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Mais malandros. Ensaios tropicais e outros | Kenneth Maxwell
Talvez por sua consolidada reputação no país como especialista na história do império português e dada a ambigüidade do título desse seu último livro publicado no Brasil, essa coletânea de ensaios do historiador inglês Kenneth Maxwell não desperte entre os estudiosos das relações internacionais e da política externa brasileira a atenção que a obra merece. O título Mais malandros. Ensaios tropicais e outros parece fazer sentido apenas se a obra for entendida como sucedânea de outra coletânea de trabalhos do autor, publicada no país em 1999, intitulada Chocolate, Piratas e outros malandros. Ensaios tropicais (Paz e Terra). Os vinte e seis ensaios reunidos em Mais malandros foram, em sua maioria, publicados no extinto site NO (Notícia e Opinião) e no Caderno Mais da Folha de São Paulo, sendo os demais publicados em periódicos estrangeiros.
Se Maxwell é conhecido como autor, entre outros, de uma interpretação clássica da Inconfidência Mineira (A devassa da devassa, Paz e Terra, 1977), de uma biografia definitiva do Marquês de Pombal (Pombal: paradoxo do Iluminismo, Paz e Terra, 1996) e de uma provocativa interpretação da Revolução dos Cravos, ainda inédita no Brasil (The making of Portuguese Democracy, Cambridge University Press, 1995), a prazerosa leitura do trabalho aqui resenhado confirma a erudição e a vastidão dos interesses do autor, o que, por si só, já valeria a empreitada. Contudo, em Mais malandros destacam-se também a sagacidade e o pendor heterodoxo do autor na articulação de seu amplo conhecimento histórico a eventos sociais e políticos contemporâneos, tecedura essa usualmente evitada pelos historiadores. Leia Mais
Population Politics in Twentieth-Century Europe. Fascist Dictatorships and Liberal Democracies – QUINE (VH)
QUINE, Maria Sophia. Population Politics in Twentieth-Century Europe. Fascist Dictatorships and Liberal Democracies. London: Routledge, 1996. Resenha de: FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.17, p. 282-287, mar., 1997.
É fato reconhecido que os historiadores têm hesitado em penetrar em uma seara praticamente monopolizada por sociólogos, cientistas políticos e economistas, qual seja, a área de estudos que constitui uma verdadeira indústria de pesquisa sobre o wefare state. Sob a égide dos auto-denominados ” hard scientists”, a teorização sobre a origem e expansão do Estado de Bem-Estar Social, partindo da tese conhecida como “lógica da industrialização”, passando pela argumentação marxista e pela “lógica dos recursos de poder” (que destaca o papel dos movimentos sindicais e dos partidos trabalhistas), desembocou na hoje prevalecente elaboração “neo-institucionalista”. Essa teorização, tantalizada pela regularidade, tem relegado a um segundo plano elementos que constituem a verdadeira essência do ofício do historiador: a temporal idade e as particularidades. As explicações genéricas desenvolvidas para elucidar a conformação do wefare state têm tomado como variáveis o processo de industrialização e modernização, a democracia, o capitalismo, a competição partidária e os grupos de interesse. Sua aversão à contextualização, informada pela busca de fatores generalizantes e universalmente aplicáveis, mostra-se flexível apenas no consenso sobre a utilidade de se estabelecerem tipologias dos Estados de Bem-Estar Social.
Não nos cabe aqui listar os sucessos recentes daqueles historiadores que “ousaram” cruzar as fronteiras. Talvez possamos apenas, de passagem, endossar a sugestão de Peter Baldwin, para quem o “temor” da historiografia em fazer sua a temática talvez se deva, em parte, ao “inevitável atraso com o qual os historiadores respondem aos tópicos” (“The Welfare State for Historians. A Review Article”. Compara tive Study of Society and History, Vo1. 34, No 4, 1992, pp.695-707).
Contudo, mesmo que essa não seja uma ambição explícita do trabalho de Maria Sophia Ouine, que leciona História Européia Moderna na Universidade de Londres, fato é que seu Population Politics in TwentiethCentury Europe cumpre bem o papel de alertar para o fato de que a historiografia tem muito a contribuir para a compreensão das origens e do desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social. Na verdade, a contribuição de Ouine nesse sentido é apenas implícita, uma vez que a autora, através de uma análise apurada das políticas populacionais implementadas na Itália, na França e na Alemanha na primeira metade deste século, procura apontar as distintas soluções nacionais a um problema comum aos países mais industrializados da Europa Ocidental: a acentuada queda na taxa de natalidade.
É possível dizer que, em todos os países envolvidos, o fenômeno desencadeou acalorados debates que, em graus diferentes, se nortearam por questões da seguinte ordem: considerações militares e estratégicas, o recorrente temor quanto à “extinção da raça” e ao declínio da nação, ataques ao neo-malthusianismo, o papel dos princípios religiosos e da eugenia na reversão do processo de declínio das taxas de natalidade, a central idade da família enquanto instituição social, a revalorização da maternidade e a expansão dos mecanismos de seguridade social visando proteger crianças e mães e redistribuir os custos envolvidos na manutenção de uma família. Contudo, a perspectiva historiográfica deixa evidente o fato de as políticas populacionais discutidas e implementadas terem englobado mais que políticas familiares de incentivo à natalidade ou políticas sociais que lançariam as bases da cidadania social marshalliana. O foco do trabalho de Ouine é exatamente o papel crucial das diversas políticas populacionais nos projetos de “reconstrução nacional” da Itália de Mussolini, da Terceira República francesa e do Terceiro Reich.
Em uma concisa introdução, precedendo os estudos de caso, a autora discute o impacto da pessimista teorização de Malthus acerca do inevitável desequilíbrio entre a produção de alimentos e o crescimento populacional, a influência do neo-malthusianismo e o pânico alarmista, já nas últimas décadas do secúlo XIX, quanto ao espectro do “despovoamento” nacional, uma vez que o declínio acentuado das taxas de natalidade, a partir da década de 1870, passou a eclipsar qualquer temor quanto a uma eventual super-população.
Uma vez que a ênfase no pró-natalismo da Terceira República tem sido o objeto de inumeráveis estudos, a grande originalidade do trabalho em questão talvez resida na comparação das políticas de incentivo à natalidade implementadas no Terceiro Reich com aquelas advogadas pelo regime de Mussolini. É certo que a historiografia ainda não chegou a um consenso quanto à natureza do processo que culminou na Endíosung, a “Solução Final” de extermínio em massa dos judeus e demais “indejesados”. Sem se furtar ao polêmico debate, Maria Ouine encontrou uma solução engenhosa, que não pretende endossar de maneira conclusiva qualquer das posições em contenda. Alertando quanto às armadilhas do “revisionismo” em curso, a autora emprega, de maneira quase intuitiva, um instrumento heurístico eficaz, qual seja, a distinção entre propostas e medidas populacionais “positivas” ou “negativas”.
Apesar da natural repulsa quanto às consequências nefastas da política racial do Terceiro Reich, classificada como “negativa”, a distinção proposta não se prende a julgamentos de valor, atendo-se a aspectos essencialmente quantitativos. “Positivas” são as medidas de incentivo à natalidade, tais como salários família, exames pré-natal gratuitos, acompanhamento médico aos recém-nascidos, creches, prêmios honoríficos ou em dinheiro para famílias numerosas e qualquer outro auxílio financeiro às famílias. “Negativas” são as medidas que procuram restringir a fertilidade, como a divulgação de métodos contraceptivos, a liberalização do aborto e, também, medidas como a esterilização compulsória e outras dirigidas a grupos sociais específicos.
Na Itália de Mussolini, as políticas populacionais foram ativadas muito mais devido às consequências da Primeira Guerra Mundial do que por qualquer persistente e alarmante queda nas taxas de natalidade. A hostilidade gerada pelo neo-malthusianismo na Itália, com sua propaganda dos meios contraceptivos, deveu-se, segundo Ouine, não à força crescente do movimento, mas sim à aguda ambivalência de se discutir abertamente o significado social da sexualidade e da reprodução em um país onde o catolicismo sempre teve raízes tão profundas. As idéias que vertebraram a política populacional de Mussolini foram derivadas de uma peculiar eugenia que, em vez de preconizar a “procriação seletiva”, desejava encorajar a classe trabalhadora a procriar ainda mais. O movimento eugênico italiano era nitidamente pró-natalista e favorável à estruturação de um aparato de seguridade social capaz de amparar mães e crianças. A frustração dos anseios imperialistas italianos responderia por boa parte do pró-natalismo do movimento eugênico no país, bem como pelas políticas populacionais do fascismo.
A faceta assistencialista das políticas populacionais do Duce baseava-se na premissa, defendida pela Sociedade Eugênica Italiana, fundada em 1912, segundo a qual devem ser dadas aos cidadãos recompensas materiais na forma de benefícios sociais e isenções fiscais que possam induzi-Ios a cumprir sua “obrigação cívica” de procriar prolificamente. Como, segundo o suposto, povo fértil é povo robusto, as políticas populacionais do fascismo passaram a enfatizar tanto a “quantidade” como a “qualidade”.
Autores pró-natalistas italianos, além de enfatizar questões militares e estratégicas em sua defesa da necessidade de se elevarem as taxas de natalidade, chegaram mesmo a reverter o argumento de Malthus e destacar que a auto-suficiência na produção de alimentos e a aceleração do processo de industrialização só seriam possíveis com o aumento da população. O investimento em “capital humano” compensaria o país por sua carência de recursos. O título de um ensaio de Mussolini de 1928 sumariza bem o raciocínio: “Números como Força”.
Buscando capitalizar a generalizada frustração nacionalista dos italianos, o pró-natalismo, que cruzava fronteiras partidárias e ideológicas, tornou-se política oficial do regime fascista, servindo de mediador das relações entre o Estado e a sociedade. A “ressureição nacional” preconizada pelo fascismo, galvanizadora da legitimidade do regime, teria como pilar básico uma política populacional nacionalista, ferramenta essencial do planejamento social e da transformação da Itália em um país produtivo, orgulhoso e prolífico, verdadeiro herdeiro da Civilização Romana. A campanha demográfica fascista legitimava a intervenção estatal na esfera privada, transformando a família em instrumento político. O fato de grande parte dos mecanismos de seguridade social preconizados pelo regime jamais ter sido implementada apenas reforça a noção da centralidade da propaganda para a legitimação do “Novo Império Fascista”.
O incremento populacional há muito é reconhecido com uma das principais metas do nazismo. O crescimento demográfico almejado, entretanto, não era irrestrito, mas racialmente qualificado. Mesmo antes dos campos de extermínio, a política populacional do Terceiro Reich poderia ser classificada tanto como “pró-natalista” quanto como “antinatalista”. Maternidade e esterilização compulsórias foram a tônica da campanha de procriação seletiva implementada. O programa nazista de esterilização seria a primeira etapa de um processo de progressiva radicalização que passaria pela campanha da “eutanásia” para culminar no genocídio. A campanha demográfica de Mussolini, quando comparada ao programa de “higiene racial” do nazismo, parece, segundo Ouine, demasiadamente obcecada com os números, com a quantidade. Se a “batalha pela natalidade” advogada pelo Ouce enfatizava mecanismos de natureza “positiva”, parece evidente o destaque dado pelo Terceiro Reich a medidas “negativas”.
Se a brutalidade absoluta do Holocausto levou analistas a buscar razões socio-culturais para tamanho radicalismo, um dos pontos de destaque do livro de Ouine é certamente sua ênfase na quase universalidade dos movimentos eugênicos na Europa, isto é, no fato de, em muitos aspectos, compreensivelmente negligenciados pelos estudiosos ante a malignidade da Endlöosung, o Terceiro Reich não ter sido assim tão excepcional. A “Solução Final”, assim, é explicada tanto pela ideologia hitlerista como pelo monopólio da “biologia social” e da “higiene racial” sobre o aparato público e privado do wefare state alemão. “Essa influência institucional constituiu uma base firme a partir da qual foi promovida uma aceitação gradual de um amplo programa de saúde pública que tinha como objetivo o ‘melhoramento’ racial” (p.103).
Concluindo o livro, Ouine deixa claro o seu ponto: os estudiosos ainda são relutantes em desmitificar as agendas sociais traçadas pelos regimes fascistas comparando-as àquelas estabelecidas por regimes políticos “convencionais”. Na verdade, a noção generalizada de que o Estado deveria controlar a reprodução é um dos pilares básicos das políticas populacionais tanto nas ditaduras como nas democracias (p.132). A peculiar política populacional da Terceira República francesa, assim, com seu notório conservadorismo, seu pró-natalismo clerical, sua ênfase na família como clientela privilegiada do Estado de Bem-Estar Social em formação e no papel dos pais como “salvadores da nação”, compartilha muitas de suas características com os outros regimes analisados pela autora. De maneira similar, as comparações estabelecidas demonstram a falácia recorrente de que havia algo particularmente “fascista” na adoção de políticas populacionais agressivas e autoritárias.
Apenas nas últimas páginas, Ouine reconhece a relevância de sua abordagem para o debate sobre a origem e natureza do Estado de BemEstar Social. As políticas populacionais, centrais no weffare statemoderno, foram implementadas na esteira da ansiedade generalizada acerca de probemas demográficos, que deram o estímulo ideológico e emocional a essas políticas, tanto nas democracias como nas ditaduras.
Se, por um lado, a seleção das experiências italiana, alemã e francesa permite que a autora estabeleça distinções importantes entre fascismo e nazismo, contrapondo-as às políticas populacionais francesas, com resultados desmitificadores, sua contribuição ao debate acerca das origens e expansão do Estado de Bem-Estar Social poderia ser maximizada caso se tivesse optado por uma seleção distinta. Os sistemas de seguridade social da Alemanha, França e Itália têm sido qualificados como “continentais”, “corporativistas” ou “conservadores”, dependendo da tipologia. Alguns analistas chegam mesmo a distinguir uma variante “latina”, englobando França e Itália, entre outros. Caso se resolvesse tomar de empréstimo a renomada tipologia de Esping-Andersen e se analisassem, por exemplo, as políticas populacionais da França (welfare state conservador), da Inglaterra (liberal) e da Suécia (social-democrata), um estudo comparativo dessa natureza poderia marcar definitivamente o terreno para que a historiografia fizesse também sua uma seara da qual ela se alheou por tantas décadas.
Para encerrar, o trabalho de Quine deixa aos historiadores brasileiros a impressão de que as relações do Estado Novo com a eugenia e a “política da reprodução” ainda não foram suficientemente analisadas. Aos estudiosos das políticas públicas, fica a sugestão de que o fator “gênero” venha a assumir papel de maior destaque.
Carlos Aurélio Pimenta de Faria – Doutorando em Ciência Política no IUPERJ. Professor da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro – BH/MG.
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