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Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity – KELLY (H-Unesp)
KELLY, Christopher (org.). Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity. Cambridge/UK: Cambridge University Press, 2013. eBook. Resenha de: FIGUEIREDO, Daniel de. História [Unesp] v.34 no.2 Franca July/Dec. 2015.
Teodósio II governou o Império Romano do Oriente, já separado administrativamente da porção ocidental, por longos quarenta e dois anos (408-450 d.C.). Um dos primeiros registros que se dispõe da sua personalidade é fornecido pelo escritor eclesiástico Sócrates de Constantinopla que o descreveu, no livro VII da sua História Eclesiástica, como “extremamente doce em comparação a todos os homens que estão sobre a terra”. Relatos dessa natureza, dentre outros do período, que chegaram até nós, certamente contribuíram para a construção, pela historiografia antiga e moderna, de uma imagem de desaprovação desse imperador. Nesses relatos, Teodósio II é associado a um governante ineficiente, fraco e suscetível de ser manipulado pelas redes de influências de poderosos cortesãos e bispos da hierarquia eclesiástica em construção.
Essa perspectiva negativa das ações de Teodósio II frente aos desafios que lhes foram apresentados foi, em grande medida, realçada pelos intermináveis conflitos teológicos protagonizados por diferentes facções episcopais que buscavam se afirmar como referência em ortodoxia a ser seguida. A sensação de caos que teria caracterizado aquele contexto, de acordo com algumas análises historiográficas, projetava uma falta de autoridade das ações imperiais na condução desses conflitos. Isso poderia, inclusive, ameaçar a sua posição de governante. Contudo, esse viés de análise tem sido reavaliado por pesquisas mais recentes que buscam encarar a documentação textual do período como artefatos discursivos retóricos de alta carga subjetiva. Como já alertava Jean-Michel Carrié (1999) – na introdução da obra conjunta com Aline Rousselle, L’Empire Romain en Mutation: des Sévères à Constantin – 192-337 – muitas vezes produzida em momentos de conflitos, a documentação do período, à primeira leitura, pode induzir o historiador a interpretar os acontecimentos em conformidade com as paixões partidárias das facções em confronto. Não podemos deixar de perceber, ainda, o interesse propagandístico que norteou a preservação e a transmissão desses documentos que, certamente, pode ter contribuído para enaltecer a imagem de aliados ou destruir a reputação de desafetos.
A proposta dessa obra ora resenhada, Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity (2013), conforme indica o seu organizador Christopher Kelly, não se trata de uma tentativa revisionista em ampla escala da reputação desse imperador. Trata-se, acima de tudo, de reavaliar os aspectos chave da política administrativa por ele conduzida, em conjunto com seus auxiliares mais próximos. As estratégias implementadas a partir dessa colaboração possibilitou a sua permanência como o governante que por mais tempo administrou o império, a despeito das deficiências que lhes são atribuídas. Além de trazer importantes considerações sobre o governo de Teodósio II, na sua apresentação da obra, Kelly faz uma abrangente revisão historiográfica acerca do período teodosiano e estabelece um rico diálogo com e entre os capítulos subsequentes, assinados por historiadores de destaque no tema.
Esse objetivo de releitura do governo teodosiano muito vem a contribuir para o entendimento mais amplo do período que se convencionou chamar de Antiguidade Tardia. Essa periodização, atualmente melhor estabelecida entre meados do século III até o século VIII d.C., busca observar as transformações pelas quais passou a sociedade romana nas diferentes esferas da vida social, política, econômica e cultural. Desse modo, ao até então propalado “declínio e queda” do império descortina-se novos modos de enxergar o período como num momento rico em possibilidades de análises e singular em relação ao período clássico precedente e ao medievo que o sucedeu. A presente obra contribui para esse novo olhar a partir de uma leitura enriquecedora da documentação explorada, que em muito pode contribuir para as reflexões dos pesquisadores que trabalham com diferentes tipos de textos produzidos no período. Como exemplo de documentos trabalhados na presente obra citamos o Código Teodosiano, a Notitia Dignitatum, as Histórias Eclesiásticas, asNovellae (novas leis emitidas entre 438 e 441), os Acta Conciliorum Oecumenicorum,Panegíricos, dentre outros.
Nesse sentido, além do Capítulo 1 introdutório, que compõe toda a Parte I do livro, de autoria do organizador, Christopher Kelly, seguem-se mais dez capítulos, divididos em três diferentes áreas de interesses. A Parte II, intitulada Arcana imperii (Capítulos de 2 a 5), busca analisar os problemas de se construir um relato satisfatório da complexa dinâmica política do império e, em particular, o papel e a influência dos grupos que competiam na Corte em Constantinopla. Na Parte III,Past and present (Capítulos de 6 a 8), são expostas algumas preocupações contemporâneas dos autores teodosianos no sentido de apresentar uma retórica de unidade do império que, de fato, já se encontrava dividido política e administrativamente. A Parte IV, Pius princeps (Capítulos de 9 a 11), explora as dificuldades de apresentar, louvar e relembrar uma imagem de Teodósio II como um pio governante cristão.
Afunilando as três áreas de interesses acima citadas, no Capítulo 2 intituladoMen without women: Theodoisus’ consistory and the business of government, Jill Herries indica sua percepção, a partir da análise do Código Teodosiano, da forma colegiada com que as decisões eram tomadas na Corte imperial em Constantinopla. Ao estabelecer diálogo com a obra de Kenneth Holum,Theodosian Empresses: Women and Imperial Dominion in Late Antiquity, de 1982, a autora minimiza a ascendência atribuída àAugusta Pulquéria, irmã mais velha de Teodósio II, como canal de influência poderoso nas decisões tomadas na Corte. Para ela, a dinâmica dos grupos de interesses em uma Corte multipolar, cujos membros eram prestigiados pelo imperador, é uma resposta à estabilidade do governo teodosiano. No Capítulo 3, Theodosius and his generals, Doug Lee percebe a mesma estratégia imperial de privilegiar a diversidade no campo militar em consonância com o que indicou Harries na sua análise sobre o Consistorium. Lee observa que a inexistência de tentativas a usurpações pode estar relacionada à escolha de generais portadores de diferentes visões político-religiosas. A análise prosopográfica por ele empreendida identificou generais não cristãos, arianos e de outras tantas formas de cristianismos que interagiam na sociedade romana do período. Essa estratégia dinástica teodosiana teria tido o efeito de dissuadir as ambições de ascensão de qualquer desses generais ao comando do poder imperial.
No capítulo 4, Theodosius II and the politics of the first Council of Ephesus, Thomas Graumann analisa duas comunicações oficiais do imperador (sacrae) e uma carta dirigida ao bispo Cirilo de Alexandria. Nesses documentos, Graumann indica como, na perspectiva imperial, o primeiro Concílio de Éfeso, reunido em 431, foi conduzido por funcionários imperiais no sentido de dar uma percepção de unidade à Igreja a despeito do relacionamento tenso entre os vários grupos de interesse, de modo que nenhuma facção emergisse dominante. Encerrando essa segunda parte, no Capítulo 5, Olympiodorus of Thebes and eastern triumphalism, Peter Van Nuffelen destaca como o cronista não cristão Olimpiodoro, cuja obra foi perdida, mas resumida por cronistas posteriores, oferece um valioso relato dos eventos ocorridos no Ocidente entre 407 e 425. Ao buscar descrever sua percepção de instabilidade reinante na porção ocidental, Olimpiodoro o faz em contraste com a construção de uma imagem de um império oriental estável. Nesse sentido, Nuffelen inova ao mostrar como Olimpiodoro, ao escrever sua história do Ocidente tendo como espelho o Oriente, contribuiu para difundir uma ideologia triunfalista e integradora do império oriental teodosiano.
No Capítulo 6, Mapping the world under Theodosius II, Giusto Traina percebe como além do Código Teodosiano, a Notitia Dignitatum – documento que elenca a estrutura administrativa civil e militar tanto do Oriente quanto do Ocidente – serviu a propósitos propagandísticos como expressão da importância que o regime teodosiano dava a uma ideia de Império Romano como estrutura unitária, embora tal unidade fosse apenas virtual. No contexto da sua elaboração (datada em torno de 401 para a parte oriental e atualizada na década de 420 no Ocidente), a Notitiabuscava oferecer uma visualização ideológica do poder imperial em termos geográficos. No Capítulo 7, “The insanity of heretics must be restrained”: Heresiology in the Theodosian Code, Richard Flower explora os tratados de heresiologia como oDe haeresibus, de Agostinho de Hipona, e oPanarion, de Epifânio de Salamina, e os compara com um pronunciamento de Teodósio II, emitido em 428, e preservado na forma de lei com o títuloDe haereticis no Código Teodosiano 16.5.65. De acordo com Flower, embora esses tratados de literatura técnica, para ele fonte de conhecimento mais seguro e confiável, tenham em alguma medida inspirado a lei de repressão aos heréticos inscrita no Código Teodosiano 16.5.65, essa legislação deve ser lida no contexto da sua aplicação. Esse cuidado decorre da prevalecente tendência de condenação de oponentes teológicos visando à criação de uma autoridade religiosa durante o governo de Teodósio II. Ou seja, o autor busca demonstrar uma seletividade no momento da aplicação da lei.
Finalizando a terceira parte do livro, no Capítulo 8, Classicism and compilation, interaction and tranformation, Mary Whitby nos fornece uma interessante análise de como os textos da literatura grega do século V d.C. estabeleceram interação com os gêneros clássicos. Para ela, essa tendência estava associada a crescente importância do cristianismo na sociedade romana. Whitby analisa uma pletora de gêneros literários como as Vidas, orações fúnebres, a História Lausíaca, osflorilegia, diálogos, enciclopedismos, paráfrases bíblicas e histórias eclesiásticas. Tais análises buscam observar a riqueza da produção literária durante o governo de Teodósio II, bem como a forma flexível e criativa com que os autores cristãos estabeleceram diálogo com as formas literárias do passado no sentido de dar autoridade aos seus escritos através uma retórica refinada.
No Capítulo 9, Stooping to conquer: the Power of imperial humility, Christopher Kelly novamente trás sua contribuição através da análise das cerimônias de humildade imperial (como ex. transferência de relíquias de mártires, longas procissões lideradas pelo imperador com pés descalços). Na sua leitura, tais acontecimentos estavam relacionados a estratégias orquestradas em que cerimônia religiosa e ideologia imperial se uniam tanto para dar sensação de proximidade com os cidadãos como para promover a piedade imperial. Estabelecendo um diálogo entre os panegíricos escritos no período com o Panegírico a Trajano, de Plínio o Jovem, Kelly demonstra como essas atitudes de humildade paradoxalmente aproximavam a família imperial de seus súditos e, ao mesmo tempo, acentuava a distância entre governante e governados com o intuito de justificar e legitimar a autocracia imperial. No Capítulo 10, The imperial subject: Theodosius II and panegyric in Socrates’ Church History, Luke Gardiner considera os problemas encarados pelo escritor eclesiástico Sócrates de Constantinopla na sua escrita sobre o regime teodosiano, ao qual era contemporâneo, particularmente em termos da reivindicação pública de piedade imperial. Gardiner observa uma estratégia similar adotada por Sócrates de Constantinopla, em sua História Eclesiástica, àquela adotada por Eusébio de Cesareia quando escreveu sobre o imperador Constantino. Os destaques e as habilidades atribuídas ao imperador, nesses panegíricos, serviam como estratégia para nuançar julgamentos de reprovação das decisões imperiais, em vista do risco de se criticar um imperador que ainda se encontrava no poder.
Encerrando essa quarta parte e finalizando a obra, o Capítulo 11, sob o títuloTheodosius II and his legacy in anti-Chalcedonian communal memory, Edward Watts analisa a forma como o governo de Teodósio II foi avaliado em quatro textos egípcios escritos entre os séculos V e VIII d.C.: o Plerophories, de João Rufus, a História de Dióscoro, do Pseudo-Theopistus, asCrônicas, de João de Nikiu e o Synaxary – um catálogo que lista os santos comemorados em cada dia do calendário egípcio. Watts observa que a tendência desses textos em realçar aspectos positivos do governo de Teodósio II, descrevendo aquele momento como o auge do império cristão e o paraíso da ortodoxia, tinha por estratégia estabelecer um contraste com o governo do imperador Marciano (450-457). No Concílio de Calcedônia, em 451, cujas decisões foram respaldadas por Marciano, ficou definido a natureza dual do corpo do Cristo encarnado, decisão essa que colidia com a doutrina que apregoava a união dessas naturezas, bastante popular na tradição egípcia e inspirada nos ensinamentos do bispo Cirilo de Alexandria.
Em vista da riqueza das temáticas analisadas, bem como a originalidade com que a documentação textual é trabalhada nos diferentes capítulos, consideramos que a presente obra passa a se constituir referência para os estudiosos dispostos a enfrentar os desafios de melhor entender o governo de Teodósio II. A grande quantidade de documentos remanescentes desse período encontra-se a espera de outras tantas abordagens instigantes como as que foram oferecidas nessa coletânea. Esse livro certamente trará, também, valiosas contribuições a todos os pesquisadores que se debruçam sobre o recorte cronológico denominado de Antiguidade Tardia, assim como aos historiadores em geral por seu caráter inovador na leitura da documentação.
Daniel de Figueiredo – Doutorando em História Antiga. Programa de Pós-graduação em História da Faculdade Ciências Humanas e Sociais. UNESP – Universidade Estadual Paulista – Campus de Franca – Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, n. 900, CEP: 14409-160, Franca, São Paulo, Brasil. Bolsista FAPESP.
Doctrine and Power: Theological Controversy and Christian Leadership in the Later Roman Empire – GALVÃO-SOBRINHO (RTF)
GALVÃO-SOBRINHO, Carlos Roberto. Doctrine and Power: Theological Controversy and Christian Leadership in the Later Roman Empire. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 2013. Resenha de: FIGUEIREDO, Daniel. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.
Quais os mecanismos que levaram à transformação da liderança cristã, ou seja, do bispo cristão, em uma força política e social de destaque no Império Romano na primeira metade do século IV d. C.? Essa é a pergunta central do livro Doctrine and Po-wer: theological controversy and Christian leadership in the later Roman empire (2013), de Car-los Roberto Galvão-Sobrinho. As reflexões do autor sobre essa temática remontam ao final da década de 1990, momento em que defendeu o seu doutoramento1 na Yale University, sob a supervisão de Ramsay MacMullen. Atualmente, Galvão-Sobrinho é professor-associado de História Antiga e História da Medicina na University of Wis-consin2.
Como destaca o autor, a despeito do crescimento das pesquisas que envolvem o assunto, encontramos ainda muitos estudos que se concentram na perspectiva teológica da atuação desses indivíduos, na sua dimensão intelectual, em detrimento de uma maior problematização acerca do impacto da atuação dessas lideranças na vida da Igreja e da cidade (p. 2). Contudo, observa-se que, a partir das últimas décadas do século passado, historiadores da Antiguidade Tardia têm privilegiado o estudo dessas lideranças inseridas no seu contexto de atuação. Eles buscam explicar a complexidade das relações sociais e dos conflitos engendrados por essas relações, que possibilitaram a emergência de líderes revestidos de poder e autoridade. Novas perspectivas de análises se abriram a partir das recentes abordagens preconizadas pelas Histórias Política e Cultural, sobretudo na forma de encarar uma documentação retórica e propagandística que, produzida em momentos de conflitos, muitas vezes chegou até nós permeada pelos interesses das facções em confronto. Portanto, percebe-se, a partir daí, que a dimensão religiosa no período não pode ser desvinculada das demais esferas da vida social, sobretudo da dimensão política, sob pena de se incorrer numa produção artificial de sentidos acerca da atuação desses indivíduos que nos legaram uma massa documen-tal que tem muito a nos dizer para além da história das ideias.
Vislumbramos uma produção historiográfica crescente nessa nova perspectiva que, muito embora o seu grosso recaia sobre historiadores europeus e estadunidenses, também se observa, mais recentemente, a inserção de pesquisadores brasileiros nessa nova fronteira de estudos sobre as implicações político-sociais das controvérsias teológicas no Império romano da Antiguidade Tardia. Dentre essas pesquisas, não há dúvidas que, pela originalidade com que conduz o seu trabalho, podemos inserir essa obra de Galvão-Sobrinho entre aquelas que se tornarão referência para os estudiosos do tema.
Fazendo uso de um extenso corpus documental3, somente possível a um pesquisador com vasta erudição, Galvão-Sobrinho também complementa a sua narrativa com um bom número de notas explicativas sobre essa documentação e a bibliografia utilizada (p. 187-271). Tais documentos abrangem o recorte cronológico de meados do século III d.C. a meados do século IV d.C. nas províncias romanas orientais de fala grega. Para o autor, esse recorte se justifica, pois, a despeito do mosaico de culturas locais, a região manteve certa uniformidade social, econômica, política e cultural que permitiu a ele tratá-la como uma unidade (p. 8). Isso possibilitou demonstrar o seu objetivo principal de que a extensão, tanto no tempo quanto no envolvimento expressivo de diferentes camadas da população por todo o Oriente (clérigos, pessoas comuns, funcionários da administração imperial e, até mesmo, dos imperadores), e o padrão de violência verificado, até então desconhecido nos conflitos teológicos anteriores, fizeram da Controvérsia Ariana4 um paradigma para se entender a afirmação das lideranças eclesiásticas revestidas de poder e autoridade naquele contexto. Ademais, o autor verifica, também, que em vários momentos da controvérsia as oportunidades reais de tolerância e entendimento mútuos foram ignorados ou não levados a sério. Isso, portanto, indica que os líderes da Igreja se engajaram não apenas em uma luta sobre a definição da verdade sobre Deus, mas, também, pela liderança das congregações cristãs e de seus recursos, que eram ativos políticos e econômicos significantes. Desse modo, “alimentar a disputa era questão crucial sobre o relacionamento entre autoridade e ortodoxia, teologia e poder” (p. 4).
Outra questão relevante, até então considerada pela historiografia como preponderante para o prolongamento e virulência da Controvérsia Ariana, refere-se ao envolvimento dos imperadores na querela. Ao contrário, Galvão-Sobrinho constata que a disputa tomou forma de uma crescente resistência e arraigada oposição às pressões imperais por uma uniformidade teológica, mesmo por parte de clérigos beneficiários do patrocínio imperial, que poderiam ter suas posições e vidas ameaçadas. Portanto, embora o autor constate que essas intervenções imperiais contribuíram para os tumultos persistentes, o envolvimento dos imperadores não explica os desafios ao poder imperial por parte do clero nem as sublevações que se originavam nas disputas locais. Desse modo, os eventos turbulentos que circundaram os acontecimentos do conflito, além de uma questão propriamente teológica sobre a definição de Deus, também estavam relacionados às tensões inerentes da própria estrutura interna da organização eclesiástica. Nesse sentido, a análise também perpassa pelas considerações de Pierre Bourdieu, que constatou que a esfera teológica é um lugar de concorrência e as ideologias produzidas nela visando à instauração de um monopólio dos instrumentos de salvação estão propensas a serem utilizadas em outras lutas, como, por exemplo, a disputa pelo poder na hierarquia eclesiástica, conforme as diferentes posições ocupadas pelos seus membros nessa organização.
Para explicar, então, as implicações mais amplas do engajamento das lideranças eclesiásticas nas controvérsias teológicas do século IV d.C. que contribuíram para a construção da autoridade episcopal o autor estrutura seu trabalho em oito capítulos divididos em três partes5. O capítulo 1 (Christian Leadership and the Challenge of Theology), começando pelo século III d.C., traz uma discussão geral dos desafios colocados aos líderes da Igreja num momento em que a questão da autoridade começa, cada vez mais, repousar nas reivindicações deles como representantes do espírito de Deus. Quando se acreditava que os bispos desviavam da “verdade”, como acontecia nas disputas teológicas, essas reivindicações eram questionadas e a legitimidade delas colocadas em dúvida (p. 15-22). O capítulo 2 (“Not in the Spirit of Controversy”: Truth, Leadership, and Solidarity), examina como esses bispos reagiram àqueles desafios no século III d.C., mostrando que, quando confrontados com a dissidência doutrinal, eles se esforçavam para finalizar os desentendimentos e resolver os conflitos por meio da negociação e do debate. Para o autor, a ausência de critério preciso para a ortodoxia e a favorável ambiguidade da “regra da fé” desencorajava sustentar a confrontação (p. 23-33).
Com a emergência da Controvérsia Ariana, o autor percebe uma mudança, para ele fundamental, na natureza da resposta dos bispos aos desentendimentos teológicos. A persistente confrontação, combinada com uma determinação para minar os prelados rivais, veio a substituir o anterior esforço pelo consenso. Nesse ponto é que percebemos a inovadora contribuição de Galvão-Sobrinho para a análise do problema. Essa mudança é primeiro percebida em Alexandria, cidade em que a controvérsia emerge, resultando na necessidade de alcançar maior precisão e clareza em definir a verdade sobre a divindade. Tais considerações são levantadas no Capítulo 3 (Precision, Devotion, and Controversy in Alexandria) para indicar como as novas definições sobre Deus alteraram os relacionamentos entre os líderes da Igreja. Uma combinação entre essa precisão para definir a verdade e o esforço para desacreditar os oponentes (35-46). Na sequência, o capítulo 4 (Making the People a Partner to the Dispute) examina as consequências dessas ações, seguindo de perto os esforços dos clérigos rivais em Alexandria em envolver suas congregações nas disputas. Nesse momento é que se percebe a emergência de um novo tipo de líder na Igreja, “impertinente, empreendedor e combativo” (p. 47-65). O capítulo 5 (“For the Sake of the Logos”: Spreading the Controversy), examina como a disputa migrou para fora do Egito e observa o desenvolvimento de ações similares em outros lugares do Oriente (p. 66-77).
O capítulo 6 (“To Please the Overseer of All”: The Emperor’s Involvement and the Politization of Theology), busca analisar o impacto sentido na disputa a partir da intervenção do imperador Constantino, através da criminalização da dissidência doutrinal que se seguiu à proclamação da ortodoxia nicena (325), tornando as posições teológicas mais politicamente carregadas (p. 78-97). Uma vez que o Concílio de Niceia falhou em produzir um consenso teológico, a disputa reacendeu logo após o concílio e os desentendimentos teológicos se tornaram mais ameaçadores. Desse modo, o capítulo 7 (Claiming Truth, Projecting Power, A.D. 325-361) trata do ambiente politicamente carregado do tempo de Niceia até a morte de Constantino. Ele mostra como os prelados reagiram ao sentido de insegurança gerado pela falta de consenso e compromisso e as ações tomadas para mobilizar os recursos da Igreja para afirmar autoridade e empreender campanhas para suprimir a oposição, eliminar dissidentes e promover suas visões para um campo cada vez maior. A consequência dessas ações foi a consolidação de um novo estilo de liderança que havia emergido nos anos iniciais da Controvérsia Ariana (p. 99-124). Por fim, no capítulo 8 (The Challenge of Theology and Power in Action: Bishops, Cities, and Empire, A.D. 337-361), o autor transporta aqueles desenvolvimentos para a metade do século IV d.C., da morte de Constantino ao início da década de 360. O capítulo mostra como os bispos conceberam novas estratégias de poder que os possibilitou afirmar sua autoridade, algumas vezes em completa oposição ao imperador (p. 125-151): O recurso à violência continuou a ser um elemento chave nesse processo, mas a novidade nas décadas de 340 e 350 foi, primeiro, sua escala e destrutividade e, segundo, sua “rotinização”. Episódios de violência coletiva, em particular, sejam espontâneos ou orquestrados pelos líderes eclesiásticos ou seculares, tornaram-se muito mais frequentes, de fato, frequentemente o meio preferido de conduzir a disputa: espancamentos, abusos, banimentos, perdas de propriedade e vida tornaram-se características comuns da vida em muitas comunidades cristãs conturbadas, com os líderes da Igreja atacando dissidentes e compelindo os fiéis a abraçar suas visões.
[…] o continuado conflito teológico nos anos depois da morte de Constantino produziu “modos de comportamento” ou maneiras de ser e agir – um habitus, na definição de P. Bourdieu – que contribuiu para transformar o episcopado em uma poderosa força social e política, empurrando os líderes da Igreja para o centro da vida pública e reconfigurando as relações entre clérigos e os tradicionais detentores do poder, incluindo o imperador (p. 126-127, destaques do autor).Por meio dessas considerações, indicamos que esse trabalho de Galvão-Sobrinho é leitura fundamental para os pesquisadores dos conflitos político-religiosos e administrativos na Antiguidade Tardia. Percebemos que esses padrões de violência e a perpetuação dos conflitos nortearam as controvérsias que se adentraram para o século V d.C., mesmo a despeito da oficialização de uma daquelas formas de cristianismos como ortodoxa, em 380 d.C. O que se percebe é que a afirmação desse ethos reuniu condições para que personagens investidas de legitimidade político-espiritual transfe-rissem para o plano político-religioso os seus projetos escatológicos.
1 GALVÃO-SOBRINHO, Carlos Roberto. The Rise of the Christian Bishop: doctrine and power in the later Roman Empire, A.D. 318-380. Tese (Doctor of Philosophy). 334 f. Yale University, Graduate School, New Haven/USA, 1999.
2 Vide https://www4.uwm.edu/letsci/history/faculty/galvao.cfm. Acesso em 14/04/2014.
3 Uma extensa bibliografia das fontes é indicada nas páginas 183-185 e no Apêndice, p. 161-182).
4 Conflito que se iniciou nas comunidades cristãs de Alexandria no início do século IV d.C. e que tentava explicar como é possível acreditar que Jesus fosse um ser divino e insistir, ao mesmo tempo, na exis-tência de um só Deus. Tais conflitos se deram em torno, sobretudo, das ideias do presbítero Ário e seus seguidores. Em suma, para Ário, e as diferentes nuances de pensamento que a sua doutrina ensejou, a Palavra, não é coeterna com o Pai, inconcebida como ele é, pois é do Pai que ela recebe a vida e o ser. Portanto, Jesus, a Palavra ou o Logos (nomes pelos quais se designa a segunda pessoa da Trindade) é dependente e subordinado ao Pai (Deus). Tais ideias colidiam com a ortodoxia que viria a ser oficializa 5 Part one – Points of departure: theology and Christian leadership in the third-century Church; Part two – God in dispute: devotion and truth, A.D. 318-325 e part three – Defining God: truth and power, A. D. 325-361.
Daniel de Figueiredo – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP/Franca Correspondência: Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de História. Av Eufrásia Monteiro Petráglia, 900 – Centro – 14409-160 – Franca, SP E-mail: ddfig66@yahoo.com.br.