In the Shadow of Justice. Postwar Liberalism and the Remaking of Political Philosophy | Katrina Forrester

 

Notas

1 Un esfuerzo similar puede verse en el estudio de la interacción entre “constelación de ideas” y los diferentes tipos de instituciones (departamentos académicos, comités de investigación y think thanks) que fundaron las bases de las teorías de la modernización emergentes en el contexto de la Guerra Fría. Véase Nils GILMAN, Mandarins of the Future. Modernization Theory in Cold War America, Nueva York, Johns Hopkins University, 2007. Leia Mais

Justificação e crítica: Perspectivas de uma teoria crítica da política – FORST (C-FA)

FORST, Rainer. Justificação e crítica: Perspectivas de uma teoria crítica da política. São Paulo: Unesp, 2018. Resenha de: MORALLES e MORAES, Felipe. O que é mais importante vem primeiro. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 24 n 1 Jan-Jun, 2019.

Rainer Forst é um dos mais proeminentes representantes contemporâneos da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Em seu dizer – oportunamente reproduzido na contracapa da edição brasileira publicada recentemente pela Unesp e cuidadosamente traduzida por Denilson Luis Werle –, a filosofia crítica começa com uma tentativa de evitar os “becos sem saída” nos quais a própria filosofia política vem se metendo.

A tarefa que se coloca esse discípulo de Habermas é, como explicado no prefácio, desfazer os dualismos enganadores. À primeira vista, o livro Justificação e crítica consiste em uma reunião de artigos publicados anteriormente, em diferentes locais e sem sistematicidade, como os três capítulos finais que discutem a obra de Henrik Ibsen, Hannah Arendt e a literatura utópica. Há um fio condutor dos artigos reunidos, porém, que é enfrentar falsas oposições, como entre imanência e transcendência; dominação e liberdade; igualitarismo e suficientarianismo; paz e justiça; iluminismo e pós-colonialismo; redistribuição e reconhecimento; a fim de defender que, por trás delas, há algo mais importante, que é o direito fundamental à justificação.

A linhagem kantiana da crítica de Forst é notável. À sua época, Kant tinha por alvo a oposição entre, por um lado, o ceticismo, com sua tese da impossibilidade do conhecimento universal e necessário sobre o mundo; e, por outro lado, o dogmatismo metafísico, com sua pretensão de decifrar o mundo a partir da razão pura. É conhecida a solução kantiana de rejeitar o tribunal tanto da natureza sensível (empirismo), quanto de um ser, bem ou valor superior ao sujeito (racionalismo dogmático), para alçar a razão como o tribunal do uso legítimo e ilegítimo de suas faculdades (racionalismo crítico). A filosofia crítica continua merecendo seu nome na medida em que denuncia as ilusões para as quais é arrastada a razão no interesse emancipatório de conhecer o mundo e agir corretamente.

A tarefa kantiana de Forst não se limita, contudo, a desmascarar essas ciladas da razão, como também faziam, cada um a seu modo, Marx e as primeiras gerações da Escola de Frankfurt. Há um objetivo maior em comparação com esses críticos da modernidade: colocar a razão ao abrigo dos ataques céticos e dogmáticos. Por isso, uma segunda tarefa filosófica que permeia Justificação e crítica é a de fundamentação dos direitos humanos e da justiça. A obra complementa análises precedentes de Forst, nas quais o autor reconstrói e busca superar as aporias do debate entre liberalismo e comunitarismo, em Contextos da justiça, com edição brasileira pela editora Boitempo (2010 [1994]), ou apresenta uma concepção construtivista moral e política da justiça e dos direitos humanos, em Direito à justificação, ainda sem tradução (2012[2007]). Nesta resenha, contento-me em apresentar (1) a resolução forstiana de dois impasses internos à teoria crítica e (2) a fundamentação trazida em Justificação e crítica (daqui em diante JC), para depois tecer (3) alguns comentários sobre a tradução e (4) levantar quatro possíveis objeções ao modelo de teoria crítica em questão.

  1. O primeiro impasse enfrentado por Forst diz respeito à ideia de crítica imanente da sociedade, que os teóricos críticos tradicionalmente contrastaram com o que seriam críticas transcendentes, platônicas ou idealizadas. O argumento do autor é que essa contraposição mostra-se ilusória, porque ninguém está totalmente inserido em um contexto ou prática social, havendo sempre possibilidade de questionar e criticar reflexivamente essa prática. Os conflitos sociais surgem, com efeito, com um “não” às formas de justificação da dominação existente. Eles estão sempre questionando e transcendendo costumes, relações econômicas e instituições.

Assim, se consideramos os seres humanos como seres que participam ativamente na definição das relações e ordens sociais válidas, estamos diante de um padrão a um só tempo imanente e transcendente. A recusa às justificações vigentes pode ser traduzida como uma pretensão de que as relações sociais não sejam arbitrárias, isto é, que sejam justificadas recíproca e universalmente. Segundo Forst, a razão é, ao mesmo tempo, a mais imanente e a mais transcendente das capacidades humanas: a capacidade de se orientar por justificações. A crítica da sociedade precisa se orientar pelo critério da reciprocidade e da universalidade das justificações, em lugar da divisão artificial entre imanência e transcendência (JC, p. 17-8).1

Outro impasse na teoria crítica que merece destaque está na discussão entre duas gramáticas internas às lutas sociais: redistribuição ou reconhecimento. Trata-se de uma disputa em vários níveis, encabeçada por Nancy Fraser e Axel Honneth.

Ambas gramáticas são indeterminadas do ponto de vista de quais lutas sociais são justificáveis – argumenta Forst. Antes da pretensão por paridade de participação, no modelo de Fraser (duplipartido em redistribuição e reconhecimento), ou da pretensão por reconhecimento, no modelo de Honneth (tripartido nas esferas do amor, da igualdade jurídica e da estima social), é preciso uma gramática normativa que diferencie as pretensões justificáveis das injustificáveis, isto é, aquelas que podem, ou não, ser justificadas de modo recíproco e universal aos que participam nos respectivos contextos de justiça (JC, p. 185 e 192). É certo que, conforme o contexto, surgirão pretensões legítimas de igualdade econômica e política ou de valorização social; primeiro, porém, vem a instância da possibilidade de produzir e questionar essas pretensões. A gramática normativa é a das condições para que os sujeitos se justifiquem e demandem justificações: o direito básico à justificação. A abordagem de Forst é denominada, por isso, “o que é mais importante vem primeiro” – na feliz tradução de das Wichtigste zuerst ou first-things-first da edição inglesa (2014). Ele afirma dar uma “guinada política” diante das abordagens antecedentes, ao colocar em primeiro plano exercício e distribuição social do poder de justificação (JC, p. 196).

Daí repetir Forst nos artigos que a tarefa primeira de uma teoria crítica da justiça é visar ao estabelecimento de uma estrutura básica de justificação na qual as pessoas possuam procedimentos e condições materiais de exigir, produzir e questionar justificações – o que não se confunde, nem exclui, a perspectiva mais utópica de uma estrutura básica justificada, na qual todos os procedimentos e condições materiais foram justificados universal e reciprocamente. Isso lhe permite dar um passo atrás nas disputas entre modelos de justiça distributiva (pois o poder de justificação sobre as estruturas de produção e distribuição antecede a discussão sobre o que será distribuído – recursos, bem-estar ou capabilities ); na tensão entre paz e direitos humanos (porque ambos estão subordinados a um princípio de justiça, que reivindica a entrada no domínio das justificações recíprocas e se contrapõe às injustiças que acompanham conflitos violentos); nas críticas feministas, negras e pós-coloniais contra machismo, etnocentrismo e iluminismo (que se apoiam na exigência de uma justificação aceitável para todos, de modo que é a própria justiça a tornar visível sua realização imperfeita).2

  1. A fundamentação forstiana do direito fundamental à justificação diferencia-se da fundamentação kantiana, porque se baseia, em lugar de uma razão prática pura, em uma razão que se efetiva contextualmente na forma de justificações. Ela pode ser resumida do seguinte modo. Toda crítica pressupõe a recusa à arbitrariedade. E entende-se como arbitrária qualquer relação que não possa ser razoavelmente aceita por todos os concernidos. Acontece que interesses básicos humanos podem sempre abrigar arbitrariedades. Vínculos afetivos, sentimentos de pertença ou concepções de vida boa (como as emergentes em uma cultura machista, racista, eurocêntrica, por exemplo) podem ser razoavelmente recusados por outras pessoas. Logo, uma perspectiva crítica da sociedade não consegue fundamento racional em interesses humanos básicos. Para Forst, a razão deveria ser compreendida não como um interesse humano básico, mas pura e simplesmente como justificação discursiva. Uma relação deixa de ser arbitrária, então, se ela pode ser justificada discursivamente para todos os concernidos. Logo, a crítica da sociedade pressupõe um poder de todos de exigir, produzir e questionar justificações na sociedade: um direito universal à justificação. A justiça (entendida como negação da arbitrariedade) e os direitos humanos (entendidos como direitos de não se sujeitar ao arbítrio de outrem) têm fundamento nesse direito básico à justificação.

Com essa fundamentação, Forst sublinha que os seres humanos não são seres passivos, necessitados e sofredores, mas sim reivindicam reconhecimento como sujeitos reflexivos e autônomos. Eles não somente participam de relações sociais, normas e instituições que constantemente reivindicam validade, mas também examinam suas justificações, as rejeitam e redefinem. Daí falar de relações sociais como ordens de justificação. A justificação efetiva que legitima e constitui as relações de poder é comparada, em meio aos conflitos sociais, com a justificação devida – que tem a qualidade de ser recíproca e universal. Essa vinculação entre justificações dadas e devidas; entre ordens produzidas por justificações e obstáculos ao direito fundamental à justificação; em suma, entre descrição e normatividade dá-se por meio (i) da descoberta das relações sociais que não podem ser justificadas recíproca e universalmente, (ii) da crítica às justificações falsas ou ideológicas, no sentido de um bloqueio ao direito à justificação, e (iii) da explicação do fracasso ou ausência de estruturas efetivas de justificação (JC, p. 195-6). Nesse sentido, permanece ele no interior da “velha questão de por que a sociedade moderna não está em condições de produzir formas racionais de ordem social”, ou seja, da investigação de por que as ordens de justificação se tornam dominações arbitrárias (JC, p. 20-1).

  1. Antes de adentrar nas possíveis críticas, três breves questões sobre a tradução.

Werle conserva a tradição da sociologia weberiana de traduzir Herrschaft como “dominação”, a qual aproxima as noções de dominação e legitimidade. Toda forma de dominação é legítima, na medida em que se entenda o conceito de legitimidade em um sentido estritamente descritivo, sem sobrepor um sentido normativo e crítico, como prioriza Forst: a qualidade de uma ordem normativa de explicar e justificar seu poder vinculativo geral aos seus subordinados (2015a, p. 189). Diferentemente da tradição weberiana, porém, Forst distingue a forma neutra (e possivelmente justa) Herrschaft da forma injusta Beherrschung (JC, p. 27). Para reproduzir no português, seria necessário algo como a distinção entre “domínio” e “dominação”, não tão intuitiva ao leitor e que pouco contribuiria para a clareza da argumentação.

Andou bem o tradutor, pois, em se manter fiel à tradição e traduzir Herrschaft e Beherrschung respectivamente como “dominação” e “dominação arbitrária”.

Uma opção que também merece comentário é a tradução da necessidade de um consentimento baseado em procedimentos de justificação institucionalizados e, ao mesmo tempo, em um sentido contrafactual, de modo recíproco e universal, com a expressão “no modo subjuntivo” (JC, p. 51 e 141). Diferente dos equiparáveis im Konjunktiv e konjunktivisch utilizados por Forst, que remetem mais diretamente, na língua alemã, à situação irreal, o subjuntivo da língua portuguesa é um modo verbal que tem vários tempos, dos quais só o pretérito representa um modo contrafactual.

Acredito que, novamente se distanciando do original, mais clara seria a expressão “no modo contrafactual”, como na tradução inglesa (2014, p. 34 e 83). O consentimento é contrafactual porque a pretensão normativa mostra-se válida moralmente na medida em que não lhe podem ser opostas justificações gerais e recíprocas. A pretensão normativa não é rejeitável, o que independe de um consenso ou aceitação efetiva (2012[2007], p. 21).

Uma opção mais polêmica é a tradução da concepção de pessoa de Forst als begründendes, rechtfertigendes Wesen, isto é, como um ser fundamentador e justificador, em termos menos carregados: “como sujeito que fundamenta e justifica” (JC, p. 159). Essa opção oferece mais consistência à argumentação, ao custo de minimizar a pretensão antropológica de Forst, como se verá a seguir.

  1. O aspecto desconcertante da obra – ou “irritante” para usar a tradução preferida nessa edição (JC, p. 135) – é sua vinculação ao individualismo metodológico: a argumentação parte de conceitos a priori, do “a priori da justificação” (JC, p. 192), em detrimento da análise social e histórica das relações de justificação. Essa análise até aparece no texto, mas só a título de ilustração. Tal ponto foi levantado por Rúrion Melo em sua crítica ao construtivismo moral de Forst: a praxis da justificação funda-se em pressupostos morais que independem da gênese histórica e política e que não oferecem um diagnóstico de época de como as reivindicações por justiça tornam-se reivindicações por respeito aos sujeitos de justificação (2013, p. 26-8). O aspecto metodológico não desmerece, no entanto, os objetivos traçados por Forst de afastar dualismos enganadores e de fundamentar o projeto de uma teoria crítica da justiça.

Na dimensão da ontologia social reside um problema mais grave para a teoria crítica defendida pelo autor. A teoria do direito à justificação não contém só uma tese sobre o domínio da teoria crítica da política (devemos investigar a distribuição do poder de justificação na sociedade), mas também uma tese ontológica (as esferas sociais são ordens de justificação). A questão que se coloca é se não bastaria, em lugar da tese ontológica, uma tese, por assim dizer, sociológica (há uma relação necessária entre esferas sociais e relações de justificação). Soa bastante implausível, com efeito, que todos os fenômenos de dominação operem no interior de ordens de justificação. Ainda que tais ordens existam, estão envolvidas por poderes anônimos – como autovalorização do capital, incremento da técnica, massificação social –, que conservariam sua intensidade mesmo diante de uma estrutura básica de justificação. O que sempre causou perplexidade na modernidade foi por que tantas pessoas se identificam com a desigualdade e a dominação arbitrária e deixam de questioná-las. Seus grilhões não são de ferro, mas imaginários. Que todos tivessem garantias de exigir justificativas dos demais não significa que os poderes sistêmicos seriam amplamente questionados. Se a justificação permanecesse potencialmente aberta, esses poderes ainda não desmoronariam como tais, não ficariam vulneráveis, nem seriam desmascarados como injustificáveis, porque continuariam produzindo, de modo massivo e duradouro, bloqueios à atividade crítica. Daí a dificuldade de pensar em uma primazia ontológica da justificação.

A questão acerca da ontologia social surge sempre e novamente diante das tentativas de compreender a sociedade com base em um eixo único – como acontece comumente em relação ao sistema capitalista (cf. Dardot & Laval, 2016, p. 31 e 3845; Jaeggi, 2015, p. 15) ou à ideia de liberdade (cf.

Honneth, 2011, p. 9 e 35-40). Não é preciso supor metafisicamente, como ainda é comum entre os teóricos críticos, que todas esferas sociais e todos valores da sociedade moderna estejam fundidos em uma lógica, valor ou razão. No caso da teoria crítica de Forst, não é possível ignorar que há ordens que não se estabelecem por justificações, senão por seu bloqueio sistemático. Mais plausível parece supor uma relação necessária entre as esferas sociais e as justificações, mas sem excluir a relação concomitante com estruturas que impedem que as esferas sociais sejam planejadas, controladas ou direcionadas por razões. É o que sinaliza Forst ao mencionar os complexos de justificação ideológica, que naturalizam a dominação e se esquivam de questionamento crítico (JC, p.170). Poderes sistêmicos parecem ser ordens que dependem necessariamente de justificações, mas que dependem delas de uma forma necessariamente preconfigurada e entravada, o que impede a abolição, ou mesmo reforma dessas ordens. Por isso, a dominação sistêmica antes determina justificações do que é por elas determinada.3

Ao responder a críticas contra seu conceito de poder, Forst vai admitir a necessidade de distinguir a dominação relacional da estrutural, insistindo, então, na conexão que existe entre essas estruturas e a produção de justificações e ações dos que se beneficiam delas ou dos que poderiam modificá-las: “nós devíamos nos livrar da oposição não-dialética entre considerações de poder estruturais ou entre agentes [inter-agential], porque claramente precisamos de ambas” (2018, p. 303).4 A sociedade moderna parece estruturada tanto em ordens de justificação, quanto em ordens sistêmicas, mesmo que entre elas subsista uma relação necessária, que se poderia chamar, mais convincentemente, liames de justificação, muito mais frágeis. Isso significa recusar a ontologia social monista de Forst e retornar a uma relação dualista, entre mundo da vida e sistema, como desenvolvido por Habermas (1995[1981]).

Essa crítica à pretensão ontológica da teoria de Forst não afeta, contudo, a abordagem defendida. A preocupação do filósofo alemão é que o direito à justificação precisa considerar o que há de racional na história e manter a distinção entre lutas sociais emancipatórias e não-emancipatórias, entre justificações boas e ideológicas, que é a pressão pela reciprocidade e universalidade adentrando todas esferas sociais, aí compreendidas as esferas de dominação sistêmica (2015c, p. 52-3). O direito à justificação não requer a tese extravagante de que todas as esferas sociais são realmente ordens de justificação. Em suas palavras:

Isso é uma razão importante para separar a análise, primeiro, sobre o exercício de poder entre agentes da análise, segundo, sobre formas estruturais de poder que expressam, constrangem e permitem tais formas de poder e, terceiro, do caráter e formação de recursos inteligíveis [ noumenal ] ou condições de fundo que levam e suportam essas estruturas, especialmente as narrativas de justificação em que se apoiam (2018, p. 306).

Além da crítica ao sentido ontológico da teoria do direito à justificação, é preciso acrescentar uma crítica à sua pretensão antropológica (os seres humanos são seres justificadores), a qual está no centro do argumento da obra Direito à Justificação (cf. 2007, p. 13 e 38-9) e é reproduzida nos trabalhos mais recentes (cf. 2018, p.317-8). Não que a imagem de uma sociedade plenamente transparente e baseada em conteúdos e razões não rejeitáveis razoavelmente entre indivíduos dotados de um direito igual à justificação seja vaga e idealista, que ela abstraia das relações sociais ou que tome os sujeitos como unidades atomizadas. Nada disso. Afinal, as justificações dadas são sempre aqui e agora, conforme a situação e os conflitos reais, envoltas e obscurecidas por emoções, ideologias, ameaças; e as justificações devidas são aquelas voltadas pragmaticamente ao estabelecimento de uma estrutura básica de justificação (JC, p. 143).5 A questão que se coloca é se a ideia normativa de um direito individual à justificação volta a ser escorada em um interesse básico humano.

Em vez de o direito fundamental à justificação ser apresentado somente como condição de possibilidade para qualquer discurso crítico, cai-se na tentação de justificar a justificação. Forst invoca a natureza humana para justificar o dever de reconhecer os outros como seres justificadores, em outras palavras, como seres que usam e necessitam de justificações (JC, p. 159). A carência por justificações e a capacidade de as produzir, exigir e questionar são convertidas em um direito moral, embora possam ser tão arbitrárias quanto qualquer outra carência ou capacidade. A questão é saber se a argumentação forstiana prescinde desse fundamento. De fato, não é necessário vincular o direito à justificação a uma antropologia. Em Justificação e crítica, Forst parte de que não uma capacidade ou carência humana, mas um princípio moral representa o critério último para julgar sobre a legitimidade das relações sociais. A tradução brasileira tem razões, pois, para minimizar o apelo ao ser justificador. Evita-se confundir o fundamento moral do direito à justificação seja com o fundamento em capacidades e carências humanas, seja com o fundamento em uma concepção de vida boa (a vida autônoma e reflexiva), do qual Forst busca se distanciar (JC, p. 90 e 105).

A maneira de conectar a dimensão moral da justificação aos demais contextos da justiça vem a reboque, ainda assim, das pretensões ontológica e antropológica, das quais se tentou resguardar até aqui a teoria crítica de Forst. O direito de recusar razões não-recíprocas e não-universais tem como objeto “toda ação ou norma que pretende ser legítima”, em uma “teoria abrangente dos direitos humanos” (JC, p.111). Acontece que, salvo a dimensão moral, as razões para agir não são recíprocas e universais. A justificação das ações individuais é incapaz, na maioria dos casos, de generalização, pois depende de premissas éticas, econômicas, jurídicas ou políticas compartilhadas, sem as quais não há ação justificada. Nesse aspecto, Seyla Benhabib tem razão em apontar que reciprocidade e universalidade funcionam para justificar deveres perfeitos, em uma estrutura básica de justificação, não deveres imperfeitos.

É incompreensível como tais critérios poderiam guiar agentes individuais na justificação discursiva de suas ações éticas, políticas, jurídicas e econômicas (2015, p. 5-7). Respondendo, Forst exemplifica que a reciprocidade exclui o apelo a verdades religiosas ou à vontade da maioria para proibir a construção de minaretes ou o uso de vestes religiosas pelas mulheres (2015b, p. 50), o que está correto; todavia, a reciprocidade nada esclarece se o patrimônio urbanístico deve ter preferência à construção de templos, se certas vestes devem ter primazia à igualdade de gênero, quer dizer, acerca de conflitos entre valores e razões diferentes e irreconciliáveis. As dificuldades emergem na medida em que o direito à justificação seja alçado a uma teoria moral abrangente, capaz de regular todas as ações que tocam outras pessoas, em vez de uma teoria política, no sentido rawlsiano do termo (2005[1993], I, §2).

Nenhuma dessas críticas obscurece o que se pode reconhecer como avanços importantes na teoria crítica contemporânea, em razão do esforço de Forst de “limpar o terreno” dos “entulhos conceituais” acumulados nas controvérsias sobre esse modo de fazer filosofia. Trata-se de uma obra incontornável para todos que se engajam na tarefa de fazer um diagnóstico das sociedades contemporâneas do ponto de vista emancipatório, isso quer dizer, da justiça.

Notas

1 Essa questão vai ser retomada na obra mais recente de Forst (2015a, p. 13-5).

2 Sobre esse último ponto, ver especialmente os argumentos de Forst contra as críticas feministas à ideia de pessoa de direito e às linguagens políticas universalistas (1994, p. 117-123 e 199-209).

3 Devo essa ideia de poder sistêmico a conversa com José Ivan Rodrigues de Sousa Filho.

4 Sobre isso, ver respostas a Steven Lukes, Clarissa Hayward e Albena Azmanova (2018).

5 Forst insiste nesses pontos ao responder às críticas de que sua teoria seria ingênua e racionalista quanto às motivações humanas, ou excessivamente vaga e abstrata quanto à determinação dos direitos humanos, como acusam Seyla Benhabib (2015b), Simone Chambers (2015c), Simon Susen, Steven Lukes, Mark Haugaard e Matthias Kettner (2018).

Referências

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DARDOT, P., & Laval, C. (2016).A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal [2009]. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo, SP: Boitempo.

FORST, R. (1994).Kontexte der Gerechtigkeit: Politische Philosophie jenseits von Liberalismus und Kommunitarismus. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

____________. (2010).Contextos da justiça: Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo [1994]. Tradução de Denilson Luis Werle. São Paulo, SP: Boitempo.

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HABERMAS. J. (1995).Theorie des kommunikativen Handelns: zur Kritik der funktionalistischen Vernunft [1981]. Band 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

HONNETH, A. (2011). Das Recht der Freiheit: Grundriß einer demokratischen Sittlichkeit Frankfurt am Main: Suhrkamp.

JAEGGI, R. (2015). O que há (se de fato há algo) de errado com o capitalismo? Três vias de crítica do capitalismo [2013].Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, 20 (2), pp.13-36.

MELO, R. (2013). Crítica e justificação em Rainer Forst. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, 22, pp. 11-30.

RAWLS, J. (2005).Political liberalism [1993]. Expanded edition. New York: Columbia University Press.

Felipe Moralles e Moraes – Universidade Federal de Santa Catarina E-mail: felipe.moralles@gmail.com,

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O Príncipe – MAQUIAVEL (MB-P)

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 4ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Resenha de: OLIVEIRA JÚNIOR, Airton Antônio de. Um Príncipe não tão maquiavélico. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

Entre as diversas traduções e edições deste livro, o escolhido para este trabalho foi o da Editora WMF Martins Fontes, 4ª edição, de 2010, São Paulo, contém 197 páginas, traduzido por Maria Júlia Goldwasser, inclui Vida e Obra do autor, apêndice com paralelo entre Maquiavel e Marx, Notas Explicativas e Vocabulário de termos-chave de Maquiavel.  Um dos maiores livros da literatura política mundial, “O Príncipe” foi escrito em 1513 e publicado, pela primeira vez, em 1527. Maquiavel compreendia a tendência das coisas humanas, a inconstância das massas e a fragilidade das nações. Sem se prender a conceitos estabelecidos, estuda os diversos tipos de Estados, classifica-os por gêneros e estabelece leis, segundo as quais cada principado deve ser conquistado ou governado. Descreve, de maneira genérica, como o governante deve portar-se, de acordo com o cenário estabelecido.

Nos primeiros quatorze capítulos, Maquiavel classifica os principados em gêneros bem definidos, dividindo-os em hereditários e novos, explicitando como se dá a conquista em cada um: com exército próprio ou de outros, pelo fluxo de acontecimentos ou pelo conjunto de qualidades do governante. O autor procura não construir um Estado ideal, e sim ver os problemas reais, a realidade concreta das coisas. O livro é repleto de exemplos da Antiguidade e Idade Média, por exemplo, Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu, Aníbal, porém, a maioria deles é contemporânea, como César Bórgia, Francesco Sforza e o Papa Júlio II. Tudo para comprovar seu ponto de vista.

Nos capítulos posteriores, o autor discorre sobre diversos aspectos relacionados a um príncipe. Comenta sobre as qualidades que um governante precisa ter e outras a evitar, o cuidado devido às finanças, à cobrança de impostos e à utilização desses recursos. Trata, também, da dicotomia “se é melhor ser amado  que temido ou melhor ser temido que amado”, afirmando que “os homens têm menos receio de ofender quem se faz amar, do que a quem se faz temer”. Para Maquiavel, é mais importante aparentar ser piedoso, fiel, humano, íntegro e religioso, a de fato possuir tais qualidades. Sua teoria é baseada no fato de que “… todos veem o que se aparenta, poucos sentem aquilo que realmente é; e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos muitos.” Um príncipe deve evitar o desprezo e o ódio dos homens, manter o povo feliz, afastar-se de bajuladores e controlar seus secretários.

Nos três últimos capítulos, Maquiavel aborda a invasão da França na Itália, os motivos que levaram a perda de alguns estados. Defende a tese de que um governo novo tem suas ações mais observadas que um hereditário, e que os homens se interessam mais pelas coisas do presente do que pelas do passado. Para o autor, o fluxo dos acontecimentos não está predefinido, devendo-se preparar para tempos difíceis nos momentos calmos que os antecedem e coloca que é melhor ser impetuoso do que cauteloso. Tenta persuadir a retomada da Itália dos franceses apelando para o sentimento nacionalista e religioso.

Em “O Príncipe”, portanto, Maquiavel demostra que o fato de a Itália estar dividida em diversos governos tornou-a suscetível a constantes batalhas e que poderiam ser evitadas com sua unificação, sob um único soberano, naquele momento por Lorenzo II de Medici, neto de Lorenzo, o Magnífico. Para o autor, um príncipe que tenha uma visão que se afaste de um realismo estrito, que deixe de buscar a verdade efetiva das coisas, está fadado a conceber conclusões equivocadas, perigosas para sua nação. Em seu livro, ele cita que “sendo meu interesse escrever uma coisa útil para quem a escuta, parece-me conveniente seguir a verdade efetiva da coisa do que a imaginação sobre ela.” Quando um príncipe age, assim o faz para conservar o Estado. Se, ao analisarmos as ações dos governantes, entendermos que estamos diante de uma ação praticada não por escolha, mas por necessidade, fica sem sentido qualquer tentativa de impor limites éticos ou morais a tal conduta.

Airton Antônio de Oliveira Júnior – 2º Tenente da Marinha Brasileira.

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Contextos da justiça: Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo – FORS (NC-C)

FORST, Rainer. Contextos da justiça: Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo. Trad. Denilson Luis Werle. São Paulo: Boitempo, 2010. Resenha de: MELO, Rúrion. Automonia, justiça e democracia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.88, Dez, 2010.

Um dos traços mais característicos da “renovação” da teoria crítica hoje é o enfrentamento dessa tradição de pensamento com o problema da legitimidade e da dimensão normativa das instituições políticas1. Cada vez menos os temas considerados pelas teorias críticas da sociedade permitem que se conclua pela “impossibilidade da democracia”2, levando antes à formulação de novos diagnósticos vinculados a uma concepção de crítica social mais radicalmente política e pluralista. Quando Seyla Benhabib alerta que “a negligência quanto a uma tal teoria política e democrática é um dos principais pontos cegos da teoria crítica da Escola de Frankfurt”3 e Jean Cohen e Andrew Arato chamam atenção insistentemente para o fato de que “a teoria crítica não pode mais manter seus propósitos práticos sem uma teoria política”, uma vez que “a crítica da razão funcionalista precisa ser complementada por uma teoria da democracia”4, esses autores sintetizam uma mudança fundamental na relação entre teoria social e filosofia política partilhada por diversos autores explicitamente filiados à tradição de pensamento que, desde Theodor Adorno e Max Horkheimer, se tornou conhecida como teoria crítica da sociedade5. Essa mudança teórica no projeto original esteve orientada, em linhas gerais, à investigação das “bases normativas da teoria crítica”6, ao vínculo entre o “potencial radical da democracia” e o “legado da Escola de Frankfurt”7, à retradução do núcleo crítico-emancipatório no interior da “programática democrática”8.

Para entendermos melhor o que estaria em jogo nessa mudança de projeto teórico, podemos recorrer brevemente à caracterização do que Axel Honneth chamou de “fraqueza teórica” da primeira geração da teoria crítica, ou seja, àquela formulação ligada principalmente aos nomes de Horkheimer e Adorno. Embora ambos tivessem recusado a referência de Marx à categoria do “trabalho” como conceito determinante da análise crítica da sociedade e da respectiva orientação emancipatória, os principais representantes da primeira geração permaneceram fechados diante de “todas as tentativas de considerar o processo histórico de um ponto de vista outro que não o do desenvolvimento do trabalho social”9. Esse fechamento acabou levando à desconsideração da dimensão da ação social, na qual convicções morais e intuições político-normativas se constituem independentemente, e priorizou, na interpretação dos processos sociais, as funções de expansão e reprodução do trabalho social. Em suma, subsistiria um “reducionismo funcionalista”, já presente em Marx, responsável por restringir a história humana a uma concepção instrumental de ação. A segunda geração começou a questionar decisivamente os déficits teóricos nos fundamentos normativos da primeira teoria crítica, lançando mão, sobretudo, de outro tipo de ação social que pudesse ao menos ser concebido ao lado do trabalho, e assim abrir caminho à análise da integração social e da dimensão normativa da interação social.

Jürgen Habermas foi o autor dessa tradição que primeiro trouxe à consciência teórica o diagnóstico de que “se esgotou a utopia da sociedade do trabalho”10 e pensou explicitamente o projeto futuro da teoria crítica segundo a necessidade de “superar o paradigma produtivista, sem abrir mão das intenções do marxismo ocidental”11. Representante mais importante da segunda geração da teoria crítica, Habermas desenvolveu diagnósticos significativos sobre a esfera pública e temas da moral, do direito e da democracia, buscando eliminar o que entendeu ser o déficit nos fundamentos normativos da crítica social. Também Axel Honneth, não obstante procurasse superar vários aspectos da teoria habermasiana, seguiu explicitamente a crítica ao paradigma produtivista, estabelecendo, agora na terceira geração, uma rica articulação entre crítica e filosofia social. Sua teoria do reconhecimento pretende compreender as formas de reivindicação política assim como a natureza específica dos conflitos e das lutas existentes nas sociedades contemporâneas. Uma das preocupações centrais de seu principal livro,Luta por reconhecimento, consistiu em investigar a lógica dos conflitos sociais, insistindo na necessidade de apresentar a dinâmica de tais conflitos a partir de sua gramática moral implícita12.

A renovação representada pelas segunda e terceira gerações da teoria crítica implicou, portanto, a inclusão de categorias que permitissem explicar mais adequadamente as novas formas de luta política e de mobilização cultural que ampliaram os sentidos da emancipação e configuraram atualmente os dilemas e os desafios da democracia contemporânea. Abandonaram-se necessariamente as orientações emancipatórias presas ao paradigma produtivista e se estabeleceu um rico diálogo entre a crítica da sociedade e concepções normativas preocupadas com questões de justiça política e social, com a dinâmica política de esferas públicas autônomas, com a participação da sociedade civil e com as lutas por reconhecimento (em que estão envolvidos os dilemas criados por diferenças culturais, orientação sexual, gênero, raça etc.) , ou seja, âmbitos de conflitos sociais que requerem uma reflexão renovada sobre a moral, a política e o direito.

Essa rápida e esquemática referência à história da teoria crítica tem o intuito de posicionar o livro de Rainer Forst, Contextos da justiça, no interior dessa mesma tradição teórica. Podendo ser considerado membro de uma “quarta geração” da teoria crítica, Forst voltou-se essencialmente para as questões do pensamento político contemporâneo e foi responsável por uma rigorosa reconstrução de um dos mais importantes debates filosóficos da atualidade no campo das teorias normativas. Suas preocupações teóricas giram em torno da articulação entre crítica social e filosofia normativa, da reconstrução dos temas clássicos do pensamento político moderno e do enfrentamento dos dilemas contemporâneos ligados às questões de justiça, tolerância, cidadania e direitos humanos13. Esse rico estoque de problemas indica de certo modo que aquele ponto cego denunciado por muitos autores entre a filosofia política e a tradição da teoria crítica vem sendo superado desde a segunda geração14. O passo inicial mais significativo de Forst resultou no exaustivo estudo sobre a justiça política e social a partir de uma visão sistemática e crítica do conhecido debate entre liberais e comunitaristas.

Contextos da justiça, que acabada de ser publicado no Brasil em rigorosa tradução de Denilson Luis Werle, procura analisar criticamente as respostas oferecidas à questão da justificação das normas que tornam legítimas relações jurídicas, políticas e sociais no interior de uma comunidade política. Além de contribuir para o esclarecimento dos conceitos fundamentais das teorias da justiça, Forst pretende também superar a oposição consolidada entre liberalismo e comunitarismo, apresentando uma proposta de solução conceitual própria. Seguindo uma rígida oposição entre os dois polos que compõem o debate analisado, os liberais procuraram fundamentar moralmente uma teoria da justiça abstraindo os contextos sociais concretos e priorizando as liberdades individuais em face de concepções substantivas do bem. Os comunitaristas, por sua vez, criticaram essa tese liberal da prioridade do justo perante o bem e enfatizaram o enraizamento da justificação normativa de concepções de justiça em autocompreensões e tradições constitutivas das comunidades políticas, de modo que só poderiam ser considerados justos aqueles princípios que resultam de um determinado contexto comunitário, e somente ali podem pretender validade. Todas as teorias que sublinham a prioridade do justo diante do bem acabam se mostrando “indiferentes ao contexto”, ao passo que a teoria comunitarista reforça uma posição “obcecada pelo contexto” (p. 11). Forst, indo além dessa oposição, acredita ser necessário formular uma teoria crítica da justiça capaz de justificar o ancoramento dos princípios normativos nos valores, nas práticas e nas instituições da comunidade política, compatibilizando dessa maneira os aspectos universalistas com a reivindicação de validade daqueles princípios para a autocompreensão e instituições sociais específicas.

A solução conceitual de Forst para os dilemas criados no interior do debate sobre a justiça leva em consideração quatro “contextos de problemas teóricos” em que aspectos da justificação normativa oferecidos por liberais ou comunitaristas podem se mostrar mais ou menos adequados. O próprio conteúdo do livro, portanto, divide-se nesses quatro planos conceituais críticos. Primeiramente, abordam-se criticamente a constituição do self e os pressupostos de uma concepção atomista de pessoa, típicos da formulação liberal; em segundo lugar, Forst critica a neutralidade do direito diante de visões de mundo e concepções sobre a vida boa que caracteriza a tese liberal da prioridade do justo sobre o bem; em seguida, o texto apresenta uma análise crítica da aposta comunitarista na força eticamente integradora da comunidade política; em quarto lugar, por fim, analisa criticamente a teoria moral universalista e seu vínculo a contextos concretos de justificação. Em cada um desses planos se esclarecem as posições antagônicas de justificação da justiça, as quais permaneceriam, numa “perspectiva horizontal”, meramente excludentes.

Forst pretende mostrar a possibilidade de “superar” tais oposições tradicionais segundo uma “perspectiva vertical” a partir de sua tese dos “contextos da justiça”. Uma teoria crítica da justiça precisa antes considerar as necessidades que podem surgir no contexto de socialização dos indivíduos e serem justificadas publicamente em dimensões ao mesmo tempo diferenciadas e interrelacionadas. Argumentos universalistas, pretensões de neutralidade jurídica e dimensões axiológicas compõem os contextos de reconhecimento e de justificação pública nos âmbitos da moral, do direito, da ética e da política. “Eles formam”, comenta Forst,

[…] quatro “contextos” de reconhecimento recíproco – como pessoa ética, pessoa do direito, cidadão(ã ) com plenos direitos, pessoa moral – que correspondem a diferentes modos de justificação normativa de valores e de normas em diferentes “comunidades de justificação”. A análise do debate entre teorias deontológico-liberais “que se esquecem dos contextos” e teorias comunitaristas “obcecadas pelo contexto” levou, com isso, a uma diferenciação de quatro contextos normativos nos quais as pessoas estão “situadas” (p. 275).

Desse modo, aquelas clássicas oposições entre “eticidade” e “moralidade”, bem e justiça, são vinculadas a processos de justificação da normatividade em que formas de vida culturais e políticas e determinações substantivas da justiça encontram-se atreladas a direitos e procedimentos imparciais. “Portanto”, segue o autor, “princípios de justiça são aqueles que são justificados de modo universal e imparcial na medida em que correspondem, de maneira apropriada, aos interesses, necessidades e valores concretos daqueles atingidos por eles” (p. 276). Pretende-se assim evitar uma “cegueira” em face dos contextos, bem como apontar os limites das orientações contextualistas que desconhecem o núcleo universalista das reivindicações por justiça. A harmonização desses diferentes contextos requer uma teoria da justiça que possa reuni-los de um modo mais adequado.

A reconstrução do debate entre liberais e comunitaristas apresentada no livro evita, por conseguinte, a mera defesa de uma ou outra posição, privilegiando avaliá -los como abordagens parciais para o problema da justiça. Para que seja suficientemente abstrata e concreta ao mesmo tempo, uma teoria crítica da justiça assume o vínculo essencial entre pessoas e comunidades e parte do ancoramento dos princípios de justiça a toda comunidade política. A oposição normativa entre universalismo e contextualismo só pode ser superada se trouxermos para o centro da discussão a questão de quais conceitos de pessoa e comunidade estão em jogo. A solução conceitual de Forst complementa criticamente as proposições globais tradicionais ao distinguir quatro conceitos de pessoa (pessoa ética, pessoa de direito, cidadão e pessoa moral) e de comunidade (ética, jurídica, política e moral) que correspondem a quatro contextos normativos diferentes e entrelaçados de modo complexo:

A identidade ética das pessoas é reconhecida e protegida juridicamente numa sociedade e, na verdade, por meio do direito estatuído de modo político autônomo no interior de uma comunidade política de membros com plenos direitos – direito esse que possui um conteúdo moral em seu cerne, que respeita a integridade de pessoas morais (p. 276).

O propósito crítico da diferenciação e da articulação dos diversos contextos consiste menos na separação entre o plano ético, jurídico, político e moral, do que na possibilidade de “comprovar a compatibilidade dos direitos individuais com o bem da comunidade, da universalidade política com a diferença ética, do universalismo moral com o contextualismo”, permitindo desse modo “evitar oposições falsas” (p. 13).

Podemos chegar às diferenciações internas que compõem os contextos aludidos considerando as relações entre pessoa e comunidade. A teoria liberal tendeu a desvincular o indivíduo de seus contextos de socialização ao priorizar uma concepção abstrata de pessoa como portadora de direitos ou como pessoa moral. As críticas republicanas e comunitaristas mostraram, ao contrário, que toda pessoa se individualiza nas comunidades em que são integradas. Porém, não sabemos ainda a quais comunidades pertencem as pessoas e quais são as normas e os valores que as integram. Se para o liberal a justiça está fundada num conceito abstrato de pessoa de direito – como portadora de direitos subjetivos e como sujeito de direito -, para o defensor do contextualismo toda pessoa está integrada eticamente a uma determinada comunidade de valores. Embora Forst também não acredite ser necessário reduzir um âmbito ao outro, “verticalmente” é possível justapô -los de acordo com contextos de justificação diferentes e igualmente legítimos: enquanto considero a comunidade político-jurídica e sua integração normativa segundo uma concepção política e pública de justiça, compreendo os indivíduos como pessoas que portam direitos; já as comunidades éticas se integram por diferentes tipos de concepções do bem – e não com base na imagem abstrata e universal da pessoa de direito -, de modo que a pessoa ética se torna, dessa perspectiva, membro de determinadas comunidades com as quais a identidade do self está vinculada. As relações éticas (constituídas por visões de mundo e concepções de bem ) não substituem relações jurídicas (em que se trata de atentar para direitos e deveres que formam a estrutura de relações reguladas juridicamente). Como diz Forst, “uma coisa é reconhecer uma pessoa como igual portador de direitos; outra coisa é reconhecê -la em todas as suas qualidades” (p. 40). O direito igual justifica-se segundo normas e princípios que pretendem ser universalmente válidos sem que recorramos a concepções de bem e valores particulares. Não importa quais concepções éticas e valores estão em jogo, normas jurídicas (bem como normas morais) têm de valer “para todos”: no caso do direito, as normas jurídicas valem para todos os parceiros do direito considerados membros de uma comunidade jurídica; normas morais, por sua vez, valem para todas as pessoas morais consideradas membros da comunidade dos seres humanos. A validade de normas éticas, contudo, depende da identificação dos indivíduos com determinados valores que formam suas identidades do ponto de vista de sua história de vida.

Um dos principais conceitos utilizados por Forst nas quatro dimensões como mediação para redefinir os conceitos de pessoa de direito, cidadania ou de uma moral universalista em contextos intersubjetivos diferenciados é o de autonomia. “Segundo esse conceito”, afirma Forst,

[…] as pessoas como agentes são, no sentido prático, seres “autônomos” autodeterminantes quando agem de forma consciente e fundamentada. Como tais são responsáveis por suas ações: podem ser questionadas acerca das razões pelas quais agiram. Como pessoas responsáveis, são aquelas “que se justificam” e esperamos que tenham considerado suas razões para agir, sendo capazes de justificá -las. Nesse sentido, as pessoas autônomas são razoáveis em termos de razão prática: possuem razões para agir que podem ser justificadas para elas mesmas e comunicadas e defendidas diante de outras, de modo que essas razões […] possam ser compartilhadas (p. 305).

Contudo, também uma diferenciação nos “contextos da autonomia” poderá nos mostrar quais questões práticas e quais respostas autônomas podem se apoiar em razões capazes de ser publicamente reconhecidas. A “autonomia ética” está ligada à validade de valores éticos e à autorealização da pessoa; a “autonomia jurídica” é característica de pessoas de direito e é assegurada a todos os destinatários do direito; a “autonomia política” é exercida pelo cidadão considerado autor dos direitos; e a “autonomia moral” é pressuposta nas pessoas como autoras e destinatárias de normas morais. A justificação normativa exercida nos distintos contextos pode validar argumentos e princípios de justiça em referência à autorealização ética, à liberdade pessoal de ação, à autolegislação política ou à autodeterminação moral. Em tais contextos novamente a própria constituição do self (em que a pessoa ética é considerada membro de uma comunidade constitutiva da identidade) pode se distinguir da pessoa de direito (membro de uma comunidade de direito), bem como o cidadão (que pertence à comunidade política) desempenha um papel diferente daquele da pessoa moral (pertencente à comunidade moral de agentes moralmente autônomos). Liberais e comunitaristas não compreenderam justamente que nenhuma dessas concepções de autonomia pode pretender ser a única válida como base da justiça. Por essa razão, a tarefa da análise crítica é saber como integrá-las, compatibilizá-las e perceber quando entram em conflito “de modo que uma dimensão não seja sacrificada em nome das outras” (p. 306).

O livro não se limita à analise crítica dos argumentos normativos sobre a justiça. Há também um importante balanço sobre os princípios de legitimação do poder político em sociedades complexas e pluralistas. Forst amplia o quadro de discussão analisando princípios de justificação pública ao debater com as correntes deliberativas da democracia, com a crítica feminista do liberalismo, dilemas multiculturais e com a literatura sobre a sociedade civil. Sua intenção é pensar criticamente os pressupostos socioculturais das sociedades democráticas, ou seja, entender como os cidadãos se compreendem como membros de uma comunidade política e sob quais condições justificam publicamente normas que retiram sua legitimidade de discursos democráticos. A crítica de Forst implica pensar a relação entre cidadania e justiça social a partir de um ethos democrático constitutivo das práticas de justificação da normatividade sem cair, contudo, na oposição liberal/comunitarista. Mesmo que os próprios cidadãos precisem se compreender como participantes e responsáveis na regulação e na ação políticas, não são os valores éticos compartilhados que orientam legitimamente suas pretensões por reconhecimento e realização de direitos. Orientam-se antes pelo ideal de cidadania ativa, de modo que ethos da democracia não consiste senão na realização das dimensões da própria autonomia do cidadão.

Forst mantém, assim, uma atitude crítica diante das teorias normativas existentes. Na verdade, Contextos da justiça não pretende ir além dessa análise exaustiva das justificações normativas contidas nos discursos teóricos que compõem o amplo debate entre liberais e comunitaristas, ficando para seu outro livro a tarefa de compatibilizar uma reconstrução teórica com a dimensão histórica, como no caso, por exemplo, dos fenômenos da tolerância15. De todo modo, não há teoria crítica sem que se enfrente as teorias capazes de representar da melhor maneira os problemas de nossa época. Assim como fez Marx em seu tempo ao empreender uma “crítica da economia política”, a tarefa atual implica necessariamente uma crítica das mais importantes correntes teóricas vigentes – embora não mais da economia política, mas sim da filosofia política contemporânea com sua pauta de problemas e desafios ligados à moral, ao direito e à democracia.16 E para tanto, a análise crítica não oferece uma “nova” teoria da justiça, apenas acusa a parcialidade das oposições vigentes, reconstruindo seu sentido. Nessa relação com a filosofia política, a teoria crítica também não precisa abrir mão dos fundamentos normativos em que se apoiam tais teorias, bastando justificá -los de forma mais adequada em face dos complexos contextos da justiça.

Notas

1 Cf. NOBRE, M. “Teoria crítica hoje”. In: KEINERT, M. e outros (orgs.). Tensões e passagens: filosofia crítica e modernidade. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, pp. 265-83.
2 AVRITZER, L. “Teoria crítica e teoria democrática”. Novos Estudos Cebrap, nº 53, 1999, pp. 167-188. [Links] 3 BENHABIB, S. Critique, norm, and utopia: a study of the foundations of critical theory. Nova York: Columbia University Press, 1986, p. 347. [Links] 4 ARATO, A. eCohen, J. “Politicsand the reconstruction of the concept of civil society”. In: HONNETH, A. e outros (orgs.) .Zwischenbetrachtungen: Im Prozess der Aufklärung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1989, p. 493. [Links] 5 Cf. HONNETH, A. “Teoria crítica”. In: GIDDENS, A. e TURNER, J. (orgs.) . Teoria social hoje. São Paulo: Editora da Unesp, 1999, pp. 503-52. Ver também Nobre, M. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
6 BENHABIB, op. cit., p. ix. [Links] Ver também BAYNES, K.The normative grounds of social criticism: Kant, Rawls, Habermas. Nova York: Albany, 1991. [Links] 7 BOHMAN, J. Public deliberation: pluralism, complexity, and democracy. Massachussetts: MIT, 1996, p. 20. [Links] 8 WELLMER, A. “Bedeutet das Ende des’realenSozialismus’auchdasEnde des Marxschen Humanismus?”. In: Endspiele: Die unversöhnliche Moderne. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1993, p. 91. [Links] 9 HONNETH, op. cit., p. 517. [Links] 10 Cf. HABERMAS, J. “Volkssouveränität als Verfahren”. In:Faktizität und Geltung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1998, p. 602.
[11] Ibidem. “Ein Interview mit der New Left Review“. In: Die Neue Unübersichtlichkeit. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1985, p. 217.
12 Cf. HONNETH. A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.
13 Cf. FORST, R. Toleranz im Konflikt. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2003; Ibidem. “Os limites da tolerância”. Trad. Mauro Soares. Novos Estudos Cebrap, nº 84, 2009, pp. 15-29; Ibidem. Das Recht auf Rechtfertigung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2007; Forst e outros (org). Sozialphilosophie und Kritik. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2009. Ver também seu programa de pesquisa social desenvolvido ao lado de Klaus Günther, “Innenansichten: Über die Dynamik normativer Konflikte”. In: Forschung Frankfurt 2/2009. O subtítulo de seu próximo livro (no prelo) remete a uma junção explícita entre filosofia política e teoria crítica, a saber, “perspectivas de uma teoria crítica da política”. Cf. Forst. Kritik der Rechtfertigungsverhältnisse: Perspektiven einer kritischen Theorie der Politik. Frankfurt/M: Suhrkamp (no prelo).
14 Os limites existentes nessa “virada normativa” não foram desconsiderados mesmo por aqueles que se preocupam com uma renovação da tradição da teoria crítica. Cf. Honneth. “Das Gewebe der Gerechtigkeit. Über die Grenzen des zeitgenössischen Prozeduralismus”. In: Das Ich im Wir: Studien zur Anerkennungstheorie. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2010, pp. 51-77.
15 Cf. FORST, R. Toleranz im Konflikt, op. cit.
16 Cf. o programa de pesquisa apresentado em Forst e Günther, op. cit.

Rúrion Melo – Professor de Teoria Política do Departamento de Ciências Sociais da Unifesp e pesquisador do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap.

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Mestres do passado: clássicos da sabedoria política moderna | Marcos Antônio Lopes

Um conjunto variado de temas – eis o que nos revela Mestres do passado, coletânea de ensaios do historiador Marcos Antônio Lopes. A obra apresenta a análise de alguns autores que a tradição interpretativa tem considerado como as grandes figuras do pensamento político moderno. De Maquiavel a Montesquieu, passando por Morus, Hobbes e Locke, o livro reúne uma seleção de filósofos tão diferentes quão interessantes. O autor se empenhou em incluir no grupo figuras menos prováveis de ocorrer numa história do pensamento político. São elas o místico italiano Giordano Bruno, o bispo francês Jacques-Bénigne Bossuet e o intrépido Voltaire, autores que comumente são deixados de lado nas obras do gênero.

O ensaio de abertura do livro intitula-se “Para viver na posteridade: as tradições intelectuais e a permanência das obras de pensamento”. Ao final, o artigo “Esticando conceitos” funciona como um apanhado bastante sugestivo sobre o complexo conceito de política e de Estado tomado numa linha de continuidade que parte de Platão e Aristóteles para chegar a Marx, Weber e Bobbio. Ainda que separados pelos capítulos de exegese de textos clássicos da história da filosofia política moderna, textos que cobrem os séculos XVI, XVII e XVIII, os ensaios em referência são dois momentos nos quais Lopes discorre sobre conceitos operacionais e metodologias interpretativas e acerca de como ler as obras do passado. Leia Mais