues que analisa as potencialidades para a História d os processos de habilitação ao sacerdócio e à familiatura do Santo Ofício no caso luso-brasileiro.

No entanto, a validade de se pensar a abrangência da justiça e dos processos para resolução de tensões políticas e sociais não se esgota até hoje, mesmo com a ruptura constitucional e a formação dos novos Estados liberais no século XIX, que pretenderam circunscrever o espaço da justiça como um dos seus poderes. O que fica especialmente evidente na concepção que a Constituição deveria ser a norma (o “código dos códigos”) que vincularia todas as outras, numa chave bem distinta do pluralismo jurídico predominante no paradigma anterior, em que as infrações à Carta passariam a ser delitos que deveriam ser processados. É assim que, num marco temporal bastante atual, Andrei Koerner analisa os processos de ação direta de inconstitucionalidade (ADI) após a Constituição de 1988, no contexto das decisões do Tribunal sobre o tema, detalhando os argumentos dos ministros e as implicações jurídicas e políticas da decisão.

Do ponto de vista metodológico, é evidente que, como toda fonte, os processos devem ser manejados como extremo cuidado e compreendidos dentro do quadro cultural e institucional em que foram produzidos. A contribuição de Bruno Feitler ao dossiê propõe-se a tratar dessa questão tendo como horizonte os debates existentes em torno dos processos-crime da Inquisição portuguesa.

Os artigos aqui reunidos – apresentados na “Primeira jornada de fontes do departamento de História da Unifesp”, realizada no dia 3 de dezembro de 2012 – não são mais do que alguns exemplos da grande potencialidade que os processos judiciais têm para as Ciências Sociais (em particular para a História), e procuram, assim, incentivar o estudo desse tipo de documento em suas mais variadas e múltiplas formas.

Andréa Slemian – Universidade Federal de São Paulo. E-mail: slemian@terra.com.br

Bruno Feitler – Universidade Federal de São Paulo / CNPq. E-mail: brunofeitler@gmail.com


SLEMIAN, Andréa; FEITLER, Bruno. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.1, n.1, 2014. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê