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Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia – FIGAL (FU)
FIGAL, G. Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia. Petrópolis: Vozes, 2007. Resenha de: FERREIRA, Iarle. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.2, p.200-202, mai./ago., 2010.
A filosofia não existe como um sistema de ideias fechado, ou como um campo teórico voltado à resolução de algum problema na vida das pessoas. Ela existe como construção do pensamento através do diálogo. Se todo diálogo implica tomada de posição dos dialogantes, então, nele há uma “oposicionalidade” constitutiva do elemento hermenêutico, que faculta o filosofar. Uma filosofia assim entendida é fenomenológica.
Essa é a compreensão a partir da qual o alemão Günter Figal nos apresenta o livro Oposicionalidade – o elemento hermenêutico da filosofia. Nele, o autor, ao mesmo tempo em que trava um diálogo com a tradição, nos convida a participar da discussão, bem ao estilo da tradição hermenêutico-fenomenológica. Entre os variados pensadores cuja presença se faz notar destacam-se Parmênides, Descartes, Schleiermacher, Dilthey, Husserl, Merleau-Ponty, Heidegger e Hans-Georg Gadamer. Especialmente esses dois últimos, o que se justifica pela proximidade entre o pensamento de Figal e o desses filósofos – como o próprio subtítulo do livro, sugestivamente, indica. Entretanto, essa proximidade nem sempre é de identidade, mas de confronto.
A proposta do autor é apresentar a Oposicionalidade (Gegenständliche) como “princípio” hermenêutico e o mundo como espaço onde ela acontece. Deste modo, com o fito de perseguir o seu objetivo, o autor delineia paulatinamente sua argumentação, tendo como fio condutor a “interpretação”, conforme concebida pela tradição e por ele próprio. Isto é feito em uma estrutura na qual a argumentação se complexifica à medida que se avança na leitura, de modo que um capítulo vai conduzindo ao outro.
No primeiro capítulo, deparamo-nos com uma discussão do autor com Heidegger e Gadamer, cujo cerne é a concepção de hermenêutica. Nela, Figal se contrapõe a ambos. Acusa Heidegger de ontologizar a hermenêutica e Gadamer de ligá-la à coisa. Em ambos, afirma o autor, o que permanece em aberto é a relação entre a filosofia prática e a filosofia teórica.
O que está em questão para a filosofia é aquilo que lhe é próprio, ou seja, a busca pela compreensão do que está presente no contexto originário da filosofia, de modo a conquistá-lo (Figal, 2007, p.44). Somente assim é possível dizer a cada vez, em relação àquilo que eclode, que, nesse caso, trata-se de filosofia. Precisamos perguntar: a filosofia possui uma essência hermenêutica? Se a resposta for sim, um pensamento hermenêutico poderá se mostrar como uma possibilidade da filosofia tradicional, em oposição a uma visão retrospectiva ou destrutiva de tal filosofia.
Günter Figal apresenta diversos modelos de filosofia, apontando, a partir das conexões entre eles, o que têm de originário. Por exemplo, o que Descartes compreende como retirada para o interior de forma metódica, Heidegger entende como totalidade afetiva fundamental (Figal, 2007, p.58). Esses momentos originários da filosofia são dependentes um do outro sem que um se reduza ao outro. As duas atitudes reflexivas estão em “oposicionalidade”, ou seja, elas são duas posições opostas em diálogo uma com a outra. Nessa circunstância, para que haja interação, é necessário mediação. Em Platão, essa mediação tem o nome de Eros, através da qual há uma totalidade ligada entre si: o espaço entre homens e deuses. Eros leva aos deuses o que dizem os homens, e aos homens o que dizem os deuses.
A originalidade da filosofia é, em sua essência, mediatizada (Figal, 2007, p.65) pela linguagem, cujo movimento fornece o encontro e, ao mesmo tempo, o distanciamento ou a abertura que a deixa ser filosofia. Assim, a filosofia revela-se como uma coisa tão diferenciada quanto una (Figal, 2007, p.55). Nesse ponto, é possível responder a pergunta acima, dizendo: sim, a filosofia se faz em sua originalidade hermenêutica.
Certamente a afirmação de que a filosofia, em sua originalidade, é hermenêutica leva o autor a contornar o elemento hermenêutico. Paulatinamente, à medida que esse elemento vai aparecendo, a compreensão de uma filosofia hermenêutica vem à tona. Desta perspectiva, no primeiro momento vemos que a essência do hermenêutico é o “mediado”, sendo a forma de mediação mais conhecida a interpretação (Figal, 2007, p.66).
Interpretar é apresentar e clarificar, os dois procedimentos se copertencem. Ao apresentar, já de antemão, fala-se, isto é, comunica-se e estabelecese diálogo. Por exemplo, no diálogo com o texto, o pensamento é posto em ligação, de modo a permitir que prestemos atenção em suas possibilidades de compreensão. Por outro lado, o texto precisa ganhar validade, o que acontece se ele for desvendado, ou seja, é preciso trazê-lo à linguagem (Figal, 2007, p.84), pois, sem a interpretação, a obra não se faz presente. Nesse ponto, o que entra em questão é a compreensão.
A compreensão é um círculo que envolve os que se contrapõem, ela ocorre no encontro. Logo, o que vem ao encontro é o que se contrapõe. O que dessa forma se apresenta pede apresentação. Entretanto, o traço principal desta apresentação não é um “saber de” ou um “saber sobre”, pois o que se contrapõe tem o caráter de coisa que permanece sempre defronte.
No que diz respeito aos textos filosóficos, o que importa é partir sempre do elemento que é próprio às coisas contrapostas, ou seja, da mediação, a fim de apreendê-lo por meio de uma apresentação, isto é, daquilo que é originário em cada encontro e que possibilita o filosofar. Nesse ponto, o que acontece é a abertura do espaço hermenêutico. Por isso, o autor afirma que a “forma linguística da filosofia é uma abertura peculiar” (Figal, 2007, p.64).
O espaço hermenêutico é esse que se mostra como abertura para aquilo que está-aí-defronte. Por conseguinte, tal espaço é o mundo ao qual pertence a apresentação. O que está em questão, deste modo, é uma fenomenologia do espaço hermenêutico (p. 149). Por essa razão, o autor articula a compreensão desse espaço considerando três dimensões da sua constituição: liberdade, linguagem e tempo.
A liberdade é a condição de possibilidades de concretização da filosofia, no sentido da efetivação da apresentação do que se contrapõe. Trata-se de uma apresentação somente possível por meio da linguagem, a qual não funciona como uma chave interpretativa, mas, sim, como acessibilidade ao próprio mundo, tendo este a sua legibilidade confirmada nas coisas contrapostas. Assim, um texto filosófico, no modo como ele se dá à linguagem, coloca a linguagem à prova uma vez mais, de modo a repetir tal provação a cada vez que se der encontro. Assim, somos levados a considerar o tempo como constitutivo do mundo.
Oposicionalidade – o elemento hermenêutico da filosofia é um livro denso, rico e inovador. Nele encontramos uma concepção de hermenêutica própria, que, por si só, nos garante o prazer da leitura. Ademais, tal concepção, além de tornar mais compreensíveis pontos de vista clássicos sobre o tema discutido, estimula as discussões sobre o sentido da própria filosofia. Nesse contexto, tal filosofia, que se pratica no diálogo aberto e sempre em construção, jamais poderá preconizar sua própria morte como diz o autor quando afirma que “de uma maneira muito melhor do que muitos conceitos modernos, os conceitos clássicos ainda nos suportam com solidez, quando sabemos empregá-los de maneira livre e em relação às coisas mesmas” (Figal, 2007, p.14).
No livro aqui resenhado, a fertilidade advinda do confrontar-se com a tradição é tanto mais abundante quanto mais contornos o autor confere aos seus parceiros de diálogo, o que é feito através de uma apresentação livre, cuja liberdade confere à linguagem um bailar sutil e denso, que particulariza sua posição de “apresentador” dos conceitos, concepções e categorias que lhe interessam, e, por conseguinte, demarcando sua própria perspectiva filosófica no debate.
Além do mais, se em toda atividade hermenêutica nós mesmos estamos em jogo, conforme um clássico preceito dessa filosofia, segundo o qual há um círculo (hermenêutico) que envolve o todo dessa atividade, então é possível afirmar que Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia é um livro que se oferece como possibilidade de recuperação ou reatualização de pressupostos. Pois, na aproximação com a temática e com os argumentos que o autor oferece, somos convidados a cotejar nossos próprios pressupostos. Neste ponto somos nós mesmos em nossa liberdade e temporalidade que estamos em jogo, na medida em que essa aproximação deriva de um passado e nos lança em um futuro. Afinal, compreendemos a partir de pressupostos, razão pela qual o diálogo com a tradição é fundamental, não como submissão, mas como ligação, significação ou mesmo ressignificação desses pressupostos. Estamos em jogo, também, na medida em que a atividade hermenêutica ocorre como possibilidade, como poder-ser, urdido pela compreensão e pelo que dela decorre (Figal, 2007, p.114).
Portanto, fazendo jus à proposta do livro, de que a filosofia é um campo dialógico destinado a construção do pensamento, o texto de Güntel Figal tem o mérito de nos proporcionar, ele mesmo, uma dessas oportunidades de encontro que somente um texto maduro pode fazer, ou seja, ofertar-se ao diálogo e não apenas aos especialistas da área, a qualquer um que tenha interesse em filosofia, pois temos aqui uma articulação de linguagem que não transporta uma férrea estrutura argumentativa, mas deixa-se ser na relação com o leitor, sem, contudo perder a identidade.
Iarle Ferreira – UNISINOS. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: iarleferreira@hotmail.com
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