Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III – ANTUNES (CCRH)

Ricardo ANTUNES, Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III. São Paulo: Boitempo, 2014. Resenha de: FESTI, Ricardo Colturato. Cadernos CRH, v.28 no.75 Salvador Sept./Dec. 2015.

O terceiro volume de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil deu continuidade a um ousado projeto de pesquisa e reflexão realizado por dezenas de pesquisadores e estudantes e foi organizado e dirigido pelo sociólogo e professor da UNICAMP, Ricardo Antunes. Inicialmente intitulado “Para onde vai o mundo do trabalho? As formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil”, o projeto consolidou-se enquanto um trabalho coletivo de investigação teórica e empírica que, nestas duas últimas décadas, produziu inúmeras dissertações e teses acadêmicas, além de um amplo diálogo entre pesquisadores nacionais e estrangeiros, e resultou numa coleção que já publicou dois volumes.

O livro em questão está divido em três partes. A primeira, “O sistema global do capital e a corrosão do trabalho”, é dedicada às reflexões mais globais sobre as novas modalidades do trabalho no Brasil e no mundo. A segunda, “As formas de ser da reestruturação produtiva no Brasil e a nova morfologia do trabalho”, apresenta os resultados das pesquisas empíricas e analíticas sobre os vários ramos da economia, num esforço de compreender as particularidades da reestruturação produtiva do capital e suas consequências para o mundo do trabalho brasileiro. Já a terceira parte, “Os sindicatos na encruzilhada: ação e resistência dos trabalhadores”, reúne os artigos relacionados ao mundo sindical, aos movimentos dos trabalhadores e às suas reações a essas mudanças.

Umas das qualidades dessa coleção está na proximidade teórica encontrada na multiplicidade de textos, teses e opiniões, criando um fio condutor entre os autores e seus capítulos. Essa coerência teórica, nem sempre comum em coletâneas de textos, reflete uma posição metodológica e epistemológica frente à realidade concreta, entendida, não enquanto um caos incognoscível e explicável por tipologias externas à própria realidade, mas enquanto um movimento do real concreto, que pode ser explicado pelo cientista social a partir da abstração das totalidades parciais e dos complexos que compõem o todo, no caso, a própria sociedade capitalista. As determinações e mediações que compõem esse metabolismo social nem sempre são evidentes e, por isso, a teoria se confronta sempre com essa realidade na busca de sua afirmação/atualização.

Esse é o esforço de István Mészáros em “Marx, nosso contemporâneo, e seu conceito de globalização”, na primeira parte do volume III. O autor analisa, em seu artigo, alguns aspectos centrais do capitalismo contemporâneo, ressaltando a atualidade da teoria marxista. Também encontramos nos artigos de Alain Bihr, Jesus Ranieri, Patrícia Collado, Giovanni Alves e Caio Antunes um esforço em atualizar e problematizar alguns conceitos marxianos, tais como “trabalho abstrato”, “trabalho imaterial”, “fetichização”, “alienação” e “estranhamento”, a partir das novas questões postas pelo atual estágio da sociedade do capital.

Segundo Mészáros, há mais de três décadas o sistema capitalista tem-se mostrado incapaz de resolver (ou adiar) as suas próprias crises e contradições, tornando-as acumulativas e, portanto, estruturais. Essa crise não se resume à esfera econômica, mas “revela-se, certamente, como verdadeira crise de dominação em geral” (p. 29). A queda crescente da produtividade global e o aumento espantoso do desperdício, para a obtenção de maior acumulação de capital, são alguns aspectos da manifestação dessa crise estrutural. No mundo do trabalho, as consequências são devastadoras: a intensificação crescente do trabalho, o reaparecimento do “mais-valor absoluto” em países que incluem as “democracias ocidentais” (para não falar das periferias), o aumento das jornadas de trabalho (principalmente em países como Japão, Alemanha e Itália), o aumento do desemprego e da informalidade, a flexibilização das leis trabalhistas, a terceirização etc.

Nessa sociedade da “produção destrutiva”, o italiano Pietro Basso, em “A jornada de trabalho no início do século”, destaca e analisa os fenômenos do prolongamento das jornadas médias de trabalho e da emergência daquilo que Nilo Netto, outro coautor do livro, denomina de walmartização. Segundo Basso, se, nos anos 1990, o prolongamento da jornada média de trabalho ocorria por meio do recurso das horas extras – muitas vezes com o consentimento dos próprios trabalhadores e/ou seus sindicatos –, a partir dos anos 2000, passou a ocorrer, nos países de capitalismo avançado, como é o caso da França e da Alemanha, um aumento efetivo da jornada de trabalho.

walmartização, nome advindo das formas de relação de trabalho e gestão inauguradas pelo hipermercado Walmart, é uma combinação entre os elementos do velho taylorismo (altos investimentos tecnológicos e parcelamento das funções) e do toyotismo (o just in time e a obsessão do desperdício zero), acrescidos por um componente novo, que não estava presente em seus modelos genuínos: a baixíssima remuneração salarial dos empregados do hipermercado e de toda a cadeia de produtores e fornecedores. O mais dramático desse “modelo de gestão” walmartizado é que a precariedade de seus empregados se sustenta com a precariedade do conjunto da classe trabalhadora, pois esta, devido aos seus baixos salários, é a principal consumidora do Walmart.

A extensão dessa precariedade objetiva para uma precariedade que envolve a esfera da subjetividade é analisada pela socióloga francesa Danièle Linhart em “Modernização e precarização da vida no trabalho”. A autora elabora o conceito de precariedade subjetiva para explicar o fenômeno de mal-estar, sofrimento e insegurança verificados em trabalhadores assalariados de empregos estáveis, como é o caso dos funcionários públicos. Na sociedade contemporânea, afirma a autora, “o assalariado é um indivíduo, uma pessoa sozinha, sem ajuda, confrontado com imposições e ideais não ajustados às realidades concretas do trabalho” (p. 52). A precariedade subjetiva está, portanto, relacionada tanto com a perda de uma identidade de classe entre os trabalhadores quanto com o enfraquecimento da ação coletiva e sindical. Esses dois processos deram lugar, nas últimas décadas, a uma complexa relação em que o capital passou a mobilizar, canalizar e formatar, a seu favor, a subjetividade dos assalariados.

Por fim, ainda na primeira parte do livro, o texto de Patrícia Villen, inspirado nos trabalhos de Basso, recoloca o problema da imigração no Brasil a partir de uma perspectiva do trabalho. Sua preocupação expressa uma opção metodológica presente nesses três volumes: a necessidade de uma intersecção entre os estudos sobre o mundo do trabalho com outras áreas das ciências sociais, tais como gênero, raça-etnia, sexualidade, geração-juventude etc.

A segunda parte do livro, composta por dez artigos, constitui um mapeamento das formas de ser da reestruturação produtiva e da nova morfologia do trabalho no Brasil. Os textos expressam pesquisas empíricas feitas nos setores da construção civil, telemarketing e telecomunicações, educação, trabalho informal, trabalhadores da arte, agroindústria e hipermercados.

Sávio Cavalcante e Selma Venco nos conduzem a uma reflexão sobre os ramos de telemarketing e telecomunicações. O primeiro autor, em seu artigo “O setor de telecomunicações no Brasil: tendências da prestação de serviços e da situação do trabalho na década de 2000”, oferece-nos uma caracterização e um mapeamento dos estudos publicados ao longo da década de 2000 sobre as telecomunicações. Já Selma Venco, em “Novos contornos da divisão internacional do trabalho: um jogo de xadrez no planeta?”, analisa como as empresas de telemarketing, de desenvolvimento de softwares e de telerradiologia utilizam-se de uma força de trabalho qualificada e barata, encontrada em países da periferia, como são os casos do Brasil e da Argentina, para impulsionar seus lucros, criando, assim, novas formas de divisão internacional do trabalho.

O trabalho informal de rua é analisado por Bruno Durães num artigo resultante de uma pesquisa de fôlego realizada conjuntamente com as professoras da Universidade Federal da Bahia, Graça Druck e Iracema Guimarães. Entrevistando 191 trabalhadores de rua, a pesquisa abrangeu vendedores ambulantes, camelôs, taxistas, vendedoras de acarajé, motoristas de transporte escolar e trabalhadores autônomos. Esses trabalhadores se inserem, segundo Durães, “quase sempre em uma imediaticidade exorbitante”, tendo que vender algo hoje para comer amanhã, ou, simplesmente, vender hoje para pagar o que comeu ontem. A conclusão do autor é que esses trabalhadores de rua não são autônomos (como muitos deles se reconhecem), pois estão inseridos na condição de funcionalidade e subsunção ao capital, “na condição de trabalhador gratuito e de exército de reserva”.

O mundo rural, em particular a agroindústria, é objeto de estudos de três autoras. Maria A. de Moraes Silva reflete sobre a nova morfologia do trabalho nos canaviais paulistas, enquanto Maira Augusta Tavares expõe as consequências da intensificação e do prolongamento da jornada de trabalho nesse setor. Num terceiro artigo, Claudia Mazzei Nogueira analisa as condições de trabalho da Sadia/Brasil Foods no segmento avícola, no Oeste Catarinense. Ela demostra como a intensificação do processo de trabalho ocorre nesse setor, numa articulação das dimensões de gênero com a exploração do trabalho, numa evidente piora das condições de vida das mulheres.

Os leitores encontrarão, também, nesta segunda parte do livro, um artigo de Fábio Villela sobre o trabalho na construção civil e uma reflexão acerca do “intelecto coletivo”, conceito extraído dos Grundrisse de Karl Marx. Na área da educação superior, Maria Izabel da Silva, em colaboração com Nogueira, analisa o trabalho docente voluntário. E, por fim, Maria Aparecida Alves apresenta sua reflexão sobre a precarização do trabalho na área de apoio técnico aos espetáculos do Theatro Municipal de São Paulo.

Na terceira parte do livro, dedicada às ações e resistências dos trabalhadores, encontraremos artigos que analisam tanto os setores mais estáveis e tradicionais, de forte barganha sindical, quanto os novos e precários do mundo do trabalho e as suas dificuldades na impulsão das lutas sindicais no Brasil.

O artigo de Sidartha Sória, “Sindicalismo e fundos de pensão no governo Lula…”, aborda a formação de uma elite sindical que, desde o final do segundo governo de FHC, passou a defender ideologicamente e a gerir fundos de pensão como uma extensão das atividades sindicais no mundo financeiro. Advindos da burocracia dos sindicatos do setor bancário, mas, também, de telecomunicações e urbanitário, dentre outros, essa elite sindical se consolidou e se expandiu nos dois mandatos presidenciais de Lula, compondo, inclusive, parte significativa dos núcleos de decisões desses governos. O estudo de Sória contribui para uma reflexão mais ampla sobre os caminhos percorridos por um amplo grupo de militantes, que, no passado, compuseram o novo sindicalismo, mas que se tornaram, ao passar dos anos, similar ao que ocorreu com a direção majoritária do PT, em “serviçais qualificados do capital”.

Porém, se uma parte do sindicalismo se converteu, durante o lulismo, em acionistas do mercado financeiro, através dos fundos de pensão, encontramos, justamente nos setores mais precarizados e fragmentados da classe trabalhadora brasileira, novos potenciais de luta e resistência. Esse é o tema que tanto Ruy Braga como Paula Marcelino tratam em seus textos. Em “A formação do precariado pós-fordista no Brasil: limites do atual modelo de desenvolvimento periférico”, Braga, com seu conceito de precariado, busca compreender a forma de ser e agir da fração mais precarizada do operariado brasileiro, que, desde os anos 1950, tem como característica a sua inquietação social e política.

Por fim, vale ressaltar a importância política do artigo que abre o terceiro volume desta coleção, escrito por Ricardo Antunes e Graça Druck e intitulado “A epidemia da terceirização”. No momento em que o livro é lançado, em meio à maior crise política do governo Dilma Rousseff e de uma significativa ofensiva ideológica dos setores reacionários, o projeto do ex-deputado federal Sandro Mabel (PMDB), o PL 4330/2004, era aprovado na Câmara dos Deputados e seguia para apreciação do Senado. O artigo faz uma análise crítica ao projeto e alerta para o fato de que, caso ele seja sancionado, a precarização do trabalho no Brasil dará um salto significativo, com um aumento exponencial da terceirização em todos os níveis e setores. A escolha desse texto como abertura do livro revela o comprometimento político e social dos intelectuais que participam deste projeto acadêmico e sua clara opção por uma sociologia comprometida com a classe trabalhadora.

Ricardo Colturato Festi – Doutorando em sociologia. Professor de Sociologia do COTIL-UNICAMP. Pesquisa sobre movimento operário brasileiro e a problemática da consciência de classe. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em sociologia do trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: movimento operário, controle operário, marxismo, pensamento social. E-mail: ricardofesti@gmail.com.