Diálogos suburbanos: Identidades e lugares na construção da cidade | Joaquim Justino dos Santos, Raffael Mattoso e Teresa Guilhon

Pensar a construção da cidade a partir de seus espaços de exclusão social e marginalização das populações pobres, eis aqui o objetivo central e transversal da obra organizada em conjunto pelos pesquisadores e professores Joaquim Justino dos Santos, Rafael Mattoso e Teresa Guilhon e que conta com colaborações de diversos profissionais e estudiosos dos subúrbios cariocas, oriundos, esses últimos, dos mais variados campos de estudo e atuação profissional. Antes de começarmos a destrinchar a obra, gostaríamos de apresentar um pouco da trajetória dos idealizadores desse projeto. Joaquim Justino dos Santos é formado em História pela UFF, mestre e doutor em Urbanismo pelo PROURB/FAU-UFRJ, tendo atuado durante vários anos como gestor público; Raffael Mattoso é formado em História pela UFRJ, mestre em História Comparada pelo PPGHC-UFRJ, doutorando em História da Cidade pelo PROURB-UFRJ e professor das redes pública e privada do Rio de Janeiro; e, Teresa Gilhon é formada em Comunicação Visual pela UFRJ, mestre em Bens Culturais e Projetos sociais pela FGV e é atualmente pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos Urbanos do Centro de Pesquisa e Documentação de História Comparada do Brasil (CPDOC). Além de artigos de alguns dos organizadores, a obra ainda traz colaborações de professores, arquitetos, geógrafos, historiadores e cientistas políticos. Com relação aos autores, destacaremos aqui apenas suas áreas de formação, a fim de clarearmos um pouco o local de fala dos respectivos colaboradores. Ressaltamos de antemão que, o caráter interdisciplinar, presente nesse empreendimento, não se dá apenas pela filiação intelectual e profissional de seus produtores, como também pela série de enfoques, conceitos e métodos que são empregadas nas construções das narrativas sobre os subúrbios cariocas. Leia Mais

A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente – YOUNG (SY)

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, 3ª reimpressão, 2015. Resenha de:  CORDAZZO, Karine; PREUSSLE, Gustavo. Synesis, Petrópolis, v.9, n.2, p.112-124, ago./dez., 2017.

Jock Young, sociólogo e criminologista, aborda na obra “Sociedade excludente: Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente”, primordialmente os aspectos fundantes da transição da sociedade inclusiva para a sociedade excludente.

A sociedade inclusiva remonta ao período dos “anos dourados” na Europa, e na América do Norte do pós-guerra. Tratava-se de um mundo de pleno emprego, incorporação gradual da classe trabalhadora, entrada mais plena das mulheres na vida pública e no mercado de trabalho, bem como à tentativa dos Estados Unidos em criar uma igualdade para os afro-americanos.

Nesta sociedade inclusiva, o trabalho e a família eram os pilares centrais, encaixando-se como num sonho funcionalista. Em parte alguma desenvolveu-se uma sociedade tão inclusiva, cingindo o cidadão do berço ao túmulo, insistindo na cidadania social plena. (YOUNG, 2002, p. 21)

No tocante à criminalização, a sociedade inclusiva não excluía o “outro”, não o catalogava como um inimigo, mas o enxergava como alguém que devesse ser reabilitado, socializado, curado até ficar como “nós” (YONG, 2002, p. 21). Em verdade, na visão modernista, o outro aquele a quem faltava os atributos do observador.

Entretanto, o sonho de uma sociedade inclusiva e tradicional da família e da comunidade começou a desmoronar. Ao longo dos anos 1980 e 1990, no bojo daquela sociedade utópica, figurou um período de extremo declínio, culminando em um processo de exclusão social. Notadamente, trata-se da transição da modernidade para a modernidade recente, ou seja, a transição de uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente.

Segundo Young, alguns fatores contribuíram para que esta exclusão fosse implementada, como por exemplo, a economia de mercado, que trouxe um salto qualitativo nos níveis de exclusão. O downsizing da economia acarretou a redução do mercado de trabalho primário, expansão do mercado de trabalho secundário e a criação de uma subclasse de desempregados estruturais. (YOUNG, 2002, p. 24)

O trabalho seguro e qualificado foi reduzido, dando lugar à força de trabalho terceirizada, mediante contratos curtos, sem qualquer estabilidade ou vínculo empregatício. O grande efeito deste processo de exclusão, foi, inevitavelmente, gerar um sentimento de precariedade em todos os trabalhadores.

Essas frustrações, afirma o autor, conscientemente são expressas sob forma de privação relativa. Trata-se da frustração daqueles a quem a igualdade no mercado de trabalho foi recusada face àqueles com mérito e dedicação iguais. Eis aqui o paradoxo do novo individualismo para Young. A insatisfação face à situação social pode dar lugar a uma variedade de respostas políticas, religiosas e culturais e, frequentemente, fechar e restringir as possibilidades criando respostas criminais. (YOUNG, p. 30)

Nesse contexto, o aumento da criminalidade é evidenciado, afinal a criminalidade emerge da inflamável combinação de privação relativa e individualismo. Ocorre que este aumento rápido da taxa de criminalidade refletiu nas transformações dos comportamentos e atitudes públicos no desenvolvimento do aparato de controle do crime e da criminologia, alimentou o medo público do crime e gerou padrões elaborados de comportamento de evitação. E, consequentemente, resultou num aumento da população encarcerada.

Young expõe alguns dados. Nos Estados Unidos, por exemplo, os presos constituem uma população excluída significativa, cerca de 1,6 milhões de pessoas estão presas – uma cidade do tamanho de Filadélfia, se fossem todas reunidas no mesmo lugar –. Além disso, 5,1 milhões de pessoas estão em regime de supervisão correcional (prisão, condicional ou sursis), um em cada 37 adultos da população adulta residente. Young compara dramaticamente a situação prisional norte americana com o gulag1, em que este gulag americano seria agora do mesmo tamanho do gulag russo, e ambos contrastariam com a situação da Europa Ocidental, em que a população carcerária total seria de 200 mil pessoas.

Após estas reflexões iniciais, Young indaga aos seus leitores a respeito da existência de uma possível distopia de exclusão, onde as divisões e desigualdades ocorreriam não apenas entre nações, mas no interior das próprias nações.

A modernidade recente, ou sociedade excludente, pode ser identificada através de um núcleo, de um cordão sanitário e pelas pessoas que estão de fora.

O núcleo corresponde aos que pertencem ao mercado de trabalho primário, aqueles que trabalham em tempo integral, com estruturas de carreiras seguras e sólidas. Aqui é o reino da meritocracia. No entanto, trata-se de um núcleo que encolhe sem parar. A parte que mais cresce do mercado de trabalho é a do mercado secundário, em que a segurança no emprego é muito menor, em que as estruturas de carreira estão ausentes e a vida é experimentada como precária. (YOUNG, 2002, p. 40)

Também é possível visualizar o chamado cordão sanitário, uma fronteira criada entre o grupo nuclear e os que estão fora deste grupo, através de uma série de medidas, pelo planejamento urbano e, principalmente, pelo dinheiro. Já os que estão fora, são grupos que viram bodes expiatórios para os problemas da sociedade mais ampla. Eles são a subclasse, onde todos os problemas da sociedade lhes são imputados.

Neste contexto, é destacado pelo autor a dualidade do Sonho Americano e do Sonho Europeu. Para Young, é evidente a natureza excludente do Sonho Americano, onde a noção de cidadania enfatiza fortemente a ideia de igualdade legal e política, e muito menos a de igualdade social. Em verdade, o foco está sobre os bens sucedidos. Por outro lado, no sonho Europeu há uma menção à igualdade social, aos direitos de inclusão.

Em que pese a suposta utopia de alcançar o Sonho Americano ou o Sonho Europeu, Young demonstra que o cordão sanitário, que busca diferenciar, afastar e excluir os segmentos mais vulneráveis da população, tem conseguido cada vez menos proteger separar o cidadão “honesto” contra o crime e a desordem em ambas visões. Afinal, a noção de que o criminoso é um inimigo externo está fundamentalmente equivocada. Privação relativa e individualismo ocorrem através de toda a estrutura social e em todos os lugares, a existência de crimes de colarinho branco disseminados e de crimes entre membros “respeitáveis” das classes trabalhadoras mal nos permitem separar os criminosos dos não criminosos. (YOUNG, 2002, p. 45-46)

Para o autor, há relação inequívoca entre as mudanças na criminalidade e desordem com as mudanças na base material. A solução estaria na criação e implementação de políticas que partam da margem e vão tão longe quanto seja aceitável em vez de políticas que partam do centro e vão tão longe quanto seja caridoso.

Encerrando o primeiro capítulo, Young é enfático, a nostalgia social-democrata do mundo inclusivo dos anos 1950, com pleno emprego masculino, família nuclear e comunidade orgânica, é um sonho impossível. (YOUNG, 2002, p. 50)

No segundo capítulo, Young explicita como ocorreu a transformação nos últimos vinte anos no âmbito do crime, do controle da criminalidade e da própria criminologia. Para o autor, existe uma relação linear entre a crise da criminologia com a crise da modernidade. As velhas certezas sobre a natureza óbvia do crime e o papel central do sistema de justiça criminal em seu controle já não são tão obvias assim.

Young aborda cinco fatores, que em sua visão, contribuíram para que a modernidade fosse repensada.

O primeiro fator refere-se ao rápido crescimento das taxas de criminalidade, sustentado no positivismo social de que o crime seria causado por más condições sociais e que foi claramente contradito, afinal, a criminalidade aumentou à medida que o Ocidente enriqueceu.

O segundo fator remonta à existência de uma cifra oculta de crimes não notificados. Com efeito, a taxa de criminalidade seria pelo menos três vezes maior do que os números oficiais apresentam. Esta distinção entre crimes visíveis e crimes invisíveis quase vira de cabeça para baixo o paradigma modernista. Pois sugere que a imagem da criminalidade apresentada nas cifras oficiais seja fundamentalmente defeituosa (YOUNG, 2002, p. 66).

Sob a ótica da problematização do crime – terceiro fator –, Young demonstra como é construída a noção de crime. Em verdade, a quantidade de crime, o tipo de pessoa e de infração selecionados para serem criminalizados, e as categorias usadas para descrever e explicar o desviante são construções sociais, que podem variar de acordo com o tempo e espaço, ou seja, emergem da pura discricionariedade e conveniência do homem em um dado momento histórico. (YOUNG, 2002, p. 67)

Quanto ao quarto fator – que notadamente culminou na desintegração da modernidade –, diz respeito à universalidade do crime e a seletividade da justiça. Tradicionalmente a criminologia vê a criminalidade como se estivesse concentrada na parte mais baixa da estrutura de classes e como se fosse maior entre adolescentes do sexo masculino. No entanto, os crimes de colarinho branco desiquilibraram esta ortodoxia. A seletividade da justiça criminal, por seu turno, ocasiona toda uma série de ações espetaculares de discriminação e preconceito gerando um descontentamento público disseminado quanto à imparcialidade do sistema de justiça criminal.

Isso nos leva à problematização da punição e da culpabilidade – quinto e último fator –. À medida que aumentam os crimes, problemas por trás do processo de criminalização devem ser analisados, como por exemplo, como operar um sistema punitivo com recursos limitados em termos de detecção e isolamento. A reação à isto, como em qualquer outra burocracia, é tentar pegar atalhos. Consequentemente, a polícia deixou de suspeitar de indivíduos e passou a suspeitar de categorias sociais. (YOUNG, 2002, p. 74)

Corrupção, transação penal e seletividade sobre o infrator refletem na problematização da justiça. A justiça que o suposto infrator recebe torna-se resultado, não de uma culpa individual e uma punição proporcional, mas de um processo negociado, resultante de pressões políticas ou burocráticas, e não de obediência a padrões absolutos. (YOUNG, 2002, p. 75)

A partir destas análises Young volta à noção de privação relativa, que surge do fato das pessoas compararem-se umas às outras.  Para o autor, quando os diferenciais se aproximam, as diferenças se tornam ainda mais evidentes. A privação relativa não desapareceu com o crescimento da riqueza, não melhorou com o avanço disseminado da cidadania – ao contrário, foi exacerbada. Mas a privação relativa não explica sozinha o aumento da criminalidade e da desordem a partir dos anos 1960. Ela origina um mal-estar que pode se manifestar de muitas maneiras, e o crime é somente uma delas. (YOUNG, 2002, p. 80)

Há um pensamento predominante, compartilhado pela esquerda e pela direita do espectro político, de que o último terço do século XX foi um período de declínio. No entanto, este declínio nada mais é do que o reflexo do triunfo do mercado.

Young alerta que a sociedade de mercado engendra uma cultura de individualismo que mina as relações e os valores necessários a uma ordem social estável, fazendo aumentar, consequentemente a criminalidade e desordem.

O sistema capitalista exige ordem política e estabilidade econômica, mas a criminalidade não representa grande ameaça, para o autor, sem dúvida alguma, a criminalidade representa uma consequência inevitável de um sistema de mercado livre bem-sucedido.

Superado o segundo capítulo, o autor traz à tona as categorias de inclusão e exclusão elaboradas por Claude Lévi-Strauss. Para Lévi-Strauss, as sociedades primitivas engolem os desviantes e adquirem sua força de trabalho – são antropofágicos –, ao passo que as sociedades modernas – antropoêmicas –, lidam com desviantes vomitando-os, conservando-os fora da sociedade ou inserindo-os em espaços determinados, mantendo-os sob constante supervisão.

Neste contexto, surgem dois termos muito utilizados por Young em toda obra, a dificuldade e a diferença. A combinação do aumento da dificuldade (crime, desordem e incivilidades) com o aumento da diferença (diversidade) resulta em uma mudança qualitativa na sociedade, como também numa mudança no sistema de controle, particularmente pelo crescimento de um sistema atuarial de justiça.

Destarte, haveria um declínio a longo prazo na tolerância, afinal, as sociedades modernas recentes consomem diversidade, elas não recuam diante da diferença, elas reciclam e a vendem no supermercado, o que estão menos inclinadas a suportar é a dificuldade (crime).

Em sentido diametralmente oposto, na modernidade, a ênfase era antropofágica. Criminosos eram reabilitados, viciados em drogas eram tratados, imigrantes assimilados, adolescentes eram ajustados e famílias disfuncionais recebiam aconselhamento para voltarem à normalidade. A modernidade não tinha medo do indivíduo difícil, não era a dificuldade que ameaçava a modernidade, era a diversidade. Sua tarefa foi transformar a diversidade em desvio (YOUNG, 2002, p. 98), ou seja, transformar o diferente em criminoso.

O mundo excludente da modernidade recente começa a mudar tudo isto. A diferença adquire valor supremo, a diferença é livremente reconhecida, aceita e, muitas vezes, certamente exagerada, é a dificuldade que é mais problemática. (YOUNG, 2002, p. 102)

O atuarialismo emerge desse contexto, como o motivo principal do controle social na sociedade moderna recente. A postura atuarial reflete o fato da criminalidade ter se tornado uma parte normalizada da vida cotidiana, onde tanto os crimes como as pequenas incivilidades geram um sentimento de desconforto e insegurança.

Com relação à esta insegurança, Young traz à tona o termo Umwelt, que representa uma proteção que os indivíduos e grupos criam e cercam a si mesmos. Pensemos, exemplificativamente, em uma bolha, e dentro desta bolha estaria inserido o homem, que evitaria ao máximo o contato com o mundo externo. Desta forma, o Umwelt teria duas dimensões, a área em que o indivíduo se sente seguro e confortável e a área em que ele está em guarda, a área de apreensão.

A natureza do Umwelt varia segundo a categoria social, é fortemente baseada no gênero, é marcada pela questão racial e pelas classes. A título de exemplo, o Umwelt representaria como a cultura dominante vê as culturas minoritárias como sinônimo de perigo, criando uma espécie de proteção ou barreira entre elas. Com efeito, o que é visto na modernidade recente, é nada mais que uma diminuição da área de segurança dos indivíduos ao passo que a área de apreensão se expande sem precedentes.

O autor aborda também a existência de uma linha de pensadores que identificam o “medo” do crime como um problema autônomo em relação à criminalidade. (YOUNG, 2002, p. 115). Contudo, o crime é parte e faz um continuum com outras formas de comportamento antissocial. (YOUNG, 2002, p. 116)

Neste contexto, Young acredita que o processo de inclusão e exclusão é que seriam as verdadeiras causas da criminalidade. Com efeito, o crime ocorre quando há inclusão social e exclusão estrutural.

Ao inverter a máxima do positivismo individual, percebe-se que o crime não é resultado de uma falta de cultura, mas da adesão a uma cultura de sucesso e individualismo. Consequentemente, ao recontextualizar o positivismo social, demonstra-se que não é a privação material, nem a falta de oportunidade que dá lugar ao crime, mas a privação no contexto da cultura do “Sonho Americano”, em que se exorta a meritocracia aberta a todos. (YOUNG, 2002, p. 125)

Tudo isso leva de volta a Lévi-Strauss e suas metáforas do antropofágico e do antropoêmico, as sociedades canibais e as sociedades que vomitam os desviantes. Como paradigma de sociedade descontente é a que faça as duas coisas, devora pessoas vorazmente e depois invariavelmente as expele. A ordem social do mundo industrial avançado é uma ordem que engole seus membros. Ela consome e assimila culturalmente massas de pessoas através da educação, da mídia e da participação no mercado. (YOUNG, 2002, p. 125)

No entanto, a crise da modernidade recente não é apenas um reflexo de uma simples exclusão. Em verdade, há um verdadeiro processo bulímico de inclusão e exclusão, onde determinados grupos sociais são incentivados à participarem do sistema capitalista, da sociedade de consumo, dos tênis de marcas, dos carros de luxos, mas, diante da impossibilidade de adentrarem neste círculo de consumo, são excluídos, estigmatizados. Consequentemente, a subclasse reage a essa superidentificação pelo crime, pela criação de gangues e de subculturas criminais. (YOUNG, 2002, p.132)

Sob esta perspectiva, o autor destaca que as diferenças culturais estão diminuindo e não aumentando. Pelo bem ou pelo mal, só uma cultura viceja, a cultura do negócio, do trabalho e do consumo. (YOUNG, 2002, p. 134)

Encerrando o terceiro capítulo, Young afirma que é um erro que a sociedade multicultural seja vista como portadora de uma série de culturas independentes umas das outras. Estes argumentos encontram-se intimamente ligados ao processo de globalização, de que está ocorrendo um processo de imperialismo cultural.

No quarto capítulo, Young aborda o problema da diferença, ou seja, como o indivíduo e a sociedade como um todo lidam com os problemas gerados por uma ordem social mais diversificada.

Segundo Young, o multiculturalismo possibilitaria a diversidade, permitiria que as pessoas fossem elas mesmas e ao mesmo tempo tolerassem o desvio.

No entanto, a retórica progressista que enfatiza a igualdade entre os diversos grupos multiculturais, por exemplo, se transformou na noção de que as pessoas são essencialmente diferentes, de que a diferença deve ser reconhecida e respeitada sob forma de igualdade de tratamento. No entanto, isto se combinou com uma forma de essencialismo, tais diferenças baseavam-se em essências aparentemente fixas e atemporais. (YOUNG, 2002, p. 154)

Para o autor, o essencialismo nada mais é do que uma forma extremada de exclusão, afinal, separa grupos humanos com base na sua cultura ou na sua natureza. (YOUNG, 2002, p.156)

Eis, portanto, a crítica do essencialismo por Young. A noção de que cultura não envolve essências atemporais. As culturas podem mudar rapidamente no tempo se as circunstâncias mudarem. Para o autor, esta hibridação torna-se cada vez mais evidente no período atual de globalização. Portanto, se rejeitarmos esse essencialismo, decorre que teremos que descartar a noção de multiculturalismo que propõe um mosaico de essências fixas, coladas ao seu passado histórico. (YOUNG, 2002, p. 161) Brilhantemente, Young demonstra como a exclusão baseada no essencialismo é requisito necessário para a demonização de parte da sociedade. Notadamente porque permite que os problemas da sociedade sejam colocados nos ombros dos “outros”, em geral percebidos como situados na “margem” da sociedade. Assim, o crime é a moeda forte desta demonização. (YOUNG, 2002, p. 165)

Sendo assim, na modernidade recente, delinquentes escolhem voluntariamente a criminalidade, sem qualquer influência de circunstancias sociais, ou seja, são vistos como a causa de todos os problemas da sociedade, quando na verdade os seus problemas é que são causados pela própria sociedade, que desampara, criminaliza e estigmatiza grupos vulneráveis.

No próximo capítulo, Young adentra na seara da exclusão social proveniente do sistema de justiça criminal, que na modernidade recente, em razão do aumento da criminalidade e da desordem, demandam a criação de soluções rápidas. Neste contexto, Young expõe algumas falácias sobre a diminuição da criminalidade na cidade de Nova Iorque que teria ocorrido entre os anos de 1993 e 1996.

De fato, entre 1993 e 1996, a taxa de criminalidade em 12 de 17 países industriais avançados caiu e várias agências de controle da criminalidade começaram a reivindicá-la para si. Em nenhum lugar tanto quanto na cidade de Nova Iorque a taxa da criminalidade desabou em 36% em três anos.

Um dos motivos atribuídos a este sucesso, seria pela aplicação da política da tolerância zero. No âmbito do policiamento, trata-se de sinalizar intolerância para com incivilidades, de varrer os desvios e a desordem das ruas, lidar com pedintes agressivos, lavadores de para-brisas de sinal, vadios, bêbados e prostitutas. (YOUNG, 2002, p. 182)

Young então desmarcara as afirmações falaciosas acerca da tolerância zero e do sucesso da Polícia de Nova Iorque para com a redução da criminalidade, afinal, afirmava-se que a tolerância zero se baseava na filosofia de “janelas quebradas”, testada em Nova Iorque e que teria levado a uma redução da criminalidade.

Em suma, a única parte verdadeira da equação é redução da criminalidade em Nova Iorque no período de 1993 a 1996. No entanto, Young esclarece que a redução não ocorreu em virtude da implementação de práticas policiais inovadoras do Departamento de Polícia de Nova Iorque, pois, o declínio da criminalidade ocorreu em cidades industrializadas de todo o mundo, muito antes de a expressão tolerância zero tornar-se um chavão internacional. Ademais, o próprio comissário do Departamento de Polícia de Nova Iorque negou explicitamente a implantação de uma política de tolerância zero. Em verdade, a grande mudança foi alterar o foco, de modo a dar mais recursos de polícia a crimes de desordem.

Esta realocação da polícia de um papel central a um mais periférico no controle da criminalidade, produziu uma concordância imediata entre criminólogos de todas as tendências teóricas. Os autores, Wilson e Kelling – da obra “Teoria das janelas quebradas” – perceberam que o controle de pequenos infratores e de comportamentos desordeiros não criminosos era tão importante para a comunidade quanto o controle da criminalidade e que este era, como efeito, o papel original da polícia. Em verdade, o controle das incivilidades seria, por assim dizer, uma partida rápida no sentido da superação da desesperança e da desintegração da comunidade. (YOUNG, 2002, p. 188)

Posteriormente, Young adentra na ideia da falácia cosmética, que concebe a criminalidade como um problema superficial da sociedade, que pode ser tratado, e não como uma doença crônica da sociedade como um todo. A ideia é de que a criminalidade causaria problemas para a sociedade, quando na verdade é a sociedade que causaria o problema da criminalidade.

Young afirma categoricamente que não se pode mais conceber a ideia de manchas cosméticas isoladas, a criminalidade já se espalhou por todo o tecido social, devendo ser abandonada a noção modernista do criminoso distinto, pois, a obviedade quanto ao infrator, como da própria infração, já não se sustentam mais na modernidade recente.

Em verdade, são os problemas estruturais do sistema que produzem as taxas de criminalidade. É necessário não apenas punir os infratores por quebrarem janelas, mas na verdade consertar as janelas. Isto é, empreender um programa de reconstrução social abrangente nas nossas cidades. Tolerância zero à criminalidade deve ser tolerância zero à desigualdade. (YOUNG, 2002, p. 205)

Neste contexto a experiência prisional norte-americana permite evidenciar outro pilar da criminologia da tolerância zero, qual seja, o aumento do uso do encarceramento. Young afirma que se a solução da criminalidade fosse o encarceramento, seria difícil imaginar o tamanho que a população carcerária teria que atingir para realizar o sonho de baixar a taxa Norte-americana a níveis Europeus. (YOUNG, 2002, p. 211)

A única lição a ser aprendida, afirma o autor, é desviar desta linha de punição desvairada, é compreender que se for necessário um gulag para manter a sociedade do vencedor leva tudo, então é a sociedade que precisa ser mudada, e não as prisões expandidas. (YOUNG, 2002, p. 214)

No sexto capítulo, Young demonstra que tanto a sociedade inclusiva dos anos 1960 quanto o mundo excludente dos anos recentes fracassaram. Com efeito, o autor acredita na superação destes modelos através de um novo inclusivismo, ou seja, um mundo que reúna as pessoas, distribuindo a riqueza de maneira justa e nivelada, garantindo, ao mesmo tempo, liberdade e diversidade. O sistema de justiça criminal isolado não consegue manter a coesão social. É para a sociedade civil que temos que nos voltar se quisermos localizar as fontes tanto da coesão como da ruptura na vida social. (YOUNG, 2002, p. 217)

Construir uma sociedade nova, justa e inclusiva demanda duas coisas: distribuição meritocrática das recompensas e uma sociedade que veja a si própria como uma unidade, respeitando ao mesmo tempo a diversidade. (YOUNG, 2002, p. 218)

A partir destas reflexões, Young adentra no sétimo capítulo, destacando como a cidade pode ser um lugar de possibilidades e estímulos intermináveis, mas também um lugar onde as pessoas se preocupam tão pouco umas com as outras que não há por que proibir a diversidade. (YOUNG, 2002, p. 246-247)

A cidade facilita uma variedade de subculturas, pois possibilita a coexistência de diferenças sociais sem exclusão. No entanto, essa diversidade só é possível diante deste cenário de impessoalidade e anonimidade.

A imagem de um mosaico de pequenos mundos que se tocam mas não se interpenetram não corresponde ao mundo moderno recente comum de transposição, globalização, hibridação, em que fronteiras se diluem e transformações ocorrem em todas as direções. (YOUNG, 2002, p. 264)

Nesse ponto, Young volta à noção de privação relativa. Porém, enfatiza o autor, que as pessoas não se sentem relativamente privadas às pessoas do mais alto escalão, mas sim com o homem da porta ao lado. Há uma comparação da posição material do indivíduo com a de outros que, espera-se, deveriam ganhar salários parecidos e ter estilos de vida semelhantes. (YOUNG, 2002, p. 270-271)

Destarte, Young defende a ideia de propagar uma política de meritocracia radical, através da qual, com a abertura do mercado de trabalho para todos, da distribuição equitativa da riqueza refletida no mérito, iniciar-se-ia, finalmente, uma efetiva transformação da sociedade.

No oitavo e último capítulo, Young caminha para o desfecho de sua obra destacando a contradição existente na modernidade recente.

Inicialmente, o autor compara o grande gulag penal construído nos Estados Unidos ao gulag russo. Segundo o autor, não só a violência é moeda corrente na cultura americana, mas também o sistema de justiça criminal, em forma de prisão, condicional e sursis. Com efeito, o gulag prisional americano representa a crise da modernidade recente na mesma medida em que o gulag russo representou um sinal para o mundo da crise da modernidade soviética.

Evidentemente, por trás de toda a frustação fomentada pelo individualismo está o motor do mercado. A globalização contribui com esse sentimento, pois, estimula diuturnamente os indivíduos à compararem uns aos outros, tornando suas vidas uma eterna disputa. De outro lado, há uma demanda de autoexpressão individual, onde o desejo de realização pessoal é obstruído pela real natureza do trabalho e das possibilidades de realização.

Para o autor, a luta por uma nova sociedade inclusiva, pautada em um novo contrato social parece ser a medida mais razoável. Este novo contrato social da modernidade recente não deve apenas prover empregos, mas insistir na meritocracia, deve buscar não apenas prover facilidades de lazer, mas voltar sua atenção para trabalho e lazer significantes, que deem à pessoa um sentido de propósito e identidade. (YOUNG, 2002, p. 288)

Sendo assim, criminalidade e intolerância ocorrem justamente quando a cidadania é anulada. A causa primeira da criminalidade reside na injustiça, e seu efeito inevitável é produzir mais injustiça e violação da cidadania. A solução deve ser encontrada não na ressureição de estabilidades passadas, mas numa nova cidadania, uma modernidade reflexiva capaz de manejar os problemas da justiça e da comunidade, da recompensa e do individualismo. (YOUNG, 2002, p. 290)

Notas

1 Gulag era um sistema de campos de trabalhos forçados para criminosos, presos políticos e qualquer cidadão em geral que se opusesse ao regime na União Soviética.

Referência

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. (Pensamento criminológico; 7), 3ª reimpressão, 2015.

Karine Cordazzo – Universidade Federal de Grande Dourados, Brasil. Mestranda da Universidade Federal de Grande Dourados, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8385110584658796. E-mail: karine.cordazzo@hotmail.com

Gustavo Preussle– Universidade Federal de Grande Dourados, Brasil. Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7966792380099410. E-mail: gustavopreussler@ufgd.edu.br

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[DR]

 

Becos da memória – EVARISTO (REF)

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006. Resenha de: OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. “Escrevivência” em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.2 May/Aug. 2009.

“Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela” (p. 21).

Evaristo, 2006, p. 21.

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. De origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduou-se em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense e da rede privada de ensino superior. É mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. No momento, está concluindo doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense. Em sua pesquisa, estuda as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa. Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros, suporte de que se utiliza até hoje.

Em 2003, veio a público o romance Ponciá Vicêncio, pela editora Mazza, de Belo Horizonte. Seu segundo livro, outro romance, Becos da memória, foi escrito em fins dos anos 1970 e início dos 1980. Ficou engavetado por cerca de 20 anos até sua publicação, em 2006. Desde então, os textos de Evaristo vêm angariando cada vez mais leitores, sobretudo após a indicação de seu primeiro livro como leitura obrigatória do Vestibular da UFMG, em 2007. A escritora participou ainda de publicações coletivas na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sua obra de estreia foi traduzida para o inglês e está em processo de tradução para o espanhol.

A obra em prosa de Conceição Evaristo é habitada, sobretudo, por excluídos sociais, dentre eles favelados, meninos e meninas de rua, mendigos, desempregados, beberrões, prostitutas, “vadios” etc., o que ajuda a compor um quadro de determinada parcela social que se relaciona de modo ora tenso, ora ameno, com o outro lado da esfera, composta de empresários, senhoras de posses, policiais, funcionários do governo, dentre outros. Personagens como Di Lixão, Duzu-Querença, Ana Davenga e Natalina, presentes no universo dos contos publicados nos Cadernos Negros; Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Luandi, Nêngua Kainda, Zé Moreira, Bilisa e Negro Glimério, listados em Ponciá Vicêncio; Maria-Nova (desdobramento ficcional da autora?), Maria Velha, Vó Rita, Negro Alírio, Bondade, Ditinha, Balbina, Filó Gazogênia, Cidinha-Cidoca, Tio Totó e Negra Tuína, de Becos da memória, exemplificam, no plano da ficção, o universo marginal que a sociedade tenta ocultar.

Becos da memória é marcado por uma intensa dramaticidade, o que desvela o intuito de transpor para a literatura toda a tensão inerente ao cotidiano dos que estão permanentemente submetidos à violência em suas diversas modalidades. Barracos e calçadas, bordéis e delegacias compõem o cenário urbano com que se defrontam os excluídos de todos os matizes e gradações, o que insinua ao leitor qual a cor da pobreza brasileira. No entanto, a autora escapa das soluções fáceis: não faz do morro território de glamour e fetiche; tampouco, investe no traço simples do realismo brutal, o qual acaba transformando a violência em produto comercial para a sedenta sociedade de consumo.

Os fragmentos que compõem Becos da memória procuram aliar a denúncia social a um lirismo de tom trágico, o que remonta ao mundo íntimo dos humilhados e ofendidos, tomados no livro como pessoas sensíveis, marcadas, portanto, não apenas pelos traumas da exclusão, mas também por desejos, sonhos e lembranças. Violência e intimismo, realismo e ternura, além de impactarem o leitor, revelam o compromisso e a identificação da intelectualidade afrodescendente com aqueles colocados à margem do que o discurso neoliberal chama de progresso.

Sabendo que é possível à obra (re)construir a vida, através de “pontes metafóricas”, pelo projeto literário de Conceição Evaristo vislumbram-se pistas de possíveis percursos e leituras de cunho biográfico. Na configuração do romance em questão pululam aqui e ali, ora na ficção, ora em entrevistas, ora em textos acadêmicos, peças para a montagem de seu quebracabeça literário e biográfico. Uma das peças desse jogo parece ser a natureza da relação contratual estabelecida entre o leitor e o espaço autoficcional em que se insere Becos da memória. Aqui, a figura autoral ajuda a criar imagens de outra(s) Evaristo(s), projetada(s) em seus personagens, como Maria-Nova, por exemplo. Em outras palavras, processa-se uma espécie de exercício de elasticidade de um eu-central. Desliza-se com facilidade na prosa de Evaristo entre o romance e a escrita de si. Se, tradicionalmente, aquele se preocupa com o universal humano e esta, com o particular ou com o indivíduo, a autora propõe a junção dos dois gêneros, pois, para ela, pensar a si é também pensar seu coletivo. Do ponto de vista formal não é diferente: não se utilizam capítulos, mas fragmentos, bem a gosto do narrador popular benjaminiano. Nessa perspectiva, vê-se o mundo através da ótica dos fragmentos e dos indivíduos anônimos que compõem boa parte da teia social.

Neste livro de corte tanto biográfico quanto memorialístico, nota-se o que a autora chama de escrevivência, ou seja, a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil. Tanto na vida da autora quanto em Becos da memória, a leitura antecede e nutre as escritas de Evaristo e de Maria-Nova, razão pela qual lutam contra a existência em condições desfavoráveis. Ler é também arquivar a si, pois se selecionam momentos e estratégias de elaboração do passado, o qual compõe as cenas vividas, escritas e recriadas em muitos de seus personagens. Finalmente, decodificar o universo das palavras, para a autora e para Maria-Nova, torna-se uma maneira de suportar o mundo, o que proporciona um duplo movimento de fuga e inserção no espaço. Não menos importante, a escrita também abarca estas duas possibilidades: evadir para sonhar e inserir-se para modificar.

O lugar de enunciação mostra-se solidário e identificado com os menos favorecidos, vale dizer, sobretudo, com o universo das mulheres negras. E o universo do sujeito autoral parece ser recriado através das caracterizações físicas, psicológicas, sociais e econômicas de suas personagens do gênero feminino. Maria-Nova, presente em Becos da memória, aos nossos olhos, compõe-se, mais do que todas as personagens, de rastros do sujeito autoral: menina, negra, habitante durante a infância de uma favela e que vê na escrita uma forma de expressão e resistência à sorte de seu existir. Uma ponte metafórica que arriscamos instalar permite ver em comum, ainda, o fato de serem provenientes de famílias sustentadas por matriarcas lavadeiras, transitantes entre os mundos da prosperidade e da miséria, ou seja, Conceição e Maria-Nova cumpriram, no espaço familiar em que estiveram, o papel de mediação cultural que aperfeiçoou o processo de bildung (confirma palavra em inglês?) de uma e de outra.

A obra se constrói, então, a partir de “rastros” fornecidos por aqueles três elementos formadores da escrevivência: corpo, condição e experiência. O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. No livro em questão, a voz enunciativa, num tom de oralidade e reminiscência, desfia situações, senão verdadeiras, verossimilhantes, ocorridas no “morro do Pindura Saia”, espaço que bem se assemelha ao da infância da autora. Arriscamos dizer que há “jogo especular”, portanto, entre a experiência do sujeito empírico e de Maria-Nova, para além da simetria do espaço da narrativa (favela) e do espaço da infância e da juventude da autora (idem).

Outro bom exemplo de jogo especular consiste em uma situação por que realmente passou Evaristo e que se repete com Maria-Nova. Aliás, tem sido realmente um verdadeiro trauma para crianças negras estudar na escola tópicos relativos à escravidão e seus desdobramentos. Enquanto a professora se limitava à leitura de um conteúdo abstrato e com visão eurocêntrica acerca do passado escravocrata, Maria-Nova não conseguia enxergar naquele ato – e na escola – sentido para a concretude daquele assunto. Afinal, ela e a autora viviam e sentiam na pele as consequências da exploração do homem pelo homem na terra brasilis. Sujeito-mulher-negra, abandonada à própria sorte a partir do dia 14 de maio de 1888,

Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma história muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente (p. 138).

A garota, ciente de que a história das lutas dos negros no Brasil começava já com as primeiras levas diaspóricas, parece repetir o célebre questionamento de Gayatri Spivac: “pode o subalterno falar?”. Mais que isso: falar, ser ouvido, redigir outra história, outra versão, outra epistemologia, que leve em conta não o arquivamento das versões dos vencidos, mas que valorize o sujeito comum, anônimo, do dia a dia. Talvez Maria-Nova nem tenha se dado conta de que o que ela havia pensado era exatamente a fundamentação de boa parte dos Estudos Pós-Coloniais e da História Nova. Nesse sentido, os corpos-textos de Maria-Nova e Conceição Evaristo possuem em comum a missão política de inventar outro futuro para si e para seu coletivo, o que lhes imbui de uma espécie de dever de memória e dever de escrita. Vejamos: “agora ela [Maria-Nova] já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo (p. 161).

E a escrita acompanhará a pequena até a última página do livro, o que nos permite pensar que a missão ainda está em processo: “não, ela [Maria-Nova] jamais deixaria a vida passar daquela forma tão disforme. […] Era preciso viver. ‘Viver do viver’. […] O pensamento veio rápido e claro como um raio. Um dia ela iria tudo escrever” (p. 147).

E escreveu em seu mundo de papel. Coube a Evaristo registrar o desejo de Maria-Nova e, logo, seu próprio desejo. O desdobramento de uma em outra e as pontes metafóricas que pretendemos instaurar não esgotam as possibilidades de leituras, mas permitem a possibilidade de muitas outras, que despertem o afã de também escrever.

Luiz Henrique Silva de Oliveira – Universidade Federal de Minas Gerais

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Becos da memória – EVARISTO (REF)

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006. Resenha de: OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. “Escrevivência” em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Revista Estudos Feministas v.17 n.2 Florianópolis May/Aug. 2009.

“Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela” (p. 21).

Evaristo, 2006, p. 21.

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. De origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduou-se em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense e da rede privada de ensino superior. É mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. No momento, está concluindo doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense. Em sua pesquisa, estuda as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa. Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros, suporte de que se utiliza até hoje.

Em 2003, veio a público o romance Ponciá Vicêncio, pela editora Mazza, de Belo Horizonte. Seu segundo livro, outro romance, Becos da memória, foi escrito em fins dos anos 1970 e início dos 1980. Ficou engavetado por cerca de 20 anos até sua publicação, em 2006. Desde então, os textos de Evaristo vêm angariando cada vez mais leitores, sobretudo após a indicação de seu primeiro livro como leitura obrigatória do Vestibular da UFMG, em 2007. A escritora participou ainda de publicações coletivas na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sua obra de estreia foi traduzida para o inglês e está em processo de tradução para o espanhol.

A obra em prosa de Conceição Evaristo é habitada, sobretudo, por excluídos sociais, dentre eles favelados, meninos e meninas de rua, mendigos, desempregados, beberrões, prostitutas, “vadios” etc., o que ajuda a compor um quadro de determinada parcela social que se relaciona de modo ora tenso, ora ameno, com o outro lado da esfera, composta de empresários, senhoras de posses, policiais, funcionários do governo, dentre outros. Personagens como Di Lixão, Duzu-Querença, Ana Davenga e Natalina, presentes no universo dos contos publicados nos Cadernos Negros; Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Luandi, Nêngua Kainda, Zé Moreira, Bilisa e Negro Glimério, listados em Ponciá Vicêncio; Maria-Nova (desdobramento ficcional da autora?), Maria Velha, Vó Rita, Negro Alírio, Bondade, Ditinha, Balbina, Filó Gazogênia, Cidinha-Cidoca, Tio Totó e Negra Tuína, de Becos da memória, exemplificam, no plano da ficção, o universo marginal que a sociedade tenta ocultar.

Becos da memória é marcado por uma intensa dramaticidade, o que desvela o intuito de transpor para a literatura toda a tensão inerente ao cotidiano dos que estão permanentemente submetidos à violência em suas diversas modalidades. Barracos e calçadas, bordéis e delegacias compõem o cenário urbano com que se defrontam os excluídos de todos os matizes e gradações, o que insinua ao leitor qual a cor da pobreza brasileira. No entanto, a autora escapa das soluções fáceis: não faz do morro território de glamour e fetiche; tampouco, investe no traço simples do realismo brutal, o qual acaba transformando a violência em produto comercial para a sedenta sociedade de consumo.

Os fragmentos que compõem Becos da memória procuram aliar a denúncia social a um lirismo de tom trágico, o que remonta ao mundo íntimo dos humilhados e ofendidos, tomados no livro como pessoas sensíveis, marcadas, portanto, não apenas pelos traumas da exclusão, mas também por desejos, sonhos e lembranças. Violência e intimismo, realismo e ternura, além de impactarem o leitor, revelam o compromisso e a identificação da intelectualidade afrodescendente com aqueles colocados à margem do que o discurso neoliberal chama de progresso.

Sabendo que é possível à obra (re)construir a vida, através de “pontes metafóricas”, pelo projeto literário de Conceição Evaristo vislumbram-se pistas de possíveis percursos e leituras de cunho biográfico. Na configuração do romance em questão pululam aqui e ali, ora na ficção, ora em entrevistas, ora em textos acadêmicos, peças para a montagem de seu quebracabeça literário e biográfico. Uma das peças desse jogo parece ser a natureza da relação contratual estabelecida entre o leitor e o espaço autoficcional em que se insere Becos da memória. Aqui, a figura autoral ajuda a criar imagens de outra(s) Evaristo(s), projetada(s) em seus personagens, como Maria-Nova, por exemplo. Em outras palavras, processa-se uma espécie de exercício de elasticidade de um eu-central. Desliza-se com facilidade na prosa de Evaristo entre o romance e a escrita de si. Se, tradicionalmente, aquele se preocupa com o universal humano e esta, com o particular ou com o indivíduo, a autora propõe a junção dos dois gêneros, pois, para ela, pensar a si é também pensar seu coletivo. Do ponto de vista formal não é diferente: não se utilizam capítulos, mas fragmentos, bem a gosto do narrador popular benjaminiano. Nessa perspectiva, vê-se o mundo através da ótica dos fragmentos e dos indivíduos anônimos que compõem boa parte da teia social.

Neste livro de corte tanto biográfico quanto memorialístico, nota-se o que a autora chama de escrevivência, ou seja, a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil. Tanto na vida da autora quanto em Becos da memória, a leitura antecede e nutre as escritas de Evaristo e de Maria-Nova, razão pela qual lutam contra a existência em condições desfavoráveis. Ler é também arquivar a si, pois se selecionam momentos e estratégias de elaboração do passado, o qual compõe as cenas vividas, escritas e recriadas em muitos de seus personagens. Finalmente, decodificar o universo das palavras, para a autora e para Maria-Nova, torna-se uma maneira de suportar o mundo, o que proporciona um duplo movimento de fuga e inserção no espaço. Não menos importante, a escrita também abarca estas duas possibilidades: evadir para sonhar e inserir-se para modificar.

O lugar de enunciação mostra-se solidário e identificado com os menos favorecidos, vale dizer, sobretudo, com o universo das mulheres negras. E o universo do sujeito autoral parece ser recriado através das caracterizações físicas, psicológicas, sociais e econômicas de suas personagens do gênero feminino. Maria-Nova, presente em Becos da memória, aos nossos olhos, compõe-se, mais do que todas as personagens, de rastros do sujeito autoral: menina, negra, habitante durante a infância de uma favela e que vê na escrita uma forma de expressão e resistência à sorte de seu existir. Uma ponte metafórica que arriscamos instalar permite ver em comum, ainda, o fato de serem provenientes de famílias sustentadas por matriarcas lavadeiras, transitantes entre os mundos da prosperidade e da miséria, ou seja, Conceição e Maria-Nova cumpriram, no espaço familiar em que estiveram, o papel de mediação cultural que aperfeiçoou o processo de bildung (confirma palavra em inglês?) de uma e de outra.

A obra se constrói, então, a partir de “rastros” fornecidos por aqueles três elementos formadores da escrevivência: corpo, condição e experiência. O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. No livro em questão, a voz enunciativa, num tom de oralidade e reminiscência, desfia situações, senão verdadeiras, verossimilhantes, ocorridas no “morro do Pindura Saia”, espaço que bem se assemelha ao da infância da autora. Arriscamos dizer que há “jogo especular”, portanto, entre a experiência do sujeito empírico e de Maria-Nova, para além da simetria do espaço da narrativa (favela) e do espaço da infância e da juventude da autora (idem).

Outro bom exemplo de jogo especular consiste em uma situação por que realmente passou Evaristo e que se repete com Maria-Nova. Aliás, tem sido realmente um verdadeiro trauma para crianças negras estudar na escola tópicos relativos à escravidão e seus desdobramentos. Enquanto a professora se limitava à leitura de um conteúdo abstrato e com visão eurocêntrica acerca do passado escravocrata, Maria-Nova não conseguia enxergar naquele ato – e na escola – sentido para a concretude daquele assunto. Afinal, ela e a autora viviam e sentiam na pele as consequências da exploração do homem pelo homem na terra brasilis. Sujeito-mulher-negra, abandonada à própria sorte a partir do dia 14 de maio de 1888,

Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma história muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente (p. 138).

A garota, ciente de que a história das lutas dos negros no Brasil começava já com as primeiras levas diaspóricas, parece repetir o célebre questionamento de Gayatri Spivac: “pode o subalterno falar?”. Mais que isso: falar, ser ouvido, redigir outra história, outra versão, outra epistemologia, que leve em conta não o arquivamento das versões dos vencidos, mas que valorize o sujeito comum, anônimo, do dia a dia. Talvez Maria-Nova nem tenha se dado conta de que o que ela havia pensado era exatamente a fundamentação de boa parte dos Estudos Pós-Coloniais e da História Nova. Nesse sentido, os corpos-textos de Maria-Nova e Conceição Evaristo possuem em comum a missão política de inventar outro futuro para si e para seu coletivo, o que lhes imbui de uma espécie de dever de memória e dever de escrita. Vejamos: “agora ela [Maria-Nova] já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo (p. 161).

E a escrita acompanhará a pequena até a última página do livro, o que nos permite pensar que a missão ainda está em processo: “não, ela [Maria-Nova] jamais deixaria a vida passar daquela forma tão disforme. […] Era preciso viver. ‘Viver do viver’. […] O pensamento veio rápido e claro como um raio. Um dia ela iria tudo escrever” (p. 147).

E escreveu em seu mundo de papel. Coube a Evaristo registrar o desejo de Maria-Nova e, logo, seu próprio desejo. O desdobramento de uma em outra e as pontes metafóricas que pretendemos instaurar não esgotam as possibilidades de leituras, mas permitem a possibilidade de muitas outras, que despertem o afã de também escrever.

Luiz Henrique Silva de Oliveira – Universidade Federal de Minas Gerais.

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