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Ecos do Atlântico Sul | Omar Ribeiro
Em 1993 participei de uma reunião social na qual estavam presentes: um padre jesuíta do Timor, um professor de história da Universidade de Lisboa (nascido em Moçambique), um professor de literatura luso-americano judeu e eu, socióloga brasileira, carioca. Sentados na sala de uma casa de estilo new-england, em Providence, Rhode Island, conversávamos em português. De repente fui tomada pelo ineditismo daquela situação e pelo sentimento de espanto diante da extensão e da sobrevivência do que fora o império português. Aquilo se chocava com o imaginário do senso comum brasileiro, e meu também, que pensava Portugal como a “terra do avozinho”, bonitinha, atrasadinha, sem importância, uma peça da memória folclórica… Foi então, com esse novo registro, que assisti a algumas apresentações da pesquisa de Omar Ribeiro Thomaz e li, com o maior interesse, o seu livro Ecos do Atlântico Sul.
A área de pesquisa de Omar, seu saber sobre Portugal e África, é maior do que o tamanho desse livro. Penso que deve ter havido um enorme esforço para encaixar na narrativa a história portuguesa, a trajetória da antropologia, as múltiplas preocupações relativas aos Estados nacionais remanescentes do antigo império português e às culturas de seus povos. Ao dizer isso não quero diminuir o valor do livro, e sim aguçar nosso interesse por outros textos que certamente o autor irá publicar. Leia Mais
As ciências na história das relações Brasil-EUA | Mgali Romero Sá, Dominichi Miranda de Sá e André Felipe Silva
Organizado pelos pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz Magali Sá, Domichi Sá e André Silva, As ciências na história das relações Brasil-EUA reúne textos que analisam as conexões estabelecidas entre esses dois países tendo como ponto de partida projetos e redes de pesquisa que sinalizam como a diplomacia cultural foi, muitas vezes, também científica. Interesses econômicos e políticos não estão apartados nessas narrativas, sinalizadoras das múltiplas convergências que marcaram essas relações ao longo do século XX. Os 17 capítulos que integram o livro compõem esse recorte temporal amplo, assim como os campos de investigação que são eleitos para análise: agronomia, medicina, física, genética, antropologia, ciências sociais, biologia, entre outros.
Desse modo, o primeiro capítulo trabalha com uma perspectiva de aproximação dos EUA a partir da retórica do pan-americanismo, tomando como objeto as narrativas do Boletim da União Pan-americana do começo do século XX, enquanto o segundo analisa a expedição Roosevelt-Rondon (1913-1914). Já o último capítulo examina a constituição e a institucionalização do campo da biologia da conservação e os projetos a ele relacionados durante a segunda metade do século XX. As diferenças temporal e disciplinar se refletem no modo como os vocabulários pelos quais essas relações se estabeleceram também foram mudando de significado. Assim a “natureza” dos boletins da União Pan-Americana ou da viagem de um Roosevelt “aventureiro” e “caçador” (Sá, Sá, Silva, 2020, p.59) não é a mesma dos projetos de conservação desenvolvidos em parceria pelos ambientalistas, brasileiros e estrangeiros. Entre uma natureza e outra, cabe ao leitor estabelecer uma linha por vezes impossível de ser definida, porque heterogênea em suas associações. O mesmo pode ser dito se tomarmos a Amazônia como elemento aglutinador de alguns dos capítulos. Leia Mais
As ciências na história das relações Brasil-EUA | Magali Romero Sá, Dominichi Miranda de Sá, André Felipe Cândido da Silva
Os 17 artigos desta coletânea têm como tema o relacionamento entre Estados Unidos e Brasil na área técnico- -científica sobretudo a partir da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942. Desde 1933 os Estados Unidos vinham implementando a “política de boa vizinhança” com os países da América Latina, estabelecendo diferentes formas de colaboração diplomática, econômica e militar, para limitar a influência dos países do Eixo na região. A partir de 1940-1941, o governo americano estabeleceu o Office of the Coordinator of Inter-American Affairs, dirigido pelo milionário Nelson Rockefeller, para conduzir essa política, sobretudo na área cultural. O Brasil vinha se mantendo neutro até então, mas, finalmente, não resistiu à pressão e entrou na guerra do lado americano. A partir daí o relacionamento entre os dois países se estreitou, com a instalação de duas bases militares norte-americanas em Natal; um esforço sistemático de produção de matérias-primas, sobretudo a borracha, mas também outros minerais e alimentos, para apoiar o esforço de guerra americano; o acordo para a construção da Usina de Volta Redonda e de reequipamento das forças armadas brasileiras; e a preparação da Força Expedicionária Brasileira para participar do teatro de guerra europeu. Leia Mais
Da justiça em nome d’El Rey: justiça, ouvidores e inconfidência no centro-sul da América Portuguesa | Claudia C. A. Atallah
O livro de Cláudia Cristina Azeredo Atallah – doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora do Departamento de História da mesma universidade e coordenadora do Grupo de Pesquisa Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime (JIIAR) que reúne pesquisadores brasileiros e estrangeiros afinados com o tema da administração da justiça – insere-se na interface entre a história do direito e a história da justiça. É preciso de imediato ter em mente a distinção entre os dois domínios: o direito como sendo uma manifestação das intenções gerais de ordem e a justiça tendo sua expressão em atos singulares e concretos. Em outras palavras, o direito é universal e a justiça é casuística [2].
Ao analisar o esforço das reformas impostas por Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal, em conter as tradições políticas típicas do Antigo Regime na comarca do Rio das Velhas pela ótica de atuação dos ouvidores da coroa, a autora deparou-se com o movimento entre o direito, traduzido no conjunto normativo de ordens emanadas pelo centro, e a justiça, traduzida nas práticas cotidianas ocorridas além das decisões dos tribunais que caracterizavam a cultura jurídica nas Minas Gerais colonial em um contexto de transição entre o pluralismo jurídico e a modernidade jurídica.
O trabalho segue a trilha conceitual aberta pela abordagem de estudos do Antigo Regime nos Trópicos, retomando os modelos teóricos de “centro e periferia” proposto por Edward Shils (1992) e de “autoridades negociadas” proposto por Jack Grenne (1994), revisitados à luz de novos horizontes de pesquisa. Sendo assim, conceitos fundamentais como monarquia pluricontinental, economia do bem comum, economia moral de privilégios, redes clientelares e políticas são mobilizados nos oito capítulos que compõem o livro, pela ótica da ação da justiça. Atallah, portanto, alarga o tema ao mostrar a importância da conciliação e da política de negociação em um universo político marcado por conflitos de jurisdição, espaços mal definidos de poder e sobreposição de poderes em revelia às tentativas de centralização políticaadministrativa e controle sobre os oficiais régios que caracterizaram a nova prática do governo pombalino.
Cumpre destacar que os conflitos jurisdicionais entre as diversas instâncias do poder colonial têm-se mostrado como um dos temas da maior importância para o debate historiográfico recente. Longe de expressarem deformidades ou desordens conforme parte da historiografia afirmou durante o século XX, tais conflitos devem ser entendidos como mecanismos para distribuir poderes em territórios distantes do centro e não como uma anomalia do sistema. Expressavam o pluralismo jurídico do Antigo Regime e não interferiam na centralidade régia. De fato, esta discussão é fulcral para a análise da própria natureza do Império português, como bem mostra o posicionamento da autora ao demonstrar que a manutenção dos conflitos por parte da coroa não tinha como estratégia o caráter punitivo, mas sim o de institucionalizar a negociação.
A autora desenvolve o argumento central de que a Inconfidência do Sabará, episódio ocorrido em 1775 e que levou o ouvidor José de Góes Ribeiro Lara de Moraes à prisão, foi um produto das mudanças intentadas por Pombal e não resultado da desordem e da rebeldia peculiares à região. Essa tradição historiográfica, que tende a considerar as Minas Gerais como um universo distinto das demais áreas do Império português, nasceu da preocupação em definir e justificar o caráter nacional brasileiro mobilizando temas como a instabilidade das formas sociais, os paradoxos das estruturas administrativas e o processo incompleto de formação do Estado nacional racionalizado [3]. Em perspectiva distinta, Atallah entende que o “tom de rebeldia e de contradição torna-se mais compreensível se analisado como reflexo das práticas políticas cotidianas que alimentavam as relações clientelares e a busca pela cidadania nesse universo” (p.18).
Para os fins propostos, o livro está dividido em três partes. Na primeira parte, intitulada “As Minas setecentistas e o Antigo Regime: uma discussão acerca do caráter do poder”, Atallah discute os elementos necessários para entender a organização desta sociedade, cujo modelo político ancorava-se na filosofia jesuítica da nova escolástica que tinha como princípio a autonomia político-jurídica dos corpos sociais, sendo a justiça o fim lógico do poder. Concomitante ao desenvolvimento da nova escolástica, observou-se também um desenvolvimento cada vez maior das teorias corporativas do pensamento medieval e jurisdicionalista, cuja longa sobrevivência relaciona-se à presença sistemática dos padres jesuítas em todo o processo de colonização no ultramar.
Essas ideias forneceram o substrato moral e pedagógico responsáveis pela formação de uma elite jurídica destinada ao serviço régio e tiveram na Universidade de Coimbra e no Desembargo do Paço os principais redutos de legitimação e disseminação. No entanto, em meados do século XVIII, as reformas pombalinas viriam abalar profundamente as bases doutrinais que sustentavam o império e consequentemente as instituições que representavam o poder. A promulgação da Lei de 18 de agosto de 1769, a Lei da Boa Razão, foi a primeira iniciativa mais incisiva em relação às reformas no campo jurídico. À pluralidade das práticas jurídicas do direito consuetudinário vinha se opor a retidão do direito real.
As transformações do direito empreendidas pela Lei da Boa Razão encontraram ressonância nas reformas dos estudos jurídicos ocorridos na Universidade de Coimbra a partir de 1770. O objetivo era formar os futuros administradores da justiça portuguesa de acordo com a nova cultura jurídica e política e implantar um ensino prático, simples e metódico, “era o esforço em substanciar a nova razão de Estado almejada pelo ministério pombalino e que tinha como parte essencial a constituição do direito” (p.185). Para ter a dimensão do embate entre as reformas modernizantes e as tradições políticas no que tange às estruturas jurídicas, Atallah desenvolve na segunda parte “A dinâmica imperial e a comarca do Rio das Velhas no governo de D. João V”, um estudo sobre a atuação dos ouvidores na dinâmica imperial antes das reformas, durante o período de 1720-1725.
Este foi um período conturbado, aos esforços da coroa em implementar medidas de caráter fiscal e conter os distúrbios causados pela cobrança de impostos, somavam-se as exigências de importantes potentados locais. Foi também um período marcado por uma série de conflitos de jurisdição travados entre D. Lourenço de Almeida, governador das Minas, e José de Souza Valdes, ouvidor da Comarca do Rio das Velhas. À medida que os analisa, Atallah demonstra que os conflitos por jurisdição faziam parte de uma estratégia deliberada da coroa que, ao contrário de aniquilar seu poder, tornava-o possível em paragens distantes. Nesse Cantareira, sentido, a coroa não somente os mantinha como às vezes até mesmo os estimulava, sem se posicionar a favor de um ou outro oficial, favorecendo assim a institucionalização da negociação ao invés da punição.
Alinhada com a visão do estudo de José Subtil sobre o Desembargo do Paço, Atallah ressalta a importância dessa instituição como símbolo da essência político-administrativa do Antigo Regime, além de institucionalizar seu aparato jurídico. A partir do ministério pombalino, o Desembargo do Paço e seus homens assistiram a uma diminuição gradativa de suas competências simbólicas, pois “a centralização política impunha também a precedência do direito régio sobre o direito consuetudinário e, desse modo, a autoridade dos juristas ficava reduzida à aplicação das leis” (p.167). E é sobre isto, tomando como exemplo o caso emblemático da prisão do ouvidor da comarca do Rio das Velhas por crime de inconfidência, de que trata a terceira e última parte, “Tensões e conflitos: a época de Pombal e a inconfidência de Sabará”.
Com a ascensão do Marquês de Pombal após o terremoto que abalou Lisboa em 1755, a necessidade de concentrar as ações políticas em um só órgão concedeu preponderância ao Ministério das Secretarias de Estado. Nesse sentido, o Desembargo do Paço perderia a posição de núcleo da administração régia e assistiria a uma invasão de suas competências. No ultramar isto se refletiria em um controle maior dos oficiais régios, e os conflitos, até então comuns e tolerados, tornaram-se alvo do regalismo pombalino. O esforço em construir um governo centralizado e homogêneo resultou em uma verdadeira caça às bruxas, alijando do poder aqueles que não estivessem afinados com a política de fidelidade do Marquês. O Tribunal de Inconfidência assumiu um papel relevante na perseguição e punição aos vassalos infiéis. Foi este o caso do ouvidor José de Góes que assumiu o cargo de ouvidor em uma época de inúmeros debates sobre a arrecadação do quinto real.
Uma representação escrita ao monarca em 1775 denunciaria as relações de interdependência que envolviam alguns homens bons da comarca e o ouvidor, acusado de blasfemar contra Pombal. Iniciou-se então o desenrolar de uma rede trançada pelos poderes locais, cuja análise se constitui o cerne da discussão do livro. Atallah demonstra que em Sabará àquela época existiam redes de clientela que colocaram em lados opostos dois grupos constituídos pelos principais da terra. A acusação de crime de inconfidência que recaiu sobre José de Góes estava inserida na trama de uma desse redes que tinha raízes bem mais profundas. Dessa vez pesou o jugo controlador da monarquia administrada pelo Marquês de Pombal, representado pelo Tribunal de Inconfidência. O ouvidor virou inconfidente. A infidelidade ao novo ministério foi punida para que servisse de exemplo.
O instigante trabalho de Atallah abre inúmeras possibilidades e, por conseguinte, permite vários debates: a dificuldade em colocar o interesse do Estado acima dos interesses privados, a ideia de Viradeira, da qual a autora refuta, pois “acreditamos que os processos de transformação no percurso da história são lentos e de complexa assimilação” (p.252), a propagação do reformismo, tema que é comumente relacionado ao da identidade portuguesa e ao da decadência, dentre outros. Diante do ambiente em que se deflagraram os acontecimentos em Sabará, circunscrito em um processo mais amplo de transformação das relações entre a monarquia e seus súditos, capaz de revelar tensões e conflitos decorrentes do seu funcionamento, a autora conclui que a Inconfidência do Sabará foi um produto dos embates entre a tradição, traduzida na relutância dos oficiais do Desembargo em acatar as novas diretrizes, e a tentativa de modernização das estruturas jurídicas. Resenha recebida em 04/12/2018 e aprovada para publicação em 21/10/2019
Notas
2. Álvaro de Araújo Antunes. As paralelas e o infinito: uma sondagem historiográfica acerca da história da justiça na América Portuguesa. Revista de História, São Paulo, nº169, p. 21-52, julho/dezembro 2013; Álvaro de Araújo Antunes. Prefácio. In: Maria Fernanda Bicalho, Virgínia Maria Almoêdo de Assis, Isabele de Matos Pereira de Mello (orgs.). Justiça no Brasil colonial: agentes e práticas. São Paulo: Alameda, 2017.
3. Esta tradição historiográfica tem no paradigma da conquista soberana seu modelo interpretativo. Nele, a colonização, apresentada como um embate entre raças conquistadoras e conquistadas, pressupõe a legítima vitória da civilização europeia, a organização do mundo colonial conforme seus recursos materiais e espirituais, e a incorporação de elementos culturais dos grupos subjugados. Esta tradição historiográfica é devedora dos relatos das Minas setecentistas por seus contemporâneos, responsáveis por consolidar “o tema da afetação da gente dos sertões mineiros” e influenciar as interpretações posteriores. Atallah tem o cuidado em não conduzir esta discussão para uma dualidade ordem-desordem, seu caminho é o de reforçar a negociação. Para maiores informações sobre o paradigma da conquista soberana: Marco Antonio Silveira. Guerra de usurpação, guerra de guerrilhas. Conquista e soberania nas Minas setecentistas. Varia Historia, Belo Horizonte, nº25, jul/01, p.123-143.
Milena Pinillos Prisco Teixeira – Mestranda em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista CAPES. E-mail: milena_pinillos@yahoo.com.br
ATALLAH, Cláudia Cristina Azeredo. Da justiça em nome d’El Rey: justiça, ouvidores e inconfidência no centro-sul da América Portuguesa. Rio de Janeiro: Eduerj/Faperj, 2016. Resenha de: TEIXEIRA, Milena Pinillos Prisco. Entre o Direito e a Justiça: ecos da reforma pombalina na administração da justiça na comarca do Rio das Velhas (1720- 1777). Cantareira. Niterói, n.31, p. 92- 96, jul./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]
Formas de liberdade: gratidão/condicionalidade e incertezas no mundo escravista nas Américas | Jonis Freire, María Verónica Secreto
O livro aqui resenhado reúne textos de especialistas de diferentes países a respeito da experiência da escravidão e da liberdade na América Latina e Caribe. Com alguma variação de abordagem, estilo e perspectiva, os trabalhos transitam entre a história social e a micro-história, explorando uma rica documentação de natureza administrativa, eclesiástica, legislativa, judiciária e notarial. O livro é composto por nove capítulos que se estendem espacialmente pelo Caribe francês, por diferentes regiões da América hispânica, de norte a sul do continente, e pelo Brasil, concentrando-se de modo preponderante nos séculos XVIII e XIX. Alguns são escritos em espanhol, outros em português. Leia Mais
História do Rio de Janeiro em 45 objetos | Paul Knauss, Isabel Lenzi e Mariz Malta
Com o advento do universo digital, a história dos objetos materiais, também metaforicamente designada como história tangível, é uma das muitas áreas, entre tantas, cada vez mais desprezadas das Humanidades. Como fonte de conhecimento, a história tangível apresenta vantagens e desvantagens. A principal virtude dos artefatos do passado é a relativa ausência de preconceito intencional e o seu maior grau de autenticidade. Por outro lado, o passado que se descortina nos objetos e fragmentos é de âmbito restrito e não têm vida própria, eles precisam dos relatos, das reminiscências e principalmente, das narrativas dos historiadores. Relíquias e artefatos materiais do passado também sofrem maior desgaste do que fontes impressas. Impressos podem disseminar- -se de modo irrestrito, mas artefatos físicos sofrem desgaste constante, logo se tornam irreconhecíveis nos tempos presentes e, não raro – reforçando aquela nossa crescente vocação pelo descarte – acabam no limbo dos refugos da história. Leia Mais
Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial – VENÂNCIO et al (RHHE)
VENÂNCIO, Giselle; SECRETA, Maria; RIBEIRO, Gladys. Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2017. Resenha de: SILVA, Giuslane Francisca da. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 2, n. 5, p.234-239, maio/agosto de 2018.
A obra Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial é organizada por Giselle Venâncio, Maria Secreta e Gladys Ribeiro. Está dividida em duas partes e é composta por um total de onze textos escritos por pesquisadores de instituições distintas.
Cada texto traz abordagens inovadoras, visto que resgatam aspectos da cidade do Rio de Janeiro, muitas vezes relegados pelos pesquisadores, ao mesmo tempo em que desconstroem a ideia de que as camadas populares estavam distanciadas ou mesmo excluídas do mundo letrado. Para tanto, “cartografar um Rio de Janeiro ainda invisível” (SECRETO; VENANCIO, 2017, p. 9) constitui o objetivo central da obra.
A partir de fontes como os periódicos, os autores mostram que muitos populares na cidade do Rio de Janeiro Imperial tinham acesso à cultura escrita. Ampliando os sujeitos de suas pesquisas, os autores demonstram que escravos, forros, migrantes pobres, estiveram de alguma forma expostos a cultura escrita. É possível conjecturar que casos assim podem ter ocorrido em outras cidades também.
O livro está dividido em duas partes, a primeira delas, “Usos populares da leitura e escrita”, reúne quatro textos em torno dessa temática. A segunda parte, “Práticas educativas de populares no Rio de Janeiro oitocentista”, agrega um total de sete artigos. Para uma melhor explicitação do livro como um todo, realizo uma breve análise de cada um dos textos.
No primeiro texto, “Em primeira pessoa”, de Giselle Venancio, a autora vai analisar a carta que a liberta, Maria Rosa, escreveu à Princesa Isabel na ocasião de seu aniversário quando era comum alforriar alguns escravos. A carta assinada por Maria Rosa solicitava à Imperatriz que interviesse junto à Câmara Municipal para que sua filha, Ludovina, que era mãe de três filhos, fosse alforriada. Os dados que a autora levantou demonstram que escravos e libertos eram alfabetizados e não muito raro investiam também na formação de seus filhos.
No segundo capítulo, “Posta em cena: educação moral e estética e heterogeneidade social e teatro oitocentista”, cujas autoras são María Secreto e Viviana Gelado, a abordagem recai sobre o letramento popular e/ou negro na cidade do Rio de Janeiro, a partir de um ângulo não muito casual: o teatro, visto como mecanismo de educação moral e estética do público carioca.
Segundo as autoras, não sendo o escravo doméstico e especialmente o urbano, almejado pela cidade das letras, via no teatro a chance de depreender uma moral pragmática, assim como também lições de retórica e boas maneiras que “poderiam coadunar para desobstruir o improvável caminho da ascensão social dentro dos limites jurídicos impostos” (SE-CRETO; GELADO, 2017, p. 44-45).
Em “Saber ler, contar e poupar: reflexões entre economia popular e cultura letrada no Rio de Janeiro, 1831/1864”, de Luiz Saraiva e Rita de Cássia Almico, os autores partem de um consenso da historiografia brasileira, o de que as camadas mais baixas da sociedade teriam tido acesso limitado ao mercado financeiro, além do que a baixa circulação financeira teria restringido os trabalhadores pobres e escravos dos conhecimentos mais “sofisticados no âmbito da economia e de uma monetarização crescente” (SECRETO; GELADO, 2017, p. 49), a exemplo do que aconteceu no Rio de Janeiro no decorrer do século XX. Partindo desse ponto, os autores apresentam evidências de um maior protagonismo das camadas populares em atividades ligadas aos setores financeiros, destacam ainda o impacto dessas atuações na economia da cidade.
A partir de anúncios de jornais, os autores levantaram a hipótese de que havia um mercado de bens financeiros e que poderia ser usado por setores populares. Ressaltam também a importância da economia popular para a cidade.
Carlos Eduardo Villa, em “Escrever como curso de transação dos pequenos agentes do Rio de Janeiro na metade do século XX”, parte de dados cartoriais e evidencia que a cultura escrita aumentou consideravelmente ao longo do século XIX, o que leva crer que houve um aumento também dos grupos alfabetizados. Outra defesa do autor é que o aumento de trabalhadores, que ofertavam seus serviços nos jornais que circulavam na cidade, permite afirmar também que houve um incremento da cultura escrita entre os populares.
O texto “Ler, escrever e contar: cartografias da escolarização e práticas educativas no Rio de Janeiro oitocentista”, de Alessandra Shueler e Irma Rizzini, abre a segunda parte do livro. Nele, as autoras trazem questões ainda pouco debatidas e/ou conhecidas pelos historiadores, pois afirmam que a população pobre e seus filhos, assim como os negros, compunham o grupo escolar da cidade, isto é, frequentavam escolas e que, portanto, uma parcela de populares era alfabetizada.
As pesquisas das autoras contrariam uma ideia durante muito tempo hegemônica na historiografia, a de que não havia escolas noturnas e ensino primário voltado ao atendimento do público trabalhador, além de desmitificar a clássica afirmação de que grande parte da população brasileira no Brasil oitocentista era analfabeta, como se vê, essa não é a realidade da cidade do Rio de Janeiro. O trabalho dessas autoras e alguns outros desconstroem totalmente essas ideias.
Em “Educação no Rio de Janeiro joanino nas páginas da Gazeta do Rio de Janeiro: espaços abertos para a mobilidade social”, Camila Borges da Silva numa perspectiva que se aproxima do artigo anterior, analisa o formato dos espaços educacionais durante a presença da Corte no Brasil. Ela explora também como as aulas noturnas abriam condições de ascensão social às camadas intermediárias da sociedade, formadas em sua maioria por pardos, mulatos e portugueses pobres (SILVA, 2017).
Jonis Freire e Karoline Karula, em “Camadas populares e higienismo no Rio de Janeiro em fins dos anos de 1870”, analisam um grupo social composto por alunos que frequentavam a Escola Noturna da Lagoa, na ci-dade do Rio de Janeiro, no final da década de 1870. Nessa escola foram ofertadas conferências sobre higiene popular, o curioso é que grande parte do público que frequentava essas conferências era composto por alu-nos dessa instituição. As autoras, levando em consideração o fato de que essas conferências ocorriam nos dias em que não havia aula, afirmam que é muito provável que esses alunos iam porque o assunto lhes interessava.
Em “Cidade solidária: beneficência educacional no cotidiano popu-lar da Corte Imperial”, de Marconni Marotta, discute-se a instrução popu-lar financiada por associações, com destaque para a Sociedade Jovial e Ins-trutiva. Aponta também algumas políticas públicas voltadas para a educa-ção primária das camadas populares.
No texto “Aulas do Comércio: mundo da educação versus mundo do trabalho livre e pobre na cidade do Rio de Janeiro”, Gladys Sabina Ribeiro e Paulo Cruz Terra analisam as aulas do Comércio e o mundo do trabalho na cidade do Rio de Janeiro. Eles enfatizam também as transformações sofridas pela instituição a partir da data de sua fundação até a Reforma de 1854.
Tomando uma instituição de ensino como enfoque de seu trabalho, Alexandro Paixão, em “A educação popular no Rio de Janeiro oitocentista: o caso do Liceu Literário Português (1860-1880)”, discute os primeiros anos do Liceu Literário Português do Rio de Janeiro.
A presente instituição foi fundada no ano de 1868 sob os auspícios de alguns membros do Gabinete Português de Leitura e tinha por objetivo atender os ideais de “’comunidade’ relacionados à questão da cultura por-tuguesa, filantropia e instrução popular” (PAIXÃO, 2017, p. 215) no Rio de Janeiro. Foi talvez a primeira instituição na capital do Império a oferecer cursos noturnos gratuitos de instrução primária.
O Liceu também oferecia aulas de comércio para jovens e adultos que se mostrassem interessados na aprendizagem e no trabalho, logo em seguida passava a compor a classe caixeiral, muito comum naquele mo-mento. Entre os anos de 1868 a 1884, o Liceu formou cerca de 6.500 alu-nos.
O autor destaca a fundação de uma escola noturna que atendia jo-vens e adultos que não podiam frequentar escolas em outros horários. A escola era mantida pelo Gabinete Português. Há também a citação de ou-tra instituição, o Collegio Victorio da Costa, com o externato para meninos pobres, de propriedade de um dos membros do gabinete.
O último texto “Pelos caminhos da liberdade: sujeitos, espaços e prá-ticas educativas (1880-1888)”, Alexandra Lima da Silva e Ana Chrystina Mignot abordam as iniciativas de educação de escravos e libertos, bem como ressaltam o papel do Centro Abolicionista Ferreira de Menezes, que foi criado por funcionários do jornal Gazeta da Tarde e que era, então, dirigido por José do Patrocínio, uma importante figura dentro do movi-mento abolicionista.
Essa perspectiva, defendem as autoras, alarga a compreensão sobre a educação de cativos e libertos para além das escassas escolas que exis-tiam Brasil afora. O Centro Abolicionista, além de abrir e manter escolas primárias noturnas, promovia outras atividades como festas, espetáculos teatrais, musicais etc.
Através da análise de diversos periódicos que circulavam na cidade, as autoras encontraram várias escolas gratuitas que instruíam “menores e adultos livres, libertos e escravos, sem distinção de cor, nacionalidade ou religião” (SILVA; MIGNOT, 2017, p. 245).
Ao analisarem as ações do Centro Abolicionista Ferreira de Menezes, as autoras trouxeram à tona nomes como José do Patrocínio, José Ferreira de Menezes, Israel Soares, dentre outros, que compunham o quadro dos membros do movimento abolicionista. Ressaltam também que figuras como essas, ao escreverem em jornais, pretendiam conquistar a simpatia das elites para benefício de suas causas. No entanto, escreviam também para muitos libertos e descendentes de escravos que possuíam acesso a esses escritos.
Os textos que compõem a obra discutida aqui, com uma linguagem clara e objetiva, levantam questionamentos e desconstroem muitos mitos que se firmaram na historiografia brasileira, no caso específico, o de que as camadas populares no oitocentos estiveram alheias à cultura escrita, ou que sequer entendiam o valor da educação. É justamente isso que os textos buscam desmistificar ao mostrar que havia escolas noturnas, muitas delas mantidas por associações de dentro do movimento abolicionista. Tais escolas eram voltadas ao atendimento de trabalhadores, escravos e libertos, consequentemente uma parcela significativa de populares estavam inseridos no universo da cultura escrita e que, portanto, eram alfabetizados.
Giuslane Francisca da Silva – Doutoranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil). Contato: giuslanesilva@hotmail.com.
O Movimento Estudantil na resistência à Ditadura Militar (1969-1979) – MÜLLER (RBH)
MÜLLER, Angélica. O Movimento Estudantil na resistência à Ditadura Militar (1969-1979). Rio de Janeiro: Garamond; Faperj, 2016. 224p. Resenha de: VALLE, Maria Ribeiro do. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.76, set./dez. 2017.
O livro O Movimento Estudantil na resistência à Ditadura Militar (1969-1979), de autoria de Angélica Müller, dialoga com os estudiosos que afirmam não ter havido continuidade da organização do movimento estudantil depois de decretar-se o Ato Institucional no 5 (AI-5), em dezembro de 1968. Sua tese principal é a de que, apesar da mudança de tática na luta dos estudantes, ela foi fruto de uma autocrítica das lutas do período anterior e responsável por gestar uma nova cultura política que passou a privilegiar as liberdades democráticas.
O percurso da reconstituição da União Nacional dos Estudantes (UNE), foco da análise, instigou a autora a costurar a colcha de retalhos das ações estudantis após o Congresso de Ibiúna, em outubro de 1968, quando a organização passa a agir na clandestinidade absoluta, até a sua extinção. Com a Lei n. 477, considerada o AI-5 da educação, o Conselho da UNE, já em 1970, optava pela organização de frentes de vanguarda por turmas e faculdades. Suas principais ações foram o Plebiscito do ensino pago em 1972, as lutas pela revogação dos Decretos-Leis números 477 e 464, e a crítica ao Projeto Rondon e à criação da disciplina de Moral e Cívica. Elas são consideradas por Müller como microrresistências pacíficas que contribuíram para gerar uma nova cultura no seio das oposições.
Mereceu destaque a luta estudantil contra a Política Educacional do governo que propunha a criação da disciplina Estudos sociais. Esta passaria a aglutinar as disciplinas de História, Geografia e Ciências Sociais, passando a desempenhar um papel de sustentação ideológica da política da ditadura.
Aqui eu gostaria de abrir um breve parêntese, chamando atenção para a proposta educacional do atual governo do presidente ilegítimo Michel Temer: típica de regimes autoritários, defende também a supressão das disciplinas críticas como a História e as Ciências Sociais.
O livro enfatiza também o vínculo entre o Movimento Estudantil (doravante ME) e os outros movimentos sociais de resistência à ditadura, tendo como fio condutor a Educação. Citam-se como emblemáticas a criação de grupos de teatro, a arte engajada, a publicação de jornais e a música de protesto, pelo fato de evidenciavam o conteúdo autoritário do regime. Aqui explicita-se o trabalho artesanal na confecção de uma colcha de retalhos, tecida pela historiadora com base no garimpo de formas de lutas diferentes e dispersas nos vários estados e cidades, travadas pela Igreja, pelos deputados e artistas. Os jornais estudantis tiveram importância ímpar tanto no engajamento político do ME, quanto na divulgação de suas ações e táticas. Apesar dos períodos mais duros do regime, os relatos da imprensa alternativa e clandestina ancoraram a crítica de Müller à historiografia que aponta os anos 1970 como marcados pela inexistência do movimento.
Também são elencadas as medidas tomadas pela ditadura na década anterior e que continuavam em vigor nos anos 1970, incidindo diretamente no ME: vigilância, repressão e censura por meio do Serviço Nacional de Informações (SNI), criado logo após o golpe de 64, e da Divisão de Segurança e Informações (DSI), criada em julho de 1967. A vigilância e a punição no Ensino Superior eram efetuadas pela instalação de inquéritos e regulamentadas pela criação das ASIs (nomeação de uma pessoa pelo MEC para fazer o elo entre a universidade e o governo) e da DSI (responsável pelas ações de normatização, vigilância e punição do ensino superior), garantindo os processos de expulsão de professores e estudantes que foram catalogados como um conjunto de subversivos, considerados um perigo para a nação.
No embate entre repressão e resistência, Müller enfatiza que o ME foi pioneiro na retomada do espaço público com a luta pelas liberdades democráticas. Sua pesquisa revela que, já nos primeiros anos do governo Geisel, a luta do ME vem à tona com as greves das universidades que ocorreram entre 1974 e 1975, respaldando a reorganização das correntes e das entidades representativas estudantis nas diferentes cidades e estados, quais sejam os DCEs, as UEEs e, finalmente, a reconstrução da UNE.
As greves, formas tradicionais de lutas estudantis, permitiram maior visibilidade às suas reivindicações e contribuíram para que o ME assumisse papel articulador nos diferentes movimentos sociais de resistência à ditadura. A greve da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que se estendeu por mais de um semestre letivo, desencadeou a discussão dos problemas da realidade e preparou o terreno para a criação do DCE-Livre da USP em 1976. Esses episódios coincidiram com o assassinato de Vladimir Herzog pelo DOI-Codi e foram um marco importante para a defesa das liberdades democráticas pelo ME e pelos demais movimentos de contestação do regime militar.
A análise aprofundada da reorganização das novas e diferentes tendências do ME – bem como de suas diversas concepções de democracia – feita por Müller respalda, de forma consistente, sua tese de que a retomada do movimento estudantil na segunda metade da década não foi o despertar de uma inércia, nem o preenchimento de um vazio, apontado por boa parte dos historiadores. Ao contrário, depois de 10 anos de resistência restrita ao ambiente universitário, as greves e a volta às ruas sacramentaram a rearticulação da UNE e reforçaram o pioneirismo dos estudantes. Estas palavras de ordem começaram a ser abraçadas também por outros movimentos de oposição: pelas Liberdades Democráticas; Abaixo a carestia; pelo fim das torturas, prisões e perseguições políticas; pela anistia ampla e irrestrita. Foi emblemática da conjunção de diversas lutas a frase “Soltem os Nossos Presos operários e estudantes” presente nas passeatas.
É importante ressaltar que a pesquisa de Müller não se restringiu ao eixo Rio-São Paulo, o que lhe permitiu mostrar como efetiva a criação nacional de uma entidade estudantil. Além da Uerj, da Unesp e da PUC-RIO e da PUC-SP, a UFMG, a UFPE, UFBA e a UFRGS também iniciaram suas greves contra os cortes de verbas da universidade, pelo ensino público e gratuito e pelo boicote ao pagamento das anuidades.
Peço licença novamente para abrir outro parêntese: acredito que estamos vivenciando um retrocesso político, pois esses direitos são mais uma vez retaliados, numa amplitude inusitada, pelo governo do ilegítimo presidente Michel Temer.
Para Angélica Müller,
o ressurgimento das movimentações de massa ocorreu em novos moldes e em situação bem diversa da que caracterizou aquelas de 1968: não havia grandes líderes, não houve enfrentamentos nem uso de armas, e a plataforma de luta era bem ampla, ou seja, não restrita às reivindicações do ME. O que se exigia era o fim da ditadura militar. (p.134)
Há, a meu ver, uma fragilidade na análise de Müller, que dá muita ênfase às diferenças entre as bandeiras e formas de luta na década de 1970 e as do período anterior, e lança pouca luz sobre as semelhanças existentes. Se retomarmos as formas de luta do ME em 1968, notaremos uma grande cisão entre duas vertentes centrais: a que defendia as lutas específicas dos estudantes e a que defendia a luta política contra a ditadura, o capitalismo e o socialismo real. Apesar de, ao longo do ano, a segunda posição ter ganhado o maior espaço, em razão da conjuntura política, não podemos reduzir às suas as bandeiras estudantis. A luta pelo ensino público e gratuito, por exemplo, esteve presente o ano todo.
Ao contrário de Müller, acredito que a defesa dos princípios democráticos não é uma especificidade da década de 1970. Nesse sentido seria importante trazer à tona as ações, táticas e propostas estudantis desde o início da ditadura, em 1964, quando o ME já era um dos principais alvos do regime. A opção pelo caráter pacífico foi vitoriosa nas passeatas de 1966, enquanto a utilização da violência foi levada às ruas em 1968. Mas isso não significava existir uma hegemonia entre as diferentes entidades do ME. Acredito que o contraponto proposto pela historiadora entre a década de 1970 e 1968 ficaria, assim, mais bem delimitado.
O livro de Angélica Müller adquire importância histórica e social ao trazer à cena o movimento do ME na década de 1970, uma vez que nos devolve várias páginas da luta estudantil arrancadas pela ditadura militar. Vale muito a pena conhecê-las e, em grande medida, elas estão na ordem de nosso dia.
Maria Ribeiro do Valle – Departamento de Sociologia, Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Araraquara, SP, Brasil. E-mail: mrvalle@fclar.unesp.br.
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Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social: Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850 | Roberto Guedes
Analisar as vivências de libertos e seus descendentes através de um conjunto variado de fontes, e conseguir reconstituir trajetórias de famílias com ascendência escrava numa área de produção agrícola para o mercado interno – e, por isso mesmo, representativa de regiões agrárias do Brasil escravista do século XIX – foi o que propôs Roberto Guedes em seu livro.
Este trabalho é resultado de sua tese de doutorado defendida na UFRJ em 2005, e tem como recorte espacial a vila de Porto Feliz, na capitania/província de São Paulo, no período de fins do século XVIII e início do XIX (especificamente a primeira metade do século XIX), e como tema central a mobilidade social. O autor procurou analisar as estratégias de ascensão social empreendidas por libertos e seus descendentes, tais como o trabalho, a estabilidade familiar, a inserção em redes de socialização, dentre outros. Para isso, utilizou como método de abordagem o proposto pela micro-história, realizando um trabalho intenso com diversos tipos de fontes, onde utilizou a técnica do cruzamento onomástico: listas nominativas de habitantes, registros paroquiais de batismo, casamento e óbito, inventários post-mortem, testamentos e prestação de contas de testamentos, notas cartoriais, licenças expedidas pela Câmara Municipal, processos crimes, etc. Assim, foi possível ao autor acompanhar por mais de quatro gerações as trajetórias de libertos e descendentes como, por exemplo, o caso da família Rocha.
Além do trabalho com as fontes, vale ressaltar o cuidado do autor em dialogar com a historiografia no decorrer do livro – como os trabalhos e pressupostos da historiadora Hebe Mattos (1995; 2000), referência nos debates propostos – importante não só para situar sua abordagem, apontar questões que está de acordo ou não, como também para comparar os dados levantados para Porto Feliz com os de outras localidades. Algumas questões importantes para a compreensão de seu livro são o fato do autor entender a sociedade de Porto Feliz como uma sociedade com traços de Antigo Regime e a escravidão como sendo parte integrante dela, ou seja, uma sociedade com traços estamentais e escravista, onde a mobilidade social é entendida não só pela mudança de posição na hierarquia social estamental, mas também pelo viés intragrupal e ainda “não deve ser confundida apenas com enriquecimento” (Guedes, 2008, p. 87). Antes, o mais importante era a manutenção e/ou a redefinição do lugar ocupado na hierarquia social, para o que a riqueza podia colaborar ou não. Desta maneira, Guedes procurou entender como se deu a trajetória de forros e descendentes, apresentando seu livro dividido em cinco capítulos, que se destacam pela riqueza de detalhes não só na forma de escrever, bem como através de quadros, gráficos, diagramas, que nos permitem perceber de forma ampla e precisa a vila de Porto Feliz e sua população.
Primeiramente, é apresentada a paisagem agrária da pequena Porto Feliz, que até 1797 era a freguesia de Araritaguaba, quando foi elevada a vila. Durante todo o século XVIII, este lugarejo foi fundamental na rota fluvial das monções quando se descobriu minas de ouro em Coxipó-Mirim e Cuiabá. Já nos primeiros anos do século XIX, o comércio das monções teve sua importância diminuída devido ao surgimento de outras rotas, o que coincidiu com o desenvolvimento da economia canavieira no oeste paulista, desenvolvimento que Porto Feliz acompanhou, se inserindo entre os municípios situados no “Quadrilátero do Açúcar”, área compreendida entre Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçú e Jundiaí.
Guedes mostra como o cultivo da cana-de-açúcar, voltado para o mercado externo à vila, estimulou o desenvolvimento de Porto Feliz, possibilitando o crescimento do “miolo urbano” com construção de algumas casas, instalação de vendas; influenciou também o aumento da população, principalmente da população escrava em função do tráfico de cativos para trabalhar nas lavouras; estimulou o mercado de animais e a criação de gado para alimentação e para moverem os engenhos, e também a produção de alimentos como milho, feijão, arroz, entre outros, destinados ao consumo próprio e comercializados na vila. Inicialmente, foram os pequenos escravistas que participaram plenamente da atividade açucareira, mas a partir de 1820-1824 os grandes produtores aumentaram sua participação e intensificaram a concentração da propriedade escrava. Para a montagem de um engenho era preciso cabedais, e o crédito foi fundamental para o financiamento, assim como o fato dos senhores de engenho se dedicarem a outras atividades como negócio de fazendas secas, lavouras, o comércio das monções, etc.
Ao verificar em seus dados levantados para Porto Feliz o exercício de outras atividades pelos principais da terra, Roberto Guedes estabelece um intenso diálogo com a historiografia, tendo o „trabalho‟ como questão importante. Assim, a partir do conceito de trabalho de Caio Prado Jr. no passado colonial/imperial no Brasil e da análise de outros estudos que seguem a mesma perspectiva, o autor matiza a idéia de que o defeito mecânico e a escravidão inviabilizaram o trabalho livre não só no sentido de ocupação de espaços nas esferas produtivas, mas também no de imputar estigma social a trabalhadores, em especial a forros e descendentes. Tendo como base estudos como os do historiador João Fragoso, comparando os dados levantados para outras localidades com Porto Feliz, Guedes constatou que as elites locais dedicavam-se a outras atividades como comércio e que não deixaram de ser estimados socialmente. Desta forma, podiam não ter uma ideologia negativa do trabalho e, por isso, afirma a importância de se analisar cada realidade local e temporal e “ressaltar as nuances que as noções de trabalho tiveram na colônia/império e entre distintos segmentos sociais” (Guedes, 2008, p. 76). Desta maneira, o autor concentra sua análise nos indivíduos que não eram membros da elite, especificamente forros e descendentes, analisando o trabalho como uma das estratégias, uma das várias formas de mobilidade social.
Para abordar este grupo, Guedes se baseou em concepções de Stuart Schwartz (1988) e Hebe Mattos, se fundamentando nas questões de que a escravidão impunha referenciais de hierarquia distinguindo social e juridicamente escravos, livres, forros e descendentes de escravos e que a transposição de uma categoria jurídica a outra e o posterior afastamento de um antepassado escravo pressupõem passos na hierarquia social, para o qual a cor da pele podia estar relacionada. Assim, o autor analisa através de listas nominativas e mapas de habitantes, o trabalho relacionado a cor/condição social, e verifica como a ocupação diferenciou forros e descendentes de escravos e ambos entre si, corroborando com evidências de que o trabalho propiciava mobilidade social expressas na cor.
É válido ressaltar a preocupação do autor em relação ao cuidado que se deve ter durante a análise desses documentos, no que diz respeito à questão de quem atribuiu ou auto- atribuiu a cor e de quem faz o registro, além da variação nas fontes, etc, pois nem sempre há consonância entre os termos utilizados por autoridades que elaboraram os mapas e os utilizados por recenseadores que fizeram as listas, mesmo que ambos se referissem a uma mesma cor/condição social. No geral, Guedes constatou, por exemplo, que a escravidão influenciou nas cores das pessoas em Porto Feliz e que o trabalho influenciou na oscilação da cor, o que era frequente. Em relação ao registro da cor, percebeu que o termo mulato pode ter tido um sentido pejorativo, e que ser caracterizado como branco marcava uma diferenciação fundamental em relação aos escravos e um distanciamento maior da escravidão em relação aos pardos. Enfim, na análise proposta pelo autor, a hierarquia e a posição social manifestas na cor eram fluidas e dependiam de circunstâncias sociais.
Vista pelo autor como o primeiro passo na hierarquia social, a alforria era onde os forros se diferenciavam dos escravos, por isso Guedes também procurou analisar como se dava essa passagem da escravidão para a liberdade, bem como alguns caminhos que conduziam à liberdade e seus momentos posteriores. O autor compreende a alforria como uma troca equitativa entre senhores e escravos, mas obviamente baseada na desigualdade, ou seja, uma relação de troca assentada na reciprocidade, sem esquecer que reciprocidade não é sinônimo de equivalência. Assim, nesta relação, do ponto de vista do escravo, o autor destaca a questão da submissão, que implica reconhecimento do poder senhorial, que juntamente com a obediência e os bons serviços prestados, podem ser vistos como estratégias de mobilidade social, uma vez que submissão não deve ser entendida apenas de forma unilateral, sendo necessário atentar para o interesse do submisso pela submissão, através das quais se podiam alcançar vantagens.
Outras formas de alforrias, de estratégias, destacadas pelo autor foram casos que, segundo ele, não eram frequentes, de ascensão social de cativas e/ou de seus filhos derivada de relações sexuais/afetivas com seus senhores, onde as ex-escravas e/ou seus filhos, além da liberdade, também herdaram alguns bens dos senhores. O matrimônio foi outro exemplo de forma de alforria, pois existiram casos de casamento de libertos(as) com escravas(os), onde a última foi alforriada. E uma vez inseridos na nova condição jurídico social, foi importante estabelecer relações sociais, as quais tinham sempre que ser reatualizadas para manutenção da nova posição, seja pelos forros ou seus descendentes.
É no último capítulo que percebemos a análise do autor por completo, pois através das trajetórias de algumas famílias ele comprova todas as suas hipóteses: a mobilidade social, seu tema central, relacionada conjuntamente ao trabalho, estabilidade familiar, mostrando a solidariedade intragrupal e a inserção em redes de sociabilidade, como as alianças com potentados locais, tudo isso associado à mudança no registro da cor da pele. Foram nessas trajetórias que o autor propôs aplicar o método da micro-história, e realizou o cruzamento de diversos tipos de fontes, analisando a mobilidade social dos egressos da escravidão, onde as trajetórias foram descritas passo a passo a fim de apreender tais estratégias.
Encontrando pontos em comum nessas trajetórias, o autor mostrou que o trabalho podia ser percebido de forma positiva e ainda poderia propiciar margens de autonomia e ascensão social para forros e descendentes, não só em termos materiais, mas também no que diz respeito à reputação, às questões de reconhecimento e atuação social. Sobre a família e a inserção em redes de sociabilidade, os vínculos se percebem, por exemplo, nas relações de compadrio, e mesmo os que conseguiram ascender à condição de escravistas, não implicava o afastamento em relação aos seus iguais. Estes mantinham as relações horizontais, já que não havia porque fechar portas em um mundo instável, apadrinhavam filhos ou eram testemunhas de casamentos de escravos ou forros, mas para apadrinhar seus filhos preferiam pessoas com títulos como donas, tenentes, capitães, etc. Assim, Guedes nos fala da “transformação” de alguns pardos em brancos, como alguns pardos conseguiram se inserir no mundo senhorial, mostrando os fatores associados à mobilidade social também como um processo geracional.
O livro de Roberto Guedes, portanto, mostra como a mobilidade social contribuía para a manutenção de hierarquias sociais, não estando acessível a todos, mas tornando possível a forros e seus descendentes atuarem numa sociedade caracterizada pela desigualdade. O trabalho de Guedes contribui para estudos sobre a escravidão que se voltam para substituir a ideia de “vítima” pela de “agente social”, ou seja, o escravo como um ser ativo na dinâmica da sociedade. Também é importante para estudos que buscam entender a participação social de libertos e seus descendentes, deixando de lado a visão de uma sociedade bipolarizada entre senhores e escravos, com aquele grupo incluído entre os vadios, os desclassificados sociais, com poucas chances de ascensão social; estudos que se voltam para a análise dos usos e significados sociais dos designativos de cor, bem como os que abordam a alforria, principalmente com enfoque para áreas rurais, o que pode servir também para estudos comparativos entre regiões urbanas e rurais.
Referências
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
______. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550- 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Iara de Oliveira Maia – Mestre, licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). E-mail: iaramaia_ufop@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4762-4836
GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social: Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2008. Resenha de: MAIA, Iara de Oliveira. Os significados da mobilidade social para forros e seus descendentes. Caminhos da História. Montes Claros, v.22, n.2, p.121-125, jul./dez.,2017. Acessar publicação original [DR]
Colégio Pedro II: A Trajetória de seus Uniformes Escolares na Memória coletiva da Cidade | Beatriz Boclin Marques Santos e Vera Lucia CAbana de Quiroz Andrade
O trabalho de pesquisa de Beatriz Boclin Marques dos Santos e Vera Lucia Cabana de Queiroz Andrade, ambas professoras doutoras e pesquisadoras do Colégio Pedro II, lotadas no Núcleo de Documentação e Memória do Centro de Documentação e Memória do CPII, órgão que abarca os acervos do colégio e que coordena as atividades de biblioteca histórica, museu, laboratório de digitalização do acervo e o Centro de Estudos Linguísticos e Biblioteca Antenor Veras Nascentes, o ex-aluno de 1902 e depois professor catedrático de Português e Espanhol, nos apresenta uma visão da evolução da sociedade carioca através do acompanhamento das variações dos uniformes dos alunos do colégio e dos respectivos itens dos regulamentos internos, ao longo de um tempo que se inicia em meados do século XVIII com o Colégio dos Órfãos de São Pedro (1739) e depois Seminário São Joaquim (1766), passando pelo Colégio Imperial em 1834 até a criação do Colégio Pedro II em 1837 e daí até os nossos dias, percorrendo a transição Império/República, o período da chamada “República Velha”(1889 – 1930), a era Vargas/Dutra/Vargas (1930 -1937 -1945 – 1951 -1954) e os períodos compreendidos entre os anos 1960 até o século XXI. Leia Mais
Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003 – TORRES (RL)
TORRES, Marcele Xavier. Márcia Serra Ferreira. “Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003”. In: MONTEIRO, Ana Maria (et al.). Pesquisa em ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. Rio de Janeiro: Muad/Faperj, 2014. Resenha de: ROSA, Tatiane Mendes. Revista do LHISTE, Porto Alegre, v.3, n.5, p.99-104, jul./dez, 2016.
O propósito aqui é fazer uma resenha reflexiva a partir do texto: “Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003” (MAUD x FAPERJ, 2014) das Professoras Marcele Xavier Torres e Márcia Serra Ferreira, a obra traz uma análise sobre a obrigatoriedade de inserção da História da África e dos africanos no ensino de História no Brasil a partir da Lei 10.639/2003.
A inovação da introdução curricular em relação à História da África nos estudos da História do Brasil a partir da lei 10.639/03 é um tema que gradativamente vem sendo debatido e levado a publicações de pesquisas, artigos, ensaios, etc. A publicação da pesquisa organizada por Marcele X. Torres e Márcia S. Ferreira, reforça a importância desta lei no desenvolvimento histórico educacional em nosso país.
As autoras atuam com pesquisas nas áreas de História e Educação, contribuindo no aprimoramento da formação de professores, educadores e pesquisadores. Um dos resultados destas pesquisas pode ser verificado no livro “Pesquisa em Ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas (2014)” caracterizada por uma coletânea de textos acadêmicos elaborados por pesquisadores que atuam no campo educacional. O texto escolhido traz a reflexão da pesquisa dividida em duas partes, distribuída em 12 páginas, proporcionando ao leitor uma compreensão do tema, possibilitando uma busca maior de detalhes e informações na bibliografia e livros indicados. A obra também proporciona uma análise sobre o que vem sendo desenvolvido nos centros acadêmicos sobre a lei 10.693/03 e aplicado nos currículos escolares.
A apresentação das ideias das autoras se faz presente no desenvolver da pesquisa apresentada onde fica nítida ao leitor a compreensão do conteúdo pesquisado, visto que, na elaboração do texto publicado se faz uma trajetória de conceitos permitindo a objetividade da proposta. Elas trabalham com a compreensão de que o homem é o protagonista de sua própria história e agente formador de suas mudanças em um futuro desconhecido. É possível identificar a transformação do novo e/ou novidade no trecho que nos fala: “[…] o ‘novo’ não é apenas o que resulta de uma mudança estrutural, tampouco esta em transformação radi cal promovida por uma instituição. […]” (TORRES; FERREIRA, 2014: p. 84), o novo para acontecer necessita de um lugar (ambiente) e condições de equilíbrio para se constituir. Para o escritor Ferretti (1995), segundo as autoras:
[…] a mudança como resultado das iniciativas de alterações que são incorporadas a diferentes objetos, com vistas a atender a determinados objetivos que se configuram tomando como ponto de partida os problemas identificados na realidade que se pretende mudar. (TORRES; FERREIRA, 2014: p. 84).Os conceitos desenvolvidos servem de base para chegarmos ao ponto de estudo do Currículo Escolar onde há a necessidade de mudança e inovação para atender a inserção de novos conteúdos que tratem de temas não abordados antigamente com tamanha eficiência, mas que na atualidade esses temas devem ser mais trabalhados para atender a realidade e compreensão dos alunos.
As professoras Marcele e Márcia utilizam outras referências teóricas para debater a mudança curricular, para isso consideram o autor Popkewitz que contribui com seus escritos na questão da transição da mudança onde se faz necessário ter um paralelo entre o que se foi praticado no tempo transcorrido em associação a atualidade, gerando assim um deslocamento que estabelece rompimentos e seguimentos, como fica evidenciado em: “[…] pensar a partir da relação entre o passado e o presente significa ‘identificar interrupções, descontinuidades e rupturas da vida institucional’ (Popkewitz, 1997, p. 22).” (TORRES; FERREIRA, 2014: p.86). Este autor também considera importante o estudo regional na pluralidade da sociedade abrangendo fatos locais mais peculiares dentro das relações de poder existente e acredita que as alterações podem ser feitas através de uma reforma educacional a partir do uso de termos pertencentes ao aprendizado escolar. Em relação a esta alteração de significados as autoras nos trazem o escritor Silva que em seus escritos nos mostra que “no contexto da história do Currículo é preciso desconfiar particularmente da tentação de atribuir significado e conteúdo fixos a disciplinas escolares que podem ter em comum apenas o nome.” (SILVA, 1995: p. 8 apud TORRES; FERREIRA, 2014: p.87). Seguindo nesta linha de mudança curricular o temos o comentário das autoras sobre Goodson onde:
“[…] as mudanças devem ser compreendidas como o resultado de um conflito entre assuntos internos e relações externas, pois ‘quando o interno e o externo estão em conflito (ou dessincronizados) a mudança tende a ser gradual ou efêmera” (GOODSON, 1997: p. 56 apud TORRES; FERREIRA, 2014: p.87).
Nesta primeira parte do texto as autoras fazem a reflexão que o Currículo atua como formador de entendimento da consciência social, local competitivo rodeado de ambição e de relações desiguais de empoderamento. Ambas as autoras deste artigo reafirmam que a mudança curricular seja na universidade, seja na escola “[…] não é um processo fácil tratando-se de um movimento no qual se ‘inventam tradições’[…]” (TORRES; FERREIRA: 2014 p.88)”. O estudo da História da África e da cultura afro-brasileira e africana no ensino de História se encaixa no contexto acima abordado por se tratar de uma nova interpretação no contexto tradicional curricular.
A segunda parte do texto nos trás a mudança no ensino de História a partir da Lei 10.639/2003 que refere à obrigatoriedade de revisão curricular na Educação Fundamental do ensino de História da África e da cultura afro-brasileira e africana no Brasil. O teor desse tema é justificado pelas autoras por conter fundamentos de alterações importantes no ensino da disciplina de História, por que é uma ciência que possui a pratica curricular de mostrar a soberania do homem branco em relação ao homem não branco, especificamente o africano, nas relações de convivência em nossa sociedade, ou seja, as autoras não buscam uma nova disciplina escolar com essa temática e sim, procuram aflorar as inquietudes da História Nacional oficial ensinada para outro viés histórico não relacionado com a conjuntura social presente.
A História como disciplina escolar, assim como o a educação no Brasil é baseada no sistema educacional europeu (séc.XX), sendo contada a partir do olhar do estrangeiro. Nestas circunstâncias a História sempre foi vista pelo heroísmo e bravura do seu ator principal o homem branco, onde é representado por figuras ilustres, um ser humano independente e com capacidade de “civilizar” o mundo. Com o passar do tempo e dos acontecimentos a disciplina de História teve mudanças baseada nas produções acadêmicas européias e pelos diferentes cenários políticos sociais surgidos no passar dos anos, mas sem perder o eurocentrismo. Com a extensão do sistema educacional brasileiro no final do século XX foi possível que outros grupos não elitizados freqüentassem as escolas, esse fato ocasionou uma alteração na homogeneização do perfil social dos alunos que freqüentavam o educandário, destinado antes aos filhos da elite política brasileira. Sendo assim, “[…] seja pela transformação do perfil do alunado, seja pelo crescimento dos movimentos sociais voltados para a inclusão de grupos historicamente marginalizados, os currículos foram sendo crescentemente contestados.” (TORRES; FERREIRA, 2014: p.90). Ao longo do tempo os conteúdos desenvolvidos em História sofreram indagações por não retratar a História da África e dos afro-brasileiros no Brasil gerando uma revisão disciplinar. O final do século XX em nosso país é caracterizado por uma História marxista que retrata a disputa de classes sociais e as relações de produções. Com base nisso, tivemos algumas alterações nos currículos escolares, onde ficou evidenciado “hegemonicamente pela inclusão da luta dos africanos, tanto na África quanto no Brasil, em uma perspectiva estrutural mais ampla, envolvendo dominantes e dominados. […]” (TORRES; FERREIRA, 2014: p.90). As autoras nos remetem a contextualização que a partir do final do processo da Ditadura Militar no Brasil as discussões sobre igualdade e democracia conquistaram maior visibilidade na luta pela inclusão das minorias e dos grupos marginalizados pela História Oficial. Coube ao ensino de História motivar o aluno a indagar seu eixo histórico e analisar seu papel de ator social.
No ensino de História do Brasil a contar do inicio do século XXI tivemos o estabelecimento da Lei 10.639/2003 que consiste no ensino de História da África e cultura afro-brasileira como já citado anteriormente. Esta lei busca readquirir as ações afirmativas dos negros na formação da sociedade brasileira impulsionando a população negra ao seu reconhecimento social. A lei foi decretada em 2003, mas a luta por esse reconhecimento legitimado vem de muito tempo que pode ser verificado, por exemplo, no Movimento Negro que sempre lutou pela integração da História e cultura afro-brasileira nos currículos escolares. Mesmo sendo uma lei, a mesma não garantiu até o momento que essa mudança nos currículos escolares seja eficaz em relação aos contextos anteriormente desenvolvidos nas escolas através da visão do outro, no caso do olhar eurocêntrico. Após 13 anos de implantação a lei 10.639/03 ainda não rompeu com o “costume” de se retratar o negro africano e o afro-brasileiro somente como escravizado e submisso ao opressor europeu. A alteração é gradual e necessita de orientação de como deve ser aplicada, pois toda mudança curricular envolve fatores externos que vão além do ambiente escolar, envolvidos em uma cultura intrínseca. A modificação do currículo escolar faz parte do processo de transição do conteúdo histórico a ser desenvolvido com o alunado, mas para que essa transformação ocorra é preciso também que se faça um preparatório do corpo docente para trabalhar essa temática em aula, pois a lei é de 2003, mas há professores que começaram a atuar antes deste período e para os que atuam após esta data também se faz necessária uma formação para que haja preparo e referencial teórico que embase as aulas ministradas sobre a cultura africana no Brasil e a formação da nossa identidade no elo Brasil Africano e África Brasileira. A responsabilidade dessa alteração de paradigmas históricos se faz presente no embate político social onde uma nova retratação entraria em conflito com uma “tradição” secular no contexto social brasileiro.
Após a leitura do texto referido para este trabalho fico com algumas indagações: quais os motivos para a lei 10.639/03 não ser aplicada? Há interesse da parte governamental para que não haja uma nova historiografia em relação aos negros africanos e aos afro-brasileiros? Os professores recebem orientações didáticas em suas formações para desenvolverem em aula o referido tema? Os currículos escolares no âmbito nacional já estão atuando na proposta da lei? Atualmente, há algum tipo de verificação nos diários escolares para averiguar o que esta sendo desenvolvido? As ações afirmativas e a valorização do povo negro onde estão? Os professores estão recebendo ou receberam material didático para embasarem as aulas? Há formações de professores que abordam essa questão? Cabe somente aos professores de História trabalhar com a proposta da lei 10.639/03? Existe racismo nas escolas do Brasil? Alguma pesquisa já foi feita com os alunos de matriz africana para verificar se os mesmos já se sentiram descriminados, injustiçados ou envergonhados nas aulas que tratam sobre a formação do nosso país? As perguntas são inúmeras e não pararam por aqui. Será preciso fazer mais pesquisas sobre o tema abordado para elucidar essas questões. Com base no texto resenhado e nas perguntas acima, trago questões pertinente quando se trata da negritude brasileira e da formação afro descendente do Brasil, o racismo, o preconceito e a discriminação na escola. Para esta analise utilizei o livro “Superando o Racismo na Escola”, organizado por Krabengele Munanga, Brasil, 2005. Em minha carreira como Professora de História já sofri perguntas dos alunos tais como “bah, mas a senhora não tem cara de Professora!”, “Sora, a senhora fala de religião de matriz africana só porque a senhora é preta?”, “Sora, porque a senhora usa esse “troço” (turbante) na cabeça, tá com piolho?’’, “a senhora acredita em saravá?” foram perguntas que fizeram refletir sobre o convívio escolar de uma pessoa afro-brasileira. Como nos diz Sant’ana (2005): “[…] não dá para fugir da curiosidade dos alunos e nem é aconselhável camuflar as respostas. O jeito é enfrentar a questão de frente. […]” (SANT’ANA, 2005: p.40). E para enfrentarmos essas questões é necessário contextualizar a história do negro no Brasil e a nossa relação de identidade com o continente africano. Acredito que a maioria dos alunos ainda tenha a visão estigmatizada do negro escravizado, sofredor, pacífico e submisso ao branco europeu, como também percebo que as informações referentes à cultura africana merecem maior elucidação, pois ainda é vista como algo pejorativo onde usar turbante, usar elementos da religião de matriz africana ou falar sobre a Mama África no ambiente escolar assim como em toda nossa sociedade parece algo que causa estranheza ou afronta a cultura nacional. A figura do Professor é primordial para elucidar essas questões de racismo, preconceito e discriminação, pois o aluno inicia na escola em idade de formação da sua personalidade e é na escola que temos o nosso maior convívio social com as diferenças.
Referências
SANT’ANA, Antônio Olimpio. “História e Conceitos básicos sobre o Racismo e seus derivados” IN MUNANGA, Kabengele (organizador). Superando o Racismo na Escola. 2ª Ed. Revisada. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
TORRES, Marcele Xavier. Márcia Serra Ferreira. “Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003” IN MONTEIRO, Ana Maria (et al.). Pesquisa em ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Muad x Faperj, 2014.
Tatiane Mendes Rosa – 1 Professora de História Rede Pública. E-mail: prof.tatianehistoria@yahoo.com.br
[IF]
Guerrilha e Revolução: A luta armada contra a Ditadura Militar no Brasil | Jean Rodrigues Sales
Nesta obra, Jean Rodrigues Sales organiza doze textos acerca da história da esquerda armada, na ditadura civil-militar no Brasil, ressaltando a trajetória política de diversas organizações guerrilheiras, como o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), e a ALN (Ação Libertadora Nacional).
O livro destaca que a luta armada se desenvolveu de duas formas: uma menos usual, que foi a tentativa de implantar a guerrilha rural, e a outra, mais comum no período, as ações urbanas, como assaltos a bancos para arrecadação de recursos, e expropriação de armamentos. Leia Mais
Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem | Eliane Garcindo de Sá
– ! Ay, señora Juana!
Vusarcé perdone,
y escuche las quejas de un mestizo pobre [2]
Um dos temas mais polêmicos e dramáticos do mundo contemporâneo é a invasão de imigrantes africanos ao continente europeu. Assistimos, diariamente, pela mídia, ao drama desses refugiados e à recusa dos países da comunidade europeia em abriga-los, utilizando uma série de subterfúgios. O candidato republicano à presidência da República dos Estados Unidos da América, Donald Trump, acirra o debate anunciando a expulsão do país dos mulçumanos e a construção de um muro para inibir a entrada dos mexicanos em território norte-americano, caso venha a ser presidente. O encontro/confronto entre diferentes culturas e etnias é sempre ameaçador.
Sabemos que essa polêmica não é recente. Cada época marca seu motivo. A verdade é que os movimentos de população permitiram o povoamento do mundo e significaram a expansão de etnias, línguas, religiões e conhecimento num emaranhado processo que dá ao mundo atual os traços de grande diversidade e riqueza cultural.
As chamadas Grandes Navegações, por exemplo, foram responsáveis pela colonização do continente americano a partir do século XVI e significaram a difusão da cultura dos europeus, a qual entrou em choque com as culturas das comunidades indígenas que já habitavam o território. Esse deslocamento populacional foi estimulado pelo expansionismo territorial das potências europeias da época que buscavam fontes de matéria-prima e novos mercados para seus produtos, portanto, tinham motivação geopolítica e econômica. Essa migração aumentou maciçamente no século XIX e começo do XX e resultou, além de outros fatores, na miscigenação dos povos, recriando novas características étnicas e culturais no continente americano.
A historiadora Eliane Garcindo de Sá tem estudado temas sobre o caráter desses deslocamentos e, consequentemente, o encontro/confronto entre diferentes culturas ao longo de sua vida acadêmica. Publicou vários trabalhos científicos, que trazem reflexões originais e marcadamente inovadoras sobre o assunto. A publicação do livro Mestiço: Entre o mito, a utopia e a História – Reflexões sobre a Mestiçagem é resultado do conjunto desses estudos ordenados de forma que permitem acompanhar o desenvolvimento do pensamento da autora. Baseada em significativo estudo de fôlego documental e extensa pesquisa bibliográfica, a obra é muito bem escrita ressaltando a fluidez da narrativa e erudição, colocando de maneira bastante clara os problemas levantados e conduzindo o leitor a refletir sobre questões importantes que ainda afligem nossa sociedade.
A “questão da mestiçagem” na América Ibérica fornece o eixo central em torno do qual se articulam as duas partes em que se divide o livro. Nessa obra, a historiadora também promove o debate, ainda bastante contemporâneo, sobre a tradição do pensamento social latino-americano e, através de múltipla abordagem da cultura mestiça, induz considerações sobre seu imbricamento com a construção simbólica da nacionalidade.
O Prólogo é escrito pelo professor Serge Gruzinski, detentor de alentada obra sobre a conquista e colonização da América. Em seu texto, Gruzinski justifica a opção da autora por uma abordagem latino-americana do tema: “Atualmente, inseridos em uma outra mundialização que passa por redefinição do papel continental e mundial do Brasil, nós não podemos continuar a escrever histórias confinadas na prisão das memórias nacionais”.[3]
A primeira parte do livro, “Mestiço no Universo Colonial”, é composta por quatro textos que esquadrinham uma série de problemáticas relacionadas à cultura mestiça durante o período colonial. A segunda, “Reflexões sobre o Universo Mestiço”, traz quatro textos que compõem as diferentes reflexões da autora sobre o tema. Gruzinski conclui em seu Prólogo:
Ao analisar a questão da mestiçagem, fundamental nas transformações sociais desta parte do mundo, e da emergência das sociedades coloniais, a historiadora carioca nos guia nos meandros do pensamento latinoamericano, de Buenos Aires ao México, de Sarmiento a Vasconcelos da raça cósmica, de Diego Rivera a Candido Portinari.[4]
O texto “Visões das Gentes na Experiência Colonial” dá início à primeira parte do livro e trata do impacto da grande imigração entre os continentes europeu e americano durante os séculos XV e XVI. Esse “encontro/confronto” entre sociedades e culturas distintas desorganiza todas as referências socioculturais de ambos os lados, forçando novas conexões, crenças e valores. Eliane assinala que “diante da novidade de descobertas de outras terras e outras gentes, diante do desafio das diferenças e estranhamentos” os protagonistas da formação da nova sociedade “elaboram produção em que expõem a construção de referências”.[5] Como suporte às suas reflexões, a autora usa obras dos cronistas Garcilaso de la Vega, Frei Vicente do Salvador, Felipe Guamán Poma de Ayala e Ambrósio Fernandes Brandão.
Nos três textos seguintes, “Entre os papéis da Audiência de Lima: as imagens dos mestizos”, “Os Cronistas e a Construção da Representação do Mestizo” e “Inca Garcilaso de la Vega: a representação do mestizo”, a autora optou por discutir aspectos necessários para fundamentar seus argumentos a respeito das diferentes conotações e representações sobre a palavra mestizo. Eliane Garcindo de Sá chama a atenção para o fato de que:
Os sistemas de representação forjados nas sociedades coloniais decorreram radicalmente da insuficiência patente dos recursos anteriormente disponíveis entre as sociedades “originais” em confronto. A intromissão de novos elementos obrigou à criação de novas designações, nomeações […].[6]
Essa complexidade de referências e significados é estudada com base na riquíssima documentação da Audiência de Lima (1543-1620) [7] em cotejo com os cronistas, o mestiço Inca Garcilaso de La Vega e o índio Felipe Guamán Poma de Ayala.
A segunda parte tem início com o artigo intitulado “Um Mundo ‘Uno’”, seguido de outro denominado “Ocidentalização” onde a autora analisa os efeitos da mundialização/ocidentalização nas sociedades hispano-americanas e a convergência de visões apocalípticas que marcaram os primeiros anos da Conquista da América. A historiadora ressalta a importância dos trabalhos de Serge Gruzinski, particularmente La penseé métisse [8] e a Primeira América, [9] este escrito em conjunto com Carmen Bernand, os quais consolidam questões pertinentes à ocidentalização e à perda de identidade/alteridade entre conquistadores e conquistados. O primeiro texto termina com a afirmação: “O mestiço foi, sem dúvida, um ‘outro’ construído”.[10]
Dois outros artigos compõem esse segundo bloco: “Raça Cósmica” e “Mestiço Ideal”. Chega-se, assim, à questão que norteia o pensamento da autora: por qual motivo e como se formou, no imaginário de alguns indivíduos, a conexão entre a mestiçagem e um complexo emaranhado de representações? O mexicano Jose Vasconcelos sugere uma “raça final”, a “raça cósmica”, idealiza uma “raça feita com o tesouro de todas as outras, cósmica, apontando para uma síntese superadora de uma questão que se coloca na região […]”.[11] Segundo a autora, para Vasconcelos “a mestiçagem era uma marca de originalidade ibero-americana, qualidade que marcaria as diferenças entre as sociedades na América ibérica, América anglo-saxã e ‘Velho Mundo’”,[12] entretanto o autor retira da conotação do vocábulo a negatividade presente em muitos outros escritores e cronistas.
Já o peruano Inca Garcilaso de la Vega, “diante de condições muito específicas de sua trajetória construiu e protagonizou o personagem do mestiço, que se construiu em referência dessa representação e do mito, com o qual se confunde”.[13] Garcilaso, o mestiço culto que superou sua condição social, passa a representar e referenciar o modelo do mestiço ideal. Entretanto, ao contrário de Vasconcelos, o Inca Garcilaso deixa indícios de sua visão negativa do mestiço e da mestiçagem. Nessas circunstâncias, os temas étnicos estarão no centro da discussão sobre identidade e carácter dos povos. Esse é outro ponto interessante das reflexões da autora buscando articulação entre a mestiçagem e os atributos que vão constituir as sociedades nacionais. O grande dilema dos protagonistas da independência da América espanhola foi o redimensionamento da questão nacional com a composição étnica, cuja grande maioria de negros, índios e mestiços, necessariamente teriam que estar incluídos nos projetos nacionais nascentes.
Em “Considerações Finais”, a epígrafe que abre o texto sintetiza determinadas ideias daquele contexto envolto pelo estranhamento dos “diferentes” e referências imagéticas desse confronto/encontro. Em sua fala, Garcilaso ressalta o confronto de visões em relação ao próprio continente: “[…] que no hay más que un mundo, y aunque llamamos Mundo Viejo y Mundo Nuevo, es por haberse descubierto éste nuevamente para nosotros, y no porque sean dos, sino todo uno”.[14] O cronista, que transitou nos “dois mundos”, não os entende divididos, mas como parte de uma mesma formação social, histórica e cultural. A historiadora considera que o conceito de pensamento mestiço cunhado por Serge Gruzinski é importante categoria de análise para o confronto de questões impostas pelas relações sociais durante o período de conquista. É com base nesse referencial que Eliane Garcindo de Sá conclui sua exposição de ideias: “A intensificação e o aprofundamento da mundialização, os efeitos da globalização, potencializam o fluxo e as contradições das relações entre as sociedades e suas parcelas, entre cada um e cada grupo que se autorreferencia ou é visto como um outro”.[15]
Não se pode deixar de mencionar as ilustrações selecionadas para o livro, uma vez que completam e corroboram o discurso que fundamenta a obra. No primeiro grupo, encontram-se seis ilustrações de Felipe Guamán Poma de Ayala onde, na narrativa sobre a conquista, escrevia e desenhava os acontecimentos que queria relatar. No segundo, Eliane recorre a diferentes artistas, Cândido Portinari, Jose Clemente Orozco, Diego Rivera e Emiliano Di Cavalcanti, e, através da linguagem plástica, complementa os significados com diferentes representações sobre o mestiço.
Assim, nos oito textos que compõem o livro, a historiadora consegue demonstrar sem observância cronológica rígida, porém obedecendo determinada linha de tempo, as condições que permitiram a formação de uma cultura mestiça e seus desdobramentos. Essa visão da autora está consubstanciada nas relações de encontro/confronto como nos processos de mundialização e ocidentalização. Nesse sentido, o trabalho apresenta o panorama geral das diligências da autora sobre o tema e fomenta impacto no ambiente acadêmico, uma vez que as discussões de questões relativas à mestiçagem, particularmente em países miscigenados como os da América Latina, são sempre muito relevantes. Por outro lado, as reflexões sobre raças e etnias são questões contundentes para sociedades contemporâneas na luta contra o racismo e a discriminação étnica-cultural.
Em suma, pode-se dizer que a obra de Eliane Garcindo de Sá discute, de forma muito precisa, mas dialética, problemas que contribuem de maneira importante para a compreensão de referências que explicam, em parte, nosso preconceito contra o “outro”. A documentação é densamente trabalhada, e as obras dos cronistas analisadas nos textos avaliam a presença e a função dessas obras nos contextos anterior e posterior à conquista da América. A emergência dessas ideias e as condições que permitiram a mobilização em uma sociedade majoritariamente indígena é parte relevante da obra.
O livro apresenta uma das mais importantes análises sobre a ”questão da mestiçagem”. A publicação da obra referenda e demonstra a complexidade de determinadas visões consolidadas sobre aquela que foi, e talvez ainda seja, a principal matriz histórica e cultural do continente latino-americano.
Notas
2 OQUENDO, Marco Rosas de. Nova Espanha: finais do século XVI. In: GONZÁLEZ, Luiz. El encontro de la conquista: sesenta testemonios. Mexico: Cien-SEP, 1984. p. 234-236.
3 CNRS – Centre National de la Recherché Scientifique; EHESS – L’Ecole des Hautes Estudes en Sciences Sociales. Princeton University.
4 GRUZINSKI, Serge. In: GARCINDO DE SÁ, Eliane. Universo Mestiço: resenha de Mestiço: Entre o mito, a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem. Prólogo.
5 GARCINDO DE SÁ, Eliane. Op. cit., p. 29.
6 Id., p. 63.
7 Na parte dedicada às fontes, p. 305-313, a autora identifica toda a documentação pesquisada na Audiência de Lima.
8 GRUZINSKI, Serge. La Pensée Métisse. Paris, Éditions Fayard, 1999.
9 BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. In: Historia de Nuevo Mundo 2: (1550-1640). Mexico: Fondo de Cultura Econòmia, 1999.
10 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 61.
11 VASCONCELOS, José. La raza cósmica. Mexico: Espasa-Calpe Mexicana SA, 1948.
12 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 199.
13 VEGA, Inca Garcilaso de la. Comentarios Reales. 1ª parte. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 1985.
14 Id., p. 159.
15 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 270.
Francisca Nogueira de Azevedo – Historiadora, professora associada do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Autora do livro Carlota Joaquina – na Corte do Brasil, Civilização Brasileira, 2003. E-mail: franciscazevedo@uol.com.br
GARCINDO DE SÁ, Eliane. Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2013. Resenha de: AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.15, p. 221-225, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]
A Inquisição Contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681) | Yllan Mattos
O Tribunal da Santa Inquisição em Portugal foi criado em 1536, com o intuito de zelar pela pureza da fé católica dando início a um processo de perseguição àqueles que de alguma forma cometeram, pronunciaram ou defenderam heresias, na qual os cristãos-novos seriam suas principais vítimas. Em um segundo momento, os sodomitas, bígamos, blasfemos, luteranos e feiticeiros (em menor número), se tornaram alvos constantes por parte do Tribunal. Leia Mais
Rádio, arte e política – COSTA (REi)
COSTA, Mauro Sá Rego. Rádio, arte e política. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012. Resenha de: CORDEIRO, Salete de Fátima Noro. Revista Entreideias, Salvador, v. 4, n. 2, 162-171 jul./dez. 2015.
Mauro Costa reúne, nessa obra, vários de seus artigos, cuidadosamente selecionados para levar o leitor à reflexão sobre a importância e dinâmicas do rádio, ao longo do tempo até o contexto contemporâneo. No primeiro artigo, “Rádio Arte e Política”, o mesmo que dá título à obra, logo marca o tom da sua escrita, colocando o rádio, desde sua origem, como um meio universal que atinge grandes contingentes da população e, portanto, um instrumento cultural, artístico e político que pode chegar a qualquer cidadão, instruído ou não. Apresenta o rádio com seu caráter plural, sendo usado, tanto numa perspectiva autoritária, – a exemplo da rádio nazista e fascista na Alemanha e Itália respectivamente –, como libertária, a exemplo da radiodifusão nos EUA no início do século XX e das rádios livres na França e Itália em meados da década de 1970. O rádio ganha notável reconhecimento da população, uma vez que a comunicação passa a acontecer ultrapassando as barreiras geográficas, o que significa dizer que as pessoas começaram a se comunicar a longas distâncias sem a interferência do Estado ou de empresas. Em estilo contraventor ou reacionário, expande-se, principalmente quando começa a se difundir e servir de meio de comunicação livre nos EUA (comunicação entre rádios amadores).
Nesse caso, o Estado intervém através do “Ato do Rádio” legislação que obriga os rádios amadores a tirar licença e só permite a comunicação por ondas curtas, sob a alegação do Congresso americano de “interferências maliciosas”. Mera coincidência em relação aos atos de criminalização das rádios comunitárias nos dias atuais, tanto nos Estados Unidos como em diversas partes do mundo.
Essa restrição definia uma faixa do espectro muito limitada para uso, sob pena de multa para quem infringisse as regras, o que levou a um movimento pela liberdade de comunicação, produção e arte.
A luta pela liberdade de expressão através das rádios caminhou junto com sua clandestinidade, dando origem a criação de um repertório cada vez mais variado, entre eles, a emissão de propaganda, música e narrativas orais. Muitas rádios, ainda hoje, continuam clandestinidade, ou seja, sem licenças, pela grande burocratização das instituições reguladoras e pelos interesses políticos dos proprietários de rádios comerciais, que dificultam sua regulamentação.
Na França e na Itália, até os anos 1970, todas as rádios eram estatais. Somente após esse período é que as rádios comerciais começaram a surgir. Mauro Costa cita o exemplo da rádio “Alice,” uma rádio livre que surge em Bolonha, na Itália (1976-1977), como um projeto estético-político, sendo considerada contraventora para a época e tendo como um dos seus fundadores o ativista Franco Berardi (Bifo). Torna-se a primeira rádio livre de Bolonha, onde a contrainformação passa a ser o principal instrumento no desmascaramento do discurso do poder. O mesmo grupo que organiza a rádio “Alice”, organiza também a revista Altraverso, um grupo que, em meio aos movimentos políticos da época, buscava fazer uma outra política, ou pelo menos, constituir maneiras diferentes de fazê-la, através dos meios de comunicação, promovendo a circulação de informação e comunicação. Política e informação caminhavam juntas no pensamento desse grupo, onde, “informações falsas produzem eventos verdadeiros” (p.65).
Do ponto de vista teórico, Mauro Costa, apresenta os sentidos e significados, ou melhor, não sentidos e não significados, que envolvem a perspectiva de fazer uma rádio contraventora, que transmite contrainformação, que interage com ouvintes e que transmite silêncio. Embasado em Burroughs e Deleuze, toma a palavra como vírus e, dessa maneira, a palavra se espalharia e dominaria as narrativas e discursos, exercendo papel condicionante e de controle. Segundo ele, nós, seres humanos, já não comunicamos por nós mesmo, pelas nossas percepções, pelo real, mas pelo que a palavra fez da linguagem, “pedaços de linguagem” que vão se articulando e esparramando. Já não é o ser humano que fala, mas a palavra, o vírus. O que cria uma distância entre as palavras e a experiência. A mídia instituída fala por cada um de nós e nos retira a potência da linguagem, da comunicação. Segundo ele, o que vale é a experiência direta, adâmica, a que está antes da palavra, no silêncio. O vazio precede a palavra. Sentido e não sentido fazem parte de um mesmo agenciamento. Vazio é espaço de privilégio, onde os artistas estão no ato da criação, no momento da poiésis, onde esquecem os códigos, ultrapassam os limites da linguagem instituída e criam o inédito, o singular e o novo.
Esse lugar potente, que rompe com o instituído dando abertura para o nonsense, para a criação, é o que almejava a rádio “Alice” em termos de potência política, “ético-estética”. O silêncio do rádio é quebrar, abrir, fechar, cortar, interromper a linguagem feita da palavra vírus, escapar do controle, interromper a comunicação, linguagem que fala por todos. Abrir espaço para a construção de novas linguagens, possibilitando outras maneiras de comunicar, de pensar, de criar, de estabelecer relações outras, com valores pertencentes a cada um e aos seus coletivos.
A rádio “Alice” é uma rádio subversiva. “O problema real é o de criar novas condições culturais, cotidianas, vivenciais, relacionais, psíquicas para que um processo de auto-organização da sociedade possa se livrar das correntes do comando capitalista…”(67).
Ela está relacionada a uma política emergente, instituinte, micropolítica que não está relacionada a nada até então instituído, nem aos movimentos de direita nem de esquerda, nem ao capital, nem ao movimento trabalhador. O modelo político estético criado pela rádio “Alice”, potencializa a criação de zonas de auto-organização, onde cada coletivo passa a pensar e a descobrir sua expressão.
Ela remete diretamente, através da sua ousadia da sua performance e de seus repórteres, à invenção de linguagens e expressões, à uma outra arquitetura de rádio.
A “rádio Alice” é descrita como uma experiência paradigmática de comunicação, caracterizada sob uma abordagem teórica de lógica de sentido fundamentada em Deleuze e Guattari. Os meios políticos dessa rádio estão basicamente na forma, e não necessariamente no conteúdo, valorizando uma política de contrainformação, que se dá através de um rádio teatralizado. Foi uma experiência marcada pelo nonsense, cheia de paradoxos, fluxos, intensidades do ato de comunicar. Os meios radioelétricos deram o suporte para uma nova perspectiva de tempo que foi instaurado, uma comunicação instantânea, que valorizava um tempo contínuo através dos meios, a exemplo do uso do próprio telefone, que estabelecia uma comunicação em rede através da publicização da ligação ao vivo.
Pela primeira vez, aqueles que mobilizavam os movimentos político- artísticos e estéticos estavam utilizando uma mídia eletrônica e criando uma rede através das pessoas que circulavam pela cidade, pelos eventos e pelas manifestações. A comunicação podia acontecer através do rádio e do telefone que eram utilizados para criar interação com público ouvinte. Ela acontecia em tempo real, antes mesmo do surgimento da web, cobrindo uma diversidade muito grande de eventos e com uma proposta de produção de conteúdos e uma linguagem cheia de ineditismos.
Mauro Costa ainda menciona a publicação de um livro de Bifo, onde aparece, explicitamente, a intencionalidade da criação de uma política do movimento, com caráter não linear, mas múltiplo, convergindo para as mídias e para o rádio. Os escritos de Bifo são importantes pois falam das rádios livres da época (Itália e França) sob uma perspectiva de ruptura, muitas vozes no ar, mostrando que a cultura minoritária estava florescendo através do rádio.
Depois do fechamento da rádio “Alice” (1977), Bifo refugia-se na França e continua sua mobilização e militância através da escrita, ampliando a discussão do rádio até o surgimento do movimento da cibercultura, onde faz uma análise da internet como uma nova protagonista do sistema e das relações de poder, como em sua obra Mutazione e Cyberpunk (1994).
As rádios livres criavam essa dinâmica, trazendo o inusitado para a programação, compartilhamento com o público, potencializando um ambiente propício para a efervescência cultural.
No entanto, a sua legalização, imposta pelo governo italiano, causou o seu esfacelamento e sua completa derrocada. No momento em que o governo submete a existência das rádios livres a um estatuto, a sua institucionalização acaba com sua essência e sua liberdade.
Exigir conteúdos, audiência e qualidade retirava das emissoras sua liberdade criativa, a autonomia de produzir o que quisesse, sem a preocupação com expansão ou audiência. Esse é o panorama geral das rádios livres e da sua regulamentação também no Brasil.
Aqui, para pensar o funcionamento e legalização das rádios comunitárias, foi instaurada a Comissão de Comunicação, Tecnologia e Informática do Congresso Nacional que leva à aprovação da Lei nº 9.612, em 1998. Cabe ressaltar que a maioria da bancada parlamentar estava direta ou indiretamente ligada a empresas de rádio e televisão, o que deixa sua marca indelével na legislação.
As barreiras criadas pela legislação geram morosidade nos processos, fazendo com que muitas rádios permaneçam na clandestinidade, mesmo realizando um trabalho intenso e relevante em suas comunidades. Nas palavras de Mauro Costa, são “verdadeiros centros culturais populares” (p. 91), deles participando pessoas de todas as idades e gêneros, mas principalmente jovens. São as rádios que chegam e suprem o vazio deixado pelas políticas públicas de cultura, esporte, lazer, trabalho, entre outras, principalmente no que está relacionado às demandas da juventude.
Essa comunicação que nasce à margem da lei, produz uma outra realidade e emerge daí a presença, envolvimento e participação marcante dos jovens. O Ministério da Cultura, sensível a essa realidade e à necessidade de estimular a produção cultural envolvendo as tecnologias que estavam chegando naquele momento, cria os Pontos e os Pontões de Cultura e projetos para o desenvolvimento da cultura em comunidades populares.
Foi dentro desse contexto que aconteceu um evento denominado Radiofórum, no ano de 2008 em Londrina- PR, onde intelectuais de diversas áreas se reuniram pensando numa rádio que mexesse, sacudisse, fizesse um rebuliço com o instituído modo de pensar e de fazer rádio no Brasil. No momento em que as tecnologias digitais disponíveis propiciaram a transição para a incorporação das tecnologias da informação e comunicação e a criação das rádios web, o desejo desse grupo foi de construir uma rádio que ultrapassasse o modelo de transmitir informação (tempo, clima e trânsito), que realmente fosse um elemento provocador no sentido de quebrar esse cotidiano e principalmente, fazer pensar.
A partir do surgimento da internet, são criadas as rádios web, muitas delas impensáveis do ponto de vista político. A internet surge como espaço alternativo tanto para quem quer ouvir e acessar, como para quem quer produzir e disponibilizar conteúdos.
Tanto as rádios web como os sites de músicas, acabam sendo um local privilegiado de produção cultural dos jovens, pois eles são os primeiros a chegar e se engajar quando dos projetos de rádios comunitárias, por exemplo. Isso mostra, por um lado, um vácuo nas políticas públicas que não contemplam a população jovem em suas necessidades, principalmente em relação à cultura. Os jovens no Brasil fazem parte de uma massa de excluídos, de desempregados e de um grupo que faz aumentar os índices de violência.
As rádios livres e comunitárias estão diretamente ligadas a modos de resistência e, atreladas à tecnologia digital, vêm oferecer formas de produção de arte e cultura, e consequentemente, a produção de um trabalho imaterial.
No livro, Mauro Costa baseia-se em Toni Negri e Michael Hardt (xxx) para falar dessas formas de produção, trazendo para o centro do debate, as maneiras de cooperação ou colaboração que lhes são inerentes. A inteligência coletiva que é produzida através das redes não dispensa a necessidade de corpos e mentes. Muito pelo contrário, é formada por eles, trabalhando de maneira conjunta, tudo graças a essas tecnologias digitais que permitem o trabalho em rede, sem os constrangimentos espaço-temporais. É nas fendas, nas brechas, que essa parcela de excluídos do trabalho formal encontram táticas de sobrevivência diante do que as tecnologias digitais propiciam e da construção dessa inteligência coletiva, encontram maneiras de desenvolver outras atividades produtivas.
“Várias atividades produtivas vêm se articulando desta maneira, principalmente nos setores da juventude, estes que estão em situação de crise na relação como trabalho juridicamente regular” (p. 91). Para exemplificar essas formas de trabalho imaterial propostas ou criadas pela juventude, o autor registra três experiências: as rádios comunitárias, o hip-hop e a produção de artes plásticas por coletivos independentes.
A primeira experiência descrita pelo autor são as rádios comunitárias, e traz como exemplo a rádio web Musicadiscreta, que produz programas sobre música, acontecimentos e personagens de vários estilos musicais até passeios etnomusicais; a Rádio Pacífica- NY-EUA, uma rádio comunitária nos Estado Unidos que, bem diferente da legislação daqui, permite que rádios comunitárias operem em rede, tudo com financiamento dos ouvintes. Cita ainda o site Sussurro, uma biblioteca musical de acesso livre criada pelo professor da UFRJ Rodolfo Caesar, que disponibiliza músicas e documentos, artigos, programas de rádio, uma variedade de conteúdos e gêneros musicais. Como, por exemplo, a Boomshot- SP, criada por um fã do hip-hop, que frequenta os espaços desse ritmo e faz das pessoas aí presentes seus entrevistados. Seus programas realizados ao vivo ficam disponíveis para download no site. Na onda do hip-hop, e seguindo a proposta de compartilhar conteúdos livres, o autor cita Bocada Forte, Rap Nacional e Só Pedrada Musical, que também possuem a característica de serem espaços alternativos, não seguindo padrões instituídos ao modelo da indústria fonográfica, onde os artistas trocam, compartilham e disponibilizam suas músicas, seus mixtapes. Suas músicas circulam pelas redes globais, onde muitas vezes ficam conhecidos, ganham prestígio na comunidade e são chamadas para fazer seu trabalho, instaurando-se assim, circuitos paralelos de construção de cultura.
A segunda experiência é o contexto de produção e circulação do hip-hop, que apresenta-se como contracultura, já que sua existência não está vinculada ao apoio de nenhuma organização institucional. Todo o processo de construção da música acontece através de uma auto-organização do coletivo, que promovem encontros, eventos, oficinas, onde uns vão passando/compartilham as técnicas e saberes para/com os outros.
A terceira experiência citada por Mauro Costa refere-se ao Coletivo Imaginário Periférico. Trata-se de um grupo de artistas plásticos, que desenvolve seu trabalho dentro de uma linguagem contemporânea de arte. Também não está atrelado a nenhum órgão ou entidade instituído no campo da cultura ou da arte, como por exemplo, escolas ou museus, mas é um grupo que se auto organiza através de eventos de arte e ateliês coletivos. É a partir desses espaços, mais alternativos, que as trocas e as aprendizagens acontecem.
Seguindo essa lógica de produção e compartilhamento, inúmeros sites são criados na web, dando oportunidade de acesso a uma grande variedade de produções sonoras, gêneros radiofônicos, programas de radioarte e radiodrama, documentários sonoros, paisagens e poesia sonoras, além da possibilidade de abertura de canais para discutir essas produções artísticas, teóricas e culturais.
Dentro dessa perspectiva plural de produzir rádio, o autor discute acerca do pensamento sobre a escuta, o som e a arte do rádio, um campo teórico pouco explorado ou inexistente. A Utilização do rádio, limitado muitas vezes ao campo da música, como em “arte dos ruídos” de Luigi Russolo e “a libertação dos sons” de Edgar Varèse, se por um lado buscava renovar a arte musical, restringia a liberdade de escuta do que seriam os elementos fundamentais para as experiências sensoriais, da busca do ruído como som em si. Segundo Mauro Costa “a não separação de uma arte do rádio ou da escuta, da arte da música, impediu, até recentemente, o desenvolvimento de critérios de leitura (de audição) próprios dela” (p. 22). Isso quer dizer que toda a codificação ou busca de pureza nos ruídos só prejudicou o desenvolvimento de outras maneiras de perceber, tratar, produzir sons e desenvolver uma teoria da escuta.
Ele traz exemplos de compositores que vão buscar suas experiências sensoriais nos estúdios de rádio, nas experiências acústicas que esse meio proporciona, resgatando inspiração e técnicas para desenvolverem suas composições, como o caso de Pierre Schaeffer que desenvolve a sua “música concreta”, proporcionando o desenvolvimento do pensamento sobre a escuta livre, ou de François Bayle, que a partir dessa senda, inicia os trabalhos que levam ao estudo da percepção auditiva ligada à cognição. Por fim, cita o compositor e teórico da educação Murray Schafer, que cria o conceito de “paisagem sonora” contemplando aspectos estéticos e ecológicos que envolvem os ambientes sonoros. A ecologia acústica, estudo desenvolvido por esse intelectual, propõe uma educação da escuta, uma atenção consciente do ambiente sonoro em que habitamos, através da educação que atingiria um grande contingente, que envolveria, pelo menos, três aspectos: desenvolver uma melhor percepção sonora desses cidadãos e dos espaços que habitam; tomar consciência de que cada um de nós somos coautores da produção sonora que nos cerca; e da percepção da produção de poluição sonora (esse programa teria ambição de abranger a educação e a saúde pública). Por outro lado, a educação da escuta do ambiente a nossa volta, encaminharia novos desafios de percepção sonora, abrindo para outras “linguagens musicais pós-tonais”, “ritmos não regulares” e desenvolvimento cognitivo. O interesse por essa área do conhecimento levou o autor a aprofundar os estudos, levando em consideração a criação de novas narrativas e principalmente de uma experiência estética, dando origem, então, a vários eventos e projetos, como o Laboratório de Rádio da UERJ/ Baixada, na Faculdade de Educação.
O livro ainda contém uma entrevista com Murray Schafer, onde aborda a origem do projeto “paisagens sonoras das cidades”, um projeto mundial que saiu de uma proposta de ensino no Departamento de Comunicação da Universidade Simon Frazer, no Canadá, e toma com espaço de trabalho a própria cidade.
O projeto estuda não apenas os sons musicais, mas qualquer tipo de som, ruído que faça parte do cotidiano, ou o que ele chama de “paisagem sonora”. Essa é entendida como algo dinâmico, móvel e, portanto, merece ser estudada, já que esses sons cotidianos estão mudando e afetando o comportamento dos cidadãos. O primeiro desses estudos foi feito em Vancouver/Canadá, e os restantes em outras cidades do mundo, evidenciando a diferença sonora presente em cada uma delas.
O rádio passa a ser entendido como um meio onde essas experiências podem ser compartilhadas e estimuladas. Isso tudo, segundo Mauro Costa, pode levar a um aprofundamento da experiência sonora ao ponto de falar em um “rádio fenomenológico”, que seria um tipo de rádio com uma programação com menor interferência possível ou sem interferência de quem o faz (colocar o microfone em um espaço e não interferir, apenas transmitir para outros espaços), o que levaria à criação de singularidades acústicas/ sonoras expressando a paisagem de cada lugar a partir dos sons que são específicos e característicos de cada região ou localidade.
O texto de Mauro Costa ainda ressalta o brilhantismo e ineditismo nas composições e instalações musicais de John Cage e relaciona seu pensamento ao de Deleuze e Guattari em muitos aspectos, entre eles a concepção de uma lógica pervasiva, que vai equiparar som e silêncio, quebrar a noção de espaço e de tempo da modernidade (tempo presente, passado e futuro) e dar espaço para o acaso, onde qualquer coisa pode acontecer durante a elaboração da obra, não havendo predominância de qualquer interpretação ou qualquer gosto do artista. Estabelece um paradoxo entre silêncio e som, caracterizado pelo tempo de duração, onde “nenhum som teme o silêncio que o extingue. E nenhum silêncio existe que não esteja pregnante de som.” (p. 51) O conteúdo de sua construção musical reúne sons musicais e ruídos registrados a partir dos meios eletrônicos, uma música inédita “sem propósito, aleatória, intempestiva, rompendo a barreira entre arte e vida, a música e os sons da vida, das ruas, do cotidiano-aprender a ouvir o mundo” (p. 40).
A perspectiva de Cage trata da desconstrução do compositor/autor diante dos equipamentos de áudio, especialmente o rádio, ou seja, é retirada a centralidade do artista no processo de criação. Entre as várias obras sonoras, criadas por Cage, fica marcante a diversidade na introdução, apresentação ou utilização do rádio. Ele acreditava que a música do futuro seria produzida a partir de instrumentos elétricos, sendo o rádio um dos principais instrumentos de trabalho do artista. Cage é considerado o inventor da radioarte, antes mesmo de ser criado esse conceito.
É discutido na obra de Mauro Costa, o rádio com grande potencial educacional, mas que enfrenta dificuldade de se desprender dos modelos padronizados e comerciais de fazer a programação.
Muitas vezes os programas têm um conteúdo revolucionário, mas seus formatos reproduzem padrões, não apresentam outras estéticas possíveis, outras vozes que destoem de um modelo predeterminado, ampliando as experiências possíveis nesse campo.
A leitura dessa obra é interessante para todos aqueles que estão buscando experiências outras de produzir conteúdos sonoros e comunicação; para aqueles preocupados com a construção de uma educação de resistência, colaboração e, ao mesmo tempo, de sensibilidade da escuta.
Salete de Fátima Noro Cordeiro – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia. E-mail: salete.noro@ufba.br
Pesquisa em Ensino de História / Ana M. Monteiro, Warley da Costa, Carmen T. Gabriel e Cinthia M. de Araújo
Abordando diferentes perspectivas teórico-metodológicas e múltiplas abordagens epistemológicas, o livro ora resenhado é uma coletânea composta por 16 artigos, contando com uma apresentação elaborada pelas organizadoras – Ana Maria Monteiro, Carmen Teresa Gabriel, Cinthia Monteiro de Araújo e Warley da Costa – e um prefácio de Circe Fernandes Bittencourt. Ao longo do trabalho, predomina a marca institucional do lugar de pertencimento dos autores envolvidos, pois estes integram o Núcleo de Estudos de Currículo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEC/UFRJ), sendo em sua maioria também vinculados ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História (LEPEH/UFRJ). Essa especificidade confere coerência interna, apesar da heterogeneidade nos pontos de vista, em torno de uma questão-chave: o reconhecimento desse campo de pesquisa como fronteira permeável em que referenciais de ambas as áreas – Educação e História – encontram-se articulados.
Há grande diversidade temática entre os artigos, alguns dos quais são extratos de pesquisas de mestrado e doutorado no âmbito NEC/LEPEH. Entre os vinte autores e autoras da coletânea há, também, grande diversidade no que tange à filiação institucional: são docentes do Ensino Superior, docentes da Educação Básica, pesquisadores; doutores, mestres, graduados, mestrandos e doutorandos.
O conjunto de textos reunidos no livro oferece subsídios consistentes para a discussão dos impasses epistemológicos contemporâneos e apostas políticas no cenário da educação básica pública, particularmente no campo de ensino da referida disciplina, compreendido como um espaço de disputas e variadas possibilidades investigativas.
A proposta explicitada pela obra contribui substancialmente para o adensamento do debate acadêmico atual, propondo novas perspectivas com base no olhar de pesquisadoras e pesquisadores em relação ao “espaço-tempo de fronteira” entre Educação e História, ambiente no qual se reconfiguram distintas interpretações a partir das interações dialéticas entre os dois campos de saber. Dessa forma, a publicação reúne análises diversificadas sobre currículo, teoria, ensino, historiografia, livro didático, tensionamentos políticos e identitários, legislação educacional, experiências e saberes docentes e demandas sociais, entre outros aspectos inter-relacionados ao “fazer pesquisa” em História escolar.
O propósito central das discussões converge para o enfrentamento dos dilemas político-institucionais ligados ao reconhecimento e valorização do potencial da escola pública como lócus privilegiado de difusão e democratização de bens culturais, incluindo o conhecimento científico. E paralelamente, está vinculado a uma intencionalidade, a um posicionamento político em defesa da função social do conhecimento histórico como instrumento cognitivo relevante para a significação de nossas experiências temporais diante das exigências do momento presente. Ao mesmo tempo, assume um desafio epistemológico, articulando campos distintos e mobilizando discursos da historiografia, das teorias do currículo, da didática e da pedagogia que construam sentido e legitimidade para o ensino da disciplina de História.
Os textos foram organizados em três blocos temáticos intitulados, respectivamente, “diálogos teóricos possíveis”; “aula de História como espaço-tempo de fronteira” e “livros didáticos de História e pesquisa em ensino de História – múltiplas apropriações”.
A primeira parte compõe-se de cinco artigos que discutem a relação entre História e Educação, enfatizando seus aspectos teórico-metodológicos com centralidade no debate epistemológico. O texto de abertura, “Currículo de História e narrativa: entre desafios epistemológicos e apostas políticas”, das organizadoras Ana Maria Monteiro e Carmen Teresa Gabriel, convida à reflexão sobre os sentidos de narrativa, suas possibilidades e limites epistemológicos para problematização de questões educacionais contemporâneas, dialogando com referenciais pós-críticos, com destaque para Stuart Hall, bem como fundamentando-se no paradigma narrativista (Hartog e Ricoeur). Em seguida, Fernando de Araújo Penna nos apresenta “A Relevância da Didática para uma Epistemologia da História”. O autor propõe uma discussão teórica sobre a epistemologia da disciplina, para além do campo de produção acadêmica, destacando a relação desses saberes com um espectro social mais amplo. Partindo de um viés historiográfico, Penna sugere uma nova apropriação do conceito de operação historiográfica tecido por Certeau, articulando-o ao conceito de transposição didática proposto por Chevallard para estabelecer uma conexão entre Epistemologia e Didática, em um movimento de deslocamento da produção de conhecimento histórico escolar para o âmbito da operação historiográfica, tornando Didática e Epistemologia “indissociáveis” (p.50).
Os três artigos subsequentes introduzem outras perspectivas de articulação entre História e Educação, possibilitadas pela análise do currículo e da trajetória dessa disciplina no contexto escolar brasileiro. Em seu trabalho intitulado: “A História e os Estudos Sociais, entre tradição acadêmica e tradição pedagógica: o Colégio Pedro II e a reforma educacional da década de 1970”, Beatriz Boclin Marques dos Santos estuda o impacto e as resistências da Lei de Diretrizes e Bases 5.692/1971 no currículo daquela instituição, onde, a despeito da orientação legal, a disciplina História manteve-se como disciplina autônoma.
Investiga as características da dinâmica curricular da disciplina Estudos Sociais imposta em 1971 e suas implicações para o ensino de História, referenciando- se nos “padrões de estabilidade e mudança” propostos por Ivor F.
Goodson. O trabalho de Rodrigo Lamosa, “O ensino de História e as transições paradigmáticas no contexto da nova regulação do trabalho docente” traz importantes considerações sobre as transformações no ensino de História e nas condições e formas de regulação das atividades profissionais docentes nessa área, a partir do período de redemocratização. Lamosa demonstra que as avaliações externas e as parcerias empresariais têm empurrado o ensino de História a uma pedagogia tradicional, posto que “os modelos baseados no adestramento dos alunos para a realização dos exames estão sendo difundidos pelas escolas” (p.77).
Posteriormente, Marcele Xavier Torres e Marcia Serra Ferreira, no artigo “Currículo de História: reflexões sobre a problemática da mudança a partir da Lei 10.639/2003”, tecem, em diálogo com Hannah Arendt, considerações a respeito da inserção do componente História e cultura africana e afro-brasileira, avaliando seus impactos para o ensino de História. As autoras reconhecem a importância de instrumentos legais, mas afirmam a sua insuficiência na mudança de uma tradição eurocêntrica se a tradição expressa na cultura escolar não for, ela própria, objeto de mudanças.
Nos cinco textos reunidos no segundo bloco da coletânea, o foco principal está na análise das relações discursivas estabelecidas entre sujeitos do processo ensino-aprendizagem e conhecimento histórico escolar. Abrindo essas discussões encontra-se o artigo “Identidades Sociais: produção de sentido nas enunciações de uma docência”, no qual Ana Paula Taveira Soares apresenta resultados de sua pesquisa empreendida no mestrado sobre currículo e linguagem nas negociações de sentidos que constituem, qualificam e transformam as marcas identitárias presentes nos discursos dos docentes em suas aulas de História, enquanto práticas discursivas sociais. No artigo seguinte, “A produção de sentido na História ensinada e sua relação constitutiva com o espaço- -tempo”, Patrícia Bastos de Azevedo reflete sobre a História ensinada, as contingências e os constrangimentos que permeiam esse tempo-espaço composto por múltiplas forças histórico-sociais que compõem a cultura escolar e limitam/ delimitam a ação do professor, compreendido como protagonista desse processo, assim como o aluno é o agente central da História aprendida.
Partindo das potencialidades dialógicas entre ensino de História, a teoria do discurso de Laclau e Mouffe e os aportes da transposição didática de Chevallard, Warley da Costa, no texto “Currículo de História e produção da diferença: fluxos de sentido de negro recontextualizados na História ensinada”, analisa as configurações das narrativas históricas produzidas pelos discentes na realização de uma atividade proposta em sala de aula para alertar sobre a necessidade de deslocar “leituras dicotômicas e conservadoras de mundo” (p.144), que reatualizam discursos racistas, a despeito do alargamento da presença de conteúdos não binários sobre o tema. Costa evidencia esse espaço como território curricular de lutas político-identitárias que envolvem as relações étnico-raciais contemporâneas. Márcia Cristina de Souza Pugas apresenta o texto “Currículo, Diferença, Identidade e Conhecimento Histórico Escolar”, o qual compreende parte da pesquisa de mestrado da autora em que investiga os conhecimentos históricos escolares pelo viés da cultura e da diferença, sob o enfoque das negociações acerca dos sentidos de brasilidade mobilizados por alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental, utilizando como arcabouço teórico os estudos culturais pós-coloniais e o repertório analítico da crítica do discurso. Concluindo esse bloco, o texto de Daniel de Albuquerque Bahiense, “Articulações hegemônicas na construção discursiva sobre bons alunos de História” aborda a relação estudante/professor/conhecimento histórico, pensada na interface currículo, conhecimento e identidades sociais discursivas. O pesquisador procura entender como são fixados sentidos provisórios sobre “bons alunos de História” e o conhecimento histórico escolar.
O terceiro e último bloco, formado pelo encadeamento de seis textos, articula-se em torno da questão do conhecimento escolar e a escolha/produção do livro didático da disciplina. Em “Narrativas do ‘outro’ no currículo de História: uma reflexão a partir de livros didáticos”, Adriana Soares Ralejo e Érika Elizabeth Vieira Frazão examinam como são abordados os conteúdos sobre História e cultura africana, afro-brasileira e indígena nas obras didáticas, após a promulgação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. No texto seguinte “‘Brasil: uma História dinâmica’: desafios didáticos no Ensino de História”, partindo das articulações entre ensino de História e historiografia, os autores Ana Maria Monteiro, Adriana Soares Ralejo e Vicente Cicarino avaliam as mediações didático-culturais promovidas pelo livro didático Brasil: uma História dinâmica, publicado e utilizado na década de 1970. No terceiro texto, “A Revolta dos Malês nos livros didáticos de História e a Lei 10.639/2003: uma análise a partir da ‘epistemologia social escolar’”, os autores Luciene Maciel Stumbo Moraes e Wallace dos Santos Moraes estudam a presença dos conteúdos referentes ao movimento rebelde de 1835 em livros didáticos de História, tomando como aporte as contribuições teóricas da epistemologia social escolar, entendendo a inclusão desse conteúdo como desdobramento de um processo mais amplo de questionamento social a respeito da disputa de sentidos e memórias no âmbito da história ensinada consubstanciado pela implantação da Lei 10.639/2003.
Os três últimos artigos abordam questões relacionadas à história do tempo presente. Cinthia Monteiro de Araujo, no texto “Por outras Histórias possíveis: construindo uma alternativa à tradição moderna”, compara duas obras didáticas com abordagens diferentes – a História Temática e a História Integrada – para perceber as tensões entre a tradição e as visões alternativas de articulação temporal dos processos históricos. Conclui alertando sobre os perigos de uma tradição curricular de História única e eurocêntrica, apoiada na perspectiva temporal linear e progressiva, ainda vigente em grande parte das escolas brasileiras. Com base em Hartog e Koselleck, destaca a necessidade de investimento em novas práticas pedagógicas abertas a uma concepção pluralista que envolve múltiplas narrativas, temporalidades e espacialidades. No quinto capítulo da Parte III, “Currículo de História e Projetos de Democratização: entre memórias e demandas de cada presente”, Carmen Teresa Gabriel e Érika Elizabeth Vieira Frazão analisam as transformações nos sentidos de conceitos como democracia e cidadania no decorrer das décadas posteriores à redemocratização, utilizando, para isso, três edições de um mesmo livro didático. Encerrando o bloco, o artigo “Demandas do tempo presente e sentidos de cidadania: redefinições e deslocamentos no currículo de História (anos 1980 x anos 2010)”, cujos autores, Diego Bruno Velasco e Vitor Andrade Barcellos, analisam diferentes edições de uma mesma obra com o objetivo de identificar os deslocamentos no sentido de cidadania provocados pelas mudanças nas demandas sociais.
Pesquisa em Ensino de História apresenta, assim, um leque de perspectivas para quem se interesse pela área e suas faces de contato com a Historiografia, a Teoria e a Filosofia da História, os estudos sobre currículo, identidades e contemporaneidade. Os artigos amalgamados na obra acrescentam elementos para reflexão e abordagens paradigmáticas apoiadas nos repertórios crítico e pós-moderno, possibilitando o aprofundamento de perspectivas teórico-metodológicas e epistemológicas que articulam aspectos da teoria do currículo e da historiografia. Contribuem, também, para pensarmos a escola real e seu dia a dia, tanto pelos instrumentos didáticos quanto pelos seus sujeitos – docentes e discentes e seus saberes – desvelando-se, na visão dos autores, como um espaço repleto de contradições, mas, fundamentalmente, de possibilidades.
Como bem aponta Circe Bittencourt em seu prefácio, os temas e problemas apresentados pela obra “se abrem para formulações relevantes sobre as relações entre escola, cultura e poder” (p.19), o que para os autores traduz-se no comprometimento com a dimensão política desse campo, principalmente no tocante ao atendimento das demandas sócio-históricas do tempo presente, que constantemente mobilizam seus pesquisadores a questionar, reavaliar e reinventar o papel da História como componente curricular da educação básica.
Em tempos de ataques à História como disciplina escolar e de tentativas de criminalização da autonomia docente, o Ensino de História e a sua pesquisa transformam-se em arena fundamental na defesa dos valores democráticos e da diversidade, objetos privilegiados do campo a que nos dedicamos.
Isabelle de Lacerda Nascentes – Professora de História da rede pública do estado do Rio de Janeiro (Seduc/RJ); aluna do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ProfHistória/ UFRRJ). Seropédica, RJ, Brasil. isanascentes@hotmail.com.br.
Sérgio Armando Diniz Guerra Filho – Doutor em História Social. Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Cachoeira, BA, Brasil. sadgfilho@gmail.com.
MONTEIRO, Ana Maria; COSTA, Warley da; GABRIEL, Carmen Teresa; ARAUJO, Cinthia Monteiro de (Org). Pesquisa em Ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. Rio de Janeiro: Mauad X; Faperj, 2014. 280p. Resenha de: NASCENTES, Isabelle de; GUERRA FILHO, Sérgio Armando Diniz. Ensino de História e Currículo: interfaces teóricas e metodológicas. Revista História Hoje, v. 4, nº 8, p. 315-321 – 2015.
A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades – CARDOSO (TES)
CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro, Editora FGV/Faperj, 2010,463 p. Resenha de: SANTANA, Marco Aurélio. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.11, n.3, set./dez. 2013.
É moeda corrente que o Brasil é um dos países de maior desigualdade social do mundo. Temos um longo histórico nesta tradição, demonstrando o quão persistente é nossa desigualdade. Nosso ranking global é dos piores. Disso já sabemos não é de hoje. Somos constantemente bombardeados com comparações entre o nosso país e outros para cima e para baixo na escala de presença mundial. Em muitos casos, ficamos ruborizados com os resultados destas comparações. Desta situação decorrem não só estratégias para que tentemos melhorar nosso posto – tantas vezes sem sucesso -, mas também, para acalentá-las, reflexões e investigações acerca do como vamos neste quesito, para entendermos os caminhos trilhados e que nos trouxeram a tal ponto.
O livro de Adalberto Cardoso traz aos leitores um novo alento nesta direção. Incorporando o “mundo do trabalho” em tal mirada, se coloca, de forma instigante, a questão da persistência da referida desigualdade em conexão com “os mecanismos de vertebração da sociedade brasileira”, no percurso de nossa experiência em termos de construção da sociedade do trabalho.
Antes de qualquer coisa, é preciso que se diga que Cardoso primou em seu trabalho pela combinação bem medida, nem tão fácil, nem tão trivial, das perspectivas ‘quali’ e ‘quanti’, o que tem sido uma das características de seus investimentos ao longo de sua trajetória de pesquisa. Aos leitores é fornecido um conjunto de dados produzidos pela literatura sociológica e historiográfica, sempre em diálogo constante com o campo analítico e suas formulações teóricas pertinentes. Transita-se por achados provenientes de análises historiográficas, survey, entrevistas, análise de trajetórias etc. Além disso, percorrendo período lato de tempo, necessário ao tratamento da questão, efetiva finas análises em seu percurso histórico e sociológico, produzindo o que o autor define como “uma sociologia historicamente referenciada”. O leitor é conduzido por operações analíticas que incluem processos ‘macro’ e ‘micro’, os quais, articulados, fornecem uma ampliação da capacidade de entendimento do tema em tela. Ressalte-se, ainda, que dada a forma de redação e desenvolvimento do texto, ele se torna acessível a um público mais amplo que o acadêmico.
Cardoso usa todo este arsenal no intuito de abrir uma nova picada explicativa acerca da persistência regular e indómita da desigualdade em nosso país. Que elementos manteriam sua durabilidade e sua especificidade no Brasil? Como por ele indicado, o ‘ser desigual’já está no DNA do sistema capitalista. O fato é que, em certo momento, a legitimação do sistema dependeu, no mundo ocidental, de “sua capacidade redistributiva, mediada pelo Estado do bem-estar”. Ainda que aberta a questionamentos, Cardoso parte da visão de que o Brasil experimentou “seu Estado de bem-estar”. O mesmo “que aqui, como acolá, é um Estado redistributivo”. Mas aí teríamos uma especificação de nossa formação social e económica: “essa redistribuição jamais se universalizou e não foi capaz de reduzir a pobreza a patamares socialmente aceitáveis”.
Isso, segundo o autor, se deveria aos seguintes fatores combinados: (1) “padrão de incorporação dos trabalhadores na ordem capitalista no início do século XX, que deixou heranças profundas na sociabilidade capitalista posterior”; (2) “a estrutural fragilidade do Estado, sempre às voltas com seus próprios déficits e sua incapacidade de enraizamento no vasto território nacional”; (3) “a persistente violência estatal contra o trabalho organizado, muito superior à ameaça que este eventualmente representou ao longo da história”; (4) “a diminuta participação do operariado industrial na estrutura social e a enorme fragmentação das formas desorganizadas de obtenção de meios de vida no mundo urbano, fora do mundo do trabalho formal”; (5) “o baixo patamar da riqueza social produzida”; (6) “e o padrão de incorporação dos trabalhadores no mercado de trabalho urbano a partir da década de 1940, resultante da abdicação, pelo Estado, da tarefa de regular o mundo agrário, com isso transformando as cidades em polo irresistível de atração para os trabalhadores pobres do campo”.
Estes seis pontos serão fios orientadores na condução da análise que se dividirá em duas partes. Na primeira, centra-se na questão da construção da sociabilidade capitalista no Brasil. Por ‘sociabilidade’ Cardoso define, segundo ele “sem nenhuma pretensão teórica mais geral”, “as inter-relações resultantes do modo de operação das linhas de força que estruturam a ordem social, linhas que organizam as expectativas recíprocas de grupos e classes sociais quanto: aos valores mais gerais de orientação da ação recíproca, ou da ação que leva o outro em conta; e aos padrões prevalecentes de justiça, ou de bem comum, ou ‘do que deve ser’ a vida em comum; e, com ambos, as próprias ações recíprocas”.
Neste particular, o autor defende a posição de que “a escravidão deixou nela marcas muito mais profundas do que o conhecimento acumulado sobre o tema se dispõe a aceitar”. Segundo ele, “Não só a sociabilidade capitalista moldou-se pela inércia da ordem escravista, como o próprio Estado capitalista construído no quarto século brasileiro estruturou-se pela escravidão e para sustentá-la”. Com isso, ele acabou “transferindo muito de sua dinâmica (e inércia institucional) de uma geração a outra, dificultando e retardando a problematização da questão social como relevante para a sustentabilidade da ordem”.
Tal processo, mais longevo, acabou por receber reforço exatamente do período no qual houve a tentativa de implantação de uma dinâmica que marcasse uma ruptura com a escravidão. Quando no período Vargas, ao regular-se o mundo do trabalho, deixou-se de “equacionar as relações de trabalho no campo, ao tempo em que instituía a promessa de proteção social e trabalhista nas cidades”, gerando forçosamente “um campo gravitacional urbano que atraiu muito mais gente do que o mercado de trabalho capitalista em construção foi capaz de incorporar”. Aí, teríamos, a explicação de “boa parcela da persistência da desigualdade entre nós”.
Na segunda parte, o autor avança na análise do “processo estrutural de construção da sociedade do trabalho no país a partir de 1940”. Ele foca “na transição da escola para o trabalho, tomada como momento privilegiado da construção de anseios, projetos e ambições individuais e coletivas numa sociedade capitalista embalada por promessas de igualdade, liberdade e realização pessoal”. Nesta parte, Cardoso defende a posição de que “apesar das enormes tensões e conflitos que cortam a sociedade brasileira de alto a baixo, e por todos os lados, sua sustentabilidade no longo prazo é assegurada pela adesão da maioria dos brasileiros às promessas de nosso parcial Estado de bem-estar”. Esta ‘adesão’ se daria também “e muito especialmente ao capitalismo como um conjunto de oportunidades de promoção pessoal”. Tudo isso ocorreria “apesar da resistente frustração das expectativas a que seu caráter inercial deu guarida”.
Este ponto, aliás, subjaz ao longo de todo o livro a animar a reflexão e a investigação. Diante de ordem social tão desigual, por que os menos aquinhoados não se rebelam contra ela na tentativa de pô-la abaixo? Se em outras experiências o Estado de bem-estar, via redistribuição, abriu caminho para a legitimação de sua ordem, no caso brasileiro, com toda esta herança e um Estado de bem-estar a nosso modo, ‘parcial’, por que é que os do andar de baixo não se sublevam ao ponto de mudar a ordem estabelecida?
A questão da percepção dos atores sociais se torna muito importante. Uma ordem social pode ser percebida de formas muito diferentes pelos atores, classes e grupos sociais, levando-se em conta critérios, tais como ‘justiça/injustiça’, ‘igualdade/desigualdade’ e ‘legítimo/ilegítimo’. Nestas percepções, nem sempre o ‘desigual’ se associa com o ‘ilegítimo’. O que poderiam parecer conjugações ‘óbvias’, ‘imediatas’, ‘necessárias’ etc., nem sempre o são. É exatamente neste tipo de conjugação que se assenta o ritmo de dinâmica e inércia apresentada por uma determinada ordem social capitalista.
No caso brasileiro, a partir dos elementos apresentados por Cardoso teríamos que a “sociedade é desigual, a sociedade é injusta, a cidadania é impotente diante disso, o padrão de justiça de ricos e pobres é igualitarista, e o Estado é o agente da solução da desigualdade”. Este conjunto atuaria diretamente como fator impeditivo de que “a ordem desigual seja vista como ilegítima, por indicar que, no futuro, as coisas estarão melhores do que hoje, e que cada um pode se beneficiar da melhoria geral do país”.
Há, aí, por esta via, a produção de uma “legitimidade da desigualdade”. Os pobres não perceberiam “a estrutura de posições” como ‘desigual’, mas a aceitariam “como consequência esperada de meios vistos como aceitáveis”. Assim, eles “aspiram a essas posições, mas concordam que não as merecem. É o mesmo que dizer que estariam nelas se tivessem feito por isso”. Nestes termos, o que ocorre é que como a sociedade é percebida como aberta, a “frustração em relação à posição atual, se existe, não é vivida como resultado da injustiça social, ou da dinâmica coletiva, mas sim como fracasso individual”.
O que se tem, a partir do exposto, é que os possíveis processos de alteração da ordem restariam obstados em nome de uma ‘utopia brasileira’, como nomeada por Cardoso, ou seja, as sedutoras “promessas sempre amesquinhadas de inclusão nessa mesma ordem desigual”. Associada à forte repressão às ‘forças do trabalho’ ao longo de nossa história republicana, a crença nesta ‘utopia’ deixaria reduzidíssimo, para não dizer nenhum, espaço para projetos alternativos de transformação social. Como antes, e sempre, repressão e consenso em operação. Ante as mudanças sociais profundas e de largo espectro, estaríamos, na sociedade brasileira, entregues às ‘pequenas’ mobilidades sociais, as quais, em um universo de extrema desigualdade, ganhariam dimensão enorme, ainda que em termos ‘pessoais’, além de sempre garantirem a visão de um campo de possibilidades futuro, aberto à frente. Neste quadro, as propostas alternativas e seus atores foram ‘substituídos’ pelo Estado como “agente da utopia social-democrata”.
O estudo de Cardoso auxilia muito no sentido de pensar a ordem social, sua construção e manutenção ao longo do tempo. É uma reprodução que se trata de entender. Como se preocupa com a ‘persistência’, as forças de possibilidade alternativa acabam ficando marginais, sendo minimizadas ou, ainda, sendo trazidas para o interior da reprodução do sistema. Como em todo estudo deste corte, a força do enfoque da reprodução pode gerar uma certa claustrofobia pessimista. O peso do passado molda o presente e engolfa reprodutivamente as possibilidades de futuro.
Após quatro séculos de escravidão no Brasil, e com ela marcando indelevelmente a sociedade capitalista, como ‘escapar’ desta herança? O arremedo de social-democracia que tivemos, se abriu espaços possíveis de superação, forneceu ainda elementos complicadores aos projetos de transformação. ‘Movimentos’ se transmudaram em ‘mobilidade’. Antes de mudar a sociedade, mudar seu lugar nela. Deslocando ainda da cidadania ao Estado o papel de ‘agente da utopia’. E, sobretudo, garantindo, especificada, a persistente desigualdade.
Interessante pensarmos mais especificamente, sob a luz do trabalho de Cardoso, a sociedade brasileira nos últimos dez anos, nos quais retornaram, ainda que atualizadas, as discussões sobre o desenvolvimento ‘econômico’ e ‘social’ e, com elas, a das formas de lidar com a desigualdade social, através de uma perspectiva para além do mercado. Muitos avanços foram conseguidos. Sobre este período, que seria a mais recente estação de um longo percurso, poderiam surgir questões. Entre outras tantas, tais como: que sendas alternativas puderam ou não ter sido abertas em nossa longa herança? Até que ponto reiteramos onde poderíamos ter diferido? Que papel jogaram ou deixaram de jogar as ‘forças do trabalho’ neste processo? Fomos eficazes em produzir bases sólidas para o enfraquecimento dos pilares de sustentação da desigualdade? Seja lá como for, a questão da persistência de nossa desigualdade está e, pelo visto, estará ainda na ordem do dia. E o livro de Cardoso se impõe, nesta quadra, como leitura indispensável.
Marco Aurélio Santana – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ). E-mail: marcosilvasantana@gmail.com
[MLPDB]Fronteiras e diversidades culturais no século XXI: desafios para o reconhecimento no estado global | Tania Barros Maciel, Maria Inácia D’Ávila Neto e Regina Gloria Nunes Andrade
Em junho de 2011 foi realizado no Rio de Janeiro o Colóquio Internacional “Fronteiras e Diversidades Culturais no século XXI: desafios para o reconhecimento do Estado Global”, com a participação de convidados brasileiros e estrangeiros que durante dois dias discutiram um cenário que poderíamos classificar como ultra-contemporâneo. O resultado dessas discussões foi publicado no livro com mesmo título, organizado pelas também organizadoras do Colóquio: Tania Barros Maciel, Maria Inácia D’Ávila Neto, ambas do Programa de Estudos Interdisciplinares de Comunidades e Ecologia Social (EICOS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Regina Glória Nunes Andrade, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
No livro, em 19 capítulos, os autores refletem de maneira diversa e plural sobre as novas tessituras do mundo contemporâneo e os grandes dilemas produzidos num tempo que construiu “identidades globalizadas” como uma forma de arquitetar uma solidariedade apregoada aos quatro ventos como numa espécie de super slogan do mundo em que vivemos. Leia Mais
(Des)medidos – A revolta dos quebra-quilos (1874- 1876) | María Verónia Secreto
Quebra-quilos – termo usado para designar revoltas que acometeram diversas localidades em oito províncias brasileiras (sete delas no Nordeste do país) nos anos de 1874 a 1876 – foi a última grande revolta do Período Imperial, e teve como protagonistas os pobres-livres das regiões rurais: sertanejos, criadores de gado, agricultores de subsistência. Apesar do nome pelo qual ficou conhecida, a resistência à introdução do sistema métrico era apenas um entre vários motivos das manifestações.
A autora identifica e evidencia as “camadas interpretativas” que recobriram o movimento dos quebra-quilos, desde os primeiros registros sobre ele. As autoridades provinciais e os letrados contemporâneos à revolta impingiram um colorido supersticioso e ignorante às manifestações, e creditaram-nas à influência de “agentes externos”; os historiadores regionais, muito concentrados em seus universos locais, deixaram de enxergar o movimento em sua magnitude completa. A autora indica ainda o erro recorrente e bastante comum, presente em trabalhos mais recentes, de se considerar tais manifestações como meros “espasmos” sociais, desarticulados de qualquer contexto mais profundo. Leia Mais
Combatentes da Paz: os comunistas brasileiros e as campanhas pacifistas dos anos 1950 | Jayme F. Ribeiro
Parece claro a todos nós – como bem nos lembra E. Hobsbawn – que o olhar retrospectivo sobre os acontecimentos é a “arma final do historiador”. O distanciamento temporal dos fatos ocorridos permite-nos um entendimento dos mesmos sob uma perspectiva inalcançável à época em que ocorreram. E é exatamente este exercício que Jayme Ribeiro nos oferece em seu livro sobre a atuação dos comunistas brasileiros nas campanhas pacifistas dos anos 1950. Utilizando extensa pesquisa nos jornais comunistas (assim como nos da grande imprensa) e revistas – e uma boa base iconográfica – o pesquisador, professor e historiador carioca nos remete aos intensos anos 1950, em um momento solidamente marcado pelo recrudescimento da ameaça atômica e da possibilidade de destruição de toda a humanidade em uma guerra entre as superpotências. À sua maneira, os comunistas brasileiros se apropriaram desta conjuntura para lançar no país as bases de uma campanha que buscava mobilizar a militância – e a população de modo geral – em torno de uma suposta “crença no caráter pacifista da URSS”. Leia Mais
Liberdades Negras nas Paragens do Sul | Gabriel Aladrén; Egressos do Cativeiro, c.1798 – c.1850) | Roberto Guedes; A Remissão do Cativeiro, c.1750 – c.1830 | Márcio de Sousa Soares
A historiografia brasileira já conta com um número substantivo de pesquisas sobre alforrias e a vida de africanos e afro-descendentes no período posterior à libertação. Em se tratando do primeiro tema, as investigações versam, em especial, sobre as modalidades de manumissão e o perfil de escravos alforriados. No que tange aos libertos, as pesquisas apresentam conclusões dicotômicas, ora associando-os à pobreza e marginalidade, ora à ascensão econômica. A primeira vertente teve início em 1942, com algumas considerações feitas por Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo, 1942), como a relação estabelecida entre esse segmento da população e os grupos intermediários da sociedade colonial, ou seja, aqueles que não se inseriam nas categorias de senhores nem de escravos. Os estudos subsequentes como os de Laura de Mello e Souza (Desclassificados do Ouro, 1982) e Núbia Braga Ribeiro (Cotidiano e Liberdade, 1996) adotaram essa linha interpretativa ao considerarem esse segmento social como desclassificado, temido socialmente e sujeito a políticas de controle pela administração portuguesa. Outros trabalhos, porém, negligenciaram a associação à pobreza e marginalidade e deram lugar às investigações acerca da ascensão econômica desses grupos, como Sheila de Castro Faria (A Colônia em Movimento, 2004), Eduardo França Paiva (Escravos e Libertos nas Minas Gerais, 1996 e Escravidão e Universo Cultural na Colônia, 2001), Cláudia Cristina Mól (Mulheres forras, 2002), dentre outros.
Os três livros recentes de Roberto Guedes, Márcio de Sousa Soares e Gabriel Aladrén se destacam nesse campo por procurarem integrar o estudo das alforrias ao exame das trajetórias sociais dos egressos do cativeiro durante a vigência do regime escravista. As referidas publicações são fruto de trabalhos apresentados em programas de pós-graduação: os trabalhos de Guedes e Soares foram originalmente defendidos como teses de doutoramento na UFRJ, em 2005, e na UFF, em 2006; o livro de Aladrén resultou de uma dissertação de mestrado defendida na UFF, em 2008.
Guedes e Soares priorizam a análise das famílias de libertos e seus descendentes e sua atuação na dinâmica econômica local. O primeiro estudou Porto Feliz, em São Paulo, e, o segundo, Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Já Aladrén se deteve nas trajetórias individuais e analisou os ex-escravos a partir dos acontecimentos políticos que inquietaram a região de Porto Alegre nas três primeiras décadas do século XIX.
Esses autores atribuem importante papel aos escravos em prol da liberdade e de melhoria das condições de vida após a sua efetivação. Embora fosse um acordo entre desiguais, a alforria consistia em uma doação feita pelo proprietário, mas, acima de tudo, aceita pelos escravos. Tratava-se, portanto, de uma troca que gerava novos vínculos entre os forros e seus antigos senhores, os quais se perpetuavam para o resto de suas vidas. Os ex-senhores esperavam dos escravos alforriados (gratuitamente ou sob condição) constante respeito e subordinação. Qualquer desvio ou rompimento dessas referências colocava em risco a legitimidade do novo status.
Várias discussões já propuseram que as manumissões estariam vinculadas à negação da ordem escravista, mas os três autores as analisam como parte de um sistema composto pela tríade tráfico, escravidão e liberdade. A alforria seria parte estrutural da escravidão, amortecendo conflitos inerentes à relação existente entre escravos e seus proprietários. Outro ponto marcante desses trabalhos consiste na idéia de que, após a conquista da liberdade, os libertos buscavam melhores condições de vida. Ainda que encontrassem limitações inerentes à condição social, estiveram atentos às oportunidades que lhes eram apresentadas e conseguiram trilhar caminhos diferenciados daqueles em que se encontrava grande parcela dessa população.
A ascensão econômica não indicou necessariamente ascensão social. Em especial, Roberto Guedes e Márcio de Sousa Soares mostram que a mobilidade social era geracional, ou seja, acontecia predominantemente para gerações que descendiam dos libertos. Os casamentos com pessoas livres contribuíram fortemente para isso. Também evidenciam que as categorias de cor encontradas em registros coloniais e do período imperial eram fundamentais para a inserção de pretos e pardos na hierarquia social vigente.
Os três livros contribuem de maneira decisiva para os estudos sobre a escravidão no Brasil. Além de levantar dados sobre as alforrias em regiões pouco exploradas pelos historiadores que os antecederam, como as áreas rurais e o sul do país, ainda avançaram na análise da vida dos escravos após a libertação. Os três pesquisadores utilizaram métodos qualitativos e seriais. Recorreram à micro- história e reuniram fontes diferenciadas que permitem conhecer múltiplas experiências dos homens e mulheres investigados. Os registros referentes à justiça colonial e imperial como os processos crime e as ações cíveis forneceram importantes recursos para tal perspectiva.
O trabalho de Roberto Guedes consiste na análise de quatro gerações de famílias de Porto Feliz, compostas por libertos e seus descendentes, entre os anos de 1798 e 1850. A partir de cruzamento onomástico, o autor acompanha a dinâmica econômica e social de seus membros, com o objetivo de compreender as principais estratégias de mobilidade social em âmbito familiar. Márcio Soares fez um estudo da escravidão, priorizando a região de Campos dos Goytacazes no período que compreende a segunda metade do século XVIII e as três primeiras décadas do século XIX. Seu foco, contudo, é a investigação das complexas relações entre senhores e escravos em uma região rural. Observou principalmente as estratégias sociais que favoreciam o acesso à liberdade e a inserção social de libertos e seus descendentes.
Gabriel Aladrén trata basicamente dos padrões de alforrias encontrados nas proximidades de Porto Alegre e das experiências dos egressos do cativeiro e seus descendentes entre os anos de 1800 e 1835, período de grandes conflitos militares como as Guerras Cisplatinas e a dos Farrapos. O autor acredita que esse conturbado momento contribuiu para o recrutamento de escravos e libertos para o exército, milícias e guerrilhas, favorecendo, por sua vez, a incidência de alforrias, inserção e mobilidade social dos mesmos.
Os estudos desses autores partem de uma abordagem que relaciona as forças econômicas e sociais. As três localidades sofreram mudanças significativas na economia. Em Porto Feliz, o crescimento da produção de alimentos e de açúcar na primeira metade do século XIX foi responsável por um considerável aumento do contingente populacional na região, acompanhado também pelo crescimento de escravos. O mercado de gêneros alimentícios passou a ser controlado por pequenos proprietários. Isso implicou uma população composta por pessoas de parcos recursos em meio a uma parcela reduzida de produtores que concentravam maiores posses. Campos dos Goytacases verificou grande expansão açucareira entre os anos de 1750 a 1830, voltada para a exportação. Esse processo foi acompanhado por uma concentração de propriedade de escravos, sem impedir, contudo, que pequenos e médios proprietários tivessem acesso à sua posse. Já a região de Porto Alegre era formada pela vila e algumas freguesias como a Aldeia dos Anjos e Viamão. Caracterizada por extensa área rural, suas fazendas, chácaras e campos conjugavam a produção agrícola e agropecuária para o abastecimento interno.
O ponto de partida dessas pesquisas foi o estudo das alforrias. Os autores buscam conhecer as principais características dessa prática a partir do levantamento de fontes como registros de batismos, testamentos, cartas de liberdade e livros de notas. Analisam os perfis dos senhores, dos escravos alforriados e o significado dessas libertações para ambos. As incidências foram significativas nas três localidades, seguindo os padrões anteriormente vigentes na América Portuguesa. Eram predominantes as concessões para as mulheres e escravos nascidos na colônia, favorecidos com libertações gratuitas, condicionais ou pagas por terceiros, em detrimento dos africanos que compravam a própria liberdade.
No final da década de 1970, Jacob Gorender (O Escravismo Colonial, 1978) afirmou que as manumissões foram associadas aos interesses senhoriais, e que um escravo estaria mais propenso a receber a liberdade em momentos de crise econômica. Contudo, Aladrén, Souza e Guedes adotaram outro viés para a compreensão das alforrias, valorizando o papel que tiveram no contexto do sistema escravista. Para esses autores, as concessões em testamentos e pias batismais foram compreendidas como um reforço do paternalismo inerente à escravidão. Essa atribuição cabia unicamente ao proprietário, e seu desdobramento era a produção de dependentes, pois era fruto de um arranjo entre desiguais. Obediência, respeito e gratidão deveriam pautar as relações entre o ex-senhor e o liberto para que o mesmo pudesse manter o novo status alcançado. Salvo algumas exceções, o empenho desses homens e mulheres era sempre em função de ganhos pessoais. Seus esforços visavam a conquista da própria liberdade ou de terceiros, sem nunca questionar a instituição da escravidão.
Roberto Guedes ainda destaca a função importante que os casamentos entre escravos desempenhavam no incentivo à liberdade. No primeiro momento, os senhores acabavam adquirindo status quando incentivavam as uniões entre seus cativos. Em Porto Feliz, as alforrias eram prerrogativas mais direcionadas às escravas, que passavam a ser agregadas, enquanto seus maridos permaneciam na condição de escravos. Essas uniões eram duradouras e somente rompidas pela morte de um dos cônjuges. Predominavam as uniões exogâmicas entre os próprios crioulos e entre os africanos.
Soares destaca que as liberdades concedidas em testamentos e pias batismais, de alguma forma, se associavam a razões morais e afetivas. Do intercurso sexual entre escravas e seus senhores acabavam nascendo crianças que recebiam alforria como forma dos pais se redimirem do erro de ter gerado um filho em cativeiro. Os altos índices de ilegitimidade entre as crianças batizadas levam a crer que as alforrias em pia batismal eram formas veladas de reconhecimento da paternidade. Já o momento da morte mostrou-se propício para que os senhores concedessem a liberdade a seus cativos, ou parte deles. Em ocasiões de doenças ou mesmo velhice, alguns fiéis buscavam a salvação da alma e a remissão de suas culpas.
Tendo em vista a incidência de concessões de manumissões onerosas, esses estudos abordam os artifícios empregados pelos libertos como forma de acumularem pecúlio e até mesmo ascenderem economicamente. A idéia de que a ascensão econômica não significou necessariamente mobilidade social é comum aos três trabalhos; o que os diferencia são as metodologias utilizadas para a análise desse aspecto.
A partir do levantamento de inventários post mortem, Gabriel Aladrén busca conhecer as ocupações dos libertos da região de Porto Alegre. Os indícios apontam para o envolvimento em atividades agrícolas e o acesso à terra. Utiliza processos crime como forma de viabilizar a reconstituição de algumas trajetórias de libertos que praticaram ou sofreram algum tipo de delito. A análise de dados pessoais e de depoimentos de pessoas próximas permitiu identificar eventos marcantes na vida de ex-escravos daquelas paragens. A inserção no meio social, o estabelecimento de redes de sociabilidade, o acesso a bens materiais e até mesmo o alcance de uma posição mais favorável são alguns deles.
O método utilizado por Roberto Guedes em seu estudo é peculiar. O autor acompanha gerações de cinco famílias de egressos do cativeiro da região de Porto Feliz e se reporta a diferentes momentos de suas vidas para mostrar que a combinação entre estabilidade familiar, trabalho e boas relações contribuíam para a ascensão econômica. Encerra seu livro afirmando que os escravos contraíam matrimônio, conseguiam a liberdade, herdavam bens, tornavam-se proprietários de escravos e contribuíam para que seus descendentes deixassem de carregar o estigma da escravidão a partir da percepção social da cor.
Soares chega às mesmas conclusões; porém, seu método se baseia na análise de casos específicos, sem acompanhar registros de uma mesma família, como o fez Guedes. Mostra que as possibilidades de obterem melhores condições de vida eram condicionadas a fatores como bons casamentos, relações com pessoas influentes da sociedade, mas também às ocupações de postos militares ou em irmandades. A presença de ao menos um desses aspectos era suficiente para diferenciar um liberto de outras pessoas com a mesma condição social. Ao analisar testamentos e inventários post-mortem, verifica que eles acumularam posses e acabaram se comprometendo com a escravidão ao se tornarem proprietários de escravos. As alforrias recebidas e acompanhadas de bens que os senhores, por vezes, os deixavam, contribuíram muito nesse sentido. Para esse autor, a mudança de status favoreceu a alteração da identificação da pessoa quanto à cor. Essa atribuição era dinâmica e variava conforme as diferentes gradações da hierarquia social.
A análise das hierarquias raciais vigentes nos períodos colonial e imperial é outro ponto abordado nesses trabalhos, porém mais explorado por Aladrén. O autor lembra que a escravidão no Brasil não foi pautada em bases raciais, embora a classificação da população, sobretudo no que se referia a escravos e seus descendentes, tivesse sido estruturada a partir das categorias estamentais vigentes no Antigo Regime português. Nesse sentido, concorda com Hebe Mattos (Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, 2000) ao considerar que, na prática social, houve uma hierarquia relativa à raça nos tempos coloniais, que foi redefinida a partir da independência da América Portuguesa e da construção da nova nação.
Em se tratando da colônia, as designações dos escravos, libertos e seus descendentes eram determinadas pela classificação de cor e origem. Fatores como riqueza, posição social e comportamento também tinham peso. Tais critérios não eram rígidos; formas diferenciadas podiam ser atribuídas de acordo com a época, região e a pessoa que os empregava. Os autores observam que a alteração ou até mesmo o desaparecimento dos designativos de cor ocorriam quando se tratava de pessoas que provinham da terceira geração de descendentes de escravos e, principalmente, no caso de ex-escravos que contraíam matrimônio com livres. O trabalho supracitado de Hebe Mattos e também o de Sheila de Castro Faria (A colônia em movimento, 1998) evidenciam ainda que o termo pardo indicava miscigenação, embora não deixasse de eximir a marca da ascendência escrava. Já o termo “pardo livre” surgiu a partir do aumento da população de egressos do cativeiro e de seus descendentes, em fins do século XVIII e início do XIX, como uma necessidade de diferenciar aqueles que não passaram pela experiência do cativeiro.
Aladrén compara ainda os designativos conferidos aos escravos no momento em que iam receber a liberdade e as assinaturas encontradas depois de libertos. Assim, verifica que os mapas de população elucidam uma linguagem oficial, porém não tão distinta daquela utilizada nas práticas cotidianas da população. Com o processo de independência e de construção da nação brasileira nas primeiras décadas do século XIX, foram observadas “formas específicas de racialização”. As expressões utilizadas acabavam delimitando socialmente as fronteiras entre pessoas brancas, libertos e seus descendentes.
Para compreender as estratégias de inserção social dos pretos e pardos no período das Guerras Cisplatinas e da Independência do Brasil, Aladrén estudou o recrutamento das tropas regulares. No final do período colonial, a convocação seguia critérios raciais. As tropas classificadas como de primeira linha admitiam somente homens brancos ou de pele bem clara. Já as de segunda aceitavam brancos, pardos e também pretos. Segundo Aladrén, os conflitos ocorridos na região de Porto Alegre e, sobretudo, a conjuntura gerada com os movimentos de emancipação da América Portuguesa contribuíram de maneira decisiva para que a composição do exército tomasse novos formatos, passando a recrutar escravos, livres e também libertos. Os escravos e libertos se alistavam voluntariamente nos batalhões visando futuramente a alforria e a melhoria das condições de vida ou a mobilidade social. Parcela considerável daqueles que lutavam ao lado de seus senhores recebiam a liberdade.
O reconhecimento social dos direitos garantidos a libertos e seus descendentes pela legislação do Império do Brasil é outro tema que chama a atenção do autor. Para conhecer esse aspecto, ele analisa alguns conflitos cotidianos por meio de processos crime. Assim, avalia o posicionamento desses e das demais pessoas envolvidas em demandas judiciais. Conclui que os brancos daquela sociedade, nas primeiras décadas do século XIX, ainda operavam de acordo com os padrões hierárquicos do Antigo Regime. Alguns continuavam desqualificando negros com discursos racialistas, provando que, mesmo conquistando postos mais elevados, acabavam sendo vistos com desconfiança.
O principal aspecto que diferencia o trabalho de Aladrén dos demais autores resenhados é o peso que ele confere às mudanças políticas como determinantes na inserção social dos libertos e seus descendentes. De maneira geral, os três livros trazem avanços notáveis para o campo de estudos sobre os ex- escravos e seus descendentes. No primeiro momento, analisam as alforrias locais sem perder de vista as características estruturais que engendravam essa prática. As modalidades, o perfil dos escravos libertados, as possibilidades de anulação de status alcançado, são fatores que ajudam a visualizar a complexidade da escravidão na América Portuguesa e no Brasil Independente. Não há como apreender esse complexo sistema sem passar pelas alforrias, pois elas são parte constitutiva do mesmo. Em um segundo passo, buscam compreender a inserção social dos egressos do cativeiro. Enquanto Guedes e Soares se baseiam no estudo de casos de famílias de libertos e suas estratégias de mobilidade social em um contexto de expansão econômica, Aladrén se detém nas trajetórias individuais em um período compreendido por profundas mudanças políticas.
A passagem da escravidão para a liberdade acarretou mudanças significativas. A aquisição de capacidade civil foi a principal delas, pois permitiu o direito à constituição de família, à mobilidade, à herança e à propriedade. Por maior que fosse a autonomia de um escravo, suas prerrogativas não se equiparavam às de um liberto. Em um momento de intensas transformações políticas como as da virada do século XVIII para o XIX e, especificamente, no contexto de independência da América Portuguesa, ocorreram mudanças significativas para a população liberta. Soares e Guedes não exploram esse contexto político; Aladrén, por sua vez, enfrenta a questão, mas valoriza basicamente a inserção social incentivada pela necessidade de novos recrutamentos para as forças militares em conflito. Em função disso, restringe-se à análise do gênero masculino, mesmo tendo em vista que as mulheres eram as mais alforriadas no período por ele abordado.
O exame da inserção de libertos e seus descendentes na América Portuguesa e no Brasil Independente é o principal fio condutor desses trabalhos. Os três autores conduzem suas pesquisas na contramão de parte da historiografia, anteriormente mencionada, que tende a considerar os ex-escravos como uma subcategoria social. Ao contrário, Guedes, Soares e Aladrén empregam métodos peculiares e revelam as diferentes estratégias por eles adotadas em função de galgarem melhores condições de vida. Mais do que discutir os caminhos para a manumissão e o perfil dos manumissos, esses historiadores mostram que homens e mulheres forras souberam alongar o horizonte da liberdade, fosse por meio da constituição de família, da inserção em irmandades e ou ordens militares.
Os referidos estudos ainda somam- se à historiografia e tornam evidente que as esferas públicas foram palco das mais variadas reivindicações iniciadas por egressos do cativeiro na passagem do século XVIII e XIX. O acesso à justiça, sobretudo no período colonial, pode indicar que ela funcionou como um importante instrumento de garantia do que hoje entendemos por direitos civis para os ex- escravos. É possível que os litígios tivessem uma conotação de luta pela afirmação das conquistas dos ex- escravos após a obtenção da liberdade. A investigação das práticas cotidianas nos contextos de inserção política nos momentos que antecederam a Constituição de 1824, enfim, ainda não foi explorada.
Renata Romualdo Diório – Doutoranda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil). E-mail: diorio@usp.br
ALADRÉN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: alforria e inserção social dos libertos em Porto Alegre. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798 – c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2008. SOARES, Márcio de Sousa. A Remissão do Cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c.1750 – c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. Resenha de: DIÓRIO, Renata Romualdo. Alforria e mobilidade social nos séculos XVIII e XIX: os casos de Porto Feliz, Campos dos Goitacases e Porto Alegre. Almanack, Guarulhos, n. 1, p.155-161, jan./jun., 2011.
Vozes femininas do Império e da República – LÔBO; FARIA (REF)
LÔBO, Yolanda; FARIA, Lia (orgs.). Vozes femininas do Império e da República. Rio de Janeiro: Quartet : FAPERJ, 2008. Resenha de: PAIVA, Kelen Benfenatti. Contar, é preciso. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.2 May/Aug. 2009.
É fato que a história das mulheres e sua inserção no espaço público foram marcadas por uma longa trajetória de preconceitos e de dificuldades, por isso faz-se, ainda hoje, necessário contar essa história tantas vezes silenciada ao longo dos séculos. E com certeza foi essa a intenção de Yolanda Lôbo e Lia Faria quando reuniram, em Vozes femininas do Império e da República, uma coletânea de artigos com a intenção de “descortinar ideologias e utopias presentes no imaginário feminino, apontando assim para a construção histórica do gênero feminino em Portugal e no Brasil” (p. 16).
Com 368 páginas, o livro publicado pela Editora Quartet e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), em 2008, está a serviço de contar a história das mulheres por meio de experiências pessoais que ultrapassam a esfera do individual. Pode-se afirmar que a diversidade de assuntos abordados e os diferentes enfoques são perpassados e conduzidos por dois eixos centrais: educação e gênero.
Estruturalmente, o livro apresenta-se dividido em três partes: “Falas Imperiais”, “Falas Literárias” e “Falas Apaixonadas”. Na primeira constam dois artigos cuja temática é a educação no Oitocentos. Na segunda aparecem cinco textos que tratam de nomes importantes de mulheres na imprensa, na educação e na literatura. E em “Falas Apaixonadas” concentram-se quatro artigos que enfocam a atuação política e as intervenções de mulheres na educação e na cultura.
Sobre educação, é possível uma “volta” ao passado com Maria Celi Chaves Vasconcelos em “Vozes femininas do Oitocentos: o papel das preceptoras nas casas brasileiras”, em que a autora recupera parte da história das mulheres que encontraram nessa prática educativa um meio de subsistência. Como destaca a autora, as preceptoras foram, no século XIX, as primeiras educadoras “oficialmente instituídas que tornaram o seu ‘fazer’ uma ‘atividade profissional’ remunerada, representando a abertura do mercado de trabalho intelectual à condição feminina” (p. 38).
Sobre a educação feminina, cabe destacar o enfoque dado por Suely Gomes Costa em “Diário de uma e outras meninas: práticas domésticas e educação”, em que o olhar da pesquisadora se volta ao Diário de Helena Morley, publicado em 1942. A partir das experiências pessoais vividas na infância em Diamantina, narradas no diário, registra-se “um painel de trabalho de muitas mulheres a sua volta, das mais às menos instruídas, entrelaçadas em rede, nessa luta comum por sobrevivência” (p. 67). As confissões relatam a participação de meninas nos afazeres domésticos diários e a dificuldade de conciliar a casa e a escola. Destacam, ainda, como aponta Suely, a participação feminina na captação de moedas por meio do trabalho restrito ao âmbito do lar, as chamadas “prendas femininas”. Por fim, o artigo ressalta que a luta pela sobrevivência, nesses casos, criou “reiteradas restrições de acessos à educação” (p. 70).
Será a educação, ainda, pano de fundo em “Vozes católicas: um estudo sobre a presença feminina no periódico A Ordem (anos 1930-40)”. No artigo, Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi resgata a participação de algumas mulheres na revista e destaca o caráter de “apostolado doutrinário e espiritual” da publicação. Atenta para a participação, dentre outras, de Lúcia Miguel Pereira na seção “Crônica feminina”, criada em 1932. Nas crônicas assinadas pela autora, há uma reflexão sobre os novos rumos da vida social que impactariam na condição feminina. Sobre o assunto, a cronista deixa explícita sua preocupação com risco de a mulher deixar-se seduzir por um ritmo, uma “trepidação”, própria dos tempos modernos, que a conduziria ao trabalho remunerado na esfera pública, quase sempre marcado pelo individualismo. É o foco no social a maior defesa da autora, que enfatiza a importância da educação feminina para um projeto segundo o qual a mulher deveria “pôr a serviço do bem comum as riquezas de sua psicologia materna “(p. 98), como bem destaca a autora do artigo.
É ainda pelo viés da educação e da literatura que Constância Lima Duarte nos apresenta Nísia Floresta, nome importante no avanço da educação feminina no Brasil, que traz em quase todos os seus livros “o propósito de formar e modificar consciências” e o projeto de “alterar o quadro ideológico-social” (p. 106). Em “Nísia Floresta e a educação feminina no séc. XIX”, a pesquisadora destaca o caráter inovador das ideias e práticas educativas de Nísia, como sua defesa por uma educação feminina pautada menos na educação da agulha e mais em uma formação multifacetada. Lembra ainda que, na produção da escritora, há textos que se inscrevem na tradição de uma “prosa moralista de intenção nitidamente doutrinária”, com o objetivo principal de “transformar a mulher indiferente em mãe amorosa e responsável”, contribuindo – sem o saber – para a cristalização de uma “mística feminina” (p. 140). A pesquisadora afirma que, a posteriori, “é fácil de perceber a manipulação ideológica desse discurso e as conseqüências na vida das mulheres” e destaca como o elogio da maternidade tornou-se uma “nova forma de enclausuramento” (p. 140).
Em “Carmen Dolores: as contradições de uma literata da virada do século”, Rachel Soihet e Flávia Copio Esteves se unem para apresentar ao leitor outra mulher à frente de seu tempo. Ciente das aptidões e dos papéis de cada gênero como construções sociais, Carmen Dolores usou a escrita para tratar de assuntos de interesse das mulheres, como a desmistificação da maternidade como seu único destino e a defesa do divórcio em nome da integridade familiar, da política, da educação e do trabalho feminino. Convivem nas crônicas assinadas pela autora a busca da libertação feminina pela educação e pelo trabalho e a manutenção de alguns comportamentos femininos. Tal paradoxo, claramente apontado pelas autoras, deve-se ao fato de que a escritora é, como tantas outras, uma “expressão da cultura de seu tempo e de sua classe”, sendo preciso considerar “a flexibilidade da ‘jaula’ representada pela cultura” (p. 165-166).
Pelo viés memorialístico e pelo cunho autobiográfico dos diários, dos cadernos de anotações e dos álbuns de memórias da professora Maria Luiza Schmidt Rehder, textos analisados por Marilena A. Jorge Guedes de Camargo, em “Ecos de um passado feminino: entre escritos e sentimentos”, chegam a nós relatando a trajetória de uma mulher movida pelos sentimentos que se propõe a “fazer história com sua experiência”. Assim, ao narrar sua vida, em Rio Claro, registra também acontecimentos importantes da década de 1930. Relata, por exemplo, a formação de um exército de voluntários unidos sob ideais patrióticos em defesa de São Paulo e registra a participação das mulheres paulistas na Revolução de 1932, costurando fardas e cobertores, angariando donativos para a manutenção dos batalhões, além da atuação das enfermeiras em hospitais de campanha.
Ao falar da condição feminina impressa no romance A doce canção de Caetana, de Nélida Piñon, Tânia Navarro Swain propõe uma “leitura ativa” que em nada se pretende imparcial ou distanciada, “apropriando-se” da narrativa para criar e atribuir-lhe sentidos múltiplos. Assim, em “A doce canção de Caetana: meu olhar” busca investigar as imagens e representações sociais do feminino e do masculino que habitam o romance. Discute, entre outros assuntos, a instituição do casamento como valor social na manutenção do poder masculino; a “ilusória força masculina” pautada no “fantasma da potência sexual” e na “posse de corpos alheios”; e a prostituição como “criação social”, na qual, como destaca a autora, há “violência de corpos desprovidos de subjetividade” (p. 216).
Atravessando o Atlântico, Áurea Adão e Maria José Remédios detêm-se na participação política das mulheres em Portugal de 1946 a 1961. Em “Os discursos do poder e as políticas educativas na governação de Oliveira Salazar: as intervenções das mulheres na Assembléia Nacional”, as autoras atentam para a atuação das deputadas na Assembleia Nacional bem como para a imagem do feminino que subjaz, explícita ou implicitamente, nas suas intervenções. Para tanto, analisam os discursos de seis mulheres parlamentares e observam que algumas áreas estavam restritas à intervenção pública feminina: a educação, a família, a assistência social e a saúde. Toda tentativa de ir além de tais assuntos era marcada por justificativas das parlamentares diante de seus pares. Ainda nos discursos dessas mulheres pode-se perceber, como destacam as autoras, a defesa da permanência da mulher no âmbito do lar, numa “valorização da função de mãe de família” e de “guardiã vigilante da harmonia e da felicidade do lar”, numa “verdadeira vocação de mulher” (p. 272), contribuindo para a manutenção de um questionável modelo social.
Seguindo ainda a trilha de mulheres que fizeram história, Lia Ciomar Macedo de Faria, Edna Maria dos Santos e Rosemaria J. Vieira da Silva seguem os passos da professora e historiadora Maria Yeda Linhares. De perfil “questionador e combativo” e de trajetória marcada “pela irreverência e coragem intelectual”, Maria Yeda se colocou em defesa do direito à educação e à garantia de uma escola pública efetivamente republicana, pois, para ela, segundo destacam as autoras em “Os múltiplos olhares de Maria Yeda Linhares: educação, história e política no feminino”, o sucesso da escola pública significa uma “questão de sobrevivência se quisermos existir como povo e nação” (p. 297).
A trajetória de outra professora, Myrthes de Luca Wenzel, também é abordada em “Alcachofras-dos-telhados: lições de pedagogia de uma educadora”, por Yolanda Lôbo. À frente da Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, a educadora reuniu em torno de si um seleto grupo de intelectuais e foi, como destaca a autora do artigo, idealizadora de uma “pedagogia libertadora”, uma proposta educacional inovadora, que buscava a felicidade dos alunos, “com liberdade de criar, de viver em sociedade e ao mesmo tempo preparados de modo completo e científico” (p. 316).
Voltando-se ao espaço sociocultural português, Zília Osório de Castro, em “Na senda do feminismo intelectual”, discute a condição feminina a partir da reflexão do papel do intelectual. Destaca a criação das revistas Pensamento, O Diabo e O Sol Nascente, na década de 1930, que “apostavam na reforma cultural” e traziam em suas páginas o tema do feminismo em meio ao “confronto de valores culturais presente na sociedade portuguesa de então” (p. 340). A participação das mulheres nessas revistas representou, segundo a autora, uma evolução, seja por sua inserção em um espaço majoritariamente masculino, seja pelo reconhecimento de suas potencialidades e sua “comparticipação na criação da nova sociedade” ou pela “conscientização de uma outra idéia de mulher” (p. 340), ser humano dotado de direitos e deveres. Por meio dessas mulheres se deu um “feminismo interventivo e não apenas participativo, um feminismo cívico e não apenas político” (p. 341). Zília lembra o nome de Ana de Castro Osório no feminismo cultural dos anos 1930, que defendia o trabalho como “carta de alforria” da mulher com o objetivo de responsabilizá-la por seu próprio destino. Observa ainda, nos periódicos analisados, dois tipos de feminismo: um “feminismo feminino”, pelo qual a mulher reivindicava uma função social, além da revisão da sua situação familiar, profissional e política; e um “feminismo masculino”, pelo qual os homens escreviam em “defesa” das mulheres.
É interessante notar, pela leitura dos artigos reunidos em Vozes femininas do Império e da República, como o lento processo de “libertação” da mulher está ligado à promoção de sua educação, de seu desenvolvimento intelectual e de seu trabalho, reafirmando o que Virgínia Woolf teorizou tão bem em Um teto todo seu. O leitor que se aventurar nas instigantes trilhas propostas pelas autoras deste livro chegará ao final de sua leitura com a visão panorâmica das principais lutas e obstáculos vivenciados pelas mulheres ao longo dos séculos, em diferentes contextos, dos quais o reconhecimento da diferença e o direito à educação foram fundamentais ao que se convencionou chamar de feminismo.
Pode-se dizer que, nas páginas deste livro, configura-se um feminismo crítico através das vozes de 13 mulheres que se unem para contar histórias de outras mulheres, que, por sua vez, superam os relatos pessoais e fazem coro com as autoras dos artigos para narrarem juntas uma história bem mais ampla: a história das mulheres.
Kelen Benfenatti Paiva – Universidade Federal de Minas Gerais
Vozes femininas do Império e da República – LÔBO; FARIA (REF)
LÔBO, Yolanda; FARIA, Lia (orgs.). Vozes femininas do Império e da República. Rio de Janeiro: Quartet : FAPERJ, 2008. Resenha de: PAIVA, Kelen Benfenatti. Contar, é preciso. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.
É fato que a história das mulheres e sua inserção no espaço público foram marcadas por uma longa trajetória de preconceitos e de dificuldades, por isso faz-se, ainda hoje, necessário contar essa história tantas vezes silenciada ao longo dos séculos. E com certeza foi essa a intenção de Yolanda Lôbo e Lia Faria quando reuniram, em Vozes femininas do Império e da República, uma coletânea de artigos com a intenção de “descortinar ideologias e utopias presentes no imaginário feminino, apontando assim para a construção histórica do gênero feminino em Portugal e no Brasil” (p. 16).
Com 368 páginas, o livro publicado pela Editora Quartet e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), em 2008, está a serviço de contar a história das mulheres por meio de experiências pessoais que ultrapassam a esfera do individual. Pode-se afirmar que a diversidade de assuntos abordados e os diferentes enfoques são perpassados e conduzidos por dois eixos centrais: educação e gênero.
Estruturalmente, o livro apresenta-se dividido em três partes: “Falas Imperiais”, “Falas Literárias” e “Falas Apaixonadas”. Na primeira constam dois artigos cuja temática é a educação no Oitocentos. Na segunda aparecem cinco textos que tratam de nomes importantes de mulheres na imprensa, na educação e na literatura. E em “Falas Apaixonadas” concentram-se quatro artigos que enfocam a atuação política e as intervenções de mulheres na educação e na cultura.
Sobre educação, é possível uma “volta” ao passado com Maria Celi Chaves Vasconcelos em “Vozes femininas do Oitocentos: o papel das preceptoras nas casas brasileiras”, em que a autora recupera parte da história das mulheres que encontraram nessa prática educativa um meio de subsistência. Como destaca a autora, as preceptoras foram, no século XIX, as primeiras educadoras “oficialmente instituídas que tornaram o seu ‘fazer’ uma ‘atividade profissional’ remunerada, representando a abertura do mercado de trabalho intelectual à condição feminina” (p. 38).
Sobre a educação feminina, cabe destacar o enfoque dado por Suely Gomes Costa em “Diário de uma e outras meninas: práticas domésticas e educação”, em que o olhar da pesquisadora se volta ao Diário de Helena Morley, publicado em 1942. A partir das experiências pessoais vividas na infância em Diamantina, narradas no diário, registra-se “um painel de trabalho de muitas mulheres a sua volta, das mais às menos instruídas, entrelaçadas em rede, nessa luta comum por sobrevivência” (p. 67). As confissões relatam a participação de meninas nos afazeres domésticos diários e a dificuldade de conciliar a casa e a escola. Destacam, ainda, como aponta Suely, a participação feminina na captação de moedas por meio do trabalho restrito ao âmbito do lar, as chamadas “prendas femininas”. Por fim, o artigo ressalta que a luta pela sobrevivência, nesses casos, criou “reiteradas restrições de acessos à educação” (p. 70).
Será a educação, ainda, pano de fundo em “Vozes católicas: um estudo sobre a presença feminina no periódico A Ordem (anos 1930-40)”. No artigo, Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi resgata a participação de algumas mulheres na revista e destaca o caráter de “apostolado doutrinário e espiritual” da publicação. Atenta para a participação, dentre outras, de Lúcia Miguel Pereira na seção “Crônica feminina”, criada em 1932. Nas crônicas assinadas pela autora, há uma reflexão sobre os novos rumos da vida social que impactariam na condição feminina. Sobre o assunto, a cronista deixa explícita sua preocupação com risco de a mulher deixar-se seduzir por um ritmo, uma “trepidação”, própria dos tempos modernos, que a conduziria ao trabalho remunerado na esfera pública, quase sempre marcado pelo individualismo. É o foco no social a maior defesa da autora, que enfatiza a importância da educação feminina para um projeto segundo o qual a mulher deveria “pôr a serviço do bem comum as riquezas de sua psicologia materna “(p. 98), como bem destaca a autora do artigo.
É ainda pelo viés da educação e da literatura que Constância Lima Duarte nos apresenta Nísia Floresta, nome importante no avanço da educação feminina no Brasil, que traz em quase todos os seus livros “o propósito de formar e modificar consciências” e o projeto de “alterar o quadro ideológico-social” (p. 106). Em “Nísia Floresta e a educação feminina no séc. XIX”, a pesquisadora destaca o caráter inovador das ideias e práticas educativas de Nísia, como sua defesa por uma educação feminina pautada menos na educação da agulha e mais em uma formação multifacetada. Lembra ainda que, na produção da escritora, há textos que se inscrevem na tradição de uma “prosa moralista de intenção nitidamente doutrinária”, com o objetivo principal de “transformar a mulher indiferente em mãe amorosa e responsável”, contribuindo – sem o saber – para a cristalização de uma “mística feminina” (p. 140). A pesquisadora afirma que, a posteriori, “é fácil de perceber a manipulação ideológica desse discurso e as conseqüências na vida das mulheres” e destaca como o elogio da maternidade tornou-se uma “nova forma de enclausuramento” (p. 140).
Em “Carmen Dolores: as contradições de uma literata da virada do século”, Rachel Soihet e Flávia Copio Esteves se unem para apresentar ao leitor outra mulher à frente de seu tempo. Ciente das aptidões e dos papéis de cada gênero como construções sociais, Carmen Dolores usou a escrita para tratar de assuntos de interesse das mulheres, como a desmistificação da maternidade como seu único destino e a defesa do divórcio em nome da integridade familiar, da política, da educação e do trabalho feminino. Convivem nas crônicas assinadas pela autora a busca da libertação feminina pela educação e pelo trabalho e a manutenção de alguns comportamentos femininos. Tal paradoxo, claramente apontado pelas autoras, deve-se ao fato de que a escritora é, como tantas outras, uma “expressão da cultura de seu tempo e de sua classe”, sendo preciso considerar “a flexibilidade da ‘jaula’ representada pela cultura” (p. 165-166).
Pelo viés memorialístico e pelo cunho autobiográfico dos diários, dos cadernos de anotações e dos álbuns de memórias da professora Maria Luiza Schmidt Rehder, textos analisados por Marilena A. Jorge Guedes de Camargo, em “Ecos de um passado feminino: entre escritos e sentimentos”, chegam a nós relatando a trajetória de uma mulher movida pelos sentimentos que se propõe a “fazer história com sua experiência”. Assim, ao narrar sua vida, em Rio Claro, registra também acontecimentos importantes da década de 1930. Relata, por exemplo, a formação de um exército de voluntários unidos sob ideais patrióticos em defesa de São Paulo e registra a participação das mulheres paulistas na Revolução de 1932, costurando fardas e cobertores, angariando donativos para a manutenção dos batalhões, além da atuação das enfermeiras em hospitais de campanha.
Ao falar da condição feminina impressa no romance A doce canção de Caetana, de Nélida Piñon, Tânia Navarro Swain propõe uma “leitura ativa” que em nada se pretende imparcial ou distanciada, “apropriando-se” da narrativa para criar e atribuir-lhe sentidos múltiplos. Assim, em “A doce canção de Caetana: meu olhar” busca investigar as imagens e representações sociais do feminino e do masculino que habitam o romance. Discute, entre outros assuntos, a instituição do casamento como valor social na manutenção do poder masculino; a “ilusória força masculina” pautada no “fantasma da potência sexual” e na “posse de corpos alheios”; e a prostituição como “criação social”, na qual, como destaca a autora, há “violência de corpos desprovidos de subjetividade” (p. 216).
Atravessando o Atlântico, Áurea Adão e Maria José Remédios detêm-se na participação política das mulheres em Portugal de 1946 a 1961. Em “Os discursos do poder e as políticas educativas na governação de Oliveira Salazar: as intervenções das mulheres na Assembléia Nacional”, as autoras atentam para a atuação das deputadas na Assembleia Nacional bem como para a imagem do feminino que subjaz, explícita ou implicitamente, nas suas intervenções. Para tanto, analisam os discursos de seis mulheres parlamentares e observam que algumas áreas estavam restritas à intervenção pública feminina: a educação, a família, a assistência social e a saúde. Toda tentativa de ir além de tais assuntos era marcada por justificativas das parlamentares diante de seus pares. Ainda nos discursos dessas mulheres pode-se perceber, como destacam as autoras, a defesa da permanência da mulher no âmbito do lar, numa “valorização da função de mãe de família” e de “guardiã vigilante da harmonia e da felicidade do lar”, numa “verdadeira vocação de mulher” (p. 272), contribuindo para a manutenção de um questionável modelo social.
Seguindo ainda a trilha de mulheres que fizeram história, Lia Ciomar Macedo de Faria, Edna Maria dos Santos e Rosemaria J. Vieira da Silva seguem os passos da professora e historiadora Maria Yeda Linhares. De perfil “questionador e combativo” e de trajetória marcada “pela irreverência e coragem intelectual”, Maria Yeda se colocou em defesa do direito à educação e à garantia de uma escola pública efetivamente republicana, pois, para ela, segundo destacam as autoras em “Os múltiplos olhares de Maria Yeda Linhares: educação, história e política no feminino”, o sucesso da escola pública significa uma “questão de sobrevivência se quisermos existir como povo e nação” (p. 297).
A trajetória de outra professora, Myrthes de Luca Wenzel, também é abordada em “Alcachofras-dos-telhados: lições de pedagogia de uma educadora”, por Yolanda Lôbo. À frente da Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, a educadora reuniu em torno de si um seleto grupo de intelectuais e foi, como destaca a autora do artigo, idealizadora de uma “pedagogia libertadora”, uma proposta educacional inovadora, que buscava a felicidade dos alunos, “com liberdade de criar, de viver em sociedade e ao mesmo tempo preparados de modo completo e científico” (p. 316).
Voltando-se ao espaço sociocultural português, Zília Osório de Castro, em “Na senda do feminismo intelectual”, discute a condição feminina a partir da reflexão do papel do intelectual. Destaca a criação das revistas Pensamento, O Diabo e O Sol Nascente, na década de 1930, que “apostavam na reforma cultural” e traziam em suas páginas o tema do feminismo em meio ao “confronto de valores culturais presente na sociedade portuguesa de então” (p. 340). A participação das mulheres nessas revistas representou, segundo a autora, uma evolução, seja por sua inserção em um espaço majoritariamente masculino, seja pelo reconhecimento de suas potencialidades e sua “comparticipação na criação da nova sociedade” ou pela “conscientização de uma outra idéia de mulher” (p. 340), ser humano dotado de direitos e deveres. Por meio dessas mulheres se deu um “feminismo interventivo e não apenas participativo, um feminismo cívico e não apenas político” (p. 341). Zília lembra o nome de Ana de Castro Osório no feminismo cultural dos anos 1930, que defendia o trabalho como “carta de alforria” da mulher com o objetivo de responsabilizá-la por seu próprio destino. Observa ainda, nos periódicos analisados, dois tipos de feminismo: um “feminismo feminino”, pelo qual a mulher reivindicava uma função social, além da revisão da sua situação familiar, profissional e política; e um “feminismo masculino”, pelo qual os homens escreviam em “defesa” das mulheres.
É interessante notar, pela leitura dos artigos reunidos em Vozes femininas do Império e da República, como o lento processo de “libertação” da mulher está ligado à promoção de sua educação, de seu desenvolvimento intelectual e de seu trabalho, reafirmando o que Virgínia Woolf teorizou tão bem em Um teto todo seu. O leitor que se aventurar nas instigantes trilhas propostas pelas autoras deste livro chegará ao final de sua leitura com a visão panorâmica das principais lutas e obstáculos vivenciados pelas mulheres ao longo dos séculos, em diferentes contextos, dos quais o reconhecimento da diferença e o direito à educação foram fundamentais ao que se convencionou chamar de feminismo.
Pode-se dizer que, nas páginas deste livro, configura-se um feminismo crítico através das vozes de 13 mulheres que se unem para contar histórias de outras mulheres, que, por sua vez, superam os relatos pessoais e fazem coro com as autoras dos artigos para narrarem juntas uma história bem mais ampla: a história das mulheres.
Kelen Benfenatti Paiva – Universidade Federal de Minas Gerais.
História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder | Lúcia Maria B. P. das Neves, Marco Morel e Tânia M. Bessone Ferreira
NEVES, Lúcia Maria B. P. das; MOREL, Marco; FERREIRA, Tânia M. Bessone da C. (Orgs.). História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A / FAPERJ, 2006. Resenha de: CORRÊA, Maria Letícia. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.3, n.3, p.179-182, 2007.
Fundação Ataulpho de Paiva — Liga Brasileira contra a Tuberculose: um século de luta | Dilene Raimundo Nascimento
O livro de Dilene Nascimento acompanha a trajetória da Fundação Ataulpho de Paiva ao longo de um século de existência, desde o surgimento da Liga Brasileira contra a Tuberculose, em 4 de agosto de 1900, até o tempo presente, apontando suas perspectivas. Contudo, muito mais que “conhecer” a história da luta contra a tuberculose no início do século XX, seu trabalho nos permite refletir sobre a relação entre a filantropia, a assistência médica e o Estado ao longo deste período.
A Liga Brasileira contra a Tuberculose, criada no Rio de Janeiro, reunia médicos, higienistas, intelectuais, membros da alta sociedade carioca que buscavam a cura desta doença, bem como sua profilaxia. O debate em torno desta doença era grande desde o final do século XIX, tanto na Academia de Medicina quanto na imprensa quotidiana. Nesta época, foi criada uma comissão chefiada por Domingos Freire para ir à Alemanha estudar a eficácia terapêutica da tuberculina de Koch, recém-descoberta (1890) e, logo depois, o Jornal do Commercio patrocinou experiências com a tuberculina de Koch nas enfermarias da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Toda esta ambiência criou um espaço propício para a reunião de um grupo de médicos e intelectuais em torno da idéia, lançada em 1899 por Cypriano de Freitas na Academia de Medicina, de se fundar um órgão específico para o combate da tuberculose. Deste “marco zero” à atuação contemporânea da Fundação Ataulpho de Paiva, é uma longa jornada. Leia Mais