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Outras falas: feminismo e medicina na Bahia (1836-1931) – RAGO (CP)
RAGO, Elisabeth Juliska. Outras falas: feminismo e medicina na Bahia (1836-1931). São Paulo, Annablume/Fapesp, 2007. Resenha de: BENATTE, Antonio Paulo. Outras falas: feminismo e medicina na Bahia (1836-1931). Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jan./Jun 2009.
Outras falas é fruto de tese de doutorado em Ciências Sociais defendida na PUC-SP em 2005. O subtítulo,g Feminismo e medicina na Bahia, revela de imediato uma dupla contribuição: à história das relações de gênero e à história do saber médico no Brasil, especialmente a medicina da mulher. Há tempos a evidência do protagonismo da mulher na história não é mais uma novidade historiográfica; apesar disso, o trabalho de Elisabeth Juliska Rago vem somar a esse campo uma contribuição importante por várias razões, das quais elencarei duas ou três.
A proposta do estudo é “fazer emergir historicamente as condições de vida de mulheres e as diferenças geracionais de práticas feministas que envolveram suas respectivas ações” (25). O livro insere-se plenamente no conjunto daqueles trabalhos que não apenas afirmam o papel atuante da mulher como sujeito histórico, mas também, nas palavras da autora, reivindicam “uma releitura do passado que permita pluralizar a percepção das subjetividades femininas constituídas na experiência da vida cotidiana” (61-62). Trata-se de uma história eminentemente biográfica, gênero que vem sendo redimido e redimensionado nos últimos anos. O que faz com que a obra não recaia na biografia tradicional, factual e sem profundidade analítica, é o seu consistente embasamento teórico, especialmente quanto à história e à sociologia das relações de gênero na modernidade ocidental.
O livro abrange um quase século de história brasileira. Narra os trabalhos e os dias de Francisca Rosa Barreto Praguer e Francisca Praguer Fróes, mãe e filha, nascidas na Bahia provinciana, senhorial e escravocrata do século XIX, e que se rebelaram contra o “destino” que lhes era imposto enquanto mulheres. Francisca Rosa, a mãe, destacou-se como literata atuante na imprensa em defesa da emancipação feminina; Francisca Praguer Fróes foi uma das primeiras formandas em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1893, especializando-se em ginecologia e obstetrícia; na trilha da mãe, criticou a dominação masculina e defendeu publicamente idéias feministas.
Quanto às fontes primárias, a documentação é ampla, rica, variada e bem explorada. Trata-se, em ambos os casos, de mulheres de letras. O meio letrado, a ambiência na cultura escrita deixou uma série de documentos: memórias, crônicas, poemas, diários, cartas, discursos, artigos científicos, prontuários médicos, panegíricos, necrológios, etc. Esse corpus é complementado com depoimentos orais recolhidos de uma descendente das duas Franciscas. Há, assim, uma cuidadosa heurística das fontes textuais produzidas pelos sujeitos biografados e sua família, ou que direta ou indiretamente a eles dizem respeito. Na falta de indícios diretos, não deixou a autora de recorrer à história comparada, referindo-se às trajetórias de outras mulheres em contextos e situações semelhantes ou diferentes.
É notável, ao longo de todo o estudo, a concretude da análise que recusa noções abstratas e universais em prol de particularidades concretas e contingentes, vale dizer, históricas: “… não se adota aqui uma perspectiva essencialista da mulher, o que forçosamente dissiparia os contornos de classe, raça, geração, cultura e religião” (33). A “mulher” não é nunca considerada um ente universal abstrato, mas um sujeito constituinte da história e por ela constituído, com relativas margens de autonomia, conforme os contextos que lhes foram dados viver. Semelhantemente aos indivíduos, os grupos sociais: as famílias baianas da elite são situadas num período histórico complexo, de modernização conservadora da economia e da sociedade e de transformações políticas e culturais abrangentes. Por conseguinte, há, ao longo da narrativa, um constante movimento dialético do micro para o macro-histórico, um deslocamento que vai do cotidiano até abarcar a realidade social mais ampla que envolve indivíduos e grupos e, sem determinismos de quaisquer tipos, marca profundamente suas trajetórias existenciais.
A obra tem, portanto, virtudes metodológicas para além do tema propriamente dito, qual seja, a equilibrada complementaridade dos olhares micro e macro: busca-se sempre, como diz a autora, “retraçar momentos de experiências vividas como expressão de processos historicamente situados” (26). Ainda nesse sentido, a autora, sem fazer propriamente micro-história, é muito atenta ao que denomina “as miudezas aparentemente insignificantes da vida cotidiana, tanto na esfera pública quanto na privada” (52). Longe de ser anedótica, essa atenção é determinante no gênero biográfico adotado, pois contribui para a riqueza da análise e para a própria fluência da narrativa. Ela aparece tanto na saborosa análise das memórias de Francisca, a mãe, sobre a Vila da Cachoeira, na Bahia provinciana de meados do XIX, quanto na descrição da trajetória de Francisca, a filha, na Salvador da República Velha. Ou seja, os indivíduos e grupos são constantemente colocados diante de estruturas e conjunturas que eles próprios contribuem para conservar e transformar. A variação de escala permite à autora realizar uma “hermenêutica do cotidiano” sem desligá-lo dos processos mais amplos que o situam e circunscrevem. Esse jogo ininterrupto entre o macro e o micro torna possível iluminar existências pontuais sem obscurecer o entorno, e vice-versa, e essa me parece uma das principais virtudes do estudo.
A autora, movida por sensível empatia, evita o criticismo a posteriori que freqüentemente julga e condena a ação de indivíduos do passado conforme critérios supostamente mais “progressistas” do presente do próprio “juiz”. Essa atitude, no fundo anacrônica, é muito comum em campos densamente ideologizados, como o é o feminismo e os estudos de gênero. Conscientemente, Elisabeth Rago critica essa postura a fim de melhor compreender o pensamento e a ação possíveis no contexto dos indivíduos, sem hipostasiar qualquer dever-ser supra-histórico. Assim, embora não deixe de ressaltar a coragem vanguardista de Francisca Rosa em assumir publicamente a defesa da mulher e a necessidade de sua emancipação frente ao sistema de dominação masculina, ou de louvar justamente o pioneirismo de Francisca Praguer Fróes como pioneira militante na área da medicina da mulher, a autora não violenta nem alisa a história. As biografadas são sem dúvida mulheres bastante singulares, que estão entre as precursoras do feminismo na Bahia e no Brasil, sem deixar de ser, afinal, mulheres de carne e osso, alma e espírito, limites e contradições, assim como as mulheres (e os homens) que conhecemos na realidade, quer dizer, na vida como ela é, não como gostaríamos que fosse. Em outras palavras, a concretude da análise e a fidelidade documental impedem que se recaia na heroicização romântica de personagens idealizadas, vale dizer, que nunca existiram. Não se trata de inventar o que poderia ou deveria ser, mas de problematizar de modo realista o que foi efetivamente. O estudo evidencia, assim, as tensões, negociações, contradições, barreiras e limites presentes na organização social de gênero.
Por isso mesmo, trata-se de uma leitura extremamente atenta à efetiva historicidade da consciência feminista e das relações de gênero. As biografadas são pessoas que se constituíram a si próprias, ao mesmo tempo em que eram constituídas pela história que vivenciaram e ajudaram a construir. Ao trabalhar com a noção de subjetividades múltiplas, o estudo busca perceber como as mulheres “forjaram soluções no interior do sistema de gênero (…) redefinindo suas próprias trajetórias e sinalizando, desse modo, que o sistema de dominação [patriarcal] não era nem total nem absoluto” (63).
Outra virtude da obra está em não descurar os condicionantes de classe presentes no pensamento das duas feministas, inseridas totalmente no espaço-tempo em que viveram e atuaram. A atenção à história social – freqüentemente desqualificada hoje em dia – permite apreender mais complexamente a historicidade da consciência de gênero e a própria heterogeneidade dos ideários feministas no Brasil do século XIX e primeiro terço do XX.
A obra suscita ainda elementos de reflexão e prática historiográfica a partir de um diálogo com uma ampla bibliografia nacional e estrangeira sobre a condição feminina, as relações de gênero e a história do saber médico, especialmente da medicina da mulher. Será lido com proveito por estudiosos desses campos, especialmente no que tange à condição e situação de mulheres de letras e ciências, posto que problematiza a emergência e participação das mulheres nos campos intelectual, literário e científico da sociedade brasileira num período de intensas transformações históricas.
Em suma, ao narrar itinerários, nunca puramente individuais, de emancipação feminina, a autora constrói um estudo denso e minucioso sobre a condição da mulher – e especialmente da mulher de elite – na Bahia do fim do Império e das primeiras décadas da República. Para tanto, vale-se de uma abordagem essencialmente interdisciplinar. A narrativa analítica deixa ver a formação dupla da autora, em História e em Ciências Sociais: a erudição documental, a abordagem processual e a atenção aos detalhes significativos revelam a mão da historiadora; o uso rigoroso de conceitos e categorias da sociologia e da antropologia mostra o olhar mais estrutural da cientista social. Essa combinação resulta, como diria Paul Veyne, numa “história conceitualizante” bem tramada e contada. Elisabeth Rago é uma contadora de histórias, sem deixar de ser cientista social e historiadora. Essa combinação torna seu livro ao mesmo tempo gostoso e proveitoso de ser lido dentro e fora da academia.
Antonio Paulo Benatte– Pesquisador-colaborador do Depto. de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Bolsista Fapesp. apbenatti@ibest.com.br.
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