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Escravidão / Revista Brasileira de História / 2006
Já se escreveu que um homem não deve ter a ousadia de regressar a lugar algum. Subjacente a semelhante afirmação pode estar a idéia de que jamais se deve macular a memória, único suporte de um passado que, afinal, já não pode ser vivido. Mas uma compreensão menos poética da frase de Robert Louis Stevenson remete ao que de movediço há em toda mirada mais ‘analítica’ sobre o que já não existe. É quando o mínimo que se espera do historiador é clareza sobre o seu próprio ofício.
Em meu caso, assino embaixo o veredicto de Marshall Sahlins — em História nem tudo são truques que os vivos fazem com os mortos.[1] É lícito, pois, indagar brevemente sobre alguns caminhos da historiografia da escravidão no Brasil, sobretudo quando duas décadas separam o presente número da Revista Brasileira de História daquele que, lançado por ocasião do centenário da abolição, dedicava-se igualmente ao tema do cativeiro.[2]
Algumas mudanças podem ser capturadas quando comparamos o mapa da pós-graduação em 1988 com o de hoje. Em duas décadas, o número de instituições voltadas para a pesquisa institucional de ponta multiplicou-se por cinco — há hoje meia centena de programas de pós-graduação no Brasil, e todas as regiões do país possuem ao menos dois cursos de mestrado.
Óbvio, tal expansão implicou uma enorme catalisação de recursos humanos e materiais para a área de História. Mas o importante é que a natureza necessariamente argumentativa do discurso historiográfico passou a ancorar-se como nunca em material empírico de primeira mão, na esteira de uma verdadeira ‘colonização’ dos arquivos locais, regionais e nacionais pelos historiadores profissionais e em formação. Resultado: o ensaísmo historiográfico perdeu terreno, restringindo-se cada vez mais à sua função primária de divulgação e de polemismo.
Não deixa de ser curioso observar que essa imensa transformação operou de modo paradoxal sobre os estudos da escravidão. Em função da universalidade do cativeiro em nossa história, a reflexão sobre a escravatura multiplicou-se regionalmente, de modo que já podem ser matizadas antigas idéias segundo as quais a presença africana teria sido insignificante nos limites extremos da América portuguesa, por exemplo. O número de teses e dissertações voltadas para o estudo do cativeiro, entretanto, não conheceu expansão semelhante à observada em outros campos da historiografia. É que a multiplicação de programas de pós-graduação ocorreu de modo seletivo, com ênfase em períodos mais recentes da nossa história em detrimento sobretudo da Colônia e do Império — isto é, da época da escravidão.
É possível que a ênfase assumida pela história republicana resulte de uma espécie de urgência em conhecer a verdadeira face de um país cujas transformações demográficas, culturais e sócio-econômicas aceleraram-se dramaticamente depois de 1964, a ponto de torná-lo de certo modo irreconhecível aos olhos de seus próprios filhos. Tudo se passa como se o adensamento do tempo histórico tornasse incontornável o mergulho nos fundamentos mais imediatos do presente, visando preservar e / ou forjar alguma capacidade de auto-representação por parte dos agentes históricos. (Não é esta a derivação necessária de todo trauma histórico; prova-o o caso dos Estados Unidos, para quem o fim da Segunda Guerra Mundial colocou o futuro — e não o passado — no centro das preocupações nacionais, brindando-nos, de quebra, com um livro genial como As crônicas marcianas, de Ray Bradbury.)[3]
Mas se é certo que tamanho não é documento, é possível detectar importantes ganhos de qualidade nos estudos dedicados ao cativeiro ao longo dos últimos vinte anos. De início, chama atenção a diversidade temática mediante a qual fluem os estudos da escravatura. Hoje em dia já não soam tão estranhos estudos sobre a família escrava (tida antes como aspecto ancilar da história colonial), as irmandades negras, os mecanismos e padrões de alforrias, etnicidade, formas de controle social e de resistência, tráfico interno e externo de escravos, para não falar nos trabalhos acerca do negro no imediato pós-abolição. Melhor: são temas encampados por profissionais das mais diversas tendências teórico-metodológicas, embora não se possa dizer o mesmo do ponto de vista estritamente ideológico — já não viceja entre nós, por exemplo, o menor traço de uma historiografia, digamos, liberal, da escravidão.
Este último aspecto não é de menor importância. Afinal, por meio do liberalismo o Ocidente retornou com vigor ao problema da liberdade encarnada no indivíduo, não sem uma grande dose de ironia, já que as instituições que hoje garantem a liberdade individual foram igualmente gestadas pelos mesmos povos que geraram os mais cruéis sistemas de exploração escravista. Eis o motivo pelo qual, aliás, a Europa e, em especial, o mundo anglo-saxão, continuam operando no ultrapassado registro das ‘raças’, sabidamente inexistentes, resultante de cisões seculares derivadas do cativeiro e de sua ideologia. Talvez por isso — por se defrontarem desde cedo com uma pauta política e ideológica bi-racializada, bem entendido — é que boa parte dos historiadores americanos e ingleses já não gastam muita tinta nas introduções de seus livros desculpando-se por não tomarem a escravidão como um anátema a ser esconjurado. Estão, pois, até certo ponto imunes ao pecado mortal do anacronismo quando o cativeiro é o tema.
Em que pesem seus logros, nossa historiografia sobre a escravidão trilha um caminho em tudo diverso da boa tradição liberal. Ela ainda professa um abolicionismo um tanto difuso, lamentável reflexo não apenas de resquícios da escravidão e do racismo à brasileira, mas igualmente de uma sociedade ainda carente de um projeto político moderno e verdadeiramente plural, para a qual o passado sirva de fonte de conhecimento e inspiração. Eis o principal motivo pelo qual, ao invés de insistirmos em ressaltar as origens e derivações de uma de nossas principais fortalezas — refiro-me à miscigenação, entendida como encontros e circularidades —, não poucos insistem em estabelecer a genealogia de ‘identidades’ que o tempo encarregou-se de diluir em nossa imensa pobreza material.
É provável que, tal como ocorreu com aquele publicado em 1988, o presente número especial da Revista Brasileira de História contribua para recolocar coisas como estas em seu devido lugar. De todo modo, a diversidade e a qualidade das contribuições que o compõem por certo são provas inequívocas do quão nobre permanece entre nós o tema da escravidão.
Notas
1. SAHLINS, Marshall. História e cultura (apologias a Tucídides). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.124.
2. Revista Brasileira de História. São Paulo: Anpuh / Marco Zero, v.8, n.16, mar. / ago. 1988 (Escravidão — número especial organizado por Silvia Hunold Lara).
3. BRADBURY, Ray. As crônicas marcianas. São Paulo: Globo, 2005.
Manolo Florentino – Departamento de História / UFRJ.
FLORENTINO, Manolo. Introdução. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.52, dez., 2006. Acessar publicação original [DR]