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Flores, votos e balas – ALONSO (RH-SP) Tornando-se livre – MACHADO e CASTILHO (RH-USP)
ALONSO, Ângela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868 – 1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 529p. Resenha de: MACHADO, Maria Helena P. T.; CASTILHO, Celso Thomas(org.). Tornando-se livre. Agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015. 480p. Resenha de: SALLES, Ricardo. A abolição revisitada: entre continuidades e rupturas. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
O objetivo dessa resenha é apresentar, nos limites desse formato, uma apreciação crítica de duas obras recentes que recolocaram, em termos gerais, a abolição da escravidão no Brasil como tema de peso da história e da historiografia brasileiras.
A abolição da escravidão foi um fato central da história brasileira. Comparável à Independência, à Proclamação da República e à Revolução de 1930. Na verdade, nenhum destes três últimos eventos teve semelhante impacto transformador da vida social. A Abolição destruiu uma instituição e uma prática centenárias que moldaram a história, a sociedade, a política e a cultura brasileiras. A escravidão moldou a colônia por praticamente três séculos, mas também esteve na base da construção do Estado e da nação por 80 anos – se tomarmos como marco dessa construção a vinda da família real em 1808 – e, mesmo depois de mais de um século de sua extinção, ainda lança seus efeitos sobre os dias de hoje. Na época de sua abolição, a escravidão ainda estava no centro dos interesses da classe dominante do Império e, apesar do relato estabelecido em contrário, há muito desmentido pela historiografia, não era vista como um obstáculo central pelos novos grupos de proprietários rurais que emergiam no oeste paulista. Com tudo isso, é evidente que o processo histórico de derrubada – a Abolição – também deva merecer uma grande atenção por parte de historiadores. O que foi a Abolição? Quando começou? Foi um movimento conscientemente deflagrado? Por quem? Quando? Com quais objetivos mais específicos, além do genérico fim da escravidão? Quais seus êxitos e fracassos? Quais foram suas principais fases? Quem foram seus principais sujeitos históricos? Qual seu legado?
Muitas dessas perguntas foram formuladas nas décadas que se seguiram à Abolição e à Proclamação da República. Com a consolidação da República oligárquica e sua crise dos anos 1920, essas perguntas sobre a abolição diluíram-se em questionamentos mais abrangentes sobre a formação do Brasil e, eventualmente, sobre o lugar da escravidão em geral nessa formação. No final dos anos 1960 e início da década seguinte, contudo, as perguntas sobre a abolição voltaram a ser formuladas por historiadores, em especial por dois brasilianistas. São de 1972 as duas grandes histórias da abolição brasileira: The destruction of Brazilian slavery, de Robert Conrad, publicada em português em 1975, com o título de Os últimos anos da escravatura no Brasil, e The abolition of slavery in Brazil, de Robert Toplin, infelizmente, nunca traduzido. Em 1988, por ocasião do centenário da Abolição, Emilia Viotti da Costa que, em 1966, havia publicado Da senzala à colônia, trabalho mais abrangente sobre a escravidão e sua crise no século XIX, publicou A Abolição, pequeno livro de síntese e divulgação.
Tais obras, entretanto, não frutificaram. É certo que, desde os anos de 1980, com a multiplicação dos programas de pós-graduação, particularmente em História, uma quantidade imensa de dissertações de mestrado e teses de doutorado foi produzida sobre o assunto, muitas delas ganhando, posteriormente, a forma de livros. A maioria esmagadora dessas investigações foi e continua sendo de caráter monográfico, sobre aspectos particulares da escravidão ou mesmo sobre o evento de sua abolição, nesta ou naquela região, sob este ou aquele ponto de vista. Tais abordagens são muito importantes e ajudam a levantar novas questões, esclarecer temas e aspectos negligenciados. O lugar e o papel das lutas de escravos e libertos no processo de abolição foram a dimensão mais ressaltada em contraposição a uma historiografia mais estrutural da escravidão e da abolição, mais característica da década de 1960.
As duas obras aqui resenhadas buscam escapar dessa fragmentação historiográfica e só por isso já seriam muito bem-vindas. O livro de Ângela Alonso – Flores, votos e balas – é explicitamente uma síntese histórica e uma interpretação de conjunto. Por isso servirá como eixo desta resenha. Tornando-se livres é uma coletânea organizada por Maria Helena P. T. Machado e Celso Thomas Castilho que, em parte, baseia-se e tem como ponto de partida a mesma fragmentação temática acima apontada. Entretanto, em seu título e em alguns capítulos específicos busca também uma interpretação abrangente, ainda que não uma síntese, dos acontecimentos que marcaram a abolição da escravidão no Brasil. Por isso, serão estes os capítulos e a tese expressada pelo título da obra que serão avaliados com vagar nessa resenha.1
Tornando-se livre, de uma maneira geral, ressalta o papel do escravo – e também do liberto – como elemento ativo na sociedade escravista e, eventualmente, na moldagem de um clima de deslegitimação da escravidão, que se pode perceber principalmente a partir da segunda metade da década de 1860. É verdade que essa deslegitimação foi proveniente de eventos mais amplos, que não foram deflagrados pela participação ativa dos cativos e que não merecem uma atenção maior por parte dos autores da obra. Em primeiro lugar, foi efeito do desfecho da Guerra da Secessão (1861-1865) e da consequente percepção, por parte do imperador e de alguns de seus estadistas, de que o Brasil estava agora isolado no cenário internacional como nação escravista. Em segundo lugar, cabe ressaltar que a libertação de escravos para seu recrutamento para a guerra com o Paraguai tornou evidente a fragilidade das bases sociais do Império, em época de crescente mobilização nacionalista. Mesmo assim, o pleno significado desses eventos é incompleto caso não se leve em conta o lugar e o papel dos escravos, libertos e suas lutas naquela sociedade, e é principalmente disso que os 21 capítulos da obra tratam. O livro é dividido em quatro partes. A primeira – “Disputando liberdades” – aborda as lutas de “homens e mulheres escravos, libertos e libertandos em busca da aquisição da liberdade”, problematizando “os horizontes dessa almejada liberdade no contexto da escravidão e de seu afrouxamento na segunda metade do século XIX, sobretudo a partir de 1870” (p. 13). A segunda parte – “Disputando liberdades: histórias de mulheres com seus filhos” – retoma o tema “do acesso à liberdade e à autonomia,” enfocando o papel das escravas e libertandas como mulheres e mães (p. 14). Os capítulos da terceira parte – “Mobilização: dimensões e prática” – abordam a questão dos movimentos emancipacionistas e abolicionistas da segunda metade do século XIX e do pós-abolição, com o objetivo “de aproximar a movimentação em torno da abolição aos movimentos sociais deste período e dos seguintes, propondo elos e continuidades” (idem). A última parte – “Abolição em dimensão transnacional” – reúne textos que refletem sobre a “questão ainda pouco explorada por nossa historiografia, que é a dimensão internacional e atlântica do processo da abolição da escravatura no Brasil” (p. 15).
Já no que diz respeito a Flores, votos e balas, seu ponto forte é o destaque dado ao papel dos ativistas abolicionistas na formação, estruturação, desenvolvimento e direção do abolicionismo em quatro conjunturas que a autora distingue no movimento pela abolição: a conjuntura pré-Lei do Ventre Livre, a partir de meados da década de 1860; a ascensão do partido Liberal em 1878; o gabinete Dantas, de junho 1884 a maio do ano seguinte; e o gabinete Cotegipe, de 1885 a 1888. Essas diferentes conjunturas, por sua vez, corresponderiam a três fases do abolicionismo brasileiro expressas no título do livro, que operou inicialmente no espaço público: momento das flores, na esfera político-institucional; momento dos votos; e, na clandestinidade, momento das balas (p. 19).
Tanto Flores, votos e balas quanto a maior parte dos capítulos de Tornando-se livres acentuam as continuidades entre o que seriam lutas, movimentos e iniciativas abolicionistas ou contra a escravidão antes de 1879, especialmente a partir da metade da década de 1860, e depois dessa data. Este ano (1879) é tomado por muitos, entre eles o autor dessa resenha, como marco inicial do movimento abolicionista, em contraposição ao que se convencionou chamar de emancipacionismo. Foi nele que o deputado liberal Jerônimo Sodré proferiu seu discurso no Parlamento demandando a abolição, pura e simplesmente, da escravidão. A demanda ecoava, é certo, outras vozes na imprensa e na sociedade civil que se manifestavam pelo mesmo objetivo. Contudo, as iniciativas e lutas anteriores que de alguma forma golpearam a escravidão, como a proibição efetiva do tráfico internacional de escravos, a lei de 28 de setembro de 1871, que declarou livre o ventre da mulher escrava, a ação de associações civis que promoviam a alforria de cativos, as ações judiciais impetradas pela libertação de escravos – as ações de liberdade – e as próprias lutas e revoltas de escravos, tanto individuais quanto coletivas, não haviam, até então, colocado explicitamente no horizonte político imediato a questão da abolição. Esta era vislumbrada em futuro não predizível e seria conseguida de uma forma ou de outra, pelo acúmulo de efeitos dessas leis, das ações de alforria e liberdade, das lutas e revoltas escravas. O discurso de Sodré desdobrou-se imediatamente em apoios e, em um crescendo, ganhou mais nitidez – abolição imediata e sem indenizações – transformando-se em um movimento político e social que resultaria vitorioso nove anos mais tarde.
Entretanto, nenhuma das duas obras coloca grande ênfase nessa novidade. Essa é a tese explícita de Flores, votos e balas e é também a tese esgrimida em mais de um dos capítulos de Tornando-se livres. Para ambos os livros, haveria uma continuidade entre antes e depois de 1879. Ângela Alonso assinala que essa continuidade existiria entre o que ela designa como abolicionismo de elite, característico das décadas de 1860 e 1870, e abolicionismo como movimento social, marca da década de 1880. A corroboração da tese vem pelo acompanhamento de algumas lideranças abolicionistas com atuação expressiva nos dois momentos, entre eles e principalmente, André Rebouças, mas também, como veremos abaixo, Abílio César Borges, educador e ativista abolicionista de segunda grandeza, se é que assim se pode considerá-lo.
Em Tornando-se livres, como colocado na apresentação do volume assinada pelos organizadores, a continuidade seria dada pelas experiências de busca de liberdade. Essas experiências, muitas vezes precárias e provisórias, principalmente na segunda metade do século XIX, “fizeram parte de um grande esforço social que redundou no processo de abolição” e que ainda se estendeu ao período da pós-abolição (p. 11-12). Para os autores, mesmo que as lutas de escravos, libertos e libertandos e os movimentos sociais da abolição não tenham andado sempre juntos, “a movimentação da abolição deve ser compreendida em sua ligação profunda com a realidade das senzalas e dos esforços dos escravos e dos pobres em geral de se livrarem do cativeiro e suas mazelas” (p. 14-15). No primeiro capítulo, intitulado “Da abolição ao pós-emancipação: ensaiando alguns caminhos para outros percursos”, assinado por Flávio Gomes e Maria Helena P. T. Machado e que funciona como uma espécie de direção geral da obra, essa perspectiva fica ainda mais explicitada. O capítulo visa destacar as possibilidades de se estabelecer as conexões analíticas entre expectativas e percepções de liberdade e autonomia por parte de escravos, roceiros, quilombolas e forros, antes e depois da abolição. Os anseios de escravos e libertos “em busca de autonomia e liberdade” integrariam um amplo movimento social que circundou a abolição no Brasil. Assim, os autores querem apontar as possíveis conexões analíticas “entre movimentos abolicionistas e atuação de escravos, libertandos e libertos, como partes integrantes de um amplo movimento social e político de superação da escravidão” (p. 20). Reconhecendo que a palavra “abolicionismo” adquiriu uso mais extensivo na década de 1880, em detrimento de “emancipacionismo”, mais comum até aquele momento, os estudos sobre a abolição teriam supervalorizado esse momento, assim como os espaços urbanos, os debates parlamentares e a imprensa. Os estudos sobre escravidão, abolição e pós-emancipação sofreriam, até hoje, de uma segmentação, resultando em narrativas lineares desses fenômenos. No caso específico da abolição, essas narrativas reduziriam em demasia os recortes e os atores, “aprisionando suas análises no espaço urbano e na última década da escravidão” (p. 19-20).
Tal perspectiva tem o mérito de salientar a importância do contexto das lutas e atuações sociais de escravos, libertos e livres para a compreensão mais geral do momento abolicionista. Mas a afirmação permanece em um plano genérico. Lutas e atuações de escravos, libertos e livres sempre existiram na sociedade escravista brasileira, tanto ao longo da história colonial quanto no decorrer da história imperial. Em que momento e como essas lutas e atuações influíram ou incidiram na formação de um movimento abolicionista? Toda a busca por liberdade, em uma sociedade escravista como a brasileira que comportava a alforria e a inserção social, econômica, cultural, jurídica e política do liberto, integrava “um amplo movimento social e político de superação da escravidão”? A permanência e a força históricas da escravidão brasileira atestam que não. Em que momento, por quais razões e como a liberdade deixou de ser uma condição individual de não ser mais escravo, e de eventualmente poder mesmo usufruir do direito de ser proprietário de escravos, para se tornar uma condição social, jurídica e política frontalmente contraposta à existência de qualquer escravidão? Inversamente, é preciso esclarecer como as lutas políticas abolicionistas ressignificaram, condensando, repercutindo, amplificando, as lutas de escravos, livres e libertos. Essa é uma questão de fundo que não pode ser enfrentada somente pela multiplicação e enumeração de “casos” de embates particulares entre senhores e o Estado, de um lado, e escravos, libertos e livres, de outro. Da mesma forma, se o movimento abolicionista não pode ser completamente seccionado das propostas anteriores, genericamente designadas como emancipacionismo, de abolição em um futuro incerto, de forma gradual e preservando os direitos de propriedade, não pode, tampouco, ser confundido com elas. O preço é uma diluição da singularidade da luta abolicionista, ao mesmo tempo em que não fica claro em que, e se é que, “as expectativas e percepções de liberdade e autonomia” da população escrava, liberta e livre seria diferente, no período da abolição, das expectativas de liberdade e autonomia que tinham antes.
Flores, votos e balas dá grande ênfase à movimentação abolicionista. Em uma nota à apresentação do livro, Ângela Alonso explicita o que ele traz de novidade em relação a uma longa série de obras anteriores sobre a abolição da escravidão no Brasil: uma visão de conjunto da mobilização abolicionista, considerando a dinâmica intra e extraparlamentar, a partir de sua periodização própria, salientando quatro conjunturas. Em termos metodológicos, seu levantamento sistemático das associações abolicionistas e eventos de mobilização a partir de notícias de imprensa também é original. Finalmente, haveria ainda o papel destacado por ela conferido à organização política do “contramovimento”, em oposição aos abolicionistas, que teria um papel importante “para a intelecção das estratégias abolicionista” (p. 373-4). No decorrer do livro, as lutas escravas só aparecem na conjuntura de acirramento do movimento abolicionista, no penúltimo capítulo, quando a autora, seguindo definição de sua principal referência teórica, o sociólogo norte-americano Charles Tilly, vê o ano de 1887 como uma situação revolucionária. Se é verdade que, neste ano, a situação desandou de vez, com a desorganização da produção e o caos social instaurado pelas fugas e rebeliões escravas, muitas delas incentivadas ou acobertadas pelos abolicionistas, é fato também que agitações entre escravos, variando dos casos de rebeldia individual, fugas, assassinatos de proprietários e seus feitores e capatazes a fugas e movimentações coletivas, intensificavam-se desde pelo menos 1882.
Aqui, a crítica a ser feita é quase inversa àquela em relação a Tornando-se livres. O papel de escravos e libertos na luta contra a escravidão surge quase como um subproduto do movimento abolicionista. Essas lutas não têm passado, tradições e condicionamentos socioeconômicos e culturais particulares, tanto aqueles inseridos em sua longa duração, remontando ao período colonial, quanto aqueles mais específicos, característicos de sua reconfiguração e expansão no período imperial. Ângela Alonso detém-se sobre a escravidão do XIX, mas o faz em busca dos fundamentos de uma retórica de defesa da escravidão que remontaria, por sua vez, a linhagens de defesa da instituição identificadas por David Brion Davis no pensamento ocidental. Aqui a escravidão não teria as mesmas características de racialização presentes na sociedade estadunidense. Em uma “sociedade aristocrática, a estratificação estamental garantia a ordem sem exigir argumentos raciais explícitos, embora nem por isso ausentes” (p. 57-8), e “era a base de um estilo de vida, compartilhado por todo o estamento senhorial, cujos eflúvios se espalhavam pela sociedade em círculos concêntricos, como pedra na água” (p. 53). Essa situação, por sua vez, propiciava uma argumentação de defesa da escravidão caracterizada pela autora como “escravismo de circunstância”, uma defesa enrustida, não racializada e justificada pelas condições específicas da economia nacional (p. 56 e ss.).
Essa linha de defesa da escravidão teve como campeão Paulino José Soares de Sousa, filho homônimo do visconde do Uruguai. Não há espaço aqui para debater essa ideia de escravismo de circunstância, fundamentado em uma sociedade aristocrática e estamental. É fato que a defesa da escravidão no Brasil seguiu uma linha de argumentação principal que a considerava um mal necessário, uma necessidade histórica, prescindindo ou minimizando sua defesa moral ou abrigada em razões raciais, tidas então como científicas. Já o argumento de que essa linha de defesa correspondia a uma sociedade estamental e aristocrática parece mais problemático. A aristocracia brasileira era meritocrática e não hereditária, não correspondendo, assim, a uma sociedade estamental. Por outro lado, uma linha de defesa mais pragmática que programática da escravidão era mais adequada ao caráter elástico da escravidão brasileira, como notou Joaquim Nabuco em O abolicionismo. A escravidão aqui estava presente em todos os cantos do território nacional, tanto no campo quanto nas cidades. Era um privilégio que podia se estender, e muitas vezes se estendia, a pequenos proprietários rurais e a setores médios e remediados nas cidades. Era um privilégio de brancos, mas podia abarcar – e às vezes abarcava – mestiços e negros, dos quais muitos tinham acabado de adquirir sua própria liberdade.
Flores, votos e balas compartilha a tese da continuidade entre o abolicionismo em sua fase do que se convencionou chamar de emancipacionismo e sua fase propriamente abolicionista, ainda que não calcada, como em Tornando-se livres, nas lutas de escravos e libertos. Ela assinala, é certo, a incidência dessas lutas, mas somente a partir de 1883 e sob o estímulo direto do movimento abolicionista, que então ingressava em sua fase de “balas”. Para Ângela Alonso, essa continuidade viria pela indistinção entre as propostas emancipacionistas e aquelas abolicionistas, corroborada pelo protagonismo de determinadas lideranças em ambos os momentos. Para tanto, ela acompanha as figuras de André Rebouças, um dos “papas” da luta pela abolição, e o menos conhecido educador Abílio César Borges. A tese é problemática. É verdade que Rebouças já batalhava pela abolição, mais como um objetivo vago, a ser alcançado por reformas, antes mesmo do movimento abolicionista ganhar seu contorno de luta pela abolição imediata, o que ocorreu a partir de 1879. Entretanto, essa continuidade do personagem não autoriza a interpretação da continuidade do movimento. A partir de 1879, Rebouças lançou-se resolutamente na luta pela abolição imediata e sem indenizações, distinguindo – assim como outros abolicionistas – essa nova luta das bandeiras emancipacionistas de abolição gradual que haviam culminado na lei de 1871. No final da década de 1870, estava claro que o emancipacionismo era insuficiente, com o fim da escravidão previsto para um futuro distante e indeterminado, além de deixar intacto o poder da “landocracia”, termo que ele utilizava para designar o poder dos grandes senhores de escravos e de terras que deveria ser quebrado. Rebouças era o mesmo, mas suas opiniões e práticas haviam mudado radicalmente.
No caso de Abílio Borges, enxergar neste personagem continuidades em uma pretensa cruzada abolicionista é ainda mais complicado. É verdade que ele considerava que a escravidão deveria ser extinta a bem do futuro da nação, e também que foi um dos fundadores, em 1869, da Sociedade Libertadora Sete de Setembro na Bahia. Entretanto, no capítulo do livro Tornando-se livres, de Ricardo Tadeu Caires Silva, que trata da mesma Sociedade Libertadora Sete de Setembro, ficamos conhecendo como pensava o dr. Abílio Borges. Em carta de 1870 a um correligionário, ele considerava que a substituição do trabalho escravo pela via da colonização só seria feita muito lentamente, por meio de uma lei do ventre livre. Os que tivessem nascido escravos que se sujeitassem à lei do seu destino, “porque a libertação em massa, além de não ser um bem para os próprios escravos, seria para o Brasil um mal imenso e de consequências funestíssimas” (citação à p. 304). Nada mais distante do ideário abolicionista que começa a ser construído em 1879, pregando a abolição imediata, sem indenizações, acompanhada pela destruição da “obra da escravidão”, com a distribuição de terras para os antigos escravos e seus descendentes e a tributação do latifúndio. Do ponto de vista das “formas de luta”, se é que assim se pode chamar as ações de compras de alforrias por sociedades emancipadoras, a mudança também foi radical. A atuação dessas sociedades e de novas que surgiram continuou, mas estas passaram a conviver com outras manifestações, ações e entidades, essas sim de luta, que demandavam a abolição imediata, e que acobertavam – quando não promoviam – fugas de escravos.
Essa radicalidade e essa novidade do movimento abolicionista são percebidas e valorizadas por Cláudia Santos em seu capítulo de Tornando-se livre, intitulado “Na rua, nos jornais e na tribuna: a Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro antes e depois da abolição”. A partir da década de 1880, teria surgido um novo ativismo político conflitante com as estruturas dominantes do Império. A Confederação Abolicionista, fundada em 1883, teve um protagonismo destacado na conformação deste novo ativismo. De modo mais amplo, o movimento abolicionista foi um marco desse processo “não apenas porque foi determinante para a extinção da escravatura, mas porque organizou um novo tipo de atuação política, estruturada em torno da participação dos setores populares, da imprensa, das associações e dos meetings” (p. 338).
A importância das associações no abolicionismo é dos pontos centrais da argumentação de Ângela Alonso. Para a autora, haveria uma constante e crescente fundação de sociedades emancipadoras entre 1850 e 1888. Essa constatação é feita pelo levantamento na imprensa, no que é um dos pontos fortes de seu livro. De modo distinto de Cláudia Santos, esse fenômeno seria uma outra indicação da continuidade da mobilização pela abolição ao longo desse extenso período. É certo que a multiplicação de associações beneficentes e corporativas, e não apenas das destinadas a promover emancipação de cativos, foi uma característica geral da segunda metade do nosso século XIX. Entretanto, pelos próprios dados levantados, o que se nota é que, até 1869, a fundação dessas entidades foi esporádica. Fundaram-se duas em 1850 e outra em 1852. Apenas em 1857 uma nova associação foi fundada, assim como em 1859, 1860, 1864 e 1867. Somente em 1869 esse patamar deu um salto, com a fundação de sete associações emancipadoras, seguidas por 11 no ano seguinte. O número voltou a cair na sequência: cinco em 1871, três em 1872, uma por ano em 1873, 1874, 1877 e 1878. Em 1879, o número subiu com a fundação de três entidades, dando um salto nos quatro anos seguintes: 10 em 1880, 23 em 1881, 19 em 1882, e 103 em 1883! Não sabemos quais as diferenças de propósito entre essas diversas associações e se alguma mudança significativa pode ser percebida a esse respeito a partir de um dado momento. O que, no entanto, transparece desses dados é uma clara mudança de patamar na mobilização que corresponde a determinados momentos da conjuntura política. Assim, as associações surgiram no ambiente de discussão da abolição definitiva do tráfico internacional de escravos em 1850. Patinaram na média de menos que uma associação por ano até 1868. Em 1869, quando se dava a discussão sobre a emancipação do ventre da mulher escrava no contexto da guerra do Paraguai e da pós-abolição nos Estados Unidos, houve um salto de patamar na quantidade de associações fundadas. Esse número, entretanto, minguou nos anos seguintes, até 1879, quando voltou a subir. Esse minguar parece corroborar a tese já defendida por alguns abolicionistas e corroborada por historiadores de hoje de que a Lei do Ventre Livre apaziguou o que poderia ter sido um incipiente movimento abolicionista no Brasil. A fundação de 10 associações em 1880 indica, claramente, a propagação do movimento abolicionista, e não mais apenas pela emancipação por ações individuais, de caráter privado ou associativo, dentro dos parâmetros definidos pela lei de 28 de setembro de 1871. Em 1883, como se leu acima, o movimento abolicionista simplesmente explodiu, com a fundação de mais de uma centena associações.
Tornando-se livres e Flores, voto e balas são, em certa medida, obras complementares; a primeira enfatizando as lutas populares de libertos e escravos, a segunda, o movimento abolicionista como movimento social de caráter político. Essa é, no entanto, uma complementaridade por justaposição. Importante, sem dúvida, mas que ainda não compõe uma narrativa que mostre como, a partir de quando principalmente e em que medida as resistências e lutas escravas, o movimento social abolicionista e o movimento político se interpenetraram. A partir de perspectivas que, em larga medida, isolam essas dimensões, os dois livros propõem-se a realizar uma interpretação da Abolição. De forma mais explícita e integrada no caso de Flores, votos e balas, obra autoral, e como norte interpretativo mais geral, que guiou a organização do trabalho e a escolha dos autores em Tornando-se livres. Nesse sentido, são um grande passo na direção de ampliar as discussões sobre o significado da Abolição. As críticas aqui expostas não apontam falhas nas obras consideradas; são críticas de interpretação. Dessa forma, vêm no sentido de enriquecer o debate que Flores, votos e balas e Tornando-se livres, em boa hora, reabrem.
1Essa escolha não implica em qualquer juízo de valor sobre a qualidade dos capítulos omitidos, apenas a avaliação, evidentemente sempre sujeita a contestações, de que esses capítulos são menos sujeitos à comparação aqui proposta entre as duas obras.
Ricardo Salles – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. E-mail: ricardohsalles@gmail.com.
Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888)
A publicação de Flores, votos e balas, de Angela Alonso, é mais do que bem vinda ao mercado editorial brasileiro, tão escasso de títulos com perspectivas historiográficas abrangentes. Seu amplo escopo, sua variação de escalas e sua escrita envolvente certamente o tornarão uma obra referencial para o público mais geral, interessado em conhecer em detalhes os conflitos, os projetos, os personagens, as estratégias de luta e os principais eventos que, reunidos, marcaram o movimento abolicionista brasileiro, elemento central do processo que levou ao fim da escravidão no país. A fortuna crítica do livro, no entanto, não se esgotará aí, já que alguns de seus postulados deverão propiciar a retomada de um dos grandes debates da historiografia brasileira, que versa sobre as causas que levaram ao fim do cativeiro em 1888, e podem suscitar um profícuo diálogo sobre a temporalidade da escravidão oitocentista no país.
Antes de entrar nessas questões, convém primeiro apresentar os pressupostos que estruturam a obra, fundamentais para entender seu argumento. Por meio de uma estratégia narrativa que parte das trajetórias individuais dos principais nomes do abolicionismo e do escravismo nacional, Angela Alonso buscou fornecer uma visão de conjunto do primeiro movimento social de massas do país. Para isso, recorreu à chamada “abordagem relacional”, ancorada principalmente na sociologia histórica de Charles Tilly, para postular que a compreensão do abolicionismo deve levar em conta três variáveis históricas: movimento social, Estado e contramovimento. Isso, em outras palavras, significa dizer que a atuação dos abolicionistas não é tomada de forma isolada, mas sempre com base nas dinâmicas sociais e políticas que a condicionam.[1] Nas palavras de Alonso, “as conjunturas políticas são a chave para entender […] todas as […] táticas abolicionistas” (p. 18). A proposição não é de pouca monta. Além de ir na contracorrente de boa parte dos estudos sobre abolição produzidos nas últimas décadas, que reduzem as múltiplas dimensões do processo histórico ao sequenciamento de séries judiciais, ela traz implicações diretas para as conclusões apresentadas pela autora.
Ao tomar a luta organizada para dar fim ao cativeiro como parte de um todo mais amplo, um dos principais ganhos historiográficos de Flores, votos e balas é demonstrar a historicidade do movimento abolicionista brasileiro, tradicionalmente descrito como uma unidade estanque, que se alastrou progressivamente pela sociedade até alcançar seus objetivos. Do emprego da abordagem relacional, portanto, decorre diretamente uma das ideias centrais do livro, a de que a atuação do movimento abolicionista foi constituída por três fases distintas: a primeira, das flores (1868-78), marcada pela forte atuação dos antiescravistas no espaço público dos grandes centros urbanos do país; a segunda, dos votos (1878-85), na qual o foco dos militantes recaiu sobre a macropolítica imperial; e a terceira, das balas (1885-88), quando os abolicionistas, cansados dos seguidos fracassos parlamentares, partiram para a desobediência civil e passaram a incentivar clandestinamente as fugas em massa de cativos. Nesse ponto, não há o que discordar. Os argumentos da autora são mais do que convincentes quanto à historicidade do abolicionismo.
Mas nem só de flores é feito o livro. Sua outra ideia central, que diz respeito à importância do abolicionismo para o fim da escravidão, é mais discutível que a anterior. Segundo Angela Alonso, o resultado obtido em 1888 não “foi nem obra dos escravos, nem de princesa” (p. 17) e – poderíamos acrescentar, de acordo com outras passagens do livro – nem fruto de condições econômico-demográficas, mas resultou diretamente da atuação de André Rebouças, Joaquim Nabuco, Luís Gama, José do Patrocínio e companhia. Com essa abordagem, a autora se afasta da interpretação que vincula o fim da escravidão às ações da família real, da explicação mais estruturalista da Escola de São Paulo (especialmente da obra de Emília Viotti da Costa) e de parte da corrente historiográfica que focou suas análises na agência escrava; e, assim, afina-se às concepções de Seymour Drescher e outros autores sobre o abolicionismo anglo-saxão como motor da história da emancipação dos cativos. O postulado, no entanto, acaba funcionando como uma faca de dois gumes: de um lado, reintroduz o movimento abolicionista como uma das variáveis centrais para a compreensão do processo que levou ao fim do cativeiro no país, cobrindo uma importante lacuna deixada pelas produções das últimas quatro décadas; de outro, joga de escanteio a participação dos escravos e as transformações econômicas e demográficas ocorridas nas últimas décadas do Império, ambas pouco incorporadas ao livro.
Vejamos como isso ocorre ao longo da obra, começando pelo problema da participação dos escravos. Como se sabe, um dos grandes avanços da história social consistiu em mostrar como a atuação dos cativos na década de 1880 teve impacto direto para a derrocada do sistema escravista brasileiro. Isso, no entanto, pouco aparece no livro de Angela Alonso, provavelmente porque a trinca de variáveis com as quais a autora trabalha (movimento, Estado e contramovimento) não leva em conta, por exemplo, a atuação dos cativos, agentes que não podem ser classificados nem como abolicionistas (movimento) e muito menos como escravistas (contramovimento). Assim, durante a fase das balas, as fugas em massa que atingiram principalmente as regiões cafeicultoras são vistas na maior parte do tempo como reflexo da militância antiescravista. Mesmo que a autora tenha feito questão de ressaltar que “o combate à escravidão não foi obra exclusiva dos abolicionistas” e que “havia ações autônomas dos escravos” (p. 305), essas dimensões não são efetivamente integradas à narrativa do livro.[2]
Algo semelhante acontece com as transformações econômicas e demográficas, igualmente relativizadas em função do emprego da abordagem relacional. Ao afirmar que “os fatores decisivos para que [a escravidão] acabasse quando acabou foram políticos” (p. 336) – seguindo indicação de Robert Slenes em artigo clássico3 -, Angela Alonso desconsidera evidências de ordem econômica e demográfica às quais ela mesma faz referência ao longo do livro. Isso ocorre, por exemplo, quando a autora analisa a ampliação do movimento abolicionista na década de 1880, que contou com um público “desvinculado da escravidão” por conta do “tráfico interprovincial [que] aglomerava escravos nas regiões de agricultura de exportação e nas famílias de posse” (p. 145); e quando explica a tática abolicionista de libertação dos cativos de determinadas províncias e cidades do país (especialmente p. 194, 213, 266). Ao contrário do que a autora defende, esses exemplos podem servir para refletir sobre o peso que as dimensões econômica e demográfica exerceram para o desfecho do processo abolicionista. Teriam sido essas variáveis tão relevantes quanto as ações dos sujeitos históricos? Ou ainda, como afirma a autora, a ação política teria sido preponderante sobre as outras duas?
Uma resposta pode ser dada analisando-se mais de perto a relação entre tráfico interprovincial e a estratégia abolicionista de suprimir a escravidão província por província. Para Angela Alonso, “demografia e economia tiveram sua relevância”, mas “não [são] suficientes” para explicar essa tática, pois nesse caso – como nos demais – “decisivo foi mesmo o fator político” (p. 194). Ora, a relevância da economia e da demografia são tão centrais quanto a da política para explicar o fim da escravidão em determinadas partes do Império, já que foi a dinâmica da economia mundial que criou as condições para a atuação dos militantes abolicionistas. Dois exemplos podem ajudar a explicar melhor o que queremos dizer.
O Ceará – primeiro território libertado pelos abolicionistas – foi uma das províncias brasileiras mais afetadas pela paralisação da produção algodoeira norte-americana que se seguiu à Guerra Civil (1861-1865). Na década de 1860, incentivados pela forte demanda da indústria britânica, ávida pela matéria-prima que lhe faltava, muitos pequenos e médios agricultores locais passaram a se dedicar ao cultivo da fibra, abandonando a produção de gêneros alimentícios. A crise do setor, contudo, chegou mais rápido do que se esperava. Incapazes de competir com os novos produtores que ditavam o preço do produto no mercado mundial (Índia e Egito) e cada vez mais prensados pela recuperação da produção norte-americana no início dos anos 1870, os cearenses foram aos poucos abandonando a cultura algodoeira. Em resultado, desfizeram-se paulatinamente de seus cativos, vendendo-os para os cafeicultores de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, necessitados de mão-de-obra para tocar a expansão de sua produção. No início dos anos 1880, em razão da dinâmica da economia global, eram poucos os cativos que restavam na província, abrindo o caminho para a formulação de uma política abolicionista local.[3]
No Rio Grande do Sul, outro processo histórico, mais lento, levou a resultados parecidos. Desde a revogação das Corn Laws, em 1846, os produtores de grãos argentinos souberam tirar proveito da abertura do mercado britânico de cerais, avançando suas fronteiras agrícolas. Para atender às crescentes demandas de trigo no centro da economia mundial e dar vazão aos grãos cultivados cada vez mais no interior do país, Estado e investidores privados fizeram investimentos maciços em transporte ferroviário a partir dos anos 1870. Com isso, conseguiram não apenas transformar a Argentina em um dos principais fornecedores de trigo para a Grã-Bretanha, mas também auxiliaram indiretamente os criadores de gado, que se valeram de toda infraestrutura criada para exportação de cereais, especialmente do barateamento do custo dos transportes, para tornarem seu produto mais competitivo. Na década de 1870, já era patente aos produtores rio-grandenses que seu charque não era capaz de concorrer com seus rivais argentinos, até mesmo no mercado interno. Em crise, desfizeram-se paulatinamente de seus escravos, vendendo-os para os pujantes centros produtores de café, os mesmos para os quais estavam rumando os escravos do Ceará. [5]
Sem as condições materiais criadas pela economia global, os abolicionistas teriam encontrado uma realidade muito diversa para livrar a província do Ceará, a cidade de Porto Alegre e outros municípios gaúchos da existência de escravos na década de 1880. Foi graças às crescentes desigualdades regionais do Brasil induzidas pela dinâmica econômica global que a militância deles se tornou viável e apareceu, como Alonso destaca, a figura dos presidentes de província favoráveis à causa, elemento importante para sacramentar a abolição nos territórios mencionados. Como se vê, é discutível afirmar, nesse caso, que a política foi um fator mais decisivo que os demais. Uma explicação que dê conta da totalidade da libertação de alguns territórios, assim como de todo o processo abolicionista, precisa trabalhar com as intersecções entre política e economia. Ainda que esse não tenha sido o propósito da autora, dado seu foco no movimento abolicionista, é forçoso dizer que ela poderia ter dialogado mais com a bibliografia que descreve os processos econômicos globais e seus impactos no Império do Brasil para situar melhor as possibilidades de atuação dos agentes históricos que estudou.
Ainda assim, o ponto mais questionável de Flores, votos e balas reside na categoria “escravismo de circunstância”, que Angela Alonso cunhou tendo por base uma leitura muito particular dos discursos emitidos pelos escravistas brasileiros. Para a autora, o termo descreve a atuação de Paulino Soares de Sousa e seu grupo a partir de 1871, quando teriam sido “compelidos pela conjuntura a justificar a situação escravista, sem defender a instituição em si” (p. 59). Tal afirmação, pode-se dizer, resulta de uma determinada compreensão da temporalidade da escravidão oitocentista brasileira. Como deixa evidente no primeiro capítulo, a autora, inspirada na obra de Seymour Drescher, entende a sequência de abolições ao redor do mundo como uma unidade histórica. Ainda que as enquadre em dois grandes ciclos – o primeiro, grosso modo, de 1791 a 1850, e o segundo da década de 1850 a 1888 -, essas abolições são descritas como pertencentes a um mesmo processo histórico de aproximadamente cem anos (p. 27-32). Essa perspectiva joga para um ponto cego diversos fenômenos históricos. Daí, provavelmente, o silêncio de Alonso sobre o período que vai de meados da década de 1830 à década de 1860, quando houve um reforço da escravidão tanto no Brasil, como em Cuba e nos Estados Unidos. Naquele lapso de tempo o cativeiro passou por uma nova configuração, atrelando-se de forma única à economia mundial e de forma diversa aos regimes representativos do século XIX. [6]
No Império do Brasil, o reforço da escravidão materializou-se com a ascensão do grupo conhecido como Regresso, núcleo histórico do futuro partido Conservador, que empreendeu uma verdadeira política da escravidão, estabelecendo alianças com proprietários e políticos das principais regiões de agricultura exportadora e atuando de forma conjunta no Parlamento e nos espaços públicos do Rio de Janeiro em aberta defesa do tráfico negreiro e do cativeiro. [7] Paulino Soares de Sousa, o filho, personagem que no livro de Angela Alonso sintetiza o “escravismo de circunstância”, foi o grande herdeiro da geração que havia ascendido nos escalões da macropolítica imperial defendendo a escravidão. Seu escravismo, portanto, não tinha nada de circunstancial. Representou, ao contrário, o ponto de chegada de uma vertente do liberalismo que buscou fazer frente ao projeto catapultado pela Grã-Bretanha de gerenciar a exploração social do trabalho por meio da liberdade individual. Paulino e seus seguidores protegiam com unhas e dentes o cativeiro como parte de um projeto civilizacional cuja estrutura residia na mais longa escravização possível de africanos e de seus descendentes. Tanto ele como a geração que o antecedeu costumavam projetar o fim da escravidão para um ponto futuro, desde que esse futuro fosse suficientemente longe da política do presente. Seu escravismo de linha do horizonte – vê-se o fim dele, mas ele nunca é alcançado – não era circunstancial. Encarnava a lógica da ideologia escravista imperial. Entender isso é, no fim das contas, compreender a temporalidade da escravidão brasileira no século XIX, elemento fundamental para avaliar de forma plena o abolicionismo que surgiu nos anos 1860.
É importante frisar que os aspectos discutidos acima não diminuem a importância do livro, que traz significativos avanços para a compreensão do processo abolicionista brasileiro. Entre eles, vale a pena mencionar a relação de Abílio Borges com a carta enviada pela Sociedade Francesa pela Abolição da Escravidão a D. Pedro II em 1866 (p. 34-43); a compreensão do movimento abolicionista como um movimento moderno por excelência (p. 20); o impacto da Guerra Civil norte-americana para a crise da escravidão brasileira (p. 31); e a preocupação com a escala global do abolicionismo e do escravismo nacionais, sempre vistos à luz de seus congêneres cubanos e norte-americanos (p. 103, 127, 291-93, 300, 305 e 327). Por todos esses motivos, Flores, votos e balas cravou lugar entre as leituras obrigatórias para aqueles que estão preocupados em compreender as variáveis históricas que conduziram ao fim da escravidão no Brasil. Concordando-se ou não com suas ideias, a obra precisará ser enfrentada pelos especialistas da área – apresentando ainda a vantagem de poder ser desfrutada pelo público mais geral.
Notas
1.A metodologia da obra é trabalhada de forma mais minuciosa em ALONSO, Angela. O movimento abolicionista como movimento social. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 100, nov. 2014,
2.A bibliografia sobre o tema é extensa. Ficam aqui as indicações de MACHADO, Maria Helena P T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-1888). 2ª edição. São Paulo: EDUSP, 2014; AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. São Paulo: Unicamp, 2010; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes de. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. 2ª edição. Campinas: Editora da Unicamp, 2008; e XAVIER, Regina Célia Lima. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. São Paulo: Centro de Memória/Editora da Unicamp, 1997.
3.SLENES, Robert W. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888. In: COSTA, Iraci del Nero da (ed.). Brasil: história econômica e demográfica. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1986, pp. 103-55.
4. Sobre o tema, ver CANABRAVA, Alice P. “A grande lavoura”. In: Sérgio Buarque de Holanda (org.). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico, vol. 6: Declínio e Queda do Império,pp. 103-66; BECKERT, Sven. Empire of Cotton: A Global History. New York: Alfred A. Knopf, 2014; e SLENES, Robert W. The Brazilian internal slave trade, 1850-1888: regional economies, slave experience, and the politics of a peculiar market. In: JOHNSON, Walter (ed.). The chattel principle: internal slave trades in the Americas.New Haven: Yale University Press, 2004, pp. 325-370. A título de curiosidade, vale lembrar que a biografia de João Capistrano de Abreu esteve estreitamente vinculada ao movimento descrito no parágrafo. O historiador era oriundo de família cearense que plantou algodão nos anos 1860, no contexto da Guerra Civil norte-americana, e vendeu seus escravos no decênio seguinte, quando a competição internacional se acirrou. Foi, inclusive, com o dinheiro da venda de um deles que Capistrano conseguiu pagar a passagem para o Rio de Janeiro e tentar a sorte na capital imperial. Sobre o tema, cf.. REIS, José Carlos. Capistrano de Abreu (1907). O surgimento de um povo novo: o povo brasileiro. Revista de História, São Paulo, 138 (1998), 63-82.
5. FAIRLIE, Susan. The Corn Laws and British Wheat Production, 1829-76. The Economic History Review,New Series, Vol. 22, No. 1 (Apr., 1969), pp. 88-116; MARRISON, Andrew (ed.). Free Trade and its Reception, 1815-1960. London; New York: Routledge, 1998; ZEBERIO, Blanca. Un mundo rural en cambio. In: BONAUDO, Marta (dir.). Nueva História Argentina, tomo 4: Liberalismo, Estado y orden burgués (1852-1880). Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1999, p. 293-362; SLENES, Robert W. Op. cit.; e SCHEFFER, Rafael da Cunha. Comércio de escravos do Sul para o Sudeste, 1850-1888: economias microrregionais, redes de negociantes e experiência cativa. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, 2012.
6. TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. Trad. Port. São Paulo: EDUSP, 2011; BLACKBURN, Robin. The American Crucible: Slavery, Emancipation, and Human Rights.London; New York: Verso, 2011; BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Escravidão e política: Brasil e Cuba, c.1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010; PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011; e PARRON, Tâmis. A política da escravidão na Era da Liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846.Tese (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
7. Além dos trabalhos referidos na nota acima, cf. YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). São Paulo: Intermeios (no prelo); e ESTEFANES, Bruno Fabris; PARRON, Tâmis; YOUSSEF, Alain El. Vale expandido: contrabando negreiro e a construção de uma dinâmica política nacional no Império do Brasil. Almanack.Guarulhos, n. 07, p. 137-159, 1º semestre de 2014.
Alain El Youssef – Departamento de História da Universidade de São Paulo – USP São Paulo, SP, Brasil. E-mail: alayoussef@yahoo.com.br
ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Resenha de: YOUSSEF, Alain El. Nem só de flores, votos e balas: abolicionismo, economia global e tempo histórico no Império do Brasil. Almanack, Guarulhos, n.13, p. 205-209, maio/ago., 2016.