Uma história do roubo na Idade Média – CANDIDO (RH-USP)

CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo. Uma história do roubo na Idade Média. Bens, normas e construção social do mundo Franco. São Paulo: Fino Traço, 2014. 152 pp. Resenha de: COELHO, Maria Filomena. Revista de História (São Paulo) n.173 São Paulo July/Dec. 2015.

O livro de Marcelo Cândido preenche uma lacuna importante da história do Direito – o roubo na Idade Média –, mas, sobretudo, propõe uma forma de olhar para esse crime/delito que abarca outro problema central do medievo, que é o do crescimento e institucionalização da Igreja no seio da sociedade. Portanto, trata-se de uma obra de História que apresenta um problema e o interpreta de maneira complexa, o que permite ao leitor vislumbrar as várias ramificações e implicações que atravessam a vida em sociedade, mas que, muitas vezes, por defeito da necessidade de transformá-la em objeto de estudo, são reduzidas pelos historiadores a fenômenos isolados, cujas interpretações reforçam a tendência às explicações atomizadas e compartimentadas sobre o passado. É o que encontramos, por exemplo, em algumas “histórias da Igreja” elaboradas na primeira metade do século XX. Uma história do roubo na Idade Média mostra que é possível e necessário fazer História de outra maneira.

As fontes escolhidas para embasar o livro são velhas conhecidas dos historiadores que se dedicam ao estudo dos reinos merovíngio e carolíngio, na Alta Idade Média: hagiografias, crônicas, leis, atas conciliares. Assim, o autor parte de documentação já utilizada pela historiografia para oferecer uma interpretação que se afasta radicalmente de algumas propostas consagradas que foram naturalizadas pelo campo da História e se transformaram em espécies de “conclusões óbvias” de referência, às quais deveriam chegar todos os trabalhos que se dedicassem ao tema. No caso do roubo, não é difícil lembrar, por exemplo, de um tipo de abordagem social que insiste em sublinhar que, diante da justiça, os poderosos serão poupados e os pobres punidos. É a conclusão a que chega, por exemplo, Anne-Marie Helvétius em seu estudo sobre os relatos de vingança dos santos na hagiografia franca. Mas, ao se esquadrinhar as fontes e ver o que elas têm a dizer sobre o roubo, descobre-se uma realidade que é muito mais rica e complexa do que os esquemas “explicativos” comportam. Ao mesmo tempo, a decisão de ampliar a tipologia das fontes e colocar em xeque velhas classificações anacrônicas que predeterminavam a adequação entre temas de investigação e documentos a utilizar, o historiador vislumbra um panorama sistêmico e dinâmico, no qual se entrelaçam valores políticos, religiosos, jurídicos, como se se tratasse de uma só coisa. Ainda na ordem das “conclusões óbvias” que precisam ser desfeitas, Marcelo Cândido chama a atenção para a velha ideia de que as leis na Idade Média seriam apenas o resultado escrito de costumes e práticas sociais antigas, com pouquíssimo espaço para a criação do novo. De fato, é já senso comum reduzir os tempos medievais às suas características consuetudinárias, a ponto de se entender que as iniciativas legislativas de caráter inovador transformar-se-iam fatalmente em letra morta. A recente renovação dos estudos sobre o poder e a justiça, de viés societário, parece inspirar-se nessa perspectiva, ao acentuar a tendência que os medievais teriam para a resolução de conflitos por meio da composição entre as partes, longe da autoridade e dos tribunais. Aliás, também cabe aqui certa ideia de que os medievais desconheciam o direito individual sobre bens, preferindo a fórmula da posse coletiva sobre as coisas. Estas propostas, é bom que se diga, colocam-se no polo oposto ao dos institucionalistas (que têm em François-Louis Ganshof um dos mais ilustres representantes entre os medievalistas), mais antigo, no qual não era difícil encontrar interpretações que atestassem o poder mágico das leis, que dependeriam apenas de encontrar governantes eficientes que as aplicassem com rigor, de forma a mudar a sociedade de acordo com seu projeto político e institucional. Enfim, nem uma coisa nem a outra, tal como podemos acompanhar ao longo de Uma história do roubo na Idade Média.

Marcelo Cândido da Silva é professor de História Medieval na Universidade de São Paulo (USP), onde fundou o Laboratório de Estudos Medievais (Leme). Suas atividades de pesquisa há muito se voltam para a Alta Idade Média e, mais concretamente, para os reinos merovíngio e carolíngio, com diversos artigos publicados em revistas científicas nacionais e estrangeiras, capítulos de livros em obras coletivas que reúnem os resultados de pesquisas realizadas em torno dessa mesma temática, bem como de livros, entre os quais se destaca A realeza cristã na Alta Idade Média. Os fundamentos da autoridade pública no período merovíngio (séculos V-VIII), desdobramento de sua tese de doutorado defendida na Université de Lyon em 2002. Embora o livro que agora se resenha seja parte dessa trajetória, percebe-se, na forma como está estruturado, tratar-se de uma obra de maturidade, fruto de um percurso intelectual que permite cruzar diversas perspectivas com erudição.

O livro está composto por cinco capítulos: 1) Normas e construção social; 2) O roubo nas hagiografias; 3) O roubo na legislação real; 4) O roubo nos cânones conciliares; 5) O problema dos bens da Igreja. Esta configuração representa a própria estruturação do problema, uma vez que o autor parte da discussão teórica e historiográfica do papel das normas na Idade Média, na perspectiva da construção daquela sociedade, para, em seguida, detalhar a forma que o roubo assume nas vidas dos santos, nas leis do rei e nas decisões dos concílios, com o objetivo de mostrar que aquilo que a historiografia muitas vezes entende pertencer a dimensões diferentes compõe uma unidade substantiva e inseparável. Isso é especialmente visível na construção e diferenciação da parte mais especial da sociedade cristã: a Igreja. Nas palavras do autor:

O ladrão, o proprietário e os bens são criações documentais tanto quanto personagens da vida social: toda a dificuldade está em tentar definir os limites entre uma e outra manifestação! Talvez a tarefa dos historiadores esteja menos em tentar resolver essa ambiguidade (o que dificilmente poderia ser feito sem o recurso à dicotomia entre “ideal” e “realidade”) do que em entender a sua dinâmica, compreender a sua função. Não se trata, evidentemente, de negar a existência do real, mas de levar em conta a mediação realizada pelos textos em toda a sua amplitude (…). Eles permitem que se alcance o universo das concepções sociais acerca do roubo, do furto e da violência em geral e, mais importante ainda, as formas pelas quais as normas que coíbem essas práticas, que também são o fruto de uma autoridade pública, participam do processo de construção das relações sociais e dos próprios sujeitos (p. 15).

A maneira como a sociedade constrói e manifesta seus valores positivos e negativos tem, no plano simbólico, sua dimensão preferencial. Nesse sentido, a História encontrou na Antropologia reflexões importantes que permitiram compreender que tais construções e manifestações não se reduziam às relações sociais, mas que se estendiam com igual peso às relações que os sujeitos estabeleciam com os bens. Assim o demonstra também Marcelo Cândido, ao sublinhar esse mesmo aspecto nas fontes que sustentam seu trabalho. Ou seja, como o combate ao roubo e a práticas similares é fundamental para a definição relativa da posição que os sujeitos e os bens ocupam na sociedade. É possível constatar grande variedade de termos para designar aquele que rouba, com acentuada conotação moral, e percebe-se que a preocupação não recai sobre “o comportamento do criminoso, mas no estatuto do proprietário dos bens atacados” (p. 23), sem que isso se reduza ao que entendemos hoje por capacidade econômica dos envolvidos. Tal evidência é particularmente nítida nos casos de roubo de bens eclesiásticos, que servem como fio condutor ao livro e que permitem também compreender que as normas dedicadas a combater o delito constroem, juntamente com as hagiografias e as crônicas, a sociedade cristã. Seguindo de perto os debates recentes dos historiadores do direito em torno do papel das normas na Idade Média, presentes, sobretudo, na obra de Ian Thomas, o autor considera que elas não podem ser vistas unicamente como instrumentos de repressão a comportamentos desviantes, mas, sobretudo, como discursos mediadores de situações de conflito e, talvez o mais importante, como formulações jurídicas que “alteram a própria identidade das pessoas e das coisas que essas normas buscam preservar” (p. 31).

Ao se analisar as hagiografias do mundo franco, percebem-se aspectos fundamentais no que diz respeito ao roubo. O primeiro é que não há, de acordo com nossos padrões atuais, uma conexão lógica entre o valor econômico dos bens roubados e a punição, ou o perdão. O segundo é que, como já se disse, não se confirma que a justiça dos santos privilegiasse os mais ricos em detrimento dos mais pobres. A lógica opera com outros parâmetros, entre os quais se destacam o arrependimento explícito do transgressor e a restituição dos bens roubados. Trata-se de ofensa e dano infligidos aos santos e aos bens eclesiásticos que, ao serem considerados como entes e patrimônio da esfera do sagrado/divino, somente podem ser satisfeitos em sua essência jurídica por meio da restauração da situação anterior ao crime. Entretanto, o mais importante é que as situações apresentadas nas hagiografias não se resumem ao plano espiritual nem tampouco ao plano exemplar e moralizador. Elas fazem parte da formulação em curso na sociedade sobre os bens e sua propriedade, em conjunto com as leges bárbaras e os cânones conciliares.

Para entender melhor as bases em que se assentam as leis régias sobre o roubo, Marcelo Cândido sublinha que o fato de que os textos jurídicos pareçam dar destaque às noções de posse e utilização dos bens não elimina o direito de propriedade. Ambas as situações são contempladas pela norma e, frequentemente, para um mesmo caso. Partindo do Pactus Legis Salicae, por ser o corpus legal com maior ressonância na organização jurídica do mundo franco, o autor pretende descobrir “em que medida a qualificação jurídica do roubo nele estabelecida está presente em textos de outra natureza (cânones conciliares, hagiografias, histórias), através dos esquemas de qualificação jurídica, independentemente da imposição de normas sob a forma da coerção” (p. 71). Tal como nas hagiografias, constata-se grande preocupação com a composição/pacificação e a devolução dos bens roubados, em detrimento da qualificação dos bens e da tipificação das ações. Mas, o mais importante é perceber que, dependendo da situação, a norma desloca as fronteiras entre sujeitos e bens, com grande potencial criativo.

A partir do procedimento de assimilação entre sujeitos, sujeitos e coisas, e de sua qualificação, as normas no mundo franco conciliam seu potencial técnico em modificar a vida social com uma natureza, na qual todos os componentes, inclusive as instituições e o Direito, são ordenados segundo os imperativos da Salvação (p. 78). A ficção jurídica consiste em travestir os fatos, declará-los distintos daquilo que realmente são, e tirar dessa adulteração e falsa suposição as consequências normativas que se ligariam à verdade conscientemente simulada. A ficção requer, portanto, a consciência daquilo que é falso (p. 81).

No que tange aos cânones conciliares, o roubo aparece, evidentemente, circunscrito aos bens eclesiásticos, e, embora os concílios possam ser considerados parte do exercício do poder monárquico, para Marcelo Cândido eles não são uma “extensão da legislação real”, uma vez que têm especificidades que os identificam como textos da Igreja, coisa que de resto pode ser comprovada na forma como neles se caracterizam as relações entre os sujeitos e os bens. Assim, o direito de propriedade dos bens eclesiásticos não deve se submeter aos princípios do uso e da posse, bem como a qualquer outro que comprometa o poder amplo e irrestrito da Igreja sobre seus bens e direitos. A elaboração textual vai se tornando cada vez mais intrincada, mas claramente na direção de elevar os bens da Igreja acima dos demais, recorrendo a associações poderosas, como a de “bens de Deus” ou a de “bens dos pobres”. Isso faz daquele que rouba bens eclesiásticos um ladrão de Deus ou um ladrão dos pobres. Neste ponto, destaca-se a intenção transformadora da lei, que atinge a própria divindade:

As raízes dessa “personificação” da divindade estão na necessidade de defender os bens da Igreja contra os ataques dos laicos. A relação da norma com as práticas sociais reside, precisamente, em que o ponto de partida para a elaboração dessas normas é uma situação precisa que a sociedade pretende alterar. Seria um equívoco buscar na norma um retrato das práticas sociais; o que se encontra nela é uma reconstrução dessas mesmas práticas. O Deus dos textos conciliares não é o mesmo dos textos teológicos, mas uma espécie de Deus-proprietário, um qualificativo jurídico. Eis porque o estatuto daquele que se ataca aos bens eclesiásticos nada importa em face do estatuto Daquele que é o seu proprietário legítimo (p. 100).

Como resultado do aumento de casos de desrespeito aos bens da Igreja, observa-se também nos textos hagiográficos um crescimento em torno da qualificação jurídica e da presença de procedimentos judiciários nas narrativas. A vingança divina (ultio divina) manifesta-se com frequência como punição ao roubo, num claro sintoma do que se acaba de dizer. Também os que atuam como juízes nas diversas situações obedecem às lógicas da justiça, como no tocante à revelação da intenção oculta da actio criminalis. Nem sequer os animais escapam ao enquadramento jurídico, como sujeitos da lei: animal-ladrão. Enfim, bens eclesiásticos em disputa transformam-se em causas da Igreja, que precisam ser esvaziadas de sua concretude e reelaboradas por meio daquilo que se entende ser a sua natura e o genus causae para serem finalmente apresentadas como questio universa. É esta a realidade! Por meio das narrativas hagiográficas, Marcelo Cândido mostra que, nos casos de roubo, é possível ver o processo de construção dessa realidade essencial que trans-forma as relações entre pessoas e coisas em relações entre sujeitos e bens.

Enfim, o livro mostra que, para o contexto analisado,

o roubo não era considerado um crime contra os bens. Eles são secundários. É a partir do proprietário que todas as formas de qualificação, inclusive aquelas que conduzem à definição da natureza dos bens, são elaboradas e projetadas sobre os diversos casos de roubo. A qualificação do roubo no mundo franco não considerava o valor de mercado dos bens roubados, mas o estatuto daquele que era vítima do roubo (p. 137).

Nesse sentido, portanto, os artifícios da lei criam a optima pars da sociedade cristã que dava vida ao reino dos francos: a Igreja.

Maria Filomena Coelho –Doutora em História Medieval pela Universidade Complutense de Madri. Estágio pós-doutoral em História do Direito e das Instituições – Universidade Nova de Lisboa. Professora adjunta do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas.

O patrimônio em questão: antologia para um combate – CHOAY (Topoi)

CHOAY, Françoise. O patrimônio em questão: antologia para um combate. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011. Resenha de: LANARI, Raul Amaro de Oliveira. Um combate em dois fronts. Topoi v.15 n.28 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

Lançado no Brasil no ano de 2011, o livro O patrimônio em questão: antologia para um combate, da pesquisadora francesa Françoise Choay, integra um campo de investigação já consolidado nas áreas da história, antropologia e arquitetura/urbanismo: o patrimônio cultural. Autora de A alegoria do patrimônio (1992), Choay possui uma visão crítica do processo de expansão da “cultura do patrimônio” nos tempos da cultura de massas, o que pode ser percebido pelo título de seu novo livro. Seu combate pode ser resumido como a luta contra o esvaziamento da função memorial dos monumentos no contexto urbano e, assim, trata-se de uma discussão que interessa aos estudiosos da história das cidades, bem como da história das políticas públicas na área da cultura.

Choay não se encontra sozinha neste combate. A “questão urbana” é objeto de estudo de uma série de estudiosos franceses, desde Henri Lefebvre (1920-1991), autor de O direito à cidade (1968), até Henri- Pierre Jeudy, autor de Espelho das cidades (2005). Da publicação do célebre livro de Choay em 1992 aos dias atuais observaram-se diversos esforços para o aprofundamento das temáticas abordadas pela autora. No caso brasileiro, é necessário citar os estudos de José Reginaldo Santos Gonçalves, Antônio Gilberto Ramos Nogueira, Ulpiano Bezerra Toledo de Meneses, Márcia Regina Chuva, Silvana Rubino, Maria Cecília Londres Fonseca, Rogério Proença Leite e Myriam Sepúlveda dos Santos. Percebe-se, portanto, que a contribuição atual de Choay encontra ampla receptividade na comunidade acadêmica brasileira e mundial.

Seria de se esperar, dada a importância da autora no debate sobre o patrimônio e as cidades, que seu novo livro trouxesse novidades analíticas, pontos de aprofundamento de suas hipóteses. Não é isso o que se percebe após a leitura do mesmo. O patrimônio em questão: antologia para um combate sintetiza ideias já consagradas, possui generalizações, por vezes apresenta uma visão esquemática do processo histórico que procura identificar. O livro é dividido em três partes: um Prefácio, uma Introdução e uma Antologia de Textos. Dedicaremos as próximas páginas à análise dessas seções.

A autora inicia a obra com um pequeno prefácio, no qual explica as condições de sua elaboração – disciplinas ministradas na universidade para futuros arquitetos e urbanistas e cursos destinados a profissionais interessados pela história ou gestão do patrimônio. Apresenta seu combate contra as confusões terminológicas que apagaram a profundidade da preservação do patrimônio, retirando dele a função de evocar a memória viva, e propõe uma tomada de consciência. Trata-se de um livro destinado a um público duplo, formado por acadêmicos e pesquisadores, mas também pelo “público não especializado e não informado dos cidadãos” (p. 10). Para atingir seu fim, Choay admite que realizou algumas generalizações para condensar conteúdos já explorados em A alegoria do patrimônio. Percebe-se então que o caráter generalizante e por vezes pouco denso da exposição decorre de uma escolha de Choay, que sinaliza uma tentativa de alargamento do debate público sobre o patrimônio e as cidades. Talvez a inovação maior da obra, portanto, seja seu caráter de um “combate bifronte” e não o aprofundamento da reflexão teórica.

A introdução do livro parte da análise genealógica do conceito de patrimônio. Choay recupera inicialmente a distinção entre monumentos e monumentos históricos, raízes lexicais do conceito difundido mundialmente nos dias atuais. Os primeiros são construídos com clara intenção de evocar a lembrança e ligam-se à memória viva. Já os segundos são elaborações de determinado saber sobre a realidade, escolhas efetuadas entre um vasto conjunto de monumentos de acordo com os valores históricos, artísticos, políticos, dentre outros. Para Choay, os monumentos têm longa existência, com presença marcante nas sociedades humanas desde tempos muito remotos, enquanto os monumentos históricos são característicos da sociedade europeia pelo menos desde a Alta Idade Média. A despeito da importância dada a ambos, a autora ressalta que a ação destruidora esteve presente e foi até predominante na maioria dos períodos históricos, principalmente no continente europeu. Sacudida por revoluções culturais, a Europa gestou o culto moderno dos monumentos, a partir da Renascença e da Revolução Industrial, em diferentes graus de amplitude, de acordo com as regiões.

A autora argumenta que a evolução do monumento ao monumento histórico ocorreu de forma lenta entre os séculos XV e XIX e mais rapidamente na virada do século XIX para o XX, com consequências importantes. Três revoluções culturais europeias teriam impulsionado estas mudanças. A primeira, na Renascença, caracterizou-se pelo afrouxamento do teocentrismo medieval. O ser humano deixou de ser considerado mera criatura e a ele passou a ser atribuída uma capacidade criadora, o que levou ao interesse nas manifestações da atividade humana em diferentes épocas. Novos tipos profissionais urbanos como o arquiteto e o artista plástico se destacaram por desempenharem atividades relacionadas ao apuro técnico, ao deleite estético e à história dos homens. Arte e técnica andavam juntas e garantiam a legitimidade de um novo saber, histórico. As obras da Antiguidade, em muitos casos utilizadas como fontes para a confirmação ou negação dos textos antigos, foram as primeiras a receber a atenção desses novos homens de artes e saberes – os eruditos antiquários. As cidades italianas foram precursoras dessa primeira revolução cultural no século XV, que se estendeu aos reinos vizinhos a partir do século seguinte. Segundo a autora, “os antiquários e suas Antiguidades” caracterizaram uma nova forma de se relacionar com o passado humano por intermédio do ambiente construído (p. 16-17).

O desenvolvimento desse culto às Antiguidades pela ação dos antiquários seguiu uma linha evolutiva irregular até o começo do século XIX. Porém, o saber erudito desses novos homens de letras foi responsável por uma “tomada de consciência da unidade europeia” (p. 18). Três teriam sido os momentos dessa evolução. Até o século XVII predominou a ação dos antiquários na catalogação dos monumentos e na defesa de métodos para sua reconstrução e inserção nas cidades antigas. No século XVIII os estudos passaram a apresentar vasta documentação iconográfica. Entretanto, esse saber mais livresco, calcado na leitura dos textos clássicos e que já se fazia presente no período anterior, não logrou preservar as Antiguidades. No final do século XVIII e no início do XIX, as mutações nos saberes existentes, com a ascensão das ciências naturais, as obras dos antiquários, historiadores da arte ou antropólogos se tornaram mais pretensamente científicas, o que influenciou a valorização da relação entre texto e imagem.

Entre fins do século XIX e início do XX, a segunda revolução cultural europeia, a Revolução Industrial, introduziu o maquinismo na cultura ocidental, com o paulatino predomínio da técnica e da ciência. Foi essa a época do surgimento dos monumentos históricos, amparado por políticas oficiais de proteção que desenvolveram procedimentos diversos de conservação e restauro. Como no Renascimento, essa segunda revolução teve grandes impactos nas relações sociais, divididos, pela autora, em quatro grupos: 1. os campos do saber, com a ascensão da história e sua unificação em torno de diversas subdisciplinas; 2. a sensibilidade estética, com o romantismo e atribuição de uma importância praticamente transcendente, religiosa à obra de arte; 3. a revolução das técnicas, com a fotografia, a imprensa e os estudos físico-químicos; 4. o êxodo rural, a desordem dos modos de vida tradicionais e, principalmente, a inauguração de uma nova relação com o tempo. A velocidade da sociedade da máquina levou a mudanças bruscas nas cidades, o que deu margem a uma nova nostalgia característica do século XIX, o século da história. Essa nostalgia arrebatou as elites nacionais mais abastadas (p. 21-22).

O desenvolvimento desse sentimento nostálgico também teve forte impulso dos nacionalismos que vicejaram na Europa no último quartel do século XIX até pelo menos o final da Segunda Guerra Mundial. O leque espacial e temporal dos monumentos – agora históricos e nacionais – foi ampliado e ultrapassou as construções da Antiguidade e do Medievo para adentrar no ambiente construído pré-industrial. A prática preservacionista chegou a alguns países da Ásia e das Américas, como o Brasil, onde as primeiras políticas de preservação do patrimônio foram implementadas na década de 1930. Foram elaborados complexos aparatos teóricos e jurídicos para a proteção dos monumentos e a aferição de seus valores. Algumas diferenças eram marcantes e caracterizaram escolas de pensamento que influenciam até hoje os pontos de vista nacionais sobre as políticas de preservação. Enquanto na França houve ênfase maior na construção de categorias jurídicas por parte do Estado, dentre as quais a do “tombamento” foi a mais importante, nos países de língua inglesa a preservação ficou a cargo de associações particulares de estudiosos e colecionadores. O modelo francês previa uma reconstituição dos edifícios significativos e isolados em um estado de completude ideal. O modelo inglês afastava-se dessas proposições, valorizando a ruína e conferindo a ela um caráter quase sagrado. A escola italiana, por sua vez, pensou as técnicas de restauro e ensaiou uma proposta de reutilização dos edifícios antigos. A tradição alemã, da qual fez parte Alöis Riegl, foi a primeira responsável por uma análise fundada nos valores contraditórios dos quais todo monumento é portador (p. 22-26).

O último ciclo de mudanças que teria contribuído para a atual valoração do patrimônio é situado após a Segunda Guerra Mundial, no contexto de internacionalização da cultura ocidental e da organização dos organismos multilaterais, como a ONU, a Unesco, a OMC e outros. Introduziu também as inovações tecnológicas da computação e dos ambientes virtuais, das próteses urbanas enxertadas a partir de concepções de cultura globalizantes. Essa terceira revolução cultural não foi apenas europeia, se caracterizou por seu aspecto mundial. Foi o período no qual surgiu a noção de “Patrimônio Cultural da Humanidade”, responsável por uma profunda modificação na relação da sociedade com seus monumentos, históricos ou não. A existência de uma suposta cultura mundial, apoiada pelos grandes grupos de comunicações e pelas estratégias de marketing cultural, trouxe em seu bojo a planificação dessa mesma cultura, a perda de suas especificidades e dos valores que definiram a existência dos monumentos e monumentos históricos em sua evolução no tempo. A autora constata que as diferenças entre estes dois últimos são cada vez mais apagadas por essa nova concepção globalizante de cultura, e que ambos se mostram cada vez mais esvaziados de valor simbólico e participantes de ações de estilização urbana. Os edifícios e os processos de restauro, por sua vez, são cada vez mais frutos dos softwares, e o arquiteto limitou sua atividade à boa operação desses programas.

A autora não ignora a mercantilização desse patrimônio, que serve bem a estratégias políticas e empresariais de “responsabilidade social”. Tratado como um produto cultural, o patrimônio passa a ser um pastiche, ou uma casca sem conteúdo (p. 34-38). O esvaziamento simbólico do patrimônio foi acompanhado por um boom de consumo dos bens culturais. Cultura passou a ser sinônimo de entretenimento, e as políticas de preservação se aproximaram das de turismo, muitas vezes confundidas com elas. Assistiu-se a um processo de reconstrução de monumentos com a retirada das populações originais e a adequação a padrões cada vez mais homogêneos de visitação por pessoas de alto poder aquisitivo. Choay termina sua Introdução com duras críticas ao panorama descrito, e conclama não somente os estudiosos, mas sobretudo os cidadãos, à tomada de consciência do apagamento daquilo que caracteriza a vida humana no espaço, a diferença e a ação do próprio homem. Ela refuta as soluções padronizadas em assuntos de preservação do patrimônio edificado e recupera exemplos franceses, italianos e colombianos para mostrar que ainda é possível revitalizar sítios ouvindo a comunidade e pensando estratégias inusitadas para vencer o formalismo reinante na prática patrimonial. Ao mesmo tempo, exalta o Homo sapiens sapiens em detrimento do Homo protheticus, artificial, mecanizado e estanque.

A segunda parte do livro é constituída por 21 seleções de textos significativos para ilustrar a evolução apresentada pela autora em sua introdução. Os textos são precedidos de comentários explicativos, nos quais a obra do autor é contextualizada no tempo e no espaço em que foi produzida. Os autores selecionados são: Abade Suger, Poggio Bracciolini, Pio II Piccolomini, Baldassare Castiglione, Raffaello Sanzio, Leão X, Jacob Spon, Bernard de Montfaucon, Aubin-Louis Millin, Félix de Vicq D’azyr, Quatremère de Quincy, Victor Hugo, John Ruskin, ­Eugène Violet-Le-Duc, Karl Marx, Alöis Riegl, Gustavo Giovanoni, André Malraux, além de excertos da Carta de Atenas (1931), da Carta de Veneza (1964) e do documento resultante da Convenção pela Proteção do Patrimônio Mundial, organizada pela Unesco em 1975. Os textos são provenientes, em sua totalidade, da Europa, e a autora justifica a escolha pelo fato de se tratar de uma obra nascida dentro das salas de aula europeias, por mais que a problemática seja mundial. Na maioria dos textos as seleções privilegiam pontos considerados positivos. Os comentários críticos da autora se aprofundam na medida em que os textos vão se tornando contemporâneos. Dentre todos, os mais incisivos são os destinados às proposições de André Malraux, primeiro-ministro da Cultura francês e principal defensor da noção de “patrimônio cultural”, e às propostas da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, de 1975.

Choay explica que prefere combater por algo a combater contra algo. Seu combate é pela capacidade criadora, pela defesa da humanidade fundada na diferença, pela desmercantilização do patrimônio e a reapropriação dos bens imóveis legados pelo passado a partir de usos contemporâneos. Ela advoga a participação das comunidades locais, associações civis de moradores, em substituição ao modelo estatista de preservação dos monumentos, argumentando que somente os primeiros podem buscar soluções não artificiais, enraizadas espacial e temporalmente.

O historiador dedicado a trabalhos técnicos ou acadêmicos na área do patrimônio pode terminar o livro se perguntando sobre a ausência do patrimônio imaterial nas análises de Françoise Choay, o que não seria desmedido. Pelo menos desde o início do século XXI, uma noção mais antropológica passou a ser considerada, ainda que sua aplicabilidade seja restrita em diversos países, sendo o Brasil um desses exemplos. Porém, como já frisado no início do texto, as diferenças entre os olhares de historiadores e arquitetos são partes constitutivas do campo de pesquisa e trabalho aqui abordado. As provocações aguerridas de Françoise Choay em O patrimônio em questão: antologia para um combate fornecem armas poderosas a uma crítica consistente do processo de intervenção arbitrária ocorrido nas grandes cidades, inclusive as brasileiras, supostas “revitalizações” de espaços que na verdade não passam de uma mercantilização do patrimônio, uma estilização cultural urbana com a finalidade de entreter. Isso não seria aplicável também à proteção do patrimônio imaterial? Não padecemos hoje de um fascínio pelo retro, pelo vintage esvaziado de valor memorial e cheio de valor de troca? A cultura não vem sendo constantemente tratada por governos como mera organização de eventos? Nesse sentido, o livro de Françoise Choay é muito enriquecedor e pertinente. Ele cumpre com o propósito de atender a dois públicos distintos, de especialistas e leigos, incentivando ambos a pensar além da obra.

Agradecimentos

Esta resenha foi produzida como atividade da disciplina “Produção e circulação do conhecimento histórico nos periódicos científicos”, ministrada pela professora Regina Horta Duarte no Programa de Pós-Graduação em História da UFMG durante o primeiro semestre de 2013. Agradeço à professora e aos colegas pelas discussões que deram origem ao texto final.

Raul Amaro de Oliveira Lanari – Doutorando em história pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor de história do Centro Universitário de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: ralanari@gmail.com.