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Filosofia no Brasil: Legados & perspectivas. Ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (RFA)
DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: Legados & perspectivas. Ensaios metafilosóficos. São Paulo: Editora da Unesp, 2017. Resenha de: PERINE, Marcelo. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.30, n.50, p.540-546, maio/ago., 2018.
Um livro de filosofia apresenta especiais dificuldades para ser resenhado porque, segundo Eric Weil, ele só se torna plenamente compreensível na segunda leitura. Resenhar, após a primeira leitura, um livro de filosofia comum segundo subtítulo de ensaios metafilosóficos é particularmente difícil, a começar pelo seu enquadramento no gênero ensaio. Dicionarizado na rubrica literatura, o ensaio é definido no Aurélio como “prosa livre que versa sobre tema específico, sem esgotá-lo, reunindo dissertações menores, menos definitivas que as de um tratado formal, feito em profundidade”. A definição não se aplica rigorosamente aos seis passos que compõem o livro em pauta. Com efeito, a sua prosa, embora verse sobre um tema específico, não é uma prosa livre, mas firmemente atada ao propósito demonstrativo que caracterizou o discurso filosófico desde as suas origens gregas. É verdade que o autor não pretende esgotar o tema vastíssimo expresso no título do livro. O primeiro subtítulo o atesta: legado é, ao mesmo tempo, algo que se recebe e que se transmite; perspectiva é um modo de ver até onde os olhos alcançam, é uma prospectiva, mas é também um sentimento de esperança, uma expectativa. Ademais, o volume reúne dissertações de diferentes dimensões, que não alimentam a pretensão de serem definitivas, como podem ser os tratados formais em alguns campos do saber. A decisão de imprimir às suas reflexões a forma do ensaio filosófico permitiu ao autor escolher “a provisoriedade dos resultados, a aventura do pensamento não objetual e a abertura de picadas ou de caminhos das tentativas, pois ensaiar é tentar, como viu Montaigne, que o inaugurou em filosofia” (p. 2). A escolha se revelou acertada, pois em filosofia a profundidade não se mede pela extensão. Um aforismo de Heráclito é infinitamente mais profundo do que carradas de razões que pululam no tom superior que recentemente ecoou de novo na filosofia, para falar como Kant.
Mas os legados e perspectivas da reflexão sobre o problema filosófico da existência ou não de uma filosofia no Brasil se apresentam na forma de ensaios metafilosóficos. Estamos, portanto, diante de um livro de filosofia da filosofia no Brasil, o que acrescenta um segundo nível de dificuldade ao resenhista de primeira leitura, pela eventual necessidade de uma terceira leitura. Não foi o caso! A legitimidade da primeira leitura foi assegurada pelo próprio autor: “[…] entendo que ninguém em filosofia está obrigado a fazer história da filosofia nem a se livrar dela para fazer a verdadeira filosofia: simplesmente, cada um de nós pode tentar ser ‘filósofo por sua conta’, procurando as mais diferentes companhias […]” (p. 28). A senha dada pelo autor autoriza tanto a diversidade de leituras filosóficas como as diferentes perspectivas de compreensão dos legados da história intelectual do Brasil, que é também a história dos intelectuais no Brasil, como parte do grande mosaico da história da cultura, das ideias e da filosofia.
O livro não é de exegese filosófica, nem de historiografia da filosofia. Se algo se pode apreender já na primeira leitura é que o exercício metafilosófico do autor, mesmo tendo percorrido e recorrido ao fio do tempo cronológico para evidenciar legados e ensaiar perspectivas, se configurou como o exercício de escolher aqueles antepassados que lhe permitissem compreender o exercício da filosofia no Brasil. Sem ter a veleidade de “capturar tudo do real empírico e da nossa história”, o interesse do autor pela história produziu “um livro de ensaios sobre as diferentes experiências do filosofar em nossas terras”. A história, portanto, foi tomada pelo autor como “meio e fonte, não como objeto ou objetivo da pesquisa” (p. 3 et seq.).
Seis ensaios filosóficos compõem o livro, “dispostos em passos argumentativos com unidade temática”, dedicando-se o primeiro ao:
delineamento do argumento metafilosófico da filosofia nacional e seus recortes temporais, em que o propósito dos ensaios é debatido e a metodologia justificada, e consagrando-se os cinco restantes a cada um dos recortes e seus temas específicos, em que o núcleo duro da argumentação é apresentado e desenvolvido (p. 10).
O segundo passo analisa “o passado colonial e seus legados: o intelectual orgânico da Igreja”, cujo modelo ou tipo, em sentido quase-weberiano, é o Pe. Antônio Vieira. A necessidade de fornecer o contexto social mais amplo, apoiado em autoridades como Serafim Leite, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda, produziu o ensaio mais longo (137 páginas) e mais documentado do volume. O terceiro passo, “Independência, Império e República Velha: o intelectual estrangeirado”, é o segundo em extensão (125 páginas), também amplamente documentado a partir dos autores de referência já citados, aos quais se acrescentam Raymundo Faoro e Celso Furtado, entre outros, e, no que se refere à filosofia e à história das ideias no Brasil, particularmente Cruz Costa. Os intelectuais estrangeirados que tipificam o período são Joaquim Nabuco, Bonifácio de Andrada, Ruy Barbosa e Euclides da Cunha e, na filosofia, Tobias Barreto.
A partir do quarto passo — “Os anos 1930-1960 e a instauração do aparato institucional da filosofia: os fundadores, a transplantação do scholar e do humanista intelectual público” — a reflexão do autor perde em extensão (94 páginas), mas ganha em acuidade. O ensaio mostra que o verdadeiro começo da filosofia autônoma no Brasil está ancorado na instauração de um aparato institucional em diferentes níveis: a criação de universidades públicas reais, não apenas nominais, como foi a Universidade do Rio de Janeiro, criada em 1920, mais tarde renomeada Universidade do Brasil (1937); de universidades católicas, sendo pioneira a PUC-Rio, fundada pelos jesuítas sob a liderança do Pe. Leonel Franca em 1941; de institutos de estudos e pesquisas, como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), criado em 1954; de revistas filosóficas, como a pioneiríssima Kriterion, da UFMG, fundada em 1947 por Arthur Versiani Vellôso, seguida da Revista Brasileira de Filosofia, fundada em 1951 por Miguel Reale, no âmbito do Instituto Brasileiro de Filosofia, assim como a criação de órgãos federais de fomento como a CAPES e o CNPq em 1951, cujos efeitos se mostrarão notórios no próximo passo/ensaio.
Esse período, com sua “galeria de heróis-fundadores” (p. 398), forjou duas novas figuras intelectuais. Amparado no conhecido estudo de Paulo Arantes, o autor desenha a primeira como a do scholar/erudito, gerado pela atuação da Missão Francesa que fez da Faculdade de Filosofia da USP um “Departamento francês de ultramar”. Aproveito a ocasião para sinalizar ao leitor que, ao exemplificar o que seria o erudito virtuose especialista atual na filosofia (p. 416), há uma informação equivocada sobre Francisco Benjamin de Souza Netto, conhecido como Dom Estevão: o ano de seu nascimento é 1937 e até o momento está vivo, embora com a saúde muito debilitada. A segunda figura da intelligentsia brasileira nesse período é a do humanista intelectual público. O autor afirma que “O único filósofo candidato a filósofo brasileiro e intelectual público nos anos 1930-1960 é, no entender de muitos, Álvaro Vieira Pinto” (p. 423). Sobre a controvertida figura do “chefe do departamento de filosofia do Iseb”, que “colocou a filosofia a serviço do projeto nacional-desenvolvimentista” (p. 427), o autor observa que, já no primeiro passo/ensaio do livro em pauta, procurou “remediar a recepção de Álvaro Vieira Pinto, reconhecendo a dureza e a ingratidão de seus pares, além da relevância de suas posteriores contribuições importantes para a inteligência nacional, longe do Iseb, no campo da filosofia da tecnologia” (p. 426). No final do ensaio o autor dá o passo ao quinto passo/ensaio da obra, afirmando que “como no caso do scholar brasileiro, será preciso esperar pelos anos 1960-1970 para que o intelectual público entrasse em cena” (p. 427).
A tarefa do quinto passo/ensaio — “Os últimos 50 anos: o sistema de obras filosóficas, os scholars brasileiros e os filósofos intelectuais públicos” — foi realizada com ainda maior concisão pelo autor. Em 72 densas páginas, partindo da grande virada dos anos 1960, quando “a filosofia brasileira finalmente ganha autonomia”, e “diante do fato novo de se estar diante de uma positividade — o sistema de obras filosóficas — e a necessidade de interpretá-la com as lentes e as ferramentas da filosofia”, o autor se vê obrigado a “introduzir algumas modificações no esquema até agora desenvolvido (p. 431). A primeira delas é que o foco não será mais a criação do arcabouço institucional da filosofia, mas a implantação do sistema nacional de pós-graduação por obra da Capes nos anos 1970. Em segundo lugar, a análise comparativa não será mais com as ciências humanas e sociais, mas da filosofia consigo mesma, destacando as mudanças qualitativas e de escala. Não se falará mais de heróis-fundadores, com a única exceção de Oswaldo Porchat (p. 466 et seq.), mas de virtuoses de ofício e, finalmente, “mantido o tema da paisagem filosófica, das matrizes de pensamento e dos principais nomes”, o autor se arriscará a justificar a escolha de três nomes, a saber, Giannotti, Marilena Chaui e padre Vaz, “que lograram ocupar o espaço público ou a cena pública, ao se transformarem em verdadeiros intelectuais públicos” (p. 432).
Permito-me aqui chamar a atenção para uma ausência no elenco de nomes que ilustram as seis “matrizes de pensamento” dos últimos 50 anos, propostas pelo autor (epistemológica, metafísica, histórico-filosófica, exegética, ético-política e cultural). Na matriz exegética, cujos exemplos são José Henrique Santos sobre Hegel, Raul Landim sobre São Tomás e Descartes, Marilena Chaui sobre Espinosa, Ernildo Stein sobre Heidegger, junto com Franklin Leopoldo e seus trabalhos sobre filosofia francesa, Paulo Margutti e seus estudos sobre Wittgenstein, Roberto Machado sobre Foucault e Deleuze, Giacoia e Scarlett sobre Nietzsche e Porchat sobre o ceticismo, penso que seria fazer justiça a Luís Alberto de Boni e a Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, nomeá-los também nesta matriz em reconhecimento ao pioneirismo que exerceram no campo dos estudos de filosofia medieval no Brasil. Carlos Arthur foi, provavelmente, o primeiro brasileiro a obter um PhD em Sciences Médiévales, em 1976, pelo Instituto de Estudos Medievais da Universidade de Montreal no Canadá, e destacou-se em nossa academia não só pela exegese de textos de Tomás de Aquino, Roger Bacon e Galileu, mas também por notáveis traduções de autores medievais. De Boni, doutor em teologia pela Universidade de Münster, sob a orientação do renomado teólogo Johann Baptist Metz, foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval e, junto com Carlos Arthur, é dos principais promotores dos estudos filosóficos medievais no Brasil.
Seria ocioso desvelar aqui os fatos e as razões pelos quais o autor indicou padre Vaz, Giannotti e Marilena Chaui como filósofos brasileiros que souberam “unir as perspectivas da ação e do intelecto”, pelos quais a filosofia é levada ao máximo de suas possibilidades como experiência e elaboração da cultura, e por isso mesmo poderá lograr o máximo de relevância social e mesmo política, com todos os riscos que a ação pública comporta para o trabalho intelectual – inclusive a traição da filosofia e o suicídio do intelecto (p. 432).
Com essa instigante sugestão, remeto o leitor às páginas 481-492 em que os fatos e as razões são expostos. Faço uma única observação a essas páginas: quando se desenha, com muita precisão, o perfil de Marilena Chaui como exemplo do intelectual público brasileiro, faltou uma referência ao período em que ela foi Secretária de Cultura do município de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992). A menção a esse dado da biografia política da filósofa serviria apenas para, como se dizia antigamente, confirmar o sobredito com mais um exemplo!
O sexto e último passo/ensaio quase deixa transparecer a exaustão do autor após o gigantesco esforço analítico dispendido até então. Em 46 páginas opera uma espécie de sondagem do futuro intitulada “Conquistas e perspectivas: os novos mandarins e o intelectual cosmopolita globalizado”. O final do percurso revela que todo o esforço do autor “consistiu em estender para a filosofia o paradigma da formação já em largo uso pelos historiadores, economistas, sociólogos e críticos literários” (p. 506). As conquistas “podem não ter sido muitas ou espetaculares” (p. 511), mas as perspectivas apontam para uma figura de intelectual cosmopolita e globalizado, tipo ideal ainda em construção na filosofia brasileira, cujos traços seriam: [1] “o ascetismo intramundano”, que tem o mundo como campo de ação; [2] “o criticismo” que tem “como aguilhão o sentimento de desconforto provocado por um duplo inconformismo: diante dos males do mundo e diante dos males de seu país”, [3] “a renúncia ao pessoal e aos interesses particulares em favor do engajamento nas causas sociais e coletivas”, [4] “a eleição ou o descortinamento […] da esfera da cultura como campo de ação e de embate do intelectual, tendo como âmbito virtualmente todo o planeta” (p. 548). Segundo o autor, o único brasileiro que cristalizou esse tipo de intelectual foi Machado de Assis. Os seis ensaios metafilosóficos se concluem com uma pergunta que é um desafio e um programa para a filosofia no Brasil: “se já o temos ou tivemos em literatura e em artes, por que não na filosofia e com uma mente privilegiada nascida nestes cantos?” (p. 549).
Tenho informações de que o livro já está sendo preparado para uma segunda edição. Por isso é desnecessário indicar pequenos deslizes de revisão, quase inevitáveis em obra de tal extensão, que certamente serão corrigidos. Para mim, a qualidade da obra e sua inestimável contribuição para a nossa bibliografia filosófica são frutos maduros de um pensador ao qual se pode atribuir a mesma ousadia que ele atribuiu aos experts e aos scholars nesta obra: a ousadia de “correr o risco do pensamento: o risco de pensar, de comparar e de falhar — coisa que ainda nos ameaça e que desde os tempos coloniais nos deixa paralisados e com a mente servilizada” (p. 36).
Marcelo Perine – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil. Doutor em Filosofia. E-mail: mperine@gmail.com
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