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Canudos: novas trilhas / Roberto N. Dantas
Roberto Nunes Dantas / Foto: TV Uneb /
Livro e vídeo Canudos: novas trilhas foram lançados em Sergipe, ano passado. Ambos, resultado do projeto “Cenários e Caminhos Históricos da Guerra de Canudos: Novas Trilhas” coordenado pelo professor Roberto Dantas, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), com o patrocínio da Petrobrás. Por uma feliz coincidência, veio da Bahia, Estado adotado por José Calasans Brandão da Silva, aracajuano falecido em 28 de maio de 2001, que era um grande, senão um dos mais competentes pesquisadores da Guerra de Canudos. Na década de 1950, Calasans revolucionou a interpretação do conflito ocorrido no sertão baiano em 1896/1897, propondo sua releitura a partir do folclore, da oralidade dos sobreviventes e de outras fontes alternativas a obra euclidiana, Os Sertões, de 1902.
Assim, no decênio da morte de José Calasans, assistimos a estréia de uma perspectiva inovadora na cartografia da maior guerra civil da História do Brasil. Do que estamos falando? “Canudos: Novas Trilhas” desvela o trajeto das quatro expedições militares que marcharam para destruir o Arraial do Belo Monte, em Canudos. Em resumo: Primeira Expedição, comandada pelo tenente Manoel da Silva Pires Ferreira, reuniu efetivo de 110 homens e partiu de Juazeiro; Segunda Expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, reuniu efetivo de 561 homens e partiu de Monte Santo; Terceira Expedição, coordenada pelo comandante Moreira Cesar, com efetivo de 1200 homens, partiu das bases de Queimadas e Monte Santo; Quarta Expedição, teve o comando do General Artur Oscar de Andrade Guimarães e reuniu batalhões de 16 estados, quase 10.000 homens, seguindo para Canudos em duas colunas, uma saindo de Monte Santo, outra de Aracaju, Sergipe.
O mérito do projeto vertido em livro “Canudos: Novas Trilhas” foi o de mapear trilhas e lugares de bivaque, estada das tropas, a partir dos documentos e obras de referência. Mas o trabalho não foi realizado somente no Arquivo do Exército, Biblioteca Nacional, Núcleo Sertão – UFBA, CEEC (Centro de Estudos Euclydes da Cunha – UNEB) dentre outros; a equipe foi a campo e, ao passo que produzia aos registros imagéticos (áudios-visuais e fotográficos) empreendeu ao georeferenciamento dos antigos caminhos, desbravando a caatinga, enfrentando alagados, cercas, cancelas, entrevistando e cooptando guias. Dessa forma, visando cumprir seus intentos, o projeto incorporou o geoprocessamento, ou seja, a área do conhecimento que surgiu em meados do século XX e utiliza técnicas matemáticas e computacionais para tratamento da informação geográfica. E assim, combinando dados do Sistema de Informação Geográfica (GIS) e do receptor GPS (Sistema Global de posicionamento), chegou ao produto ora resenhado.
A execução do projeto permitiu ratificar o que dizem as fontes documentais e cartográficas do século XIX; retificar lugares a partir do georefenciamento e dos testemunhos coletados e, ainda, suscitar temas atinentes ao assunto. Sobre último ponto, oportuno tratar da passagem por Sergipe da chamada Coluna Savaget.
A partir do dia 27 de abril de 1897, a Coluna Savaget reuniu em Aracaju seis batalhões (12º, 26º, 32º, 33º, 34º e 35º), iniciando a marcha no dia 22 de maio. Na capital sergipana os batalhões se arrancharam no mercado, no quartel de 1º Linha e no 26º Batalhão. Em São Cristóvão uma parte aquartelou-se no Convento São Francisco, a outra, na Colônia de Patrimônio. A principal polêmica em debate foi quanto à localização da Colônia de Patrimônio. Alguns autores afirmam que o antigo Engenho Patrimônio, onde foi implantada a dita colônia, funcionou no atual Centro de Ensino Técnico Federal de São Cristóvão (IFES). Outros asseveram que a Colônia de Patrimônio funcionou na Tebaída, mais precisamente na fazenda onde religiosos fundaram a Escola Salesiana, em 1902. Mesmo oferecendo as duas opções para análise dos pesquisadores, a última probabilidade agiganta-se diante de nossos estudos e reflexões.
Tópico referente a São Cristóvão, que poderíamos suscitar, independente de não figurar na obra, é a localização do sobrado do Capitão Antônio Miguel do Prado.
Nele, o general Savaget, juntamente com Serra Martins e “todo o Estado-Maior” ficou hospedado. O imóvel não foi identificado e os atuais proprietários de sobrados na cidade desconhecem o fato.
Quanto ao alojamento das tropas no Convento São Francisco, um incêndio ficou registrado do Livro de Tombo paroquial. Consta que o acidente ocorreu por descuido de um soldado ali aquartelado e não fosse o socorro da comunidade ganharia dimensão catastrófica.
Não se deixe enganar, leitor, com o subtítulo “novas trilhas”. A novidade do trabalho se acha no equipamento utilizado para acender as antigas trilhas que conduziram as tropas a Canudos. O projeto revelou a impossibilidade de fazer das trilhas de Canudos um roteiro turístico, como propôs José Calasans em 1996, na conferência ministrada no Encontro de História da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Cercas e cancelas foram transpostas pela equipe visando efetivar a missão. Por uma questão interdisciplinar e salutar para sustentabilidade da ação de extensão universitária, Fernanda Groba e Débora Menezes propuseram então o Roteiro Turístico Sertanejo que terá na cidade de Monte Santo base de explorações de conhecimento.
O texto de parágrafos longos, coesos e rebuscados constitui um item positivo. Apenas um esclarecimento deve servir para sua reedição: “exagerado numerário do efetivo” (p. 46); dicionário explica que numerário é “moeda, respeitante a dinheiro”, (p. 1422).
Georeferenciados os caminhos e lugares que demandaram o antigo Arraial do Belo Monte; definido e planejado o piloto do Roteiro Turístico Sertanejo, sediado em Monte Santo, a obra encerra a pauta e etapa do projeto cultural. Rodrigo Moate observa que “geograficamente, a Guerra de Canudos foi um dos conflitos de grande dimensão territorial” (p. 62), aproveito para sugerir, na órbita da cartografia canudense, o rastro do beato Antônio Conselheiro enquanto etapa a vencer no próximo esforço. O Conselheiro peregrinou pelos sertões do Ceará, Sergipe e Bahia, tendo arrebanhado fiéis por onde passou. Então? Vida longa ao projeto Caminhos e Cenários da Guerra de Canudos: novas trilhas!
José Thiago da Silva Filho – Especialista em História Cultural pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), sócioefetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), membro do Grupo de Estudos História Popular do Nordeste (GEHPN/CNPq), diretor do Museu Histórico de Sergipe (MHS/Secult). E-mail: thiagofragata@gmail.com
DANTAS, Roberto Nunes (Coord.). Canudos: novas trilhas. Salvador, 2011. Resenha de: SILVA FILHO, José Thiago. Embornal, Fortaleza,v.2, n.3, p.1-2, 2011. Acessar publicação original. [IF].
Fear & Memory in the Brazilian Army & Society – SMALLMAN (RBH)
SMALLMAN, Shawn C. Fear & Memory in the Brazilian Army & Society. Chapel Hill & London: University of North Carolina Press, 2002, 265p. Resenha de: IZECKSOHN, Vitor. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.50, july/dec. 2005.
A influência do exército na política brasileira se estende da segunda metade do século XIX até o início da década de 1980. A abrangência das intervenções militares esteve sujeita a debates intermináveis, a maioria dos quais procurou explicar as causas do golpe militar de 1964 e os 21 anos de ditadura que se seguiram por meio dos conflitos do final do período monárquico, especialmente a chamada “Questão Militar”. Para isso muitas vezes procurou-se encontrar as raízes da intervenção militar, que foram identificadas em aspectos particulares da vida da instituição, destacando-se aí os estudos sobre a formação educacional dos oficiais e as pesquisas sobre suas alianças com os aliados civis, em geral aqueles incompatibilizados com a democracia.
Os arranjos internos e informais que moldaram boa parte do comportamento dos oficiais não constituíram um tema central para os historiadores da instituição. O livro em questão tenta preencher essa lacuna. Fear & Memory in the Brazilian Army & Society, do historiador norte-americano Shawn C. Smallman, baseia-se na utilização de fontes manuscritas inéditas e em entrevistas com militares de facções diferentes, buscando enfatizar o papel desempenhado pelas estruturas informais que moldaram ambos: o comportamento político do exército e a versão institucional de sua história. O autor define essas estruturas como “as regras não escritas, organizações, convicções e crenças que moldam o poder sem sanção oficial ou recursos governamentais” (p.5).
Smallman analisa a gênese e a consolidação das estruturas informais durante o período de 1889 a 1954. Partindo de uma posição secundária durante a maior parte do período monárquico, o exército pôde derrubar o regime e proclamar uma República em nome da ordem e do progresso. Apesar do seu papel proativo no golpe de 1889, faltou ao exército, durante décadas, um programa claro para unificar facções diferentes em torno de algumas demandas básicas. Essa debilidade institucional tornou a luta para manter o controle hierárquico sobre os soldados, suboficiais e oficiais rebeldes uma tarefa muito mais violenta e personalizada do que normalmente se supõe. De fato, na falta de uma ideologia militar consistente, influências externas, divergências pessoais e divisões políticas constantemente debilitaram a realização dos procedimentos formais, sujeitando o exército à instabilidade. Smallman argumenta que, em resposta a essa vulnerabilidade, aqueles que ocuparam o topo da hierarquia constantemente empregaram a violência, a tortura e o suborno para controlar a instituição.
Os procedimentos que possibilitaram à hierarquia forjar sua própria versão da memória institucional do exército devem muito ao medo e à prática do esquecimento. Muitos episódios de violência, assim como acusações de corrupção, foram apagados da história oficial. Outros episódios, como a revolta de 1935, foram convenientemente manipulados para justificar os meios brutais de punição das facções derrotadas. Outros ainda, como a repressão sistemática aos membros da facção nacionalista, desapareceram dos registros.
O livro contesta a visão de um exército unido e coeso, deixando clara também a extensão de preconceito racial no interior da instituição. De acordo com Smallman, desde a década de 1920, foram poucas as oportunidades para a ascensão de suboficiais, um caminho que contrasta com a situação dos primeiros anos da República. Além disso, negros, judeus e outras minorias foram sistematicamente discriminados nas seleções para o oficialato. As evidências apresentadas vão contra o discurso histórico/institucional que vê o exército como um oásis para as boas relações entre brasileiros de todas as classes, cores e credos.
Outro ponto polêmico tratado pelo livro é a caracterização de relações pessoais como o recurso fundamental para a construção de alianças e a formação de grupos políticos. Este aspecto é particularmente bem delineado na descrição do processo em que a hierarquia passou de uma posição estatista, calcada na defesa do papel proativo do Estado na atividade econômica, para um posicionamento mais internacionalista no decorrer da década de 1940, no rescaldo da aliança militar com os Estados Unidos (capítulos 3 e 4). Partindo de uma pesquisa minuciosa em fontes primárias, ancorada a uma síntese bem feita da literatura, Smallman demonstra que o pragmatismo e as alianças pessoais foram geralmente muito mais essenciais à formação de facções que a identificação ideológica ou um sistema de convicções. De fato, os oficiais do exército eram menos dependentes das conexões políticas externas que os civis trabalhando em posições estatais, mas esta situação, por si só, não constituiu um antídoto contra um nível alto de clientelismo endógeno. Nem o exército foi uma instituição total, isto é, fechada em si mesma e dotada de uma mentalidade inteiramente independente do contexto externo, nem os seus procedimentos funcionais conseguiram ser inteiramente burocratizados.
O ponto central do livro é o destaque dado ao papel da corrupção no estabelecimento de vínculos pessoais entre os altos escalões da hierarquia, a alta burocracia e os interesses empresariais. A corrupção militar sempre foi tolerada pelas elites civis, na medida em que era vista como uma fraqueza que poderia ser funcional para a subordinação do exército. Porém, a ascensão de oficiais para posições estratégicas nos empreendimentos estatais aumentou a escala da corrupção, reforçando as ligações entre esses oficiais e setores da comunidade empresarial. A instituição de tribunais especiais e o uso habitual da coação, freqüentemente imobilizaram qualquer tentativa de investigação, tornando a corrupção uma atividade segura para os oficiais que estavam no topo da carreira. Neste aspecto particular, o livro poderia ter discutido um pouco mais as relações entre as facções militares e os partidos políticos estabelecidos durante o regime de 1946. Isto teria permitido um melhor delineamento entre a corrupção propriamente dita e o acesso a posições de poder na estrutura estatal, especialmente a presidência e as diretorias de autarquias. Talvez não fosse o propósito do autor vincular esses aspectos às estruturas externas, mas o exército não se encontrava num vácuo e um pouco mais de debate sobre as conexões não prejudicaria sua argumentação, mesmo que o objetivo continuasse sendo o de manter o foco nos condicionamentos internos e na coesão do grupo. Mais atenção para a política nacional teria reforçado os aspectos informais particulares da instituição durante esses anos cruciais, contrariando tendências tradicionais que minimizam a importância da experiência democrática de 1946. Qual foi o papel da politização das facções nas disputas internas entre os nacionalistas e internacionalistas? Como esses oficiais percebiam o seu papel como coadjuvantes nas disputas político-partidárias da época? A simples redução da competição às polaridades da guerra fria não é capaz de dar conta da extrema complexidade política do período, da qual a corporação não se encontrava alheia.
Fear & Memory fornece uma descrição detalhada sobre as motivações dos oficiais do exército durante a segunda metade do século XX. A arqueologia das estruturas informais presta especial atenção para as reordenações internas no intuito de explicar a ação militar, mostrando que a amnésia coletiva permaneceu como a política oficial do exército durante anos. O trabalho localiza os sinais de descontentamento do exército na Guerra do Paraguai, analisando a política da instituição ao longo do processo que desembocou no envolvimento com a modernização autoritária e com o anticomunismo feroz das décadas de 1940 e 1950. Nessa perspectiva, a violência sistematicamente empregada contra os civis durante a longa ditadura 1964-1985 teria sido primeiramente gestada no interior da própria instituição, através de uma ação de contenção sistemática dos soldados e dos dissidentes. Vale perguntar se a pesquisa precisaria descer a um passado tão distante quando seu foco estava concentrado nos anos 40. A ênfase na longa duração nem sempre é compatível com a análise da estrutura de alianças pessoais e do oportunismo individual, enfatizados pelo autor, e acaba reproduzindo a tendência tradicional de buscar as origens da crise na Questão Militar.
Apesar destas ressalvas, o livro apresenta perspectivas novas para o estudo de muitos aspectos internos da instituição, mostrando que a complexidade dos eventos pode ser deslocada muitas vezes para as paixões e motivações pessoais, sinalizando para a importância do desígnio humano na análise dos obstáculos que esse setor da burocracia estatal estabeleceu para impedir o exercício pleno da democracia.
Vitor Izecksohn – Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ.
[IF]The Paraguayan War (1864-1870) | Leslie Bethell || História do Cone Sul | Amado Luiz Cervo e Mário Raport || A guerra contra o Paraguai | Júlio J. Chiavenato || A espada de Dâmocles: O exército/ a guerra do Paraguai e a crise do Império | Wilma Peres Costa || A Guerra do Paraguai | Francisco Doratioto || Guerra do Paraguai: como construímos o conflito | Alfredo da Mota Menezes
Até onde as relações entre os Estados processam-se em virtude do confronto dos interesses independentes de cada um deles? Em que medida a História de um povo ou de um conflito pode ser pensada como um contexto autônomo frente ao contato com outras nações? As respostas para estas perguntas são múltiplas, mas, divergentes ou não, há algo que as torna semelhantes: a cada forma de contar a História das relações internacionais corresponde um projeto – pessoal ou mais comumente coletivo , de manter ou de transformar a situação atual da convivência entre os povos. Em outras palavras, o conhecimento produzido sobre o mundo não costuma estar desvinculado de um conjunto específico de interesses.
O tema da Guerra do Paraguai é perfeito para explicitar essas questões. Realmente, diversas pesquisas têm sido realizadas recentemente sobre o assunto e isso não é por acaso, já que aquele conflito representa um divisor de águas na história do Cone Sul. Numa época em que a globalização e o Mercosul dão o tom dos debates políticos e acadêmicos envolvendo o relacionamento dos países sul-americanos, discutir as origens da guerra e o real peso de influências externas ao sub-continente nas mesmas torna-se um exercício fundamental. Leia Mais