Calibã e a bruxa – FEDERICI (Topoi)

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax, São Paulo: Elefante, 2017. I Tomo, Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017, 194p.p. Resenha de: REIS, Marcus. A normatização dos corpos e a regulação dos gêneros no processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Topoi v.19 n.39 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018.

Calibã e a bruxa não é um livro que foge aos debates atuais envolvendo o movimento feminista. O fato de a tradução desta obra para o português ter sido encabeçada justamente por um “Coletivo”, o Sycorax, demonstra o alcance desse trabalho para além do contexto estadunidense. A proposta de Silvia Federicié clara ainda na introdução de sua obra, afirmando seu desejo em “esboçar a história das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo” como modo de explicar a relação entre essa história e a exploração decorrente desse processo. Por outro lado, não se desvincula dos primeiros momentos em que o feminismo se posicionou contrariamente ao status quo, ainda que a publicação original seja de 2004.

Não há, ressalte-se, um apego ao anacronismo por parte de Silvia Federici, como se o conceito de gênero fosse utilizado para enxergar as raízes do feminismo na Época Moderna. A originalidade de sua obra consiste em se preocupar não apenas com a multiplicidade que o conceito de mulher possui, mas principalmente com os espaços sociais distintos e atrelados ao fenômeno sobre o qual a autora se debruça. É nesse sentido que Federici parte para o uso em plural da ideia de mulher, assumindo, no âmbito de seu trabalho, o entendimento de que as práticas capitalistas são essenciais para perceber como as relações sociais em que as mulheres se inseriram estiveram marcadas por um contexto de exploração (p. 27).

Há, também, a preocupação em discutir os conceitos de caráter marxista antes mesmo de operacionalizá-los, como a noção de acumulação primitiva. Ao tratar dessa noção, a autora a articula ao objetivo central de sua obra, a “caça às bruxas”, afirmando que esse fenômeno, seja no mundo europeu ou no Novo Mundo, “foi tão importante para o desenvolvimento do capitalismo quanto a colonização e a expropriação do campesinato europeu de suas terras” (p. 26). É nesse objetivo que, aliás, Federici destaca seu distanciamento das análises de Marx na medida em que o autor, a seu ver, negligenciou a participação das mulheres no contexto da acumulação primitiva. Se Marx “tivesse olhado sua história {do capitalismo} do ponto de vista das mulheres” (p. 27), não teria afirmado que o capitalismo prepararia o caminho para a libertação do proletariado. É, portanto, na tentativa de ampliar a ótica marxista ao atrelá-la à categoria de gênero que seu trabalho se insere, dividindo-se em cinco capítulos.

Seu primeiro capítulo, intitulado “O mundo precisa de uma sacudida”, parte essencialmente da discussão voltada ao surgimento dos Estados Absolutistas, iniciando o debate ainda no contexto da Baixa Idade Média, caracterizada pelas relações de servidão e seus conflitos. No campo das relações de gênero, a contribuição da autora reside no interesse em atrelar o surgimento desses Estados a uma forte política de regulação dos sexos, dos papéis sociais que homens e mulheres deveriam cumprir, apontando para o forte revés sofrido pelas mulheres por conta da legalização do estupro. O resultado disso, para além da degradação da honra feminina, foi o fato de que essa legalização “insensibilizou a população frente à violência contra as mulheres, preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período” (p. 104).

“A acumulação do trabalho e a degradação das mulheres” confere título ao segundo capítulo da obra de Federici, acompanhando a lógica que finalizou o capítulo anterior, atrelando a emergência dos Estados Absolutistas à maior degradação social das mulheres e à emergência de uma nova feminilidade. É nesse espaço de discussões que, por exemplo, a autora retoma o conceito de acumulação primitiva. Ao defender a hipótese de que esse conceito não diz respeito apenas a uma “acumulação e concentração de trabalhadores exploráveis e de capital”, a autora o entendeu como contexto de reformulação das relações de trabalho a partir da sujeição das mulheres. No entender de Federici, esse contexto contribuiu para o processo de ressignificação das funções sociais prescritas às mulheres, que teria atingido seu auge no século XIX “com a criação da dona de casa em tempo integral”, na medida em que à figura feminina coube exclusivamente o papel de reprodutora, distanciando-a da vida pública por conta da nova divisão sexual do trabalho.1

É também nesse segundo capítulo que a autora passa a apresentar com mais clareza sua hipótese central de trabalho: o fenômeno de caça às bruxas corresponderia à maior derrota sofrida pelas mulheres na medida em que teria culminado no surgimento de um novo modelo de feminilidade. As mulheres seriam, assim, destituídas do universo público, relegadas ao papel de reprodutoras, esposas, viúvas ou prostitutas, ficando, por fim, distantes das “relações coletivas e {dos} sistemas de conhecimento que haviam sido a base do poder das mulheres na Europa pré-capitalista” (p. 187). Desse modo, até finais do século XVII o que predominou foi um novo “cânone cultural”, encarando as mulheres como “selvagens, mentalmente débeis, de desejos insaciáveis, rebeldes, insubordinadas, incapazes de se controlarem”.

Seu terceiro capítulo, “O grande calibã”, analisa como esse processo de disciplinamento dos corpos direcionado às mulheres foi colocado em prática ao longo da Época Moderna, já que, no capítulo anterior, a autora discutiu as bases que permitiram o avanço dessa estrutura normativa. Esse novo contexto foi caracterizado pela dicotomia da “Razão e as Paixões do Corpo”. Como pano de fundo desse binômio, enxergou a emergência de uma “engenharia social” interessada em reinterpretar as funções do corpo e inseri-lo numa nova lógica em que este foi encarado como fonte de todos os males. Sob a filosofia mecanicista, interessada amplamente em destrinchar as funções corporais, Federici percebeu como o controle da classe dominante sobre o mundo natural se deu progressivamente até culminar no “controle sobre a natureza humana”. Como consequência, ocorreu a morte do conceito de corpo enquanto receptáculo de forças mágicas, amplamente difundido ao longo do Medievo. Aqui, sentimos falta de uma reflexão mais atenta à diversidade documental do período. Nesse sentido, em que medida essa morte de fato teria ocorrido nos séculos XVI e XVII se tomássemos por base as narrativas presentes nos processos dos diversos tribunais do Santo Ofício, e não somente os tratados da época?

Outro argumento empregado por Federici baseia-se no crescente interesse da burguesia em desclassificar a magia, encarando-a como principal entrave para o disciplinamento social e, por consequência, do trabalho. Esse ataque aos indivíduos que se valiam do sobrenatural como forma de resposta às demandas cotidianas, foi, inclusive, um dos principais alicerces para que os Estados investissem na perseguição contra a magia, resultando no fenômeno que é base do trabalho da autora. Disciplinar o corpo esteve, portanto, diretamente relacionado à desconstrução da magia, ambas tornando-se “laboratório no qual tomou forma e sentido a disciplina social” (p. 261).

Seu penúltimo capítulo, “A grande caça às bruxas na Europa”, busca, em sua essência, confirmar que o fenômeno da caça às bruxas foi resultado de um processo planejado e encabeçado pelas diversas estruturas de poder, maiormente Igreja e Estados, a fim de levar adiante um disciplinamento social em que as mulheres foram subjugadas.2 Foi, portanto, “iniciativa política”,3 com forte atuação da Igreja Católica por fornecer o “arcabouço metafísico e ideológico” que sustentou as perseguições a partir do século XVI. Além disso, tais perseguições devem ser vistas como uma reação à resistência das mulheres contra as relações capitalistas que ressignificaram a feminilidade. Por fim, esse fenômeno foi instrumento de construção de uma ordem patriarcal que criou modelos de feminilidade prescritos às mulheres, tornando seu “trabalho, seus poderes sexuais e reprodutivos” a serem controlados pelos Estados, segundo a forma de força de trabalho defendida pela burguesia. Se pensarmos numa síntese do que foi esse fenômeno, segundo Federici, poderíamos dizer que a caça às bruxas foi “uma guerra contra as mulheres; {…} uma tentativa coordenada de degradá-las, demonizá-las e destruir seu poder social {…} onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade” (p. 334).

O derradeiro capítulo, “Colonização e cristianização”, se debruça na extensão que o fenômeno da caça às bruxas adquiriu no Novo Mundo. A autora defende que a abrangência desse fenômeno para além do espaço europeu foi motivada pelo interesse das autoridades em utilizá-lo como ferramenta capaz de minar a “resistência anticolonial e anticapitalista” e levar adiante o interesse exploratório. Seu foco se direcionou basicamente ao contexto da América espanhola, percebendo similaridades com o processo de definição da bruxaria no âmbito europeu, como no perfil das mulheres que foram acusadas por esse delito no espaço americano: “as mulheres se converteram nas principais inimigas do domínio colonial, negando-se a ir à missa, a batizar seus filhos, ou a qualquer tipo de cooperação com as autoridades coloniais e os sacerdotes” (p. 402). Tal qual na Europa, a perseguição se direcionou ao combate de práticas e crenças heterodoxas ao catolicismo bem como às revoltas contra o sistema dominante, neste caso, colonialista.

Ao conferir protagonismo a um “sistema em que a vida está subordinada à produção de lucro” (p. 35), o que implica na imposição da violência, a autora acaba por privilegiar sua análise a partir de uma estrutura hegemônica. E, talvez, seja no excessivo olhar estruturante de sua obra que as análises empreendidas por Federici perdem força, principalmente em relação a outros campos de discussões associados ao fenômeno estudado.4 Perde-se a avaliação precisa do peso das práticas encabeçadas pelas mulheres como resultado da própria crença dessas mulheres na sua capacidade de dialogar com o sobrenatural. Ao enxergar nas práticas heréticas protagonizadas por elas ao longo da Baixa Idade Média como exemplos claros de uma verdadeira “revolução sexual”, a autora cai no risco de desconsiderar que, por vezes, essas mesmas mulheres, ao ingressarem no universo do sobrenatural, almejavam apenas a manutenção de seus casamentos, sem que a estrutura normativa fosse colocada em xeque.5

Mesmo ao chamar o “Novo Mundo” para o debate, relacionando-o ao contexto de perseguição à feitiçaria, a autora não se descola de um olhar homogeneizante, como ao considerar o período de 1580 a 1630 como ápice da “caça às bruxas”. Se partirmos para a América portuguesa, espaço que é negligenciado em sua obra, é possível perceber que, mesmo no século XVIII, os índices de denúncias e processos promovidos pela Inquisição portuguesa por esse delito são elevados, até maiores que os números relativos ao século XVI.6

Mesmo nesse século, as realidades são diversas quando comparamos regiões distantes, ainda que seja possível identificar algumas coerências nos argumentos da autora. No contexto inglês, Federici enxerga uma relação intrínseca entre o elevado número de acusações contra supostas feiticeiras em Essex e a grande quantidade de terras cercadas nessa região. O mesmo vale quando a autora, concordando com Henry Kamen, estabelece um paralelo entre as graves crises econômicas e o avanço da perseguição à bruxaria, já que muitas mulheres participaram das revoltas como protagonistas. No entanto, a imprecisão existe quando outros contextos são comparados, como em Portugal, em que a realidade é outra. Conforme apontou Francisco Bethencourt, nesse espaço, a figura da mulher, pobre e marginalizada socialmente, pouco apareceu nos processos da Inquisição lusitana.7

Por fim, outro importante debate historiográfico no qual se insere Calibã e a bruxa diz respeito ao entendimento da autora de que a misoginia, juntamente com o conceito de acumulação primitiva, contribuiu decisivamente para que a “caça às bruxas” se sustentasse como importante ferramenta de submissão das mulheres aos mecanismos de poder marcadamente masculinos. Trabalhos como o apresentado por Silvia Federici demarcam, assim, uma diferença visível em relação a outro viés analítico defendido, por exemplo, por Stuart Clark, no qual o peso da misoginia é relativizado.

Em Pensando com demônios, o conceito de contrariedade é tomado como base para refutar a ideia de que a misoginia foi o grande pilar que sustentou a demonologia e a “caça às bruxas”. Clark parte do entendimento de que a modernidade europeia sustentou suas visões de mundo e interpretações a partir de um “extremismo cognitivo”, do qual a figura da “bruxa” foi resultado direto. Bem e Mal se tornaram conceitos essenciais para tais sociedades.8 Esse novo “idioma” foi recorrente não apenas nos corredores eclesiásticos, mas também no modo como a religiosidade foi vivenciada, fazendo com que a alma do indivíduo fosse objeto de disputas. Assim, a misoginia perde força como categoria explicativa, na medida em que a contrariedade se tornou o elemento capaz de explicar os motivos das mulheres terem sido relacionadas à bruxaria.9

Por isso, ao perceber a pouca ocorrência de tratados que se interessaram exclusivamente em injuriar as mulheres e tendo em vista que os trabalhos da época pouco se direcionaram a “explorar o fundamento da bruxaria no gênero”,10 o autor defendeu a necessidade de se relativizar o uso da noção de misoginia. No entanto, ao afirmar que havia uma conexão óbvia para os estudiosos entre a presença das mulheres e a sua predisposição às influências diabólicas, a ponto de fazerem com que tais autores não sentissem “a menor necessidade de elaborar sobre ela ou apelar para o ódio às mulheres em seu respaldo”, Stuart Clark acabou por abrir uma aresta nos seus pressupostos, o que faz com que trabalhos como o de Silvia Federici seja um importante contraponto a esse viés.

Essa relativização por parte do autor a respeito da misoginia foi sustentada por outras duas interpretações. Clark percebeu que na maioria das vezes os tratados demonológicos não se interessaram exclusivamente em injuriar as mulheres – elemento que, a seu ver, sustenta a ideia de misoginia. Além disso, os tratados interessados em discutir sobre o fenômeno da bruxaria “mostraram pouco interesse tanto em explorar o fundamento da bruxaria no gênero quanto em usá-la para denegrir as mulheres”. Assim, as obras que foram amplamente difundidas pela historiografia como exemplo da misoginia presente nas perseguições à bruxaria, como o Malleus Maleficarum e os tratados de Jean Bodin e Martin del Rio, foram encaradas sob uma leitura isolada que pouco ou quase nada se preocupou com a justificativa da presença de mulheres no fenômeno da bruxaria. Todavia, os argumentos de Stuart Clark também são passiveis de críticas.

Se há uma obviedade na conexão entre a figura das mulheres e a presença do Diabo, conforme aponta o autor,11 não é na identificação desse caráter que reside a chave para a compreensão de todo o fenômeno de “caça às bruxas”. Em Calibã e a bruxa , o aspecto central para responder à problemática levantada consistiu justamente em conferir peso à misoginia como instrumento que sustentou a conexão citada, sem perder de vista que a história das mulheres em meio ao contexto de “caça às bruxas” é uma história eivada de trajetórias por vezes silenciadas, inclusive pelos próprios historiadores que negligenciaram o peso das estruturas de poder na normatização dos corpos, na definição dos gêneros e na sustentação de uma heterossexualidade compulsória. Um dos méritos da obra de Federici consiste justamente em perceber como o consenso entre as autoridades religiosas e civis produziu uma série de mecanismos de vigilância e normatização interessados na manutenção do binarismo masculino/feminino. Vide exemplo apontado pela autora nos discursos que se produziram a respeito do pacto diabólico, em que, mesmo ao defenderem a existência de rituais em que as mulheres negavam o catolicismo, se relacionavam com os diabos e consolidavam sua posição de “feiticeiras”, prevalecia a supremacia masculina: “as mulheres tinham que ser retratadas como subservientes a um homem {o Diabo} e o ponto culminante de sua rebelião – o famoso pacto com o diabo – devia ser representado como um contrato de casamento pervertido” (p. 343).

Calibã e a bruxa é uma obra que merece uma leitura atenta por se preocupar em compreender os longos séculos de associação das mulheres à figura do Diabo, à predisposição ao delito da feitiçaria, ou bruxaria, sem isolar as trajetórias dessas mulheres dos motivos que sustentaram essa associação. Por isso a relevância de sua obra: reafirmar a necessidade de se compreender passado e presente sem negligenciar o peso das relações de gênero e dos papéis sociais atribuídos aos homens e mulheres. Além disso, se levarmos em consideração não apenas a temática em que a autora se debruça, mas também o recorte temporal escolhido, percebemos o quão necessário são as publicações interessadas em articular religiosidade e relações de gênero na Época Moderna, tornando-se exemplos da diversidade de interpretações resultantes dessa interação. Para o contexto brasileiro, que tem acesso relativamente tardio à publicação em português deCalibã e a bruxa , tais aspectos estão igualmente presentes (talvez até com maior peso). Eles nos permitem entender que o estudo da bruxaria está longe de se esgotar quando o conceito de gênero é operacionalizado.

Referências

FEDERICI, Silvia; Calibã e a bruxa . Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. Tomo I: Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. 194p. [ Links ]

1É nesse contexto de disciplinamento dos corpos e de normatização das mulheres, atrelando-as ao papel reprodutivo, que a autora enxerga um forte paralelo com o aumento dos processos envolvendo os delitos de infanticídio e bruxaria (p. 157).

2Um dos argumentos mais sólidos que a autora construiu referente à submissão feminina no âmbito da caça às bruxas diz respeito à mudança de status adquirida pela figura do Diabo a partir do século XVI, deixando de ser escravo e servo das mulheres, tornando-se figura abominável, “seu dono e senhor, cafetão e marido”. Tanto é que o pacto diabólico, considerado pelos demonólogos como auge dos rituais empreendidos pelas mulheres com a figura do Diabo, evocava a supremacia masculina através de tal personagem, para a qual as mulheres deveriam prestar juramento (p. 338).

3A autora chega a afirmar que a “caça às bruxas foi o primeiro terreno de unidade na política dos novos Estados-nação europeus”, muito por conta de protestantes e católicos terem compartilhado do mesmo interesse em coibir a presença da bruxaria entre seus fiéis (p. 303).

4Como, por exemplo, a possibilidade de promover estudos mais aprofundados das crenças, das práticas, da possibilidade de se compreender o universo mágico-religioso e suas relações entre os indivíduos a partir do entendimento de que havia ali uma coerência interna distanciada do materialismo.

5No contexto da Coimbra Seiscentista, José Pedro Paiva identificou a predominância das mulheres casadas como as maiores interessadas em contar com a ajuda das feiticeiras para a manutenção de seus casamentos. Cf.: PAIVA, José Pedro. O papel dos mágicos nas estratégias do casamento e na vida conjugal na diocese de Coimbra (1650-1730). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990, p. 168-169; 180-182.

6MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício no Grão-Pará pombalino. 1750-1774. Jundiaí: Paco Editorial, 2012.

7BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia. Feiticeiras, adivinhos, curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 371. Destaque-se ainda, entre os denunciantes, a multiplicidade de classes sociais interessadas em denunciar o delito da feitiçaria.

8CLARK, Stuart. Pensando com demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna. Trad. de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p. 87.

9Ibidem, p. 187.

10Ibidem, p. 166.

11“Os autores sobre bruxaria evidentemente davam como certo uma maior propensão das mulheres ao demonismo, e tudo em seu ambiente cultural os encorajava a isso. A conexão era tão óbvia para eles, tão profundamente enraizada em suas crenças e comportamento, que não sentiam a menor necessidade de elaborar sobre ela ou apelar para o ódio às mulheres em seu respaldo.” Cf.: Ibidem, p. 168.

Marcus Reis – Doutorando da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: mv.historia@gmail.com.

L’histoire brisée. La Rome antique et l’Occident moderne – SCHIAVONE (CC)

SCHIAVONE, Aldo. L’histoire brisée. La Rome antique et l’Occident moderne. Paris: Belin, 2003 (édition originale: 1996), 287p. BASCHET, Jérôme. La civilisation féodale. De l’an mil à la colonisation de l’Amérique.  Paris: Aubier, 2004. 565p. pages. Resenha de: HEIMBERG, Charles. Le cartable de Clio – Revue romande et tessinoise sur les didactiques de l’histoire, Lausanne, n.4, p.303-305, 2004.

L’enseignement de l’histoire se doit de tenir compte de l’évolution de la recherche et des nouveaux travaux des historiens. Il est même souhaitable que, d’une manière générale, il sache se fonder sur les œuvres de ces historiens, même les plus récentes, et en présenter la substance.

Depuis que l’histoire est enseignée, sa présentation repose invariablement sur les quatre ou cinq « grandes vieilles » de la périodisation, la Préhistoire, selon les cas, puis la succession de l’Antiquité, du Moyen Age, des Temps modernes et de l’Epoque contemporaine. Cette construction est souvent donnée à voir comme une évidence linéaire et l’histoire enseignée n’a guère l’habitude de la discuter ou d’en montrer l’origine. Deux ouvrages récents nous permettent pourtant, aujourd’hui, d’engager d’utiles réflexions sur cette thématique.

Dans L’histoire brisée, Aldo Schiavone repose la question du déclin de la civilisation antique et de son lien réel avec la modernité. Pourquoi cette civilisation a-t-elle dû s’éteindre et tomber ainsi en ruines? Pourquoi la civilisation moderne a-t-elle dû s’affirmer en se référant à l’Antiquité? Et surtout, cette référence “continuiste” était elle vraiment pertinente? En réalité, l’analyse précise de cette civilisation antique, romaine en particulier, mène l’auteur à mettre en évidence le fait qu’elle était fort différente des représentations que l’on s’en est faites beaucoup plus tard. Il souligne en particulier que les classes dominantes de ce tempslà, celles qui nous ont produit l’essentiel des traces qui ont rendu possible le travail historique, vivaient dans un sentiment de bien-être qui était dépourvu de toute aspiration à améliorer leur sort, ce qui découlait de la perception des limites indépassables du monde. Cela étant, nous dit Schiavone, « si la civilisation gréco-romaine, a pu se laisser si durablement enfermer par les modernes dans un modèle de perfection coupé des réalités de la vie, si nous en avons conservé si longtemps cette vision selon laquelle la politique, les savoirs, les passions, les caractères, les arts, les institutions semblaient se cristalliser dans le vide d’un pur jeu de formes, si cette culture continue à donner d’elle la représentation enchantée d’une perfection stylistique suspendue en dehors de l’histoire », c’est là un « isolement trompeur». En effet, il y avait alors « une sorte d’espace mort de la civilisation humaine », il y avait « un trou noir de la vie collective » constitué par la vie matérielle et productive.

De fait, ces élites des temps anciens n’avaient pas de pensée économique et Cicéron ne manquait pas de mépriser « les gains de tous les salariés dont c’est la peine et non pas l’habileté qu’on paie». Mais ce continent caché, pas même doté d’une terminologie dans les langues grecque et latine, ne pouvait l’être qu’au prix de la servitude du plus grand nombre. Le prestige de la civilisation dépendait de l’esclavagisme, c’està-dire de la multitude de ceux qui devaient travailler, le plus souvent dans des conditions épouvantables. De leur côté, les savants de l’Antiquité n’ont jamais cherché à remédier à cette situation, ils n’ont pas inventé de machines, ils n’étaient surtout en quête d’aucune utilité matérielle et immédiate au bout de leurs réflexions. Dans un récit de Plutarque, on voit par exemple Archimède céder exceptionnellement à son refus de la concrétisation de ses plans parce que sa ville de Syracuse était assiégée et que ses machines pouvaient lancer des projectiles et repousser les navires ennemis.

L’idée moderne d’un retour à l’époque classique était donc une affaire de représentations. C’était la quête d’une supériorité supposée, mais qui reposait sur d’autres bases, ou sur un malentendu. « La révolution de la modernité européenne a été avant tout la suppression de la limite: non seulement des obstacles qui avaient bloqué la civilisation antique, mais de la nature même de la limite comme barrière infranchissable, de la cyclicité comme destin ». La référence à l’Antiquité n’était donc que partielle, elle se jouait des limites au niveau de l’espace comme à celui du temps et de l’horizon d’attente, elle s’accompagnait de l’émergence d’une véritable pensée économique. La croissance et la mondialisation n’ont pas été inspirées par le passé antique.

« Nous savons aujourd’hui ce qui allait advenir, quelle catastrophe s’apprêtait à dévorer ce monde », note Schiavone au début de son étude. Or, sa réflexion sur la réalité des liens entre les anciens et les modernes reste discrète sur l’époque médiévale. Alors qu’un ouvrage du médiéviste Jérôme Baschet renverse justement la perspective et nous propose une thèse audacieuse: c’est dans la civilisation féodale et son prolongement au cours de l’époque moderne que se trouve la source de cette dynamique occidentale qui a fait conquérir, dominer et souffrir le Nouveau Monde en y transportant une bonne part de son univers mental. C’est la féodalité qui a fait naître le capitalisme. C’est donc aussi de cette civilisation féodale, et pas seulement de l’Antiquité qu’elle se représentait, que la modernité s’est inspirée, peut-être sans le savoir, ou sans vouloir le savoir.

Le livre de Baschet prolonge un cours universitaire donné à un public mexicain. Dans une première partie, il propose une synthèse chronologique des grandes périodes de cette civilisation féodale européenne, non sans déconstruire au passage quelques stéréotypes inventés par l’historiographie nationale du XIXe siècle comme par exemple une vision dépréciative de la fragmentation féodale ou l’insistance sur une stagnation de cette société que les faits ne confirment pas. Il décrit les obligations réciproques et les rapports de domination qui ont régi le féodalisme. Il montre aussi le rôle de l’Eglise, l’institution dominante de cette société féodale, celle qui lui a donné une perspective d’unité et une dimension impériale. Une seconde partie plus thématique, et très stimulante, met l’accent sur des aspects fondamentaux comme les cadres temporels, la structuration spatiale, les rapports de parenté ou le rôle des images. L’ouvrage est d’ailleurs parsemé d’illustrations, au sens plein du terme, c’est-àdire de documents iconographiques qui concrétisent les affirmations d’un auteur qui est un fin analyste de l’imagerie médiévale.

« Nous sommes des nains posés sur les épaules de géantes, mais nous voyons plus loin qu’eux”. Cette formule de Bernard de Chartres, au XIIe siècle, évoquait très subtilement les penseurs du passé et l’immense héritage qu’ils avaient laissé tout en suggérant, ce qui était particulièrement rare au Moyen Age, que ceux du présent pourraient les dépasser. Les historiens comme Jacques Le Goff ou Jérôme Baschet qui plaident pour l’idée d’un long Moyen Age qui aurait duré jusqu’au XVIIIe, voire au XIXe siècle, s’intéressent notamment à la manière dont les hommes d’alors ont perçu le temps, le passé et son champ d’expérience, l’avenir et son horizon d’attente. Ils font même valoir que de réformes en renaissances, les mouvements d’idées de l’époque dite «moderne» ont prolongé ceux de l’époque médiévale en se prévalant d’un retour au passé, c’est-à-dire d’un retour « à la pureté perdue de la règle originelle ». Ce n’est ainsi qu’au XIXe siècle que l’on évoquera, notamment avec Karl Marx, des révolutions dont la poésie se situerait dans l’avenir, dans un avenir de progrès encore jamais imaginé.

Au cours du Moyen Age, le futur terrestre de l’humanité devait être en principe une répétition de l’expérience passée, « mais l’attente d’un horizon neuf [était] projeté dans l’eschatologie », c’est-à-dire dans la fin du monde, au Jugement dernier. L’existence de cet horizon d’attente, fût-elle si religieusement connotée, constituait dès lors un fait nouveau eu égard à son absence chez les hommes de l’Antiquité. Parmi beau coup d’autres commentaires, informations et analyses, l’ouvrage de Jérôme Baschet nous aide aussi à mieux percevoir la spécificité de ce que nous projetons aujourd’hui dans l’avenir, des espoirs de progrès, bien sûr, mais également, davantage encore en ce nouveau siècle, l’appréhension d’une régression sociale et intellectuelle déjà observée au cours de l’histoire et malheureusement toujours possible.

Charles Heimberg – Institut de Formation des Maîtres (IFMES), Genève.

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