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Diccionario político y social del mundo iberoamericano. Conceptos políticos fundamentales / 1770-1870 | Javier Fernández Sebastián
O segundo tomo do Diccionario político y social del mundo iberoamericano – Conceptos pol íticos fundamentales, 1770-1870, é resultado de mais uma etapa exitosa do projeto Iberoamericano de História Conceitual, ou simplesmente Iberconceptos. Trata-se de uma obra coletiva original e de grande fôlego, com impactos relevantes no âmbito das vertentes historiográficas de enfoque atlântico. Seus 10 volumes reúnem 131 ensaios escritos por quase uma centena de autores provenientes da América Latina, dos EUA e da Europa, demonstrando, logo de início, a magnitude de tal obra.
Inspirado no dicionário histórico de léxicos políticos e sociais alemãoGeschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland (1972-1997), o Iberconceptos tornou-se uma referência internacional para os subsequentes projetos de história dos conceitos em perspectiva transnacional criados na Europa, na Índia e no Extremo Oriente. Sem, contudo, reproduzir ipsis litteris o modelo do dicionário de O. Brunner, W. Conze e R. Koselleck, e adotando uma perspectiva transnacional, oIberconceptos aborda o universo histórico-linguístico do espaço Atlântico ibérico na sua transição para a modernidade , entre fins do século XVIII e meados do século XIX, quando, em razão de um modo distinto de experimentar e conceber o tempo histórico, se construiu “un nuevo régimen de conceptualidad” das experiências políticas e sociais, como salienta seu mentor e coordenador geral, Javier Fernández Sebastián, na Introdução ao Diccionario (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, p. 30).
Na primeira fase do projeto, o historiador espanhol, professor de História do Pensamento Político da Universidad del País Vasco, reuniu setenta e cinco especialistas em história de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, México, Peru, Portugal e Venezuela, dividindo-os em nove equipes nacionais responsáveis por elaborar ensaios para dez conjuntos de conceitos. Além dessas equipes, coordenadores distribuídos por conceito ficaram responsáveis por juntar os resultados dos nove estudos de caso nacionais sintetizando-os num ensaio de caráter transnacional. O tomo I (Diccionario político y social del mundo iberoamericano – La era de las revoluciones, 1750-1850), publicado em 2009 e atualmente disponível para download na página oficial do projeto (http://www.iberconceptos.net), compõe-se dos seguintes verbetes:América/americanos, cidadão/vecino, constituição, federação/federal/federalismo, história, liberal/liberalismo, nação, opinião pública, povo/povos e república/republicanismo . O critério de seleção se justifica em função da centralidade desses termos para o vocabulário político da época. Seu caráter fluido e polissêmico permitia a estruturação de performances discursivas e projetos políticos por vozes e protagonistas antagônicos. Dessa forma, podemos afirmar que o projeto não aspira oferecer definições unívocas e normativas dos termos selecionados, mas enfatizar o viés polêmico e controverso dos usos linguísticos aparecidos na trajetória histórica dos conceitos. Por fim, oIberconceptos I organiza-se em volume único de mais de 1400 páginas, em que cada conceito representa uma seção do Diccionario , na qual um ensaio introdutório de caráter transversal e comparativo é seguido por outros nove estudos de caso nacionais.
O Iberconceptos II traz algumas mudanças importantes em relação ao tomo anterior. A primeira delas se refere ao formato. Organizados não mais num livro único, nesse segundo tomo outros dez conceitos foram selecionados obedecendo aos mesmos critérios acima mencionados, mas distribuídos por volumes. São eles:civilização, democracia, Estado, independência, liberdade, ordem, partido, pátria, revolução e soberania . Como antes, para cada conceito há um estudo de caráter transversal de autoria dos coordenadores que apresentam uma síntese dos resultados das pesquisas de corte nacional. Não obstante, nesse último tomo noventa e oito autores dividiram o trabalho de ampliação da escala de investigação, chegado a uma dúzia de países e territórios, assim distribuídos: Argentina/Rio da Prata, Brasil, Caribe/Antilhas hispânicas, América Central, Chile, Colômbia/Nova Granada, Espanha, México/Nova Espanha, Peru, Portugal, Uruguai/Banda Oriental, Venezuela . Como se pode notar, além da inserção do Uruguai ao sul do continente e das áreas banhadas pelo mar do Caribe, incluindo o istmo Centro Americano e as Antilhas hispânicas, percebe-se a dupla denominação tradicional (Vice-Reino) e nacional para os territórios da Argentina, Colômbia e México. Isso reforça a ideia tão cara ao projeto, de que, embora por razões operativas um dos eixos doDiccionario responda a uma lógica territorial, o estudo da história política e intelectual em qualquer caso não coincide estritamente com os atuais marcos nacionais. Além disso, o Iberconceptos vem demonstrando o potencial da história dos conceitos no lidar com temas que estão para além dos limites do Estado-nação. Inscreve-se definitivamente entre as tendências historiográficas que se pretendem comparativas, conectadas ou globais, como a chamada “História Atlântica”, cujas múltiplas interconexões devem ser pensadas num sistema plural abarcando não somente as regiões anglófonas e francófonas, mas também hispânicas e lusas.
Quanto às mudanças ocorridas entre os dois tomos, um último aspecto a ser sublinhado é o ajuste no recorte temporal do projeto. Conforme notamos pelos subtítulos dosDiccionarios houve um deslocamento do marco 1750-1850 para 1770-1870. Fernández Sebastián justifica que havia uma certa insatisfação entre vários participantes do projeto com o ponto de partida em 1750, visto que, em geral, as transformações político-conceituais no mundo ibérico só chegaram a adquirir maior intensidade nas últimas três décadas do setecentos. Grosso modo , o novo marco inicial coincide com o momento auge da versão ibérica da Ilustração, bem como as chamadas reformas borbônicas e pombalinas, respectivamente, nas monarquias intercontinentais hispânica e lusa. Por outro lado, o encerramento da pesquisa em 1850 deixava em aberto processos cujo desenvolvimento pleno só ocorreria anos depois, com a implementação de novas instituições liberais e republicanas na maioria dos Estados-nações surgidos após a desintegração de ambos os impérios (DPSMI, Tomo II, Vol. 1, p. 32).
A leitura dos verbetes do novo Diccionario deixa claro que ao longo dessa periodização secular (1770-1870), os ritmos de mutação conceitual não chegavam a coincidir em todos os territórios. Contudo, não há como negar que determinados acontecimentos e conjunturas específicas (a exemplo da crise aberta pela invasão napoleônica na península ibérica em 1807/1808, ou os movimentos constitucionalistas do início da década de 1820, decisivos para as independências), quando observados em conjunto, evidenciam que entre os coevos despontava uma nova consciência temporal que ensejava redescrições conceituais “futurocêntricas”, ainda que o horizonte de expectativas oscilasse entre perspectivas positivas e negativas. Nesse sentido, Guillermo Zermeño observa, na síntese transversal do conceito revolução,que depois de 1820 consolidou-se a ideia de “revolución como cambio de orden irreversible” ao mesmo tempo em que “el futuro se vulve incierto e irreconocible”. Foi a partir desse momento, segundo Zermeño que emergiu uma filosofia do progresso, embora os agentes políticos da época buscassem sempre – sem êxito – encerrar o ciclo de revoluções, que mais parecia um espiral sem solução definitiva (DPSMI , Tomo II, Vol. 9, p. 46).
Sem sombra de dúvidas, as independências e o vocabulário constitucional a elas associado foram um divisor de águas do ponto de vista das mudanças políticas e conceituais. Como destaca Fernández Sebastián, o Diccionario reforça a tese de que, em poucas décadas, a semântica política de toda a área do Atlântico ibérico ingressou em profundos processos metamórficos. Porém, alerta que interpretar esse período a partir de categorias dicotômicas como tradicional x moderno requer cautela. As concepções e práticas surgidas do “turbilhão revolucionário” (como alguns contemporâneos costumavam chamar) não eliminaram por completo uma série de instituições e marcos interpretativos vigentes. Por mais significativo que fossem as transformações no domínio simbólico daquelas sociedades, cujas raízes culturais e experiências históricas eram em boa medida familiares e compartilhadas, a substituição radical de um universo de representações por outro não ocorreria do dia para noite. Sendo assim, Fernández Sebastián sugere que, para pensar o intervalo de tempo que vai de 1770 a 1870, talvez os historiadores devessem substituir a palavra “revolução” como signo de uma época de rupturas, por “transição”, pois no que concerne aos fenômenos político-semânticos, estes seriam processos complexos de situações híbridas de transição. Nas palavras do próprio autor, “suponen no sólo coexistencia y solapamiento entre ‘lo viejo’ y ‘lo nuevo’, sino algo más importante, paradójico y sutil: procesos complejos a través de los cuales la tradición engendra la novedad” (DPSMI, Tomo II, Vol. 1, p. 40).
Isso é o que ocorre, por exemplo, com o conceito de Estado . Annick Lempérière, no seu ensaio transversal, explica que foi no âmbito da crise decorrente das invasões napoleônicas à península ibérica e das revoluções de independência, que surgem nos mundos iberoamericanos novas concepções acerca do Estado. Segundo a autora, no caso hispânico, a vacatio regis foi condição essencial para que o Estado deixasse de ser visto como objeto de propriedade do príncipe e retornasse à condição de sujeito com direitos e vontade própria. Não obstante, a representação metafórica docorpo , dominante no Antigo Regime, na qual o príncipe era a cabeça e os vassalos em seus distintos estados e estamentos os membros, não sofreu de súbito um abandono; ao contrário, constituiu-se um importante legado para a nova era política (DPSMI , Tomo II, Vol. 3, p. 26). O Estado que se transforma em sujeito (ou seja, que existe sem o príncipe, contudo, que tem poder), projeta uma concepção abstrata de que qualquer comunidade política possa atuar e defender-se no âmbito interestatal frente a outros Estados. É sob esta noção que se operará um conceito pactista de retroversão da soberania aos pueblos ,fundando aquilo que Lempérièrechama de “concepción federalista hispanoamericana del estado”, motor da fragmentação da monarquia espanhola e da formação de novas entidades nacionais (DPSMI , Tomo II, Vol. 3, p. 30).
Assim sendo, chegamos a uma importante questão abordada por Javier Fernández Sebastián na Introdução, e sobre a qual o Diccionario como um todo contribui para pensar: de que forma teria o mundo iberoamericano colaborado para a construção da modernidade? Esta obedeceria a um padrão único de desenvolvimento, ou não? Desde início do Oitocentos, consagrou-se na historiografia a ideia de uma modernidade ideal e normativa centrada nas trajetórias britânicas, francesa e norteamericana, que haveria funcionado como uma espécie de farol para os habitantes das demais regiões do globo, incluindo-se os ibéricos tidos como uma espécie de “não contemporâneos” do avanço civilizacional produzido naqueles países. Assim, supostamente proviria daqueles centros um único repertório conceitual, político e constitucional capaz de produzir em larga escala as transformações dos últimos séculos. Essa visão historiográfica, explica Fernández Sebastián, possuía raízes históricas nas disputas teológico-políticas e nas guerras de religião entre católicos e protestantes desde o século XVI, quando não só a Europa se dividiu em tais disputas como elas se prolongaram para a América. Quando em fins do século XVIII e início do XIX a hegemonia protestante foi reforçada discursivamente pelos ilustres representantes das Luzes, o mundo ibérico se viu excluído do cânone cultural (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, p. 49). Os estereótipos negativos acumulados contra os espanhóis e portugueses acabaram sendo reforçados, em parte, por suas próprias elites político-intelectuais quando estas se defrontaram com a tarefa de “reformar” o império ou fazer “progredir” a nação; ou pelos colonos americanos, que em certos contextos das lutas de emancipação não poupariam críticas à Espanha e Portugal como incapazes de imitar o modelo do “clube das nações civilizadas”, como demonstra João Feres Jr. no ensaio transversal sobre o conceito decivilização (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, p. 98).
Para Fernández Sebastián, não há dúvidas da contribuição do Atlântico Ibérico na construção da modernidade, entendida em linhas gerais como um novo marco simbólico e um novo vínculo social, uma nova legitimidade política, bem como uma nova maneira de vivenciar o tempo histórico (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, p. 30). Compartilhava com os demais quadrantes do mundo ocidental uma espécie de “globalización/atlantizaciónconceptual”, operada mediante um intenso tráfico cultural, de conceitos e experiências políticas, cujas dimensões amplas e multilateral nos permite considerar seu período de transformações como o de autênticasrevoluções atlânticas . Nesse sentido, afirma:
A despecho de tales barreras y estereotipos, todo indica que en la segunda mitad del setecientos el tráfico de lenguajes e ideas se intensificó enormemente en las dos orillas del Atlántico. A este respecto, es oportuno subrayar que el sistema atlántico no es simplemente un plexo de rutas comerciales oceánicas para la circulación de bienes y de personas: junto a los seres humanos y a las mercancías ordinarias, circularon – con especial intensidad durante la era de las revoluciones – muchos libros, periódicos e impresos de todo tipo; y con ellos, argumentos, noticias y conceptos (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, pp. 49-50).
A nosso ver, aqui reside um dos pontos fortes do Iberconceptos em geral, qual seja: sua compreensão do sistema atlântico como um laboratório conceitual de interações recíprocas, sobretudo a partir das últimas três décadas do setecentos e intensificado nas primeiras do Oitocentos com a difusão do vocabulário político-constitucional alimentado pela crise das monarquias ibéricas e os subsequentes movimentos de independência. Nesse contexto, os processos de circulação de ideias e traduções de textos políticos, longe de resultar em alguma forma de homogeneização e unificação semântica dos discursos políticos, na verdade produziu uma diversificação de sentidos que buscavam responder a situações comunicativas variadas e a desafios específicos (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, p. 53). Sendo assim, mais do que pretender esgotar o léxico do mundo iberoamericano entre 1770 e 1870, a base criada pelos Diccionarios (tomos I e II) garante um solo fértil para projetos futuros que busque enveredar por unidades de análise cada vez mais amplas, seja no sentido espacial, social ou linguístico. Nesse último caso, as análises de campos semânticos permeados pelo cruzamento de um conjunto amplo de conceitos, metáforas, linguagens e discursos podem se valer do caminho aberto por este projeto.
Rafael Fanni – Universidade de São Paulo, São Paulo – SP, Brasil. E-mail: rafaelfanni@gmail.com
FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier (Dir.). Diccionario político y social del mundo iberoamericano. Conceptos políticos fundamentales, 1770-1870. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales/ Universidad del País Vasco, 2014. Tomo II, en 10 vols. Resenha de: FANNI, Rafael. Iberconceptos II, 1770-1870: tempos e espaços da “atlantização” dos conceitos. Almanack, Guarulhos, n.10, p. 502-506, maio/ago., 2015.
Às armas, cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823) | José Murilo de Carvalho e Lucia Maria Bastos Pereira das Neves
O recém-lançado Às armas, cidadãos!, organizado por José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcello Basile, vem se juntar a um conjunto de importantes, ainda que escassos, trabalhos de edição crítica de documentos sobre a independência do Brasil, que resultaram em coletâneas, antologias e coleções de textos fundamentais da época. Tal conjunto a que me refiro é composto tanto pela organização de documentos produzidos pelos órgãos oficiais (das Cortes de Lisboa às juntas governativas provinciais e câmaras municipais, passando pelo reinado de D. João VI e a regência de D. Pedro no Rio de Janeiro), quanto por séries de periódicos e obras reunidas de personalidades envolvidas diretamente no processo de constitucionalização do reino luso- americano e sua subsequente emancipação política. Alguns desses títulos, sobretudo aqueles dedicados a documentos de caráter oficial, foram concebidos no âmbito das comemorações do centenário e sesquicentenário da independência do Brasil, a exemplos da obra Documentos para a História da Independência, publicado pela Biblioteca Nacional em 1923, e dos volumes de As Câmaras Municipais e a Independência e As Juntas Governativas e a Independência, ambos publicados pelo Arquivo Nacional em 1973.
As edições críticas e reuniões de fac-símiles publicadas nos últimos anos destacam-se por acompanharem a urgência da promoção de obras que estimulem o debate historiográfico em torno dos temas da construção do Estado e da nação, assim como do surgimento da imprensa e da gestação da opinião pública no Brasil. Nesse sentido, sobressaem as publicações fac-similadas do Correio Braziliense, coordenada por Alberto Dines (2001), do Revérbero Constitucional Fluminense, organizada por Marcello e Cybelle de Ipanema (2005), d’O Patriota, organizada por Lorelai Kury (2007), bem como a reunião da obra de Cipriano Barata, Sentinela da Liberdade e outros escritos, realizada por Marco Morel (2008). Ainda sobre os periódicos, vale lembrar de uma outra leva de edições críticas ensaiada nos anos quarenta pela editora Zelio Valverde; dentre suas publicações destacam-se as organizações do Tamoyo, por Caio Prado Jr. (1944) e da Malagueta, por Helio Vianna (1945).
Pode-se dizer que Às armas, cidadãos!, – aguardado pelos historiadores dedicados ao tema da independência, desde a divulgação do projeto por seus organizadores nos seminários do CEO/PRONEX – segue a tendência acima esboçada. Embora o livro se restrinja aos panfletos manuscritos – um total de 32, “sem dúvida amostra pequena dos papelinhos que circularam na época” (p.22), admitem os autores no texto de apresentação – não deixa de ser uma iniciativa importante frente a um cenário editorial que pouco investe nesse tipo de publicação. Provavelmente, as editoras entendem que os custos de produção e distribuição não sejam rentáveis para o mercado editorial brasileiro, comprometendo, portanto, o alcance de projetos voltados às obras de referência. Em Às armas cidadãos!, a timidez na seleção dos panfletos, não incluindo no volume os impressos que circularam à época em maior quantidade e com número de páginas bem superior aos “papelinhos” manuscritos, deve ser salientada não em detrimento do trabalho realizado – claro, de altíssimo nível e cujo recorte é bem justificado pelos autores, como veremos mais à frente –, mas pelo fato de os panfletos impressos da independência serem ainda de difícil acesso para historiadores de várias partes do país e também estrangeiros.
Assim, deve ser sublinhado que as historiografias a respeito das independências ibero americanas, incluindo evidentemente o Brasil, passam por uma profunda revisão de seus marcos estritamente nacionais concebendo a realidade dos antigos impérios ibéricos em suas múltiplas identidades, inseridas numa mesma unidade conjuntural revolucionária internacional e em íntima relação com contextos políticos e intelectuais diversificados e em interação entre si. Tal perspectiva tem uma consequência de mão dupla. Se por um lado a independência do Brasil tem sido abordada menos em função de sua suposta excepcionalidade em relação aos demais movimentos políticos do período, por outro lado, o interesse pelos desdobramentos históricos em seus diversos quadrantes regionais motivam perspectivas comparativas e visões de conjunto que ampliam a demanda por acesso às fontes primárias e produção de obras de referência.
Uma boa parte dos panfletos impressos remanescentes, assim como ocorre com os manuscritos selecionados em Às armas cidadãos!, também são originários da Bahia, do Rio de Janeiro e de Portugal. Não obstante, há registros de panfletos publicados em outros lugares onde existiram tipografias no período, como em Pernambuco e na Cisplatina. Quanto aos da Bahia e do Rio de Janeiro, estes se encontram em maior volume no acervo da Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional e, ao que consta, não foram microfilmados ou digitalizados, como no caso dos periódicos da época, já disponíveis, não totalmente, mas em quantidade razoável, para consulta no site da instituição. Os panfletos impressos chamam a atenção por suas formas variadas: cartas, catecismos políticos, diálogos, discursos, manifestos, memórias, projetos, relatos, orações, entre outros. Alguns já foram incluídos em O Debate político no processo da Independência, organizado por Raymundo Faoro em 1972, e outros podem ser encontrados disponíveis em formato PDF nos sites do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e da Biblioteca Nacional de Portugal. Frente a um panorama acanhado, e por não encontrar nenhuma referência explícita no livro de que o projeto de publicação dos panfletos terá continuidade, não poderia deixar de manifestar o incentivo aos organizadores de Às armas, cidadãos! a persistirem com o projeto de publicação dos panfletos da independência estendendo a pesquisa aos impressos e completando, assim, uma lacuna deixada neste volume.
Passadas essas observações iniciais dediquemo-nos à análise do conteúdo do livro propriamente dito. Os 32 panfletos manuscritos transcritos e analisados pelos organizadores no texto de “Introdução” pertencem ao acervo do Arquivo Histórico do Itamaraty sob a classificação Coleções Especiais, “Documentos do Ministério anterior a 1822”, Independência, capitania da Bahia, capitania do Rio de Janeiro e diversos (documentos avulsos) (p.21-22). Os documentos reunidos foram numerados e divididos em quatro partes correspondentes aos locais onde foram produzidos: Bahia, Rio de Janeiro, Portugal e os de origem não identificada. Quanto ao critério de seleção dos manuscritos, os organizadores reafirmam a opção pelos papéis que “contivessem crítica ou sátira política, tivessem ou não sido colados em paredes, postes ou nos muros das igrejas” (p.23), portanto, excluindo os escritos oficiais encontrados nas pastas do arquivo, à exceção de uma proclamação, a qual comentaremos abaixo. Uma “Nota editorial” informa que todos os documentos foram transcritos atualizando-se a ortografia, mantendo-se a pontuação original da época e corrigindo-se a grafia quando necessário. Além do mais, foram inseridas notas explicativas sobre indivíduos, datas, expressões e termos típicos citados nos panfletos, que auxiliam na compreensão da conjuntura e do vocabulário político do período. Por fim, um outro suporte à leitura dos documentos selecionados é a excelente “Cronologia” incluída no final do livro, na qual os eventos ocorridos na Bahia e no Rio de Janeiro ganham maior destaque.
Cada transcrição é antecedida da reprodução do original, de modo a manter no texto “o sabor de época” (p.33) e, assim, convidar o leitor a dimensionar como tais panfletos eram expostos e debatidos pelo público. A esse respeito, destaco dois panfletos da Bahia. O primeiro, de número 14, intitulado Meu Amigo, apesar de não mencionar o ano de redação, possui um registro informando o dia em que foi arrancado, 14 de fevereiro. Tal registro é um sinal explícito de que muitos “folhetos” eram afixados em locais públicos das cidades a fim de dar ampla divulgação aos projetos e ideias surgidas no bojo dos debates sobre a constitucionalização do reino o que, fatalmente, os tornavam alvos do controle dos órgãos de governos locais que temiam as agitações populares. Aqui, percebemos como os espaços de sociabilidades eram invadidos por práticas representativas de uma nova ordem política.
O outro panfleto, de número 12, é o único de caráter oficial incluído no livro, como já dito. Os organizadores justificam sua incorporação pelo fato de ele ter sido divulgado à moda dos bandos do Antigo Regime. Trata-se de uma proclamação redigida em 1823 pelo brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo, governador das armas da Bahia que, ao constatar a “Província revolucionada”, declarava seu estado de sítio, bloqueava a capital transformando-a em “Praça de Guerra” e determinava sob seu nome todas as competências e poderes da Lei. Tudo isso era levado ao público, segundo o brigadeiro, ao “Som de Caixas pelas ruas e praças públicas” da cidade a fim de fazer chegar a notícia a todos, de modo que “ninguém possa alegar ignorância” (p.97). Neste caso, de forma aparentemente contraditória, o uso de uma forma de comunicação, como o som dos bandos, não significa pura e simplesmente a reprodução de práticas políticas típicas do Antigo Regime, mas a sujeição dessa forma às pressões exercidas pela reconfiguração da funcionalidade dos espaços públicos. Portanto, ambos os panfletos são amostras do quanto as formas de interação social e política se transformavam naquele período, sobretudo porque amplas camadas da população eram expostas ao debate público, embora o alcance dessas práticas entre os sujeitos sociais ainda necessite ser melhor investigado, possibilitando a “intervenção do indivíduo comum na condução dos destinos coletivos” (p.9), e assim permitindo que as opiniões ganhassem força.
É sob este aspecto que os organizadores de Às armas, cidadãos! justificam a publicação dos panfletos manuscritos e, ao mesmo tempo, traçam a distinção de linguagem destes em relação aos impressos. Os panfletos, sejam manuscritos ou impressos, “transformaram-se em instrumentos eficazes de promoção do debate e, mais ainda, da ampliação de seu alcance, graças à prática de leitura coletiva em voz alta” (p.9), não obstante o estilo mais simples dos folhetos manuscritos chamem a atenção. Dentre outras coisas, caracterizavam-se por motivações mais imediatas e voltadas a despertar as emoções de uma audiência motivando antipatias em relação a determinadas personalidades ou convocando a população à ação política direta. Um dos alvos prediletos dos panfletários era Tomás Vilanova Portugal, ministro de D. João VI, defensor da manutenção da Corte no Brasil e opositor radical dos revolucionários do Porto. No “Panfleto 23”, o ministro encabeçava a lista de nomes de pessoas que deviam ser presas na intenção dos eleitores do novo governo do Rio de Janeiro que circulou em 1821. E no “Panfleto 24”, num poema sem data, seu autor, “um Amante da Pátria”, recomenda ao ministro que ele fizesse chegar ao rei aquele ultimato em versos: “Assina a Constituição / Não te faças singular, / Olha que a teus vizinhos / Já se tem feito assinar. / Isto não só é bastante, / Deves deixar o Brasil, / Se não virás em breve / A sofrer desgostos mil.” (p.170).
Já os impressos, via de regra, destacam-se por desenvolver argumentos e interpretações mais complexas e buscarem, com certo grau de didatismo político, esclarecer e/ou convencer a opinião pública a se posicionar a favor ou contra determinado princípio ou projeto político em debate. A linguagem dos panfletos manuscritos é, com frequência, mais violenta e contundente, as vezes grosseira, como ocorre no “Panfleto 26”, em que o autor de um poema português relata a entrada em Lisboa, após viagem ao Brasil, de William Carr Beresford, militar britânico que comandou o exército português na luta contra os franceses e que exerceu durante a regência um grande poder. Já no título, o sarcasmo: “Obra nova intitulada entrada do careca pela barra”. E na sequência, insultos direcionados ao militar e aos brasileiros: “Tornastes a voltar filho da Puta / Do País das araras, e coqueiros / Oh mal haja os Bananas Brasileiros / Que vivo te deixaram nessa luta” (p.182). Esse tipo de afronta, em certo sentido, contrasta com a prudência com que falavam e agiam boa parte das vezes os redatores dos periódicos e panfletos impressos, em sua maioria, homens instruídos – negociantes, bacharéis, clérigos e militares. Para os organizadores, esse fato se explica em parte pela origem popular dos papéis manuscritos e pela precária liberdade de imprensa vigente à época, que proibia a veiculação de certas informações nas tipografias oficiais e particulares (p.24).
Nesse sentido, em Às armas, cidadãos! os aspectos formais que distinguem os panfletos também são representativos das assimetrias sociais existentes entre os partícipes do movimento político, pois “se os panfletos impressos da mesma época revelam intenso debate político entre letrados em torno dos grandes problemas do momento, os manuscritos sobressaem pela revelação das ruas na ‘guerra literária’ da constitucionalização e da independência” (p.31). Ao sublinhar tais diferenças o livro abre um diálogo com as pesquisas dedicadas à amplitude social dos envolvidos nesse processo histórico, o que é bastante louvável. Por outro lado, a não inclusão dos panfletos impressos, como ressaltamos ao longo da resenha, prejudica uma visão de conjunto sobre a documentação e a amplitude de outros temas por ela suscitados. De todo modo, Às armas, cidadãos! apresenta resultados já expressivos, mas quiçá pode ser considerado ainda em desenvolvimento.
Rafael Fanni – Mestrando em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), E-mail: rafaelfanni@usp.br
CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das; BASILE, Marcello Otávio de Neri Campos (Orgs.). Às armas, cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). São Paulo / Belo Horizonte: Companhia das Letras / Editora UFMG, 2012. FANNI, Rafael. A força da opinião: panfletos manuscritos na independência do Brasil. Almanack, Guarulhos, n.5, p. 199-202, jan./jun., 2013.