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Lepra, medicina e políticas de saúde no Brasil (1894-1934) – CABRAL (HCS-M)
CABRAL, Dilma. Lepra, medicina e políticas de saúde no Brasil (1894-1934). 2013. (Coleção História e Saúde), Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, 2013. 333pp. Resenha de: FARIA, Lina. A hanseníase e sua história no Brasil: a história de um “flagelo nacional”. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22 n.4 Rio de Janeiro Oct./Dec. 2015.
Fruto de uma tese de doutorado em história pela Universidade Federal Fluminense, orientada por André Luiz Vieira de Campos, Lepra, medicina e políticas de saúde no Brasil (1894-1934), de Dilma Cabral, representa uma nova contribuição à historiografia, que já se consolidou no Brasil e é discutida amplamente pela autora, pesquisadora do Arquivo Nacional. O período focalizado, dos primeiros anos da República até os anos da Revolução de 1930, é essencial para se entender a relação entre instituições nacionais e pensamento e ação sanitárias, quando se intensificou a interação com a conjuntura internacional.
Como se sabe, o termo hanseníase é criação recente no Brasil, a metáfora que procura abrandar um estigma, mas o título dado pela historiadora mantém o termo lepra, mais antigo e com tradução direta em vários idiomas, leprosy,lèpre, Lepra. Entre as doenças transmissíveis, a lepra, ou hanseníase – termos que utilizaremos indistintamente –, continua sendo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 8 set. 2010), uma das principais causas de neuropatia periférica e incapacidade funcional no mundo. A doença faz parte da dramaturgia do sofrimento humano desde a Antiguidade, mas sua identidade etiológica remonta ao final do século XIX, quando o médico norueguês Gerhard Henrik Armauer Hansen, ao analisar material de lesões cutâneas, descobriu o Bacillus leprae, causador da doença (Castro Santos, Faria, Menezes, 2008).
Nas últimas décadas do século XIX, surgiu, nos meios científicos, um grande interesse na enfermidade. No Brasil, a história da saúde pública no controle da hanseníase demonstra a preocupação das autoridades sanitárias em extinguir a doença por meio do isolamento e confinamento do doente nos hospitais colônias. “Doença transmissível, incapacitante e mutilante” (Cunha, 2002), a hanseníase foi tratada durante décadas com severas políticas – públicas e privadas – de isolamento compulsório. A segregação constituiu a base da profilaxia e influenciou a maneira como a saúde pública brasileira lidou com a doença e com os doentes, ao atingir as instituições oficiais e filantrópicas. Os processos e contextos de isolamento se estenderam por várias regiões do mundo e, tanto entre nós como na Argentina, “as instituições privadas se assemelharam profundamente nas suas maneiras de atuação complementar às políticas públicas de então” (Leandro, 2013, p.921).
Ao identificar esse crescente interesse pela hanseníase, Dilma Cabral teve como objetivo observar o embate dos diferentes modelos explicativos da doença pela medicina e as incertezas e discordâncias quanto aos melhores meios de ação, entre 1894 e 1934. Esse período foi o cenário, segundo a autora, de dois momentos importantes nos modos de enfrentamento: o primeiro, a criação, em 1894, do Laboratório Bacteriológico do Hospital dos Lázaros; o segundo, a extinção, em 1934, da Inspetoria da Lepra e Doenças Venéreas (note-se que o Serviço Nacional de Lepra foi o arcabouço institucional em substituição à inspetoria, em maio de 1944).
A autora lembra, em sintonia com a literatura internacional, que o debate científico sobre a forma de transmissão e o controle confundia-se com outras questões presentes na agenda política e sanitária da época: eram os discursos e narrativas sobre contágio, eugenia, raça, moralidade, miscigenação, nacionalismo e construção nacional, como destaca o historiador da Casa de Oswaldo Cruz, Flávio Coelho Edler, nas orelhas do livro. Edler, desde logo, lembra que o estabelecimento do Laboratório Bacteriológico do Hospital dos Lázaros, fato crucial nas políticas da lepra, permitia perceber como a investigação nacional se alinhava aos novos referenciais científicos da medicina internacional.
A autora fundamentou sua obra em extensa pesquisa histórica, que incluiu a consulta a periódicos importantes, como o Brasil Médico, e levantamentos em arquivos institucionais, como os Arquivos da Academia Nacional de Medicina, para compreender e analisar o modelo interpretativo da hanseníase, nas décadas finais do século XIX e início do XX.
Num primeiro momento, analisa os discursos médicos brasileiros em torno da etiologia da doença; o surgimento de novas hipóteses e paradigmas sobre o conhecimento científico da hanseníase – os pontos de convergência e de divergência quanto à forma de invasão e disseminação do Bacillus leprae no organismo humano. A seguir, discorre a respeito da construção do consenso médico sobre a natureza bacilar da hanseníase, quando a teoria da hereditariedade cede lugar à teoria do bacilo. A difusão da microbiologia e da bacteriologia, e o avanço das pesquisas das causas da doença, em várias partes do mundo, contribuíram de forma decisiva para a hipótese bacilar na etiologia da hanseníase, ressalta Dilma Cabral. Esse processo deu lugar a um novo campo de debates sobre o conhecimento científico da doença e seus modelos explicativos. A partir de então, a explicação multicausal perde força no meio científico internacional, que passa a aceitar o bacilo de Hansen como causa exclusiva da doença.
O texto expõe, em densa narrativa de mais de trezentas páginas, “uma história brasileira da lepra”. Os contextos, processos e momentos decisivos são discutidos ao longo de capítulos bem construídos, em que se destacam os temas da lepra e o debate médico-científico da época, a discussão do “problema sanitário nacional” e o modo como a administração sanitária do período procurou enfrentá-lo. Os pontos centrais são arrolados: a doença gerou uma preocupação com a saúde pública e se tornou uma área importante da atuação do Estado brasileiro. O movimento sanitarista, no período a que vimos chamando de “primeira reforma sanitária” do início do século XX (Castro Santos, Faria, 2003), identificou nas precárias condições sanitárias do país o principal problema associado à difusão da doença como um “flagelo nacional”; posição que conferiu à doença, segundo a autora, um lugar de destaque entre as endemias nacionais. A obra analisa as estratégias utilizadas pelos leprologistas para conferir legitimidade e reconhecimento aos problemas da doença e os caminhos que os levaram à elaboração de um plano nacional de controle.
Ao começar o século XX, lembra a autora, a hanseníase era endêmica na maioria das regiões brasileiras, porque se alastrava de forma progressiva e incontrolável, em um quadro favorecido pelas precárias condições de vida e agravado pela falta de conhecimentos clínicos e laboratoriais sobre a doença. Em 1903, Oswaldo Cruz assume a Diretoria Geral de Saúde Pública e dedica à hanseníase uma atenção maior, resultando, no ano seguinte, na publicação do Regulamento Sanitário da União, com a exigência de notificação compulsória e isolamento obrigatório em domicílio, colônias agrícolas, sanatórios, hospitais e asilos (Brasil, 8 mar. 1904).
As dezenas de colônias de leprosários, preventórios e dispensários, mobilizadas pela ação da Inspetoria de Lepra e Doenças Venéreas, primeiro órgão federal de perfil campanhista, criado em 1920, dariam às medidas de profilaxia um alcance nacional. A criação da inspetoria foi um momento de “inflexão” no combate à doença no país, como mostra Dilma Cabral em seu livro. Ainda que marcada por limitações institucionais e financeiras, a inspetoria, subordinada ao Departamento Nacional de Saúde Pública, sinalizava uma “inflexão” nas ações de governo, como uma efetiva política pública. Foram tempos que boa parte de nossa literatura insiste em definir como “anteriores” às políticas nacionais de saúde (Mercadante, 2002) – a Primeira República, analisada apenas como o tempo de instauração do seguro social, das decantadas caixas de aposentadoria e pensões, de resto voltadas para a reduzida população trabalhadora urbana. Por vezes, coletâneas que arrolam tais argumentos, historicamente frágeis, abrigam também textos que apontam em sentido oposto, isto é, no sentido exaustivamente apontado pela obra de Dilma Cabral (ver Lima, 2002). Esse será o caminho mais promissor para a historiografia dos sistemas de saúde no Brasil.
Antes de 1920, a doença ainda não havia se convertido em política pública de alcance nacional, à diferença das medidas de profilaxia contra a ancilostomíase, implantadas no país, em grande escala, ainda nos últimos anos do governo de Venceslau Brás. Criado em maio de 1918, o Serviço de Profilaxia Rural dava prioridade àquela endemia, além da doença de Chagas e da malária; até a aprovação do Regulamento Sanitário de 1920 e da criação da Inspetoria de Lepra e Doenças Venéreas, o combate à hanseníase era executado pelos estados (Minas Gerais, São Paulo e Maranhão, com maior incidência de enfermos) e com auxílio de entidades filantrópicas, que adotavam de modo geral o isolamento dos doentes. O estudo de Dilma Cabral mostra os passos seguidos pelo combate à enfermidade, de questão filantrópica a problema de saúde pública, em âmbito nacional, a partir dos anos 1920 (ver também Mendonça, 1923; Souza-Araújo, 1954; Agrícola, 1960). Segundo a autora (p.269), 18 estados brasileiros estavam sendo cobertos pela ação da inspetoria três anos após a criação da inspetoria.
A inspetoria tinha por finalidade “superintender e orientar o serviço … em todo o território nacional” (Brasil, 16 set. 1920), assumindo o isolamento como principal medida profilática para o caso da hanseníase. O art. 136 previa a instalação e o funcionamento de leprosários, hospitais e dispensários em todo o território nacional. As ações da inspetoria previam também uma ampla campanha de propaganda e educação higiênica sobre sinais e sintomas, em colônias, dispensários, preventórios e hospitais especializados.
Deve-se enfatizar que o controle da hanseníase e das doenças venéreas exigia a ação educativa e a adoção, pela população, de medidas preventivas de cuidado com o corpo e com o meio ambiente. As atribuições da nova inspetoria permitiram que várias regiões mais pobres pudessem contar com o apoio federal para a ação preventiva de educação higiênica. As campanhas de esclarecimento à população objetivavam difundir preceitos de higiene e alertar sobre possíveis formas de transmissão. Esses aspectos têm sido discutidos nesse e em outros trabalhos sobre o tema, a exemplo de Faria (2007); Maciel (2007);Castro Santos, Faria, Menezes (2008); e Leandro (2013, 2009).
Nos anos 1930, a centralização administrativa instaura-se sob o governo de Getúlio Vargas. Os ventos de expansão federal da década de 1920 ganham intensidade. Os programas de saúde pública e as medidas concernentes à profilaxia da lepra, por parte da União, impulsionados pelos processos de urbanização e industrialização, inserem-se no panorama geral de centralização técnica e administrativa. A década de 1920 marcara a inclusão da lepra, da tuberculose e das doenças venéreas na órbita das preocupações do Estado. Pela iniciativa de Vargas, em 1930, “a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública dimensiona o grande valor que o problema havia adquirido no cenário político nacional” (p.296).
A obra transpõe o limiar da leprologia, os modelos médicos em discussão, os aspectos clínicos e o conjunto de intervenções e programas de controle, para conduzir o leitor a uma viagem pelas conjunturas histórica, política, social e sanitária do país entre 1894 e 1934. Vêm à tona, então, o discurso político de transformação da saúde em espaço de políticas públicas, as correntes de pensamento sobre a civilização brasileira e o “caráter nacional”, os debates políticos sobre as questões de higiene, o combate às grandes epidemias e endemias que castigavam o país.
Ao estudarmos a história da hanseníase e da busca da erradicação, percebemos a complexidade de aspectos envolvidos, que alcançam os níveis da política, da ciência, da cultura e da sociedade. Cabe destacar, em especial, a questão do estigma, presente nos discursos da época e até nossos dias. Associada ao estigma, a doença significou a exclusão do convívio social em função do isolamento, por vezes durante toda a vida, dos portadores da doença. O isolamento assume, no período estudado, certa naturalização, o que reforça uma percepção de continuidade nas propostas formuladas para o controle da lepra em diferentes momentos. Falar sobre a hanseníase no Brasil nos remete à discussão de “identidades deterioradas” e à contribuição da sociologia de Erving Goffman (1985). O trabalho de Dilma Cabral dá visibilidade a esses seres sofridos e invisíveis, quase sempre banidos dos direitos da convivência e da cidadania.
Referências
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Lina Faria – Professora, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC)/Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). lina@compuland.com.br
Luiz Antonio de Castro Santos – Professor, IHAC/UFSB. lacs@compuland.com.br
A história da poliomielite – NASCIMENTO (HCS-M)
NASCIMENTO, Dilene Raimundo do. A história da poliomielite. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. 416p. Resenha de: FARIA, Lina. Poliomielite: várias histórias da doença e de seus efeitos tardios. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22 n.3 Rio de Janeiro July/Sept. 2015.
Proteger uma criança da pólio é tão fácil quanto protegê-la da chuva: trata-se de colocá-la sob o equivalente médico de um guarda-chuva. Kofi Annan (Salgado, 2003).
Ao discutir a luta contra a poliomielite no Brasil, a obra A história da poliomielite, organizada pela pesquisadora da Fiocruz Dilene Raimundo do Nascimento, traz alguns capítulos sobre o enfrentamento da doença no Peru (Marcos Cueto et al.), Portugal (Inês Santos), Espanha (Juan Rodríguez Sánchez) e Paquistão (José Verani). No Brasil (Dilene Nascimento, André Campos, Ângela Pôrto) e nos outros países, o livro aborda, entre vários temas, as questões correlatas de “controle e erradicação” da pólio, a evolução das campanhas e dos resultados obtidos, os distintos contextos sanitários e a eficácia ou o fracasso das políticas sanitárias postas em prática em cada país.
Dividido em quatro partes, o livro constrói uma narrativa histórica e analítica do ambiente da saúde nacional e internacional do pós-Segunda Guerra Mundial. Chama a atenção para a formulação e execução de políticas de saúde que foram postas em ação e que tinham como meta a erradicação da doença – as estratégias nacionais de combate; o desenvolvimento de técnicas laboratoriais para diagnóstico; as campanhas de vacinação, que buscavam mudar o quadro da poliomielite no Brasil e no mundo.
Os debates tiveram início nas primeiras décadas do século XX, quando a enfermidade passou a se manifestar sob forma epidêmica em várias partes do mundo. A epidemia assolou tanto países ricos, como os EUA, a Inglaterra e a Suécia, quanto países periféricos, como a Índia, a Somália, a República Democrática do Congo, o Paquistão e o Sudão. Cada vez mais incontrolável e destrutiva, fazia vítimas fatais e deixava milhares de crianças e adultos paralisados.
Médicos e autoridades sanitárias desconheciam por que caminhos a pólio se disseminava: os caminhos eram difíceis de ser previstos; a doença, difícil de ser evitada e de ser tratada de forma eficiente. A partir de 1950 surgem novas tecnologias de controle e erradicação da doença, além da descoberta das vacinas Salk (em 1955) e Sabin (em 1961). A obra sugere que o trabalho desses cientistas e de seus companheiros, bem como dos que os antecederam nas primeiras pesquisas com o vírus, conduzidas a partir do início do século XX, foram fundamentais na luta pela erradicação, em várias partes do mundo.
Desde os primeiros estudos a seu respeito, a poliomielite constituiu um ponto de interrogação para as autoridades sanitárias em todo o mundo. Interessante é o depoimento do médico João Risi, segundo o qual, quando as condições sociais são precárias, a criança mais cedo exposta ao vírus dificilmente assume a forma paralítica da doença. O contato precoce garante maior possibilidade de desenvolvê-la em sua forma benigna, ficando menos suscetível às manifestações neurológicas da doença.
Diante das incertezas que a pólio impunha sobre o conhecimento médico, da diversidade de modelos e de terapias pouco eficazes, era frequente a atitude de “negação”, pelas autoridades médicas e sanitárias de alguns países, o Brasil entre eles, da existência de epidemias de poliomielite. Os capítulos assinados por Sánchez e Campos trazem, a propósito, noticiários e manchetes em jornais e revistas que indicam a desinformação, as “responsabilidades não assumidas”, a insistência sobre a “não existência” de epidemia de pólio.
A poliomielite no Brasil
Temas como os mencionados nos parágrafos anteriores são a primeira pista, para o leitor, da relevância da obra. A apresentação cuidadosa, pela organizadora, traça o plano geral do livro. A história da poliomielite, em sua primeira parte, é dividida em cinco capítulos sobre a trajetória da doença no Brasil, que focalizam o desenvolvimento e a legitimação das políticas públicas de controle. Os autores discutem os modelos científicos explicativos da pólio, o debate e as controvérsias no país, os surtos epidêmicos em vários estados, as vantagens e desvantagens das vacinas, as campanhas de vacinação e os dilemas dos cientistas brasileiros em relação à descrição clínica da doença.
O trabalho de André Campos, que abre o volume, investiga as primeiras epidemias que ocorreram no Rio de Janeiro, em 1911, e em São Paulo, em 1917; apresentam-se os diferentes modelos científicos explicativos da doença, em especial, as discordâncias entre Fernandes Figueira e Francisco de Salles Gomes Júnior no tocante à descrição clínica e ao tratamento mais adequado. Nas décadas de 1930 e 1940 foram registrados surtos na capital federal e nos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina; no Nordeste e Norte, foram atingidos a Bahia, Sergipe, Maranhão, Piauí e Amazonas. Neste período, a doença não havia recebido no Brasil a atenção que despertava em outros países, como nos EUA, Inglaterra e Suécia, com centenas de vítimas de pólio e de paralisia.
Chamava atenção a incapacidade da medicina de dar uma resposta eficaz ao problema e à forte influência do modelo de contágio direto para a pólio, dominante durante os anos de 1930 e 1940. De acordo com esse modelo, diz o autor, a pólio era transmitida por via respiratória – secreções nasais e bucais. Seu modo de transmissão era típico, portanto, das doenças respiratórias – o vírus penetrava pelas vias aéreas superiores e viajava diretamente para o sistema nervoso central, provocando uma paralisia flácida aguda em membros inferiores, com perda parcial ou total da capacidade de contração do músculo. Contudo, os avanços da virologia e o surgimento do microscópio eletrônico possibilitaram uma compreensão mais ampla da doença. No final dos anos de 1940 a pólio passou a ser vista não mais como doença neurológica e sim entérica, isto é, o vírus se multiplicava no trato gastrointestinal, e a infecção podia ser transmitida pela via fecal-oral.
O capítulo 2, que traz uma interessante discussão histórica sobre o desenvolvimento de vacinas, por Eduardo Ponce Maranhão, não focaliza o cenário brasileiro, apesar de constar da Parte 1 sobre o Brasil. Neste capítulo, o autor indica que a eficácia dos tratamentos dependia dos avanços científicos, que levariam à descoberta das vacinas Salk e Sabin, e dos ensaios e estudos de campo conduzidos em vários países em busca de medidas apropriadas para o isolamento dos vírus. Maranhão discute um capítulo fundamental da história da pólio no mundo: as pesquisas com cultura de tecido. Em 1949, cientistas dos EUA descobrem uma nova técnica para cultivar o vírus em tecidos mais simples (embriões de galinha) e não apenas em macacos. Em 1953 Jonas Salk anuncia as primeiras experiências de sua vacina em humanos com resultados positivos, e no ano seguinte a vacina é testada em grande escala. Em 1957 realiza-se o primeiro ensaio de campo com a vacina Sabin oral, em Cingapura. A vacina oral contra a pólio foi obtida a partir de um vírus vivo, diferentemente da vacina Salk, baseada em uma cepa morta do vírus. No Brasil, a vacinação pela vacina Salk é introduzida em 1955, em São Paulo e, no ano seguinte, no Rio de Janeiro. Em 1953, a epidemia atinge fortemente a capital federal.
É importante ressaltar que as ações de combate, iniciadas nos finais dos anos de 1950 no Brasil, se intensificaram nos anos de 1970 com o surgimento do Plano Nacional de Controle da Poliomielite estabelecido pelo Ministério da Saúde. Contudo, foi na década de 1980 que houve uma mudança de estratégia, de “controle”, para uma política de “erradicação” da poliomielite. Os anos 1980 marcam o processo de abertura política e da luta pela implantação de mudanças sociais. Na área da saúde, discute-se um novo modelo de atenção, mais abrangente, com a participação da comunidade em todos os níveis de governo, melhorando o acesso das populações menos favorecidas à saúde. A saúde passa a ser vista como uma questão social, o controle da poliomielite a inserir-se no movimento pela reforma sanitária. Alguns desses marcos históricos foram discutidos por Dilene Nascimento. A autora analisa o processo político na área da saúde, com base em seis marcos fundamentais: a introdução da vacina Sabin em 1961; o diagnóstico laboratorial do poliovírus, em 1961; o Plano Nacional de Controle da Poliomielite, em 1971; a implantação do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, em 1975; os Dias Nacionais de Vacinação, em 1980, e a estratégia de erradicação da doença a partir de 1985.
A pólio produz repercussões na construção da identidade individual dos atingidos que precisam enfrentar as sequelas, sobretudo o estigma, ao longo de suas vidas. O trabalho de Ângela Pôrto reúne três depoimentos de mulheres com sequelas motoras graves, que contraíram a doença nos anos de 1950. O recurso às fontes orais permite recuperar vivências e memórias da doença, dando voz aos enfermos. Crescem o interesse pelos aspectos do cotidiano do indivíduo ou de grupos específicos e o conhecimento das experiências individuais, das estratégias de enfrentamento da doença e de suas sequelas. Busca-se pensar a doença, ou o doente, dentro do seu contexto sociocultural; qual a percepção dos indivíduos sobre sua saúde, considerada nos valores dentro dos quais vive? Quais são os limites impostos pela doença e os efeitos na sua vida diária? Os depoimentos recuperam a memória e reconstroem as identidades dessas pessoas, diz a autora; a doença não pode mais ser discutida como um evento médico, mas sim como um acontecimento social.
O último capítulo da primeira parte do livro, também organizado por Ângela Pôrto, reúne algumas imagens das campanhas do Ministério da Saúde, especialmente os Dias Nacionais de Vacinação, instituídos em 1980. Esse material, coletado pela autora, mostra mudanças, ao longo dos anos, no tipo de mensagem que se queria fixar em relação à doença e ao portador de deficiência.
A poliomielite fora do Brasil
A segunda parte do livro, dividida em quatro capítulos, reúne artigos sobre o controle e erradicação da poliomielite em outros países. Intitulada “A poliomielite na América Latina, Europa e Ásia”, talvez venha a sugerir ao leitor um cenário mais amplo do que aquele focalizado pelos capítulos, restritos na verdade a poucos países. Isso não impede que se note a relevância dos estudos de caso expostos. Na apresentação do livro, há menção à “novidade incomum” de a obra vir a “possibilitar análises histórico-comparadas de outras experiências nacionais”. Aqui há controvérsia. Os casos nacionais, trabalhados sem preocupação metodológica com a análise comparativa, dificilmente permitem ao leitor estabelecer contrastes ou semelhanças. Talvez a ausência de tal esforço comparativo na própria apresentação feita por Nascimento revele a dificuldade de se encontrar no texto a “novidade incomum”. O único esforço comparativo digno de nota está no texto de Nascimento e colaboradores sobre o processo de erradicação da pólio no Brasil e no Peru, nos anos de 1980, com ênfase nos contextos políticos, sociais e sanitários. Os autores indicam que, diferentemente do Brasil, onde o movimento social pela reforma sanitária, inaugurado nos anos de 1970, vinha reivindicando a participação da comunidade (ainda que com imensas dificuldades e limitações de toda sorte, acrescentamos), no Peru não se assistia a iniciativas de estímulo à participação ou envolvimento da população.
Inês Guerra, em estudo sobre a experiência portuguesa, mostra como a doença foi negligenciada durante várias décadas pelas autoridades sanitárias e políticas. Segundo a autora, o elevado número de mortes e de crianças e jovens incapacitados pela doença não foi suficiente para que a poliomielite fosse considerada oficialmente um problema de saúde pública. Contudo, o trabalho discute uma iniciativa importante, representada pelo Refúgio da Paralisia Infantil, fundado em 1926, pelo médico neurologista Henrique Gomes D’Araújo, destinado à assistência e ao tratamento gratuito de crianças pobres da cidade do Porto, na época, uma das cidades mais insalubres de Portugal. Embora dependente de contribuições externas para manter tratamentos gratuitos, o Refúgio contava com uma estrutura na qual funcionava, além do Serviço de Fisioterapia, a Hidroterapia, a Recuperação Funcional e a Cirurgia Ortopédica.
Juan Sánchez discute as “responsabilidades não assumidas” pelo Estado espanhol em relação à erradicação da poliomielite no país, nos anos de 1950 e 1960. Lembra que no pós-guerra tanto Portugal quanto a Espanha eram países com governos ditatoriais e de tradição confessional católica, “dois elementos determinantes da sua resistência a conceber saúde e assistência em termos de direito” (p.195). Essas características se concretizaram em campanhas de vacinação tardias, pouco difundidas e sem a eficácia esperada. Além disso, lembra o autor, a vacina não era oferecida gratuitamente à população, logo não podia tornar-se obrigatória. Minimizava-se a importância do problema, criavam-se dúvidas sobre a eficácia da vacina e negava-se a gravidade e existência de surtos epidemiológicos – para o Estado a vacina “não era necessária”. “Repressão e autocensura se aliaram para minimizar o problema sanitário” (p.206). Mas, diferentemente de outras doenças como a cólera ou a gripe espanhola, a poliomielite tinha como consequência sequelas paralíticas visíveis para a população, que desafiavam qualquer ocultação ou negação de seus efeitos.
O Paquistão é também um caso de ações tardias de combate à poliomielite. Lá, todas as atividades de erradicação tiveram o apoio financeiro de organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde e o Fundo das Nações Unidas para a Infância e não governamentais, como o Rotary Internacional. Nos anos de 1980 tiveram início as primeiras campanhas, a partir da criação do Programa Ampliado de Imunização – BCG, pólio oral, DTP e antissarampo. Os postos e centros de saúde desempenharam papel de destaque na oferta de vacina de forma rotineira. Em 1994 foi organizada a primeira Campanha Nacional de Vacinação Antipólio. Segundo Verani, entre os anos de 1994 e 2000, durante o governo talibã, as campanhas não conseguiram atingir a cobertura esperada pelas autoridades sanitárias, em função do caráter localizado dos programas. Além disso, os fluxos de refugiados, as fronteiras tensas entre Afeganistão, Irã, Índia e China e a própria cultura islâmica fundamentalista, dificultando a acesso às mães pelas equipes de saúde pública, constituíram barreiras para a erradicação da doença.
Os efeitos tardios da poliomielite: “uma nova doença velha”
A terceira parte do livro, dividida em dois capítulos, discute a síndrome pós-poliomielite (SPP), um dos efeitos tardios da poliomielite, que compreende um conjunto específico de novos problemas de saúde originados pelo vírus da pólio e que vem atingindo pessoas acometidas pela doença décadas atrás. No final dos anos de 1970, os sobreviventes começaram a sofrer novos problemas, tais como fadiga, dor e fraqueza, resultando na diminuição da capacidade funcional e/ou no surgimento de novas incapacidades. Em função do aumento de números de casos da SPP no Brasil e do escasso conhecimento, pela comunidade médica, acerca dos efeitos tardios da pólio, a Associação Brasileira de Síndrome Pós-poliomielite (Abraspp) luta para que se estabeleçam políticas públicas que beneficiem aqueles com sequelas da pós-pólio.
O capítulo dez, sobre a conceituação e aspectos clínicos da SPP, contou com a participação de profissionais do Setor de Doenças Neuromusculares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)/Escola Paulista de Medicina (EPM). É importante destacar que a primeira linha de pesquisas sobre as características clínicas da SPP, teve início em 2003, sob a coordenação do fisioterapeuta Abrahão Augusto Juviniano Quadros, no ambulatório de SPP do Setor de Doenças Neuromusculares da Unifesp. O capítulo discute de modo cuidadoso a SPP, uma neuropatia motora degenerativa, de etiologia multifatorial e de progressão lenta, que se manifesta em indivíduos portadores da poliomielite anterior aguda. Ocorre em indivíduos que tiveram pólio há pelo menos 15 anos, com ou sem sequela paralítica, e se caracteriza por nova fraqueza muscular progressiva, fadiga, dores musculares e/ou nas articulações, resultando numa diminuição da capacidade funcional e/ou surgimento de novas incapacidades. Um critério importante que fundamenta o diagnóstico é a confirmação da poliomielite anterior aguda com evidência de perda neuronal, por meio de exame neurológico e da eletroneuromiografia.
No capítulo seguinte, Solane Carvalho de Lima, diretora da Abraspp, fala dos desafios dessa “nova doença velha” para os profissionais de saúde e para os sobreviventes da pólio, além da importância de criação de uma instituição que represente os portadores da síndrome. De acordo com essa autora, a primeira descrição clínica da doença no Brasil foi publicada na Revista de Neurociências, em 2002. No ano seguinte, teve início o atendimento de sobreviventes da pólio, com sintomas da SPP, no Setor de Investigação em Doenças Neuromusculares da Unifesp/EPM. Além da contribuição para as primeiras pesquisas sobre a SPP e seus efeitos no Brasil, o grupo da EPM participou também da criação, em 2004, da Abraspp – espaço de debates e difusão de informações sobre a SPP – que busca facilitar o acesso de pessoas com SPP ao tratamento.
Os depoimentos
A última parte do livro apresenta os depoimentos dos especialistas João Baptista Risi Júnior e Ciro de Quadros, material que compõe o acervo do projeto “A história da poliomielite e de sua erradicação no Brasil” – acervo de depoimentos orais da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz). Esses dois médicos estiveram na direção dos processos de controle e erradicação da poliomielite no Brasil e na coordenação da erradicação nas Américas. João Risi narra passagens importantes no cenário brasileiro, enquanto Ciro de Quadros discorre sobre o tema em âmbito internacional. As entrevistas tiveram como temática principal a história da poliomielite, mas foram abordados outros assuntos importantes para o entendimento da trajetória da enfermidade no Brasil e nas Américas.
Os leitores da obra A história da poliomielite muito se beneficiarão da consulta a uma obra já clássica na literatura mundial, O fim da pólio: a campanha mundial para a erradicação da doença, organizada pelo fotógrafo Sebastião Salgado (2003), com textos traduzidos dos originais em inglês de vários especialistas e estudiosos internacionais, entre os quais os médicos epidemiologistas Katja Schemionek e Chris Zimmerman e a escritora Carole Naggar, a quem o doutor Ciro de Quadros também concedeu uma entrevista, em dezembro de 2002, reproduzida na íntegra. Imagens belíssimas e impactantes, fixadas por Sebastião Salgado, acompanham o registro das campanhas de vacinação em países estrangeiros não abordados na obra organizada por Nascimento (alem do Paquistão, incluem-se relatos sobre as campanhas na Índia, na Somália, no Sudão e na República Democrática do Congo). Os autores da obra brasileira poderiam, talvez, ter buscado um diálogo com os textos do livro organizado e ilustrado por Salgado. Isso por certo não impede que a presente obra publicada pela Garamond, com apoio da Faperj, seja uma contribuição extremamente relevante à literatura. Por certo haverá novas edições da importante obra; quando isto se der, será oportuna a montagem de um cuidadoso índice onomástico e de assuntos, imprescindível em um texto de consulta obrigatória como A história da poliomielite.
Referências
SALGADO, Sebastião. O fim da pólio: a campanha mundial para a erradicação da doença. Fotos de Sebastião Salgado; prefácio de Kofi A. Annan. São Paulo: Companhia das Letras. 2003. [ Links ]
Lina Faria – Coordenadora do Curso de Fisioterapia/Universidade Federal de Juiz de Fora. lina.faria@ufjf.edu.b