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Filosofia da tecnologia: um convite – CUPANI (SS)
CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2011. Resenha de: CRUZ, Cristiano Cordeiro. Desbravando a tecnologia. Scientiæ Studia, São Paulo, v.12, n. 3, p. 601-5, 2014.
David Wallace, romancista norte-americano, inicia um de seus textos com uma passagem provocativa: “dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:
– Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
– Água? Que diabo é isso?” (Wallace, 2008, p. 105).
Nesse texto, que é um discurso de paraninfo para uma turma de graduandos, Wallace discorre sobre questões existenciais profundas, tão urgentes e presentes ao ser humano, na sua busca por construção de sentido, quanto usualmente por nós negligenciadas.
Não é exatamente desse tipo de questões que Cupani se ocupará em sua obra Filosofia da tecnologia: um convite. Contudo, assim como a água da história de Wallace, a tecnologia, de tão presente em nossas vidas, costuma apresentar-se como se transparente. Com efeito, desde as máquinas que facilitam o nosso dia-a-dia, até as técnicas que tornam a cura de doenças mais eficaz, a tecnologia está por toda parte. Que diabos, no entanto, é de fato a tecnologia? Ela é passível de ser socialmente controlada ou se desenvolve de maneira automática e autônoma? Ela é neutra, estando imune a valores sociais, ou, ao contrário, incorpora-os, alterando-se em função dos valores específicos que a moldam? Se ela incorpora valores, quais questões éticas são ou poderiam ser pertinentemente levantadas com relação ao processo de seu desenvolvimento? Ela impacta a vida humana individual e coletiva? Que nível de controle político, democrático, é lícito requerer em contrapartida? Que tipo de conhecimento fundamenta a atividade técnica?
Dessa forma, no sentido de oferecer ao leitor uma primeira aproximação filosófica ao tema, com algumas alternativas de respostas às questões anteriores, Cupani propõe-nos uma jornada que parte da percepção da complexidade disso que se chama tecnologia, até chegar à análise do que se convencionou chamar “determinismo” ou “autonomia” tecnológica. É assim que, no primeiro capítulo, a tecnologia será descortinada em sua multiplicidade e ambivalência, como um modo de fazer coisas, associado a um saber, diante do qual não apenas cabem, mas urgem serem feitas indagações de ordem ontológica, epistemológica, axiológica e ético-política. Tais questões não são abordadas separadamente nos capítulos que se seguem, à exceção talvez dos três últimos, mas apresentadas de modo transversal ao longo da maior parte do texto, valendo-se, para isso, também de contribuições vindas da história e da sociologia.
Ao iniciar sua análise sobre o fenômeno tecnológico, Cupani apresenta, no segundo capítulo, os estudos clássicos da área, de autores que escreveram antes da criação do ramo de filosofia da tecnologia, que se consolida apenas nos anos 1970. Os três primeiros – Ortega y Gasset, Heidegger e Gehlen – abordaram o fenômeno tecnológico a partir de suas compreensões de mundo mais amplas, buscando apontar, a partir delas, tanto a causa da gênese da tecnologia e sua transformação ao longo do tempo (mormente a transformação trazida com a modernidade), quanto seus impactos benéficos e maléficos sobre o ser humano. O quarto é o francês Gilbert Simondon, que, além de filósofo, também era engenheiro. Sua análise é considerada pioneira na área, esmiuçando a tecnologia a partir de dentro, ou seja, a partir do olhar do engenheiro. Sua compreensão é que desconhecemos a tecnologia, razão que nos leva a julgá-la de maneira inadequada, demonstrando, com isso, mais a tacanhez de nossa cultura do que propriamente consequências de fato negativas do desenvolvimento tecnológico. A tecnicidade, ou seja, a essência da tecnologia, deve ser concebida, segundo o autor, como um modo de relação do homem com o mundo (ao lado do estético, do religioso etc.), que caracteriza a maneira com que fomos aprendendo a lidar com a natureza. Assim, para Simondon, faltar-nos-ia uma educação tecnológica desde a infância que nos ajudasse a nos colocarmos no mundo no mesmo nível que as máquinas, elevando-nos em nossa cultura, segundo as possibilidades oferecidas por elas.
No terceiro capítulo, Cupani apresentará a visão do historiador Lewis Mumford sobre a tecnologia. Este, ao analisar transformações significativas por que passa a Europa no final da Idade Média, compreende a máquina moderna como a conjugação de duas importantes disposições humanas da época: a vontade de dominar o ambiente, aliada à vontade de poder. Dessa associação adviria a ruptura com o passado cultural, a crescente exploração do trabalhador e a poluição ambiental, a que se somarão, posteriormente, a forte colaboração da ciência e o surgimento da figura característica da sociedade industrial, o técnico especializado. Nosso desafio atual seria, então, o de superarmos o mito da máquina, assumindo-nos não como homo faber, mas como homo sapiens, seres que, em sendo capazes de pensar, são capazes de conceber e utilizar ferramentas, além de serem capazes de diversas outras coisas. Desse modo, ao imperativo clássico da técnica – o de que há uma única velocidade eficiente: mais rápido; um único destino atraente: mais longe; uma única medida desejável: maior; uma única meta quantitativa racional: mais – precisamos responder com o desenvolvimento das outras incalculáveis potencialidades de autoatualização e autotranscendência que temos em nós.
Daí em diante, Cupani apresentará as análises e reflexões de diversos filósofos da tecnologia. É assim que o quarto capítulo traz a análise conceitual de Mario Bunge; o quinto mostra a interpretação do significado da experiência humana condicionada pela tecnologia segundo Don Ihde, Hubert Dreyfus e Albert Borgmann (estudos de inspiração fenomenológica e hermenêutica); e o sexto expõe a relação entre tecnologia e o exercício do poder de acordo com Langdon Winner e Andrew Feenberg. Em síntese, Bunge propõe uma tecnologia axiologicamente não neutra, calcada em conhecimento técnico e científico irredutíveis um ao outro, e desenvolvida por tecnólogos eticamente imputáveis pelas consequências do uso dos artefatos por eles projetados. Os fenomenólogos, em seu esforço por descrever pormenorizadamente todos os matizes do fenômeno tecnológico, sublinham aspectos importantes usualmente não percebidos de nosso ser-tecnologicamente-no-mundo, alertando-nos, dentre outras coisas, com respeito à tendência desumanizadora de nos “tecnologizarmos”. Por fim, Winner e Feenberg, ainda que por caminhos e análises distintas, sustentam que a tecnologia também é vetor de valores sociais, de sorte que o controle político e democrático sobre o seu desenvolvimento é não apenas possível, dentro de certos limites, como altamente desejável.
Nos três últimos capítulos, ao expor o entendimento de distintos autores, Cupani aprofunda alguns aspectos epistemológicos (capítulo 7), sociais, políticos e existenciais (capítulo 8), e ontológicos (capítulo 9) da tecnologia, em boa medida já tocados nos capítulos anteriores. Insiste então na existência de um conhecimento técnico irredutível ao científico, ainda que possa existir significativo grau de interdependência entre eles, sendo ambos necessários para o desenvolvimento tecnológico. Além disso, malgrado diversos indícios do forte impacto da tecnologia em nossa vida, que afeta nossa forma de experimentar e significar a existência individual e coletiva, o juízo positivo ou negativo disso está em boa medida relacionado às ideologias às quais se vincula aquele que o emite. O cuidado na análise crítica da tecnologia deve ser, então, o de buscarmos sempre despirmo-nos de nossas preconcepções, de modo a, por exemplo, não tomarmos como certo, geral ou universal – e, por isso, potencialmente terrível –, aquilo que é de origem múltipla, local ou circunstancial. Por fim, no que tange ao argumento da impossibilidade de se controlar o desenvolvimento técnico, a partir do momento em que ele é posto em movimento, tal coisa parece dar-se menos por um poder irresistível e inato da tecnologia, do que por uma progressiva adesão muitas vezes inconsciente de nossos semelhantes ao “projeto tecnológico”. Assim, ainda que pareçam existir aspectos essencialmente inalteráveis na tecnologia, não está dado nela que sejamos obrigados a prestar-lhe culto e/ou a nos adequarmos a todos os seus propósitos (supostamente) despóticos.
Na leitura de Filosofia da tecnologia: um convite, é importante que tenhamos em mente uma advertência expressa de Cupani com relação ao que ele pretendeu com a obra: ser uma iniciação para quem não conhece o tema e não domina outras línguas (de modo que não teria condições de recorrer a outros bons livros introdutórios e à boa parte dos autores por ele aqui tratados, que não contam ainda com traduções para o português). Nesse sentido, o autor realiza bastante bem sua tarefa, apresentando diversos dos aspectos essenciais relacionados à reflexão filosófica sobre a tecnologia de modo usualmente claro, sucinto e provocativo. Trata-se, entretanto, de um livro de filosofia. Dessa forma, o leitor deverá estar ciente de que, para compreendê-lo, não poderá proceder a uma leitura meramente mecânica: ele precisará estar disposto a refletir.
A característica marcante da obra é que ela oferece um amplo panorama sobre o tema, uma coletânea de pontos de vista nem sempre contraditórios, mas muitas vezes potencialmente complementares. A ideia, também explicitamente expressa, do autor não é fechar uma definição e uma compreensão canônicas acerca da tecnologia, até porque tal coisa continua em ampla disputa. Sua intenção é suscitar em nós a inquietação que nos fará buscar aprofundarmos nossa compreensão e nossa análise sobre o assunto. Cupani logra, em diversas partes de seu livro, um feito notável: possibilitar ao leitor não apenas enxergar e ser capaz de analisar de forma crítica a “água” tecnológica em que habita, mas, tão importante quanto isso, questionar suas próprias preconcepções. Com efeito, ainda que apresente o tema majoritariamente a partir da ótica de pensadores críticos, sua abordagem se dá segundo uma perspectiva “desarmada”, que possibilita ou fundamenta um diálogo, muito mais do que mune fundamentalistas de dogmas, verdades ou intransigências. Em um tempo no qual nossa dificuldade de dialogar com o diferente, de escutá-lo, torna-se mais evidente ou mais potencializada pelas redes sociais, tal obra cumpre um papel bastante interessante, mostrando-nos não apenas a característica multifacetada do fenômeno técnico, como as possibilidades de enriquecimento de nossa compreensão dele a partir de uma abordagem plural, que conjuga argumentos tradicionalmente atribuídos às esquerdas e às direitas ideológicas, em um todo menos panfletário do que aquilo que usualmente encontramos. Exatamente por isso, mais afeito à honestidade intelectual.
Seu texto, então, ajuda-nos a compreender melhor o fenômeno tecnológico, abandonando as certezas próprias daqueles que desconhecem; a percebermos possibilidades de afetá-lo, de incidirmos sobre ele, sem demonizá-lo; e a buscarmos aprofundarmo-nos na compreensão da tecnologia, superando preconceitos, naturalizações e fatalismos. Dessa forma, o livro fornece mais consciência acerca da realidade técnica em que estamos inseridos. Ao fazer isso, se não nos lança diretamente nos mesmos tipos de questões existenciais apresentadas por Wallace, nem por isso ajudanos menos na tarefa de construirmos, individual e coletivamente, uma vida que valha realmente a pena ser vivida, sem aprisionamentos ou apequenamentos contingentes, vendidos ou assumidos como inevitáveis ou insuperáveis. Talvez, como afirma Feenberg (2002), a tecnologia não seja destino, mas construção, opção. E se é de fato assim, faz-se mister, antes de tudo, aprofundar-se no assunto.
Referências
CUPANI, A. Filosofia da tecnologia: um convite. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 2011.
FEENBERG, A. Transforming technology: a critical theory revisited. New York: Oxford University Press, 2002.
WALLACE, D. F. A liberdade de ver os outros. Revista Piauí, 25, p. 105, 2008. Disponível em: <http:// revistapiaui.estadao.com.br/edicao-25/despedida/a-liberdade-de-ver-os-outros>. Acesso em: 04 fev. 2014
Cristiano Cordeiro Cruz – Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Pesquisa de doutorado, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo 2013/18757-0. Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: cristianoccruz@yahoo.com.br
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Filosofia da tecnologia: um convite – CUPANI (P)
CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. Resenha de: SZCZEPANIK, Gilmar Evandro. Principia, Florianópolis, v.16, n. 3, p.505–510, 2012.
A obra Filosofia da tecnologia: um convite, publicada em 2011 pela editora da Universidade Federal de Santa Catariana, apresenta os autores fundamentais e as principais correntes filosóficas que perpassam a filosofia da tecnologia. Além de divulgar o debate filosófico existente em torno da tecnologia de forma convidativa, instiga e desafia a realização de novas pesquisas sobre esse tema ainda pouco estudado no contexto brasileiro. Trata-se de uma das melhores referências sobre a temática existentes em língua portuguesa. A clareza argumentativa com a qual a obra foi escrita permite que pessoas não iniciadas nessa área tenham um entendimento adequado do assunto e pessoas já inseridas na tradição filosófica conheçam a pluralidade e a complexidade dos problemas filosóficos vinculados à tecnologia. Muito mais do que um recorte ou uma simples reconstrução da história da filosofia da tecnologia e de seus problemas, a obra traz um olhar crítico e reflexivo sobre as questões filosóficas despertadas pela tecnologia.
O livro encontra-se dividido em 9 capítulos nos quais são apresentados os principais temas e problemas que permeiam a filosofia da tecnologia. No primeiro capítulo da obra, Cupani enfatiza a complexidade que envolve o estudo filosófico da tecnologia.
As dificuldades iniciam quando os investigadores se propõem a responder a seguinte questão: o que é a tecnologia? Diferentes filósofos profissionais buscaram respostas para essa indagação. Dentre as múltiplas definições e caracterizações existentes sobre a tecnologia, Cupani destaca aquela apresentada pelo filósofo norteamericano Carl Mitcham (1994) que compreende a tecnologia i) como objeto, ii) como conhecimento, iii) como atividade humana e iv) como volição. Além da problemática conceitual, o autor considera que a tecnologia tem implicações filosóficas distintas que repercutem de diferentes formas nas diversas áreas da filosofia. Assim, muitas teses filosóficas desenvolvidas ao longo da tradição poderiam ser repensadas e/ou reavaliadas a partir de ponto de vista tecnológico.
O segundo capítulo é dedicado aos pensadores clássicos da área, como o espanhol José Ortega y Gasset (1939), os alemães Martin Heidegger (1954) e Arnold Gehlen (1949) e o francês Gilbert Simondon (1958), que contribuíram para a consolidação da filosofia da tecnologia como uma disciplina. Cupani apresenta as peculiaridades argumentativas desenvolvidas por cada um deles para fundamentar uma concepção de tecnologia. Apresenta-nos assim, um Ortega y Gasset que concebe a tecnologia como um tipo específico de reforma que o homem impõe à natureza com o objetivo de satisfazer suas necessidades, sejam elas básicas ou supérfluas, pois o homem não quer apenas viver, mas deseja viver bem. Em seguida, expõe de forma precisa o enfoque ontológico e metafísico desenvolvido por Heidegger sobre a técnica, reconstruindo a crítica heideggeriana à concepção antropológica e instrumental da técnica. As ideias do filósofo e sociólogo Arnold Gehlen sobre a tecnologia são apresentadas logo após e Cupani retoma as principais teses relacionadas à ambigüidade da técnica, às relações e semelhanças da técnica com a magia, ao prolongamento técnico dos membros e das capacidades humanas. Por fim, Cupani apresenta a posição do filósofo francês Gilbert Simondon que chama a atenção para a falta de compreensão do mundo tecnológico e a necessidade de se filosofar sobre a técnica. Perspectivas otimistas são contrapostas com abordagens críticas e não-otimistas. Todos os autores apresentados consideram fundamental direcionar o pensamento filosófico à tecnologia.
O terceiro capítulo é dedicado principalmente às ideias do historiador norteamericano Lewis Mumford (1934, 1967 e 1970), um dos mais expressivos estudiosos da filosofia da tecnologia pelo seu viés historiográfico, que esboça uma história do progressivo desenvolvimento tecnológico da espécie humana e analisa o papel que a técnica exerceu na civilização ocidental, apontando diferentes estágios de seu desenvolvimento.
Neste capítulo, Cupani apresenta o interessante argumento de Mumford segundo o qual o relógio (e não a máquina de vapor) é a máquina-chave da era industrial.
Um dos principais pontos deste capítulo está relacionado à compreensão da relação entre o homem e a máquina, pois “vivemos numa civilização da máquina”, diz Cupani, mas seria um exagero considerá-las uma maldição ou a causa de todos os nossos problemas.
No quarto capítulo da obra, nos deparamos com uma abordagem analítica da filosofia da tecnologia fundamentada predominantemente nos escritos do filósofo Mario Bunge (1974, 1985a e 1985b). Um dos primeiros pontos explorados é a distinção entre “técnica” e “tecnologia”. Ambas são caracterizadas pela produção de algo artificial, isto é, de um artefato. No entanto, a primeira designa um controle ou transformação da natureza com elementos pré-científicos e a segunda envolve necessariamente um embasamento científico moderno. O enfoque analítico da filosofia da tecnologia busca compreender a tecnologia como uma atividade planificada, que possui métodos, que utiliza e ao mesmo tempo desenvolve conhecimentos e que é orientada por um conjunto de valores, normas e regras específicas. Neste capítulo, Cupani concede espaço à discussão sobre a distinção entre ciência pura, ciência aplicada e tecnologia. Este debate vem sendo realizado há um longo período, mas as fronteiras entre essas áreas ainda não foram definidas com precisão. Além das linhas demarcatórias serem tênues, há posições alternativas que questionam a viabilidade da manutenção das mesmas. A tecnociência, por exemplo, sustenta que a ciência e a tecnologia encontram-se fundidas de tal modo que é inviável tentar compreendê-las separadamente. Na parte final do capítulo, há duas seções dedicadas as i) questões ontológicas e epistemológicas; e ii) as questões axiológicas e éticas suscitadas pela tecnologia. Desta forma, Cupani demonstra como podemos abordar analiticamente a tecnologia.
Como vimos até aqui, a filosofia da tecnologia comporta diferentes abordagens. A abordagem fenomenológica da tecnologia é desenvolvida no quinto capítulo do livro no qual Cupani discute predominantemente com Don Ihde (1990), Hubert L.
Dreyfus (1992) e Albert Borgmann (1984). O autor ressalta a forma como o filósofo norte-americano Don Ihde i) rejeita a noção de neutralidade científica e o modo como o mesmo ii) explora a relação entre eu — tecnologia — mundo que faz com que a tecnologia deixe de ser compreendida como um instrumento neutro e passe a ser compreendida como “encarnada” ou “incorporada”, interferindo diretamente nas experiências que temos. Em relação ao pensamento de Dreyfus, Cupani reconstrói as críticas do filósofo norte-americano ao programa de Inteligência Artificial (IA) que tinha a ambição de produzir supermáquinas tão ou mais inteligentes que o próprio homem. No entanto, “o nosso risco não é o advento de computadores superinteligentes, mas o de seres humanos subinteligentes” (Dreyfus 1992, p.280). A postura que Albert Borgmann exerce perante a tecnologia é de uma riqueza impressionante, pois ele consegue captar e descrever detalhadamente muitos aspectos que não são percebidos ou valorizados em um enfoque “objetivista”, afirma Cupani. Nesse contexto, a tecnologia é concebida como um modo de vida específico da Modernidade e deve ser compreendida como um fenômeno básico e não como consequência de fatores sociais, econômicos ou políticos. São particularmente interessantes as duas formas de vida humana geradas pelo paradigma das coisas e o paradigma dos dispositivos apresentados originalmente por Borgmann e retomados aqui pelo autor do livro.
O vínculo entre tecnologia e poder é o tema central do sexto capítulo. Nele Cupani recorda que a relação entre tecnologia e poder já tem uma longa tradição dentro do cenário filosófico, mas concentra a sua análise sobre tecnologia e poder nos filósofos norte-americanos Langdon Winner (1986) e Andrew Feenberg (1999) com intuito de explorar as discussões filosóficas mais recentes. O primeiro ficou famoso pela abordagem sustentada em seu prestigiado artigo Do artifacts have politics? no qual concebeu a tecnologia como possível portadora de qualidades políticas, como aquelas que condicionam o modo de vida das pessoas ou aquelas outras que parecem impor condições sociais e estruturas de poder. Se Winner — e seus diversos exemplos — exploram a dominação e o poder que a tecnologia exerce sobre o homem, Feenberg trilha um caminho alternativo, buscando apresentar propostas para resistirmos ao poder exercido pela tecnologia, argumenta Cupani. A forma como essas duas teses são apresentadas, permitem ao leitor — seja ele iniciante ou esteja ele inserido há mais tempo na tradição filosófica — compreender e indagar sobre os possíveis pressupostos políticos que determinados artefatos tecnológicos ostentam ou representam.
A natureza do conhecimento tecnológico é o assunto apresentado no sétimo capítulo do livro. Cupani retoma o pressuposto de que a tecnologia não é apenas um prolongamento da ciência e reconstrói as diversas críticas apresentadas à concepção de tecnologia como ciência aplicada. Além disso, o autor busca apresentar algumas das peculiaridades do conhecimento tecnológico e faz isso utilizando autores como Javier Jarvie (1967), Henryk Skolimowski (1966), Walter Vincenti (1990) entre outros mais. O capítulo apresenta uma interessante comparação entre o conhecimento científico e o conhecimento tecnológico, demonstrando as sutilezas e as peculiaridades que há em cada uma dessas áreas. As questões clássicas relacionados ao conhecimento como “crença verdadeira justiçada” e a (in)viabilidade da manutenção desta concepção também são exploradas.
O capítulo oitavo é reservado à discussão dos impactos que a tecnologia produz nas diferentes culturas. Cupani (2011, p. 187) se propõe a “analisar o modo como os vários autores descrevem as diversas maneiras em que o saber tecnológico e suas produções influenciam a sociedade a que se incorporam, modificando sua cultura e, por conseguinte, a personalidade de seus membros”. Pontos como a supervalorização dos meios em relação aos fins, a universalização das normas técnicas, a mudança na percepção do tempo, a tendência de reduzir o conhecimento à informação, assim como a própria alteração da personalidade são explorados pelo autor. Assim, o autor apresenta um interessante cenário no qual a visão otimista tradicional em relação à tecnologia é questionada à medida que somos convidados a apreciar os impactos culturais provocados pelas diversas tecnologias nas mais distintas esferas culturais.
A questão do determinismo tecnológico é tratada no último capítulo do livro. São retomadas ideias de Winner (1986) e de Jacques Ellul (1954). Em relação a Ellul, Cupani desenvolve a hipótese de que a tecnologia esteja fora de controle por produzir consequências — muitas vezes não intencionais — imprevisíveis. Nesse sentido, Cupani considera que “a possibilidade de dirigir os sistemas tecnológicos para fins claramente percebidos, conscientemente escolhidos e amplamente compartilhados torna-se cada vez mais duvidosa”. Além disso, o autor explora as características da técnica moderna que a diferenciam da técnica antiga. O caráter autônomo da tecnologia acaba minimizando a possibilidade de escolha dos seres humanos, pois a ela se dá a partir daquelas opções fornecidas pela própria técnica. Em outras palavras, somos condicionados a escolher aquela opção que aparenta ser a mais eficiente. A autonomia da tecnologia é compreendia como uma espécie de autoimposição por ela ter suas próprias regras. Todas aquelas ações que são contrárias ou que não obedecem ao ideal de eficiência não parecem muito sensatas, considera o autor.
Por fim, cabe apenas ressaltar que o livro Filosofia da tecnologia: um convite contempla os principais temas e problemas relacionados à tecnologia, possibilitando que o leitor tenha contato com os principais referenciais teóricos da área e se sinta convidado a prosseguir com investigações filosóficas. O convite está feito.
Referências
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Bunge, M. 1974. Technology as applied science. In: F. Rapp (ed.) Contributions to a philosophy of technology. Dordrecht: D. Reidel, p.19–39.
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Cupani, A. O. 2008. A relevância da filosofia da tecnologia para a filosofia da ciência. Episteme (Porto Alegre) 28: 26–38.
———. 2004. A tecnologia como problema filosófico: três enfoques. Scientiae Studia 2(4): 493–518.
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Gilmar Evandro Szczepanik – Doutorando em filosofia Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina BRASIL. E-mail: cienciamaluca@yahoo.com.br