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Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul, Rio de Janeiro (1830-1888) – FRAGOSO (Topoi)
FRAGOSO, João. Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul, Rio de Janeiro (1830-1888). Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. Resenha de: SANTOS, Marco Aurélio; MORENO, Breno Aparecido Servidone. A formação da economia cafeeira do vale do Paraíba. Topoi v.18 n.34 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2017.
Nos últimos anos, as pesquisas feitas nas áreas de História Social e História Econômica vêm deslindando a complexa realidade econômica, política e social de diversas localidades brasileiras. Historiadores com diferentes abordagens, favorecidos por uma ampliação do conjunto documental acessível à pesquisa, estão conseguindo descortinar a significativa complexidade brasileira. O livro Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul, Rio de Janeiro (1830-1888), do historiador João Fragoso, insere-se nesse amplo corpus bibliográfico que vem, a cada ano que passa, enriquecendo a compreensão de diversos municípios do país. Em linhas gerais, Barões do café é uma versão resumida dos capítulos de história agrária de sua tese de doutorado, defendida em 1990,1 e procura investigar a estrutura e a hierarquia no sistema agrário escravista-exportador, bem como a reprodução desse sistema no município de Paraíba do Sul, situado no médio Vale do Paraíba fluminense.
João Fragoso inicia o capítulo 1, “Estrutura e hierarquia no sistema agrário escravista-exportador”, lançando um conceito-chave: o de “recriação de sistemas agrários escravistas”. Segundo seu ponto de vista, esse conceito apresenta três significados. A citação, apesar de longa, merece ser reproduzida na íntegra, pois mostra o que pode ser considerado como sendo a tese central do autor. Sendo assim, “a noção de recriação de sistemas agrários escravistas {…}”
– diz respeito à continuidade de uma sociedade não capitalista, onde (sic) as relações sociais de produção identificam-se com relações sociais de subordinação, os fatores de produção (inclusive a mão de obra) se apresentam enquanto mercadorias e se verifica a hegemonia do capital mercantil (fenômeno que se traduz na preponderância da elite de comerciantes de grosso trato sobre a hierarquia econômica colonial);
– essa recriação gera demanda para as produções voltadas para o mercado interno e, com isso, permite a recorrência da formação econômico-social escravista-colonial;
– e, por último, tal movimento reitera, na fronteira, os traços gerais da sociedade escravista: a produção de mercadorias, uma hierarquia econômico-social diferenciada e a hegemonia do capital mercantil. (p. 43)
Um pouco adiante, Fragoso escreve que, nessa economia de Paraíba do Sul,
as relações de produção se confundem com as de poder, ou melhor, cuja forma de extorsão do sobretrabalho depende de elementos extraeconômicos: o trabalhador direto é homem de outro homem. Entretanto, esse fato não causa o desvio do excedente da economia. Ao contrário de outras sociedades pré-capitalistas, a recorrência das relações de poder (e, com elas, as de produção) está presa aqui ao retorno do sobretrabalho para a produção por meio dos senhores de homens. (p. 43-44)
Essa sociedade, porém, tem especificidades: “a reprodução ampliada adquire um sentido particular que tem como resultado a reiteração e o aumento do poder, sem que isso signifique que tal economia se fundamente numa lógica do lucro pelo lucro” (p. 44).
Como já foi dito, esse início de capítulo apresenta a base conceitual que dá suporte ao estudo sobre Paraíba do Sul. Nesse sentido, partindo do que Fragoso escreveu, é possível tirar as seguintes conclusões sobre o “sistema agrário escravista-exportador”: (a) esse é um sistema de agricultura mercantil-escravista; (b) o sistema baseia-se na monocultura, na agricultura extensiva e no baixo nível técnico; (c) existe a produção de lucro, com a ressalva já apontada; (d) o sistema agrário funciona numa sociedade pré-capitalista/não capitalista (os dois conceitos são usados ao longo do trabalho); (e) fatores de produção como a mão de obra “se apresentam como mercadorias”; (f) o capital mercantil é hegemônico e, por fim (g) existe produção de mercadorias (café entre outras).
Uma primeira observação a ser feita é a de que o autor associa dois conceitos que são significativamente diferentes: o de “sociedade pré-capitalista” (p. 44) e o de “sociedade não capitalista” (p. 43). Fragoso usa diversas variantes desses dois conceitos. Algumas delas são: “estrutura econômica pré-capitalista” (p. 45), “agricultura pré-capitalista” (p. 57), “mercado pré-capitalista” (p. 57) e “mercado pré-industrial” (p. 58). Todas essas classificações seriam características do “sistema agrário escravista-exportador”.
Para Fragoso, Paraíba do Sul foi uma área de “agricultura pré-capitalista altamente especializada, cuja reprodução, tanto no que concerne à geração de suas rendas como o seu abastecimento, passa pelo mercado”. Esse é mais um trecho que confirma que se trata, segundo o autor, de uma sociedade pré-capitalista produtora de mercadorias. Afinal, se as rendas e o abastecimento passam pelo mercado, então o que a sociedade produz são mercadorias para abastecer a fazenda e para garantir sua sobrevivência (reiteração/reprodução, como talvez preferisse escrever o autor).
Ora, em primeiro lugar deve-se salientar que a caracterização de Paraíba do Sul como uma sociedade pré-capitalista mostra um vínculo do autor com o trabalho de Eugene D. Genovese, The Political Economy of Slavery: Studies in the Economy and Society of the Slave South.2 Por outro lado, fica claro que muitas das caracterizações feitas por Fragoso carecem de rigor conceitual. Deve-se sublinhar, de imediato, que existe uma diferença abissal entre os conceitos de “sociedade pré-capitalista” e “sociedade não capitalista”. O prefixo “pré” significa anterioridade e um momento de transição entre uma sociedade, digamos, colonial, e outra capitalista. Já afirmar uma sociedade “não capitalista” significa conceber outro sistema ou modo de produção. Como o autor não conceitua essas expressões, é impossível associar o conceito de “sociedade não capitalista” com o de “sociedade pré-capitalista” em Paraíba do Sul. O conceito “sociedade não capitalista” permite pensar que a “sociedade em estudo {no caso Paraíba do Sul} não é capitalista”. O adjunto adverbial de negação “não” faz supor a existência de outro modo de produção. De qualquer modo, ao associar “sociedade não capitalista” e “sociedade pré-capitalista”, tem-se uma confusão conceitual que dificulta a compreensão da agricultura cafeeiro-escravista de Paraíba do Sul. Essa falta de rigor conceitual marca a obra e chama facilmente a atenção do leitor.3
De modo geral, João Fragoso é pouco cuidadoso nos procedimentos metodológicos empregados em Barões do café. O autor utilizou “mais de 400” inventários post mortem e 2.223 escrituras públicas de compra-venda e hipotecas entre os anos de 1830 e 1885 (p. 20). A partir dos inventários, os agentes coevos foram distribuídos em uma hierarquia econômica composta por três grandes grupos de fortunas (em libras esterlinas). Quanto ao corte cronológico, Fragoso não justifica a pertinência de dividi-lo em subperíodos (1830-1840; 1845-1850; 1855-1860; 1861-1865; 1870-1875; 1880-1885) e nem a razão pelo qual certos quinquênios foram excluídos da amostra. Da mesma forma, não apresenta o método de conversão do mil-réis em libras esterlinas. Por fim, não esclarece os motivos pelos quais não utilizou em todos os quadros, gráficos e tabelas que contemplam dados extraídos dos inventários, a totalidade de processos de sua amostra inicial (os 462 inventários, como se constata no Quadro 16, no capítulo 1).4 Por exemplo, o Quadro 3, na página 48, apresenta os “investimentos nas fazendas de café”. Nesse quadro, o autor utiliza-se de 224 inventários, ou seja, cerca de 49% do total pesquisado. O mesmo número de inventários (224) se repete nos Quadros 14 e 15, às páginas 70 a 72.
Deve-se destacar que, em alguns casos, a amostra de inventários é tão pequena que pode até mesmo comprometer a validade das análises de João Fragoso. Um bom exemplo do que estamos apontando pode ser observado no Quadro 24 (p. 122), que exibe a origem dos créditos dos grupos de fortuna em Paraíba do Sul entre 1840 e 1880. Nota-se que o autor utilizou pouquíssimos inventários (12 para o período 1840-1850, 33 para 1851-1871 e 10 entre 1871-1880) para determinar se o crédito era oriundo de Paraíba do Sul ou do Rio de Janeiro.
João Fragoso reconhece que a metodologia adotada em sua pesquisa tem “uma série de problemas” (p. 22). Contudo, malgrado essa observação, o autor acredita ter alcançado o objetivo proposto ao perceber as “mudanças de uma dada hierarquia social, e a vida de seus agentes, no tempo, e portanto em meio às flutuações econômicas da sociedade” (p. 22). No entanto, seu livro não apresenta a dinâmica desse sistema na formação histórica do Brasil e não leva em conta os processos globais mais amplos da economia-mundo capitalista. Além disso, Fragoso afirma que o sistema agrário de Paraíba do Sul conserva “uma certa autonomia das flutuações da economia escravista-colonial frente às conjunturas do mercado internacional” (p. 65). Ora, sabe-se que essa autonomia nunca existiu. Esse assunto é objeto de importante debate historiográfico pelo menos desde a publicação de O arcaísmo como projeto.5
Trabalhos recentes em inventários questionam outra tese presente em Homens de grossa aventura6 e n’O arcaísmo como projeto e reproduzida em Barões do café. A noção segundo a qual a história do sistema agrário escravista é resultado de um processo global de reprodução que foi “originado de uma acumulação previamente realizada no comércio” (p. 43) é uma hipótese que pode servir para alguns casos específicos. Contudo, essa hipótese não deve ser generalizada para as demais regiões do médio Vale do Paraíba, coração da cafeicultura escravista do Oitocentos. Em Bananal – e em outras localidades do Vale do Paraíba paulista7 – a montagem da cafeicultura escravista obedeceu a outros mecanismos. A implantação e a disseminação da cultura cafeeira provocaram intensas mudanças na composição econômica dos domicílios. Os fogos que, em sua maioria, dedicavam-se à produção de mantimentos (milho, arroz, feijão e farinha de mandioca), sobretudo para a própria subsistência, no início do século XIX, logo se converteram em propriedades rurais voltadas à exportação de café para o mercado mundial. Os agricultores que não dispunham de capital para ingressar na cafeicultura adotaram a estratégia de cultivar milho e feijão entre as fileiras dos arbustos de café recém-plantados. Com isso, eles foram se deslocando paulatinamente da produção de gêneros para a atividade cafeeira, sem abdicar do cultivo de víveres para o autoconsumo.8
Por fim, cabe salientar que, apesar de questionar alguns procedimentos metodológicos utilizados para compor o livro Barões do café, Fragoso reproduz uma série de argumentos de seus trabalhos anteriores, como a noção de “autonomia”. Esses argumentos, já amplamente debatidos pela historiografia, apontam para outra direção, diferente da sustentada pelo autor. De qualquer modo, cabe salientar o esforço de Fragoso em olhar para as elites e suas estratégias empresariais e tentar compreender sua atuação no contexto do desenvolvimento da economia cafeeiro-escravista do século XIX. Malgrado as polêmicas em torno de suas teses, sua empreitada fomenta o debate historiográfico e o conhecimento da formação econômica e do Estado nacional brasileiro no Oitocentos.
1FRAGOSO, João L. R. Comerciantes, fazendeiros e formas de acumulação em uma economia escravista-exportadora no Rio de Janeiro: 1790-1888. Tese (Doutorado em História Social) — PPHS-UFF, Rio de Janeiro, 1990.
2Um exemplo desse vínculo pode ser lido no seguinte trecho: “The planters were not mere capitalists; they were precapitalist, quasi-aristocratic landowners who had to adjust their economy and ways of thinking to a capitalist world market. Their society, in its spirit and fundamental direction, represented the antithesis of capitalism, however many compromises it had to make”. GENOVESE, Eugene D. The Political Economy of Slavery: Studies in the Economy and Society of the Slave South. Middletown: Wesleyan University Press, 1989, p. 23. Para uma avaliação crítica da interpretação de Genovese, ver TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011, p. 28-32.
3O conceito de “sociedade pré-capitalista”, com o prefixo “pré” compreendido como um momento de transição, está muito bem caracterizado no “Debate Brenner” e no debate sobre a transição do feudalismo para o capitalismo. Não é objetivo desta resenha desenvolver essa questão do conceito de sociedade pré-capitalista. Contudo, vale a pena ler a definição de R. H. Hilton para “pré-capitalista” em HILTON, R. H. Introduction. In: ASTON, T. H. & PHILPIN C. H. E. The Brenner Debate: Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 5. Ver também a definição apresentada por Robert Brenner em BRENNER, Robert. The Origins of Capitalist Development: a Critique of Neo-Smithian Marxism. New Left Review, Londres, n. 104, 1977, p. 37. Mais ainda, vale a pena considerar a proximidade entre a “sociedade pré-capitalista de Paraíba do Sul”, conforme caracterização de Fragoso (ver especialmente os itens “c”, “f” e “g” citados anteriormente), e o conceito usado por Paul M. Sweezy de “economia pré-capitalista de produção de mercadorias”. Esse conceito foi usado por Sweezy para entender “o sistema que prevaleceu na Europa ocidental durante os séculos XV e XVI”. Ver SWEEZY, Paul. O debate sobre a transição: uma crítica. In: SWEEZY, Paul et al. A transição do feudalismo para o capitalismo: um debate. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 60-63. O artigo citado de Brenner é uma apreciação crítica da caracterização de Sweezy sobre o período de transição e sobre uma sociedade que, segundo o entendimento do historiador norte-americano crítico de Maurice Dobb, não era nem feudal nem capitalista nos séculos XV e XVI.
4Apenas na confecção do Quadro 16 (p. 78), que apresenta dados referentes à presença de fortunas no mercado de escrituras de Paraíba do Sul, Fragoso valeu-se de todos os inventários de sua amostragem.
5A tese segundo a qual a economia colonial brasileira gozava de “autonomia” frente à economia global já havia sido desenvolvida pelo autor em O arcaísmo como projeto, redigido em parceria com Manolo Florentino. FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1840. 1. ed., 1993. Ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Vale notar que esta tese também está presente em: FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). 1. ed., 1997. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. Para um contraponto ver, entre outros, os seguintes estudos: MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: SALLES, Ricardo; GRINBERG, Keila (Org.). O Brasil imperial (1808-1889). Volume II (1831-1871). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 345-347. TOMICH, Dale. A “Segunda Escravidão”. In:______. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011, p. 81-97. MARQUESE, Rafael. As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a escravidão brasileira. Revista de História (USP), v. 169, p. 223-253, 2013. MARIUTTI, Eduardo; NOGUERÓL, Luiz Paulo; DANIELI NETO, Mário. Mercado interno colonial e grau de autonomia: crítica às propostas de João Luís Fragoso e Manolo Florentino. Estudos Econômicos: IPE-USP, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 369-393, abr./jun. 2001. MORENO, Breno Aparecido Servidone. A formação da cafeicultura em Bananal, 1790-1830. In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo (Org.). O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da Segunda Escravidão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, p. 328-350.
6Cf. FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
7Cf. MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: estrutura da posse de cativos e família escrava em um núcleo cafeeiro (Bananal, 1801-1829). São Paulo: Annablume/Fapesp, 1999. LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2005.
8Cf. MORENO, Breno Aparecido Servidone. A formação da cafeicultura em Bananal, 1790-1830, op. cit. Ver também o livro de Maria Luíza Marcílio, resultado de sua tese de livre-docência apresentada junto ao Departamento de História da Universidade de São Paulo em 1974. Nessa pesquisa, Marcílio procurou investigar como “a infraestrutura ou o suporte humano, material e social sobre o qual se instituiu a economia cafeeira teve formação anterior a ela e não apenas concomitante”. MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836. São Paulo: Hucitec/Edusp, 2000, p. 16.
Marco Aurélio dos Santos – Doutor em História Social pela FFLCH-USP, Universidade de São Paulo – São Paulo, SP, Brasil. E-mail: marcoholtz@uol.com.br.
Breno Aparecido Servidone Moreno – Centro de Estudos Migratórios – São Paulo, SP, Brasil. Mestre e doutorando em História Social pela FFLCH-USP. E-mail: berenomor@yahoo.com.br.
O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos – MACEDO (AN)
MACEDO, Michelle Reis de. O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. Resenha de: COUTINHO, Renato Soares. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 553-558, dez. 2014.
Boas perguntas, por vezes, costumam gerar boas respostas.
É muito raro uma pesquisa consistente, com hipóteses originais e abordagem coerente partir de uma questão de menor relevância. Nas últimas décadas, as pesquisas na área de história e o pensamento social brasileiro vêm se debruçando sobre um debate gerado por uma indagação inquietante. Como Getúlio Vargas, presidente que governou durante período ditatorial, especialmente entre 1937 e 1945, conseguiu estabelecer suas bases de apoio eleitoral entre os trabalhadores brasileiros, com o Partido Trabalhista Brasileiro, no período democrático, entre 1946 e 1964? Indo direto ao problema, podemos sintetizar a pergunta da seguinte maneira: como explicar a popularidade de Vargas e de seu projeto político, o trabalhismo, entre os trabalhadores? Em linhas gerais, podemos identificar a existência de duas vertentes analíticas que percorrem caminhos bastante distintos para explicar o mesmo fenômeno. A mais antiga delas destaca as ações dos agentes estatais. Censura, repressão policial e propaganda política são os objetos mais investigados da perspectiva que busca, em última análise, entender a popularidade de Getúlio Vargas como resultado das bem-sucedidas estratégias de dominação social. Interpretações mais recentes preocupam-se com as relações mantidas entre o Estado e os setores populares, elevando os trabalhadores à condição de ator político. Projetos e crenças políticas, demandas sociais e organizações sindicais, ideias e valores culturais dos trabalhadores tornam-se objeto de estudo dos historiadores. Ou seja, temos duas correntes interpretativas que formularam variáveis independentes que se situam em polos distintos: para uma delas, as ações do Estado explicam o comportamento dos trabalhadores; para outra, as interações entre eles e o Estado se tornam a chave explicativa.
Para os leitores que estão familiarizados com o tema, não é difícil decifrar quais são as perspectivas apontadas acima. A primeira delas, a mais antiga, acabou por produzir e consolidar o conceito de populismo como ferramenta conceitual capaz de explicar a popularidade de líderes como Vargas – valorizado pelo seu carisma.
Segundo essa perspectiva, a estrutura social construída pelo processo de modernização capitalista tardia acabou conferindo ao Estado-Nacional uma condição privilegiada de dominação sobre os trabalhadores, por conta da ausência de um histórico de lutas capaz de gerar, entre essa camada da população, uma consciência de classe autônoma.
A segunda perspectiva delineada anteriormente vem cumprindo a tarefa de dialogar e enfrentar proposições que há décadas estão enraizadas não só no campo acadêmico, mas também no senso comum. Tendo como base trabalhos inovadores, como a A invenção do trabalhismo (GOMES, 2005), o suposto problema da falta de organização e consciência de classe dos trabalhadores brasileiros foi substituído por vasta pesquisa documental que visava a dar conta da construção da cultura política do operariado brasileiro a partir das suas próprias experiências de luta. A premissa de que a repressão e a propaganda foram capazes de gerar satisfação ou persuadir os trabalhadores foi abandonada. Pesquisas recentes, baseadas em fontes documentais, comprovam que o operário brasileiro interagiu com o Estado, resultando em trocas materiais e simbólicas que, em muitos aspectos, respondiam aos anseios e às reivindicações dos próprios trabalhadores. Vale destacar que não se trata de mudar os nomes, simplesmente trocando o termo populismo por trabalhismo. Não se trata da substituição de conceitos.
Trabalhismo é compreendido como um projeto político resultante das relações entre Estado e classe trabalhadora, em que ambos foram protagonistas na construção do projeto político.
O livro O movimento queremista e a democratização de 1945, da historiadora Michelle Reis de Macedo (Rio de Janeiro, 7 Letras, 2013), oferece sólida resposta para a pergunta que mobiliza diversos historiadores brasileiros. Nas palavras da autora: “[…] por que vários setores sociais, especialmente a maioria dos trabalhadores e setores populares, apoiavam o ditador?” (p. 17). Sem se perder nos intermináveis debates conceituais que envolvem a temática escolhida, a autora não se furta de destacar com clareza a sua filiação teórica e metodológica. Porém, o faz sem os andaimes das citações bibliográficas que, quando exageradas, tornam o texto enfadonho até mesmo para o especialista. O livro de Michelle de Macedo é uma obra sustentada por uma edificação conceitual rica e clara, mas com as estruturas teóricas cobertas pelo refinado acabamento documental. A utilização de uma vasta documentação e a análise das fontes são os maiores méritos do trabalho da historiadora, e, para a satisfação do leitor, as polêmicas conceituais são discorridas em meio aos problemas postos pela pesquisa.
O livro é o primeiro publicado sobre o movimento queremista no Brasil. Inspirados pela frase “Queremos Getúlio”, os queremistas organizaram comícios, produziram panfletos e pressionaram diretamente o presidente Getúlio Vargas a lançar sua própria candidatura para as eleições que colocaram fim ao regime ditatorial do Estado Novo, em dezembro de 1945. O movimento acabou não conseguindo sucesso na sua principal empreitada – a candidatura de Vargas –, mas teve influência determinante no resultado eleitoral das eleições presidenciais de 1946, além de ter contribuído decisivamente para a organização das bases programáticas e para a composição social do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Dividido em quatro capítulos, a obra destaca inicialmente a conjuntura internacional gerada pela vitória dos países aliados sobre os regimes fascistas ditatoriais na Segunda Guerra Mundial.
A autora mostra como o discurso de oposição ao Estado Novo buscou associar a imagem de Vargas aos líderes fascistas europeus.
A União Democrática Nacional (UDN), partido que inicialmente arregimentou um leque de oposicionistas a Vargas, iniciou a campanha eleitoral motivada pela certeza de que a imagem do ditador não poderia resistir ao contexto de ampla mobilização e exaltação dos valores liberais democráticos que ressurgiam prestigiados ao final da guerra. A campanha para a presidência, articulada em torno do brigadeiro Eduardo Gomes, começou contagiada pelo otimismo da certeza da vitória.
Nem mesmo o avanço das organizações queremistas a partir do segundo semestre de 1945 foi capaz de conter o ânimo da campanha udenista. Mesmo nos casos em que a mobilização queremista se mostravam coordenada e em crescimento, a resposta dos líderes udenistas era marcada pelo descrédito daqueles que julgavam os atos dos trabalhadores como “desvios” gerados pela propaganda estadonovista.
No segundo capítulo, Michelle de Macedo vai ao encontro do seu objeto de estudo. Ao analisar as ações coletivas dos queremistas, a autora mostra para o leitor os significados que norteavam as escolhas políticas dos trabalhadores que apoiavam Getúlio Vargas. Através de matérias veiculadas em jornais e de cartas enviadas para o presidente, a autora desvenda valores e anseios que orientavam os trabalhadores que defendiam a candidatura de Vargas. As divergências entre o pensamento liberal udenista e a cultura política dos trabalhadores entravam em conflito especialmente em torno da compreensão de “qual” democracia estava em jogo. Para os queremistas os avanços materiais promovidos pela legislação trabalhista conquistada nos anos anteriores eram mais importantes do que um sistema político baseado em regras formais de competição partidária. A cultura política popular mostrava-se alheia ao discurso liberal da campanha udenista, que tinha como princípio o fortalecimento das instituições da democracia representativa. Investigando quais eram as demandas populares em 1945, a autora mostrou como a questão da representatividade nos parâmetros da democracia liberal estava em segundo plano para o trabalhador brasileiro. Naquela ocasião, mesmo com a vitória das democracias liberais no conflito mundial, o interesse do trabalhador brasileiro era assegurar os benefícios trabalhistas que foram distribuídos durante o governo do presidente Vargas. Nesse contexto, a saída de Vargas representava uma ameaça aos ganhos materiais conquistados no regime que encerrava. E a ameaça era real. Afinal, a campanha udenista desqualificava a legislação social, acusando-a de “fascista”. Aliás, foi nessa época que surgiu a famosa expressão de que “a CLT era cópia da Carta del Lavoro”. Arroubos eleitorais udenistas, certamente, mas que assustaram os trabalhadores.
No capítulo seguinte, a análise do apoio dos comunistas ao queremismo é um dos pontos mais interessantes e elucidativos na disputa entre udenistas e queremistas. Os udenistas tinham como certo a oposição do líder comunista Luiz Carlos Prestes a Getúlio Vargas. Não foi o que ocorreu. Ao contrário, Prestes apoiou Vargas.
A partir daí, os liberais udenistas reforçaram a crítica aos partidários de Vargas e Prestes associando suas crenças aos regimes totalitários europeus. No discurso da UDN, o fascismo de Vargas e o comunismo de Prestes representavam a mais terrível ameaça aos valores democráticos. A participação do Partido Comunista do Brasil (PCB) foi um complicador a mais na campanha eleitoral udenista. Como também da imprensa, toda ela alinhada com a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes e com a UDN. Ainda no terceiro capítulo, a autora apresenta uma série de matérias publicadas nos jornais que visavam a ensinar a história do Brasil para o trabalhador brasileiro.
Nesses textos, o povo brasileiro sempre aparecia atuando em busca dos seus direitos sociais.
Por fim, Michelle de Macedo analisa o processo de institucionalização do movimento após a desistência de Getúlio Vargas de participar das eleições presidenciais. O queremismo é entendido nesse momento como um primeiro esboço das principais demandas dos trabalhadores que apoiariam, nos anos seguintes, o PTB.
Outro ponto de grande relevância do capítulo que conclui o livro é a pressão feita por facções do queremismo para que Getúlio Vargas declarasse seu apoio à candidatura de Eurico Gaspar Dutra, candidato do PSD. Isso realça o grau de autonomia que os defensores da candidatura de Vargas tinham em relação ao líder político. Durante toda a campanha eleitoral de Dutra, Vargas não pronunciou uma única palavra de apoio ao candidato do PSD. Apenas às vésperas da votação é que Vargas decidiu pedir o voto a Dutra, fato que, muito certamente, contribuiu para a derrota da UDN nas eleições de 1946.
A autora mostra como a pressão dos queremistas contribuiu para a decisão de Vargas, e esse evento comprova como as interações entre a liderança política e os agentes sociais são marcadas por pressões – mesmo que desiguais – vindas de ambos os lados.
Como já escrevi anteriormente, o livro de Michelle de Macedo é mais uma valiosa resposta a um problema que intriga muitos historiadores: a popularidade de Getúlio Vargas entre os trabalhadores.
Resposta que agrega mais substância ainda aos pesquisadores que se dedicam a compreender o fenômeno Vargas não apenas como o resultado de ações manipuladoras por parte do Estado, mas como o resultado da materialização de demandas sociais produzidas por agentes conscientes e organizados.
Referências
FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
MACEDO, Michelle Reis de. O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.
Renato Soares Coutinho – Doutor em História Social pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense e Professor de História do Brasil da Universidade Castelo Branco. Contato: rscoutinho@hotmail.com.
A conquista das almas do oriente: franciscanos, catolicismo e poder colonial português em Goa (1540-1740) – FARIA (A)
FARIA, Patricia Souza de. A conquista das almas do oriente: franciscanos, catolicismo e poder colonial português em Goa (1540-1740). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. Resenha de: PANEGASSIL, Rubens Leonardo. Missionários franciscanos em Goa. Antítese, v. 7, n. 14, p. 521-525, jul. – dez. 2014.
Patricia Souza de Faria é uma jovem historiadora que tem se dedicado ao estudo da presença de missionários católicos nas conquistas portuguesas do Oriente. Patricia é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (2008), tendo realizado estágio de pesquisa no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Portugal. Com mais de uma dezena de artigos publicados, pode-se dizer que a autora é uma referência importante a todos os investigadores que pretendem se dedicar às questões relativas ao Oriente Português na Época Moderna.
Tradicionalmente, o tema da presença portuguesa no Oriente ao longo da Época Moderna apresenta-se associado a grandes nomes da historiografia, tais como Charles R. Boxer, Luís Filipe F. R. Thomaz e Sanjay Subrahmanyam. Entretanto, vale notar que o vigor e a capacidade de renovação desse campo é notável, sobretudo na produção historiográfica de nomes que tem alcançado visibilidade, tais como Ana Paula M. Avelar e Ines G. Zupanov. Por sua vez, no Brasil, o assunto ganhou aderência como objeto de estudo, evidente nos trabalhos de pesquisadoras como Célia Cristina da Silva Tavares e Andréa Carla Doré. Com efeito, Patricia Souza traz efetiva contribuição à consolidação deste campo entre os investigadores brasileiros, além de sanar uma grande lacuna no âmbito dos estudos sobre o tema das missões na primeira modernidade, tendo em vista que a autora se debruça sobre o papel dos franciscanos neste processo, uma ordem ainda pouco estudada, a despeito dos esforços de Alan Strathern e Ângela B. Xavier.
Apresentado originalmente como tese de doutorado, o livro traz substanciais modificações em relação ao trabalho original, visíveis no acréscimo de todo um capítulo, bem como na relevância dada aos franciscanos em sua relação com o Arcebispado de Goa. Além, evidentemente, da dilação do recorte temporal do estudo, notável nas modificações adicionadas ao segundo capítulo, que enfocam o início do século XVIII, ao passo que a pesquisa documental mais sistemática, objeto da tese, contemplava os séculos XVI e XVII. De todo modo, vale notar que tais modificações se mostram fundamentais para a contextualização da pesquisa nos quadros do Império Português e da História da Igreja.
Parte dos acréscimos feitos pela autora é o resultado natural dos avanços de sua investigação após o término de sua tese, mas também, de seu esforço em proporcionar um texto de leitura mais fluida, cujo intuito é atingir um público leitor mais amplo, para além dos especialistas acadêmicos. Ambição louvável, sobretudo por colocar à disposição dos leitores o resultado de sólida pesquisa documental, visto que Patricia lança mão de amplo material; sejam impressos, pesquisados em bibliotecas do Brasil e de Portugal; sejam manuscritos, pesquisados fundamentalmente em arquivos portugueses. Além, vale observar, da ampla bibliografia arrolada pela autora, que pode servir de guia a novos investigadores, mas também a todos os interessados no assunto.
O intuito do livro de Patricia Souza de Faria é inquirir sobre o papel dos franciscanos na cristianização de Goa e, certamente, é esta sua maior contribuição historiográfica. Com efeito, para alcançar seu intento, a autora parte da premissa de que foram as articulações existentes entre o poder temporal e as instituições religiosas que definiram as circunstâncias mais propícias para a difusão do catolicismo em Goa. De modo que a conversão dos nativos goenses atende ao interesse da Cora portuguesa em garantir a fidelidade política desses novos súditos, compulsoriamente integrados ao reino católico. Sem dúvida, são estas articulações e os procedimentos adotados em face da necessidade da inclusão destes súditos, naturalmente diversos em termos religiosos, que estruturam os cinco capítulos de seu livro.
É possível traçar um percurso geral do livro, tendo em vista que ele nos remete à gênese da presença lusa na Índia, bem como ao papel desempenhado por Goa nesse amplo espaço, marcadamente heterogêneo. A partir disso, podemos acompanhar a estruturação dos poderes na região e a decorrente centralidade de Goa, onde a presença franciscana é mapeada pela autora em sua especificidade, tendo em vista as profundas divergências internas da Ordem. Por fim, o livro encerra-se com uma reflexão muito original e relevante a respeito dos sentidos atribuídos pelos frades franciscanos às suas missões. Proposição inovadora, uma vez que dissona das intepretações mais clássicas a respeito do papel histórico da Ordem na Época Moderna.
Assim, o que Patricia nos apresenta, é um eficiente histórico da consolidação da presença portuguesa em Goa, a primeira conquista lusa no Oriente. Com efeito, atenta para o caráter predominantemente mercantil que caracterizou o império asiático de Portugal, bem como a imprecisão dos limites do Estado da Índia até o momento em que a cidade passou a ser sede do poder civil e eclesiástico. Em suma, a autora evidencia o fato de que foi ali, primeiramente, o lugar onde a soberania lusa se firmou no Oriente. Tendo sido sede do vice-reinado e do arcebispado, Goa foi o centro do poder civil e eclesiástico, lugar onde funcionou o único tribunal inquisitorial em espaço ultramarino.
É nesta perspectiva que ao longo de todo o primeiro capítulo Patricia Faria sustenta ter a conquista espiritual amparado a expansão do Império Português, enquanto o poder secular favorecia a difusão do Evangelho. Daí que a presença de ordens religiosas como a Companhia de Jesus, a Ordem de São Domingos, a Ordem de Santo Agostinho e a Ordem de São Francisco sejam compreendidas como importante complemento da arquitetura dos poderes civil e eclesiástico estabelecidos na região. Enfim, é esse o contexto apresentado pela autora em sua exposição sobre as estratégias dos grupos sociais locais na manutenção de suas identidades de casta entre os convertidos, bem como a continuidade de crenças e relações sociais preexistentes.
Definido o pano de fundo de seu trabalho, o livro se detém nas ações adotadas pelo Arcebispado de Goa em face da necessidade de cristianizar as populações locais. Com efeito, tais procedimentos variam de acordo com o contexto. Ou seja, se num primeiro momento, ainda sob o cetro de D. Manuel, houve maior tolerância religiosa por parte do pequeno número de frades e clérigos que acompanhavam as embarcações que aportavam na cidade, a política religiosa tornou-se mais pragmática ao longo do reinado de D. João III, sobretudo a partir de 1540, quando tem inicio a destruição perpetrada por Miguel Vaz e Diogo da Borba aos pagodes brâmanes. Em suma, na perspectiva de Patricia Faria, paralelamente à tentativa de promoção sistemática do catolicismo em Goa, o que se verificou foi a intolerância e o afastamento progressivo dos nativos das altas esferas de poder no Estado da Índia, bem como dos cargos eclesiásticos de maior dignidade.
Nesse ponto, o livro estende sua análise e atravessa o período da União Ibérica. Com isso Patricia Souza de Faria não perde a oportunidade de nos apresentar o impacto da Monarquia Dual sobre a gestão dos assuntos eclesiásticos nas possessões portuguesas, período que foi marcado pela condução das populações cristianizadas à obediência da Igreja Romana. Todavia, com a União Ibérica, e principalmente após a ascensão de D. João IV, a Coroa portuguesa perderia espaço na região, notavelmente a partir da revisão das tradicionais concessões papais do Padroado levadas a efeito pela Propaganda Fide, o que definiu um novo contexto missionário na região.
Com efeito, estes diferentes contextos ganham contornos bem definidos quando Patricia Souza de Faria se atém especificamente ao papel dos franciscanos na conversão dos indianos ao catolicismo, notavelmente a partir da estabilização de uma rede paroquial nas Velhas Conquistas. Em suma, é rico o trabalho despendido pela autora na recuperação do rigoroso espírito de renuncia que tradicionalmente caracteriza os franciscanos, bem como seu impacto no interior da própria Ordem de São Francisco, com a estruturação de movimentos como o da Observância e seu êmulo da mais Estreita Observância. Por sua vez, tais movimentos, que traduzem divergências internas sobre o que seria o “verdadeiro franciscanismo”, encontraram reverberação na Índia, onde se associam a outras controvérsias, como a luta pela condução institucional das custódias e províncias, ou a situação de conflito que se desenhou entre os franciscanos e os moradores de Goa, que acusavam os primeiros de infringirem lhes castigos corporais e prisões.
Definitivamente, é sua percepção do significado atribuído pelos próprios franciscanos à missão na Índia a maior contribuição do livro de Patricia Souza. A autora não apenas se debruça sobre uma ordem ainda pouco estudada, mas também procura superar algumas interpretações estereotipadas, que definem as missões franciscanas no Oriente como herdeiras de uma cosmovisão medieval, que impunha limites à compreensão de tradições e crenças locais, e teria comprometido o êxito missionário da Ordem. O esforço de superação desses estereótipos conduz Patricia à percepção do horizonte de expectativa dos próprios franciscanos, em que noções como “êxito” e “fracasso” perdem sentido em face de suas concepções no que tange aos métodos de adaptação missionária, que é o elemento estruturante do sentido de missão partilhado pelos frades.
Com efeito, para alcançar este horizonte e acessar o sentido contextual destas missões, Faria se atém à escrita de sua história. Ou melhor, à quase total ausência deste gênero entre os frades franciscanos. De fato, a autora reconhece que, muito embora a Ordem de São Francisco tenha legado aos historiadores e pesquisadores uma profusão de escritos de cunho apologético e hagiográfico, elaborados principalmente ao longo da Idade Média, a ação da Ordem na Índia não ganhou espaço na produção historiográfica dos frades em um primeiro momento. A primeira crônica franciscana, de autoria de frei Francisco Negrão, foi escrita quase cem anos após a fixação da Ordem na Índia, contudo, esta obra se perdeu. Por sua vez, esta escassez de escritos torna-se mais marcante quando comparada à abundância da produção jesuíta, bem como as reconhecidas implicações de seu uso na confecção da propaganda inaciana. Na perspectiva da autora, esta característica circunscreve a especificidade do apostolado franciscano, que privilegiava as formas orais para o testemunho de seu ministério. Um ministério cujo sentido apoiava-se na graça e no fervor religioso, mas que, todavia, estava destinado à obsolescência, tal como sugere a autora.
De todo modo, o livro enfrenta a questão da construção da memória franciscana e nos apresenta um rico debate a respeito deste assunto. Para isso, Patricia Souza de Faria recupera os escritos de três autores que se detiveram sobre a Ordem: frei Paulo da Trindade, que exalta os feitos dos frades da Regular Observância; frei Jacinto de Deus, que registra a história dos franciscanos da mais Estreita Observância; e frei Miguel da Purificação, que por sua vez reclama o direito dos religiosos filhos de portugueses nascidos na Índia ocuparem cargos eclesiásticos. A despeito da especificidade de cada um dos autores, todos estes frades procuram reabilitar e exaltar os feitos dos franciscanos, sobretudo a partir da ratificação do pioneirismo e da vocação missionária da Ordem. Com efeito, na perspectiva de Patricia, a existência desta literatura, produzida a partir da primeira metade do século XVII, é um indício seguro da necessidade de se evidenciar a capacidade de atuação da Ordem de São Francisco Índia.
Entretanto, para além das narrativas, Patricia Faria atenta para as diferentes trajetórias de vida de seus autores, tendo em vista questões relevantes, referentes aos sentidos da pureza de sangue e distinção social, que se desdobram dos embates polêmicos a respeito da origem dos clérigos, apresentados nas obras de autoria dos franciscanos, notavelmente na de Miguel da Purificação. Em suma, vale lembrar que todos estes religiosos são luso-descendentes e apresentam uma perspectiva depreciativa do Oriente, sendo que Trindade concebia a si mesmo tão português quanto qualquer outro nascido no reino, ao passo que Jacinto de Deus e Miguel da Purificação enfrentaram com maior vigor o fato de terem nascido na Ásia, e por isso compartilhavam a preocupação de reforçar sua distinção em relação aos demais grupos de nativos.
Em conclusão, o que se nota é a lenta estruturação de uma duradoura marginalização do clero nativo, uma vez que somente em 1927 um goense viria ocupar o arcebispado. Por fim, é imprescindível assinalar que Patricia Souza de Faria nos apresenta uma obra de fôlego, resultante de inquietações epistemológicas originais, bem como da leitura, análise e confrontação de fontes. Daí que o livro nos chega em bom momento.
Rubens Leonardo Panegassil – É graduado em História pela Universidade de São Paulo (2004) e graduado em Comunicação Social pela Fundação Armando Álvares Penteado (1999). É mestre (2008) e doutor (2013) em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor de História Moderna e Contemporânea do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa.
O esporte na imprensa e a imprensa esportiva no Brasil – HOLLANDA; MELO (AN)
HOLLANDA, Bernardo B. B.; MELO, Victor A. O esporte na imprensa e a imprensa esportiva no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, 209p. Resenha de: CAPRARO, André Mendes; SOUZA, Jhônatan Uewerton. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 37, p. 325-330, jul. 2013.
Há algum tempo que, a despeito das desconfianças de alguns historiadores, multiplicam-se as abordagens e os horizontes temáticos da historiografia. No bojo desse processo de expansão das fronteiras disciplinares, as pesquisas em história adentraram em aspectos até então negligenciados da cultura, apuraram o olhar sobre o cotidiano, lançaram luz ao que, a princípio, – mais por descuido que por mérito – parecia frívolo, portanto, desmerecedor de refl exões aprofundadas.
No interior dessas transformações, assistimos à constituição de um campo de estudos sobre a história dos esportes, institucionalizado em núcleos de pesquisa espalhados por diversas universidades em diferentes estados brasileiros, como Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul ou Bahia.
Do ponto de vista da tipologia das fontes, o desenvolvimento do campo de estudos em história dos esportes esteve atrelado, desde o início, à pesquisa em imprensa. Não raro, propiciando um profícuo espaço de trocas entre história, jornalismo e comunicação social.
Contudo – apesar de notáveis exceções –, essas pesquisas tendiam a desprezar, de início, as peculiaridades das fontes jornalísticas. Selecionando textos em separado, pouco atentas às posturas editoriais dos periódicos ou com o cotidiano das redações e suas disputas internas de poder, que, entre outras coisas, delineiam os limites da enunciação de um discurso. As pesquisas terminavam por limitar suas potencialidades, como resultado dos descuidos metodológicos.
Com o amadurecimento do campo de estudos, novas questões estão postas, dentre elas, aquelas respectivas à singularidade das fontes de imprensa. Em especial, quanto ao seu particular estatuto de fonte/ objeto. À luz dessas considerações, recebemos com entusiasmo a coletânea O Esporte na Imprensa e a Imprensa Esportiva no Brasil, que tem como organizadores Victor Andrade de Melo e Bernardo Borges Buarque de Hollanda, dois renomados historiadores do esporte, detentores de obras referenciais no interior desse campo de estudos.
O livro está alojado na Coleção Visão de Campo, da editora 7Letras, que reúne outras obras dedicadas à história do esporte. Sua proposta de resgatar as experiências de alguns dos principais periódicos esportivos brasileiros durante o século XX, surge em boa hora. Tomada como um todo, a obra converte-se em instigante ponto de partida para a reflexão sobre as múltiplas formas de olhar para os impressos enquanto fontes e objeto de estudo, tornando-se, assim, um eficaz convite à pesquisa. Talvez seja esse seu principal mérito, pois, ao iluminar pontos específicos, dá-nos a dimensão da escuridão e das inúmeras possibilidades de pesquisa em história dos esportes.
Já no título do prefácio, escrito por Ronaldo Helal, deparamonos com uma pergunta inquietante: O esporte na imprensa ou a imprensa no esporte? Resgatando um dos questionamentos levantados por Victor Andrade de Melo no primeiro capítulo da coletânea, Helal identifica um dos pontos nevrálgicos da obra, qual seja, a relação dialética en tre esporte e imprensa. De fato, tanto o esporte quanto a imprensa, caminharam de mãos atadas no decorrer do século XX, autonutrindo-se como campos em constante interpenetração.
Pensar a imprensa de “corpo inteiro”, esse seria o objetivo da obra, afirmam Victor Andrade de Melo e Bernardo Borges Buarque de Hollanda na apresentação da coletânea. Para os autores, haveria uma lacuna quanto à imprensa esportiva, no hall de obras dedicadas à história da imprensa brasileira. Isso não seria fortuito, a imagem do leitor de esportes como alguém de baixo poder aquisitivo e estreita capacidade intelectual, teriam corroborado no sentido de rebaixar esse segmento da imprensa como uma vertente de menor valor para o entendimento da sociedade brasileira e das representações acerca da nação. Seria necessário resgatar os periódicos esportivos enquanto atores sociais, objetos de análise em toda sua complexidade, agentes na edificação de imaginários acerca da nação. Eis, em linhas gerais, a proposta do livro.
Em Causa e Consequência: esporte e imprensa no Rio de Janeiro do século XIX e década inicial do século XX, Victor Andrade de Melo debruça-se sobre os primórdios do esporte e sua inserção na imprensa carioca.
Neste capítulo, o autor chama a atenção para as múltiplas relações estabelecidas entre os esportistas e a imprensa, indicando o papel de mediador ocupado por esses periódicos, entre as agremiações e o grande público. Aqui, a imprensa é compreendida enquanto protagonista no processo de construção de sentidos e significados no entorno da prática esportiva. Sendo a construção desses sentidos e significados, o resultado das mediações estabelecidas entre os interesses do periódico, dos jornalistas e do que estes consideravam como “interesse público” (normalmente o interesse de pequenos setores sociais).
Em seguida, Luiz Henrique de Toledo analisa um dos mais importantes periódicos esportivos paulistanos, em: A cidade e o jornal: a Gazeta Esportiva e os sentidos da modernidade na São Paulo da primeira metade do século XX. Enfatizando o período em que Gazeta Esportiva era apenas um suplemento do jornal A Gazeta, Toledo desvela uma série de representações sobre o processo de metropolização de São Paulo e os sentidos atribuídos à cidade nesse suplemento. Com seu libera lismo paulistanista, o periódico desenvolve uma linguagem bairrista, empregando sentidos específicos à prática do futebol em São Paulo, especialmente no que se refere à sua relação com a ética do trabalho, sustentando, assim, no ambiente esportivo, uma série de autorrepresentações difundidas acerca da cidade, na primeira metade do século XX.
Bernardo Buarque de Hollanda, em O cor-de-rosa: ascensão, hegemonia e queda do Jornal dos Sports entre 1930 e 1980, opta por uma visão panorâmica da trajetória do Jornal dos Sports, tomando como eixo cronológico a participação de Mario Filho na publicação. Contudo, o objetivo não é reiterar as mitologias construídas em torno do cronista, ao contrário, Hollanda apresenta um Mario Filho distinto, cercado por diversos outros cronistas que, como ele, frequentavam os círculos do poder, contribuindo para o estreitamento dos víncu los desse periódico com as instâncias políticas e a administração esportiva.
Um dos méritos do artigo é, sem dúvida, apresentar um JS para além de Mario Filho. O periódico esportivo do grupo Bloch Editores é o tema de André Alexandre Guimarães Couto em, O discurso pela imagem: Manchete Esportiva e sua proposta fotojornalística (1955-1959 e 1977-1979).
Abarcando dois períodos distintos de circulação da revista, o autor analisa com cuidado o enfoque que o semanário dava às imagens, inspiração herdade da revista Manchete, carro chefe do grupo Bloch.
Para tanto, Couto adentra às estruturas da revista, percorrendo desde sua equipe de fotógrafos e cronistas até sua estrutura editorial e os enfoques da publicação. O cuidado com a técnica e o protagonismo legado às imagens, encontram-se em sincronia com os discursos sobre “modernização” do país, difundidos naqueles períodos.
Álvaro do Cabo, em Um raio-x da Revista do Esporte, dedica-se à análise panorâmica de diversas colunas deste semanário. Criada nos anos 1960, em meio a um período de grande efervescência no esporte nacional, a Revista do Esporte aposta no sensacionalismo de suas coberturas, dando grande ênfase à vida privada dos atletas – principalmente os futebolistas –, em consonância com a proposta editorial de outro semanário, a Revista do Rádio. Assim como André Couto, Álvaro do Cabo chama-nos a atenção para as trocas estabelecidas entre a imprensa esportiva e outros segmentos da imprensa. Relação fundamental para a compreensão das opções editoriais de alguns periódicos.
Criada em meio às restrições impostas pela censura, a revista Placar é o tema de João Malaia, que foca os primeiros instantes desta publicação em, Placar: 1970. O recorte temporal reduzido possibilitou ao autor verticalizar sua análise, revisitando temas ainda presentes em nossa memória histórica do futebol. É o caso dos posicionamentos da revista a respeito da demissão de João Saldanha, analisada por meio das crônicas de Hamilton de Almeida, das charges de Henfil, das declarações do próprio Saldanha ou das composições imagé ticas do semanário. Compreendendo tanto aspectos de contestação quanto de apoio ao regime, o autor defende a importância de estudar a imprensa esportiva em regimes de exceção. A dupla licença da qual gozavam esses periódicos, a esportiva e a humorística, abria o espaço necessário para a crítica, todavia, essa crítica sempre vinha mesclada às necessidades ou opções de alinhamento, como bem pontua Malaia em sua análise sobre a publicidade nesses periódicos.
Em Juventude em revista: surfe e Fluir, Rafael Fortes segue com as reflexões que desenvolve desde sua tese de doutoramento. Atribuindo grande atenção à cultura jovem na década de 1980, Fortes contextualiza a revista Fluir no interior de uma gama de produtos culturais – novelas, seriados, filmes, programas de rádio, moda etc.
– que passavam a identificar no público jovem um mercado consumidor lucrativo, abrindo, assim, espaço considerável aos esportes radicais, dentre eles o surfe. Com habilidade, Fortes demonstra o papel ativo de Fluir na institucionalização e profissionalização do surfe, seja em suas publicações, enfocando as viagens e os campeonatos em detrimento da prática cotidiana do surfe, seja em sua atuação junto às entidades especializadas ou cobrando dos atletas uma postura “profissional”, afim de dissociar o surfe de imagens depreciativas, como o uso de drogas e o localismo.
Por fim, Mauricio Stycer escreve sobre a trajetória do diário Lance! em, Lance! um jornal do seu tempo. Inspirado em periódicos de outros países, como o espanhol Marca e o argentino Olé, Lance! propunha uma nova forma de jornalismo esportivo, um jornal “pra cima”, escrito na linguagem do torcedor. Fruto das mudanças experimentadas pelo futebol na década de 1980, Lance! é o primeiro projeto de mídia financiado exclusivamente por investidores profissionais. Dando maior importância aos aspectos gráficos que ao conteúdo, o periódico fora idealizado tendo como público alvo o torcedor-consumidor, figura central do futebol-empresa. Com escrita apurada, Stycer reconstitui os embates travados no interior da redação para delimitar os princípios editoriais do novo impresso.
Antes de mais nada, Lance! é tratado aqui como a expressão no jornalismo esportivo, dos novos ares que invadiam o futebol.
O caráter coletivo da obra e a diversidade dos autores – alguns historiadores, outros sociólogos, antropólogos, jornalistas etc. – imprimem no livro uma pluralidade de abordagens e enfoques, ganhando na multiplicidade dos olhares e perdendo quanto à coesão e unidade da coletânea. Todavia, mesmo que com níveis distintos de qualidade e profundidade, os autores dão conta da proposta inicial do livro. Aliás, o próprio sucesso na empreitada dá-nos a condição de identificar lacunas e advoga pelo surgimento de novos projetos como esse.
Uma das principais lacunas diz respeito à espacialidade desses periódicos. Compreendemos a opção por veículos de pretensão e alcance nacional, contudo a repetida seleção de periódicos situados no Rio de Janeiro ou em São Paulo pouco contribui para o conhecimento das distintas formas de apropriação e ação da imprensa no interior do campo esportivo. De fato, ao fazê-lo, corre-se o risco de voltar ao óbvio, mesmo que por caminhos distintos dos traçados pelos antigos memorialistas. Outra lacuna, dessa vez temática, incide sobre a supremacia do futebol masculino profissional nas abordagens. Justiça seja feita, quase todos os autores dão algum espaço para outras modalidades ou diferentes formas de apropriação do futebol. Contudo, excetuando alguns capítulos, o peso das análises é deveras desigual. Compreendemos que o fato está ligado às opções editoriais dos próprios periódicos analisados e que os limites do capítulo exigem recortes. Entretanto, a inclusão de órgão específicos, como feito com Fluir, agregaria na compreensão das relações entre im prensa e esporte no Brasil.
A título de conclusão, O Esporte na Imprensa e a Imprensa Esportiva no Brasil é leitura recomendada para todos os interessados em história dos esportes ou história da imprensa no Brasil. Como dito anteriormente, a qualidade da obra instiga-nos a projetar futuros trabalhos.
Sem dúvida, como demonstraram Bernardo Buarque de Hollanda e Victor Andrade de Melo, é possível pensarmos em coletâneas específicas sobre outras mídias ou produções culturais. Desse modo, o papel dos programas de rádio, televisão, as especificidades da internet, a inserção dos esportes nas telenovelas, as questões respectivas à recepção dessas informações. Enfim, ao cumprirem com louvor sua proposta, os autores terminam por estimular novos estudos, temática e abordagens, contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento dos estudos em história dos esportes.
André Mendes Capraro – Professor do Programa de Pós-Graduação em História e do Departamento de Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: andrecapraro@onda.com.br.
Jhonatan Uewerton Souza – Mestrando do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. E-mail: jhonatanusouza@gmail.com.
Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche – OLIVEIRA (RFA)
OLIVEIRA, J. Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. Resenha de: LACERDA, Tiago Eurico de. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.24, n.35, p.663-669, jul./dez, 2012.
Um livro escrito para amigos. É assim que Jelson Oliveira, logo na introdução de sua obra, inicia uma reflexão sobre a amizade a partir de um ponto de vista filosófico. Inspirado por Nietzsche, o tipo de filosofia praticada por ele não é aquela que se mantém distante da vida, mas sim se enraíza nas vivências. E como na vida nada é tão retilíneo a ponto de manter uma estabilidade pura, da mesma forma o conceito de amizade apresentado pelo autor não se apoia nas concordâncias ou conforto de acordos, mas, no adverso, pois o autor afirma que “ao escolher um amigo, também auferimos um adversário”. E nessa transição paradoxal é que encontramos a beleza de toda a relação amical.
A amizade pode ser percebida em vários sistemas éticos na história da filosofia, pois muitos filósofos se dedicaram a refleti-la conceitualmente, desde os gregos aos contemporâneos, em diferentes nuances. Nietzsche não deixou de lado esse movimento conceitual provocado pelos vários tempos históricos e sociedades, mas integrou a amizade ao seu projeto de crítica à décadence da cultura e da moral ocidental, que busca, segundo o filósofo alemão, a incorporação de valores e costumes impostos a partir dos idealismos religiosos e metafísicos. Por isso, ao contrário do que é estável e pacífico, seu projeto de uma ética da amizade, conforme Jelson Oliveira nos mostra, visa a potencializar as resistências de forças para chegar ao resultado de um crescimento da própria força, levando o indivíduo a cultivar a si mesmo, se conhecer e se perceber na adversidade.
Assim como nos discursos filosóficos, o termo amizade geralmente esteve ligado à perda, ou temáticas sobre a morte, o mesmo podemos perceber na filosofia de Nietzsche. É nas obras do chamado segundo período de seus escritos que percebemos a ruptura com Richard Wagner e Carl Von Gersdorff e é nesse momento que ele também se desliga de Schopenhauer, seu maior “amigo” intelectual. Podemos dizer que é pela experiência pessoal de perda e rompimento que entenderemos o interesse de Nietzsche pela amizade fazendo que esse tema permaneça marcante em sua reflexão.
Segundo Jelson Oliveira, a amizade parte da tarefa humana de fazer de si mesmo o experimento, pois é só a partir dessa experimentação consigo mesmo que alguém pode tornar senhor de si e artista de si mesmo. E, para alcançar esse patamar de senhor de si, é preciso passar, por um lado, pela experiência da solidão e, por outro, pela experiência das relações conflitantes a partir da necessidade de compartilhamento da fartura e do contentamento conquistado nessa afirmação de si. A ideia da amizade difundida desde os gregos é que amigos são poucos, estando esse sentimento associado à raridade; estabeleceu-se a ideia de que a amizade verdadeira é sinal de coragem de se deixar questionar, de vivenciar as relações conflitivas para que haja um fortalecimento que estabeleça relações mais saudáveis com as pessoas. Assim, o conceito de amizade ligado à ideia de que o outro nos complementa e sempre está de acordo com nossos pensamentos precisa ser revisto a partir da figuração do amigo pensada por Nietzsche. Nessa encontramos o espírito livre, o andarilho e o inimigo. A essas figurações Nietzsche associa virtudes para que, pela via de sua prática, a amizade se torne um sentimento supremo: coragem, simplicidade e resistência.
Ao associar tais virtudes às figurações acima, Nietzsche pretende refletir e resgatar a grandeza e a coragem promovidas por um modelo ético que favorece a expansão das forças vitais. Isso porque as relações amicais possibilitam afirmação de si mesmo e crescimento dessas forças, o que não ocorre nas demais relações nas quais se predica a fraqueza, a pena, o medo, a recusa do combate. Tudo isso só é possível pela experimentação, que é uma condição do espírito livre: este carrega em si a tarefa de reinterpretação da moral, uma vez que legisla a partir do que favorece a vida e usa de suas próprias vivências para alcançar o conhecimento. E para que isso aconteça se faz necessário o retirar-se da forma de vida gregária, para poder fazer uma experiência de solidão que contrasta com a vida moderna, marcada pela moral da compaixão que reprime a possibilidade de cultivo de si mesmo e de uma amizade associada às noções nietzschianas.
Essa experiência da solidão torna a amizade possível: pelo distanciamento podemos ver o amigo de forma mais bela e mais nítida. Jelson Oliveira nos mostra como essa solidão não remete a um distanciamento por estar aborrecido ou temer as demais pessoas, mas é um momento sublime pelo qual podemos nos purificar para aprender a lidar com os outros se mantendo fiel a si mesmo. Nietzsche expressa que “precisamos ser honestos conosco e nos conhecer muito bem, a fim de poder praticar com os outros essa dissimulação filantrópica que chamamos de amor e bondade” (Aurora, 335). Pois muitos se empenham demasiadamente no conhecimento do outro e se perdem a si.
Quanto a isso, Jelson Oliveira ressalta que a solidão é o processo pelo qual se bebe da água mais pura, a água do próprio poço. Essa imagem do próprio poço contrasta com a da multidão dita por Nietzsche em Aurora, 491: “por isso vou para a solidão – a fim de não beber das cisternas de todos”. A solidão é o lugar onde se potencializa as forças para se encontrar consigo mesmo e viver de forma livre, podendo por essa experiência descobrir em si mesmo a alegria da vida e transbordá-la nas relações amicais. Nessas relações, os amigos se ajudam, pois partilham as mesmas vivências: ajudando o outro se ajuda a si mesmo, possibilitando a afirmação de si a partir de virtudes que ajudam a fortalecer a vida e estas são contrárias à moral da compaixão, pois se baseiam na partilha da alegria. Tais virtudes são: coragem, resistência, simplicidade e alegria.
Essas virtudes são, em Nietzsche, resultado da realização do jogo de forças, nas quais a figura do amigo busca forças para resistir à moral da compaixão e construir uma moral do futuro: este último é o papel do espírito livre, o qual não busca nenhum ideal de permanência, mas sua vida está pautada num nomandismo e não teme o confronto, pois é nos inimigos que encontra um jogo de forças que o leva a resistir e se fortalecer. Assim retomamos, então, a figuração do amigo supracitada com suas respectivas virtudes associadas para compreender a amizade como um tema teórico e também vivencial: ao espírito livre está associada a virtude da coragem; ao andarilho, a simplicidade; e ao inimigo, a resistência.
A coragem está na prática da liberdade do espírito. Somos corajosos quando não tememos experimentar novas relações, quando caminhamos com pessoas que não nos são próximas, mas com as quais, pela amizade, podemos compartilhar este experimento, utilizando a vida como fonte do conhecimento, não temendo e tendo como missão a reinterpretação da moral valorizando a vida humana e aquilo que lhe é própria. Oliveira afirma que o espírito livre não acredita mais na verdade de forma dogmática, porque não precisa dela e, por isso, se faz um experimentador. Este aprende a buscar de forma corajosa o seu próprio caminho até a verdade e a partir daí torna-se também um legislador. Essa coragem nasce da afirmação da própria força diante da vida. A virtude dos corajosos é a de quem conhece o medo e assim o vence, pois conhece o lado trágico da vida e, não o temendo, pode vencê-lo como a águia que se vê pairando acima de todas as coisas.
A simplicidade se associa ao andarilho, uma figura que não se apega a todas as coisas, mas ao que é importante, ao que significa algo para o crescimento, deixando de lado o que não ajuda chegar ao conhecimento de si. O apego a demasiadas coisas turva nossa visão daquilo que é realmente importante para a vida. Esse andarilho é um espírito livre que vive com “grande desprendimento”, se elevando sobre todas as ideias e opiniões fixas sobre o mundo e sobre si mesmo. Nessa concepção de simplicidade, encontramos o nomandismo, pelo qual cada indivíduo tem em si a concepção de mudança, o que se associa ao devir, como apresentado em Heráclito. Segundo o autor, o viajante nômade é o espírito livre e o indivíduo do experimento que se conhece como marcado e transformado, criado e alterado pelos lugares e experiências das viagens. Vivendo dessa forma, ele acredita que o mundo é a sua casa e esse é o “conforto” encontrado por aqueles que não esperam nada mais da vida do que simplesmente viver.
Por fim, na figura do inimigo, encontramos a resistência, aquilo que nos dá forças, o que nos coloca diante da parede e nos faz duvidar das nossas próprias certezas. E nesse sentido o autor destaca que a amizade é um campo de cultivo privilegiado, pois só nela se pode guerrear verdadeiramente com inimigos dignos e merecedores de atenção. Isso porque, nessa relação, o indivíduo pode lograr afirmação de si e aumento das forças, enquanto nas outras relações reina fraqueza, pena, medo e a recusa do combate, o que leva ao enfraquecimento. O importante é que, nessa guerra, ninguém abandone sua singularidade, mas que se deixe confrontar para perceber suas certezas e a possibilidade de mudá-las.
Essa possibilidade de mudança não tem nada a ver com o desprezo de si. Ao inverso, Nietzsche é contra esse processo, por isso convida a fazer de si mesmo o experimento. Abrir-se ao adverso, mas como isso é possível? “Livre-se do desgosto com seu ser, perdoe a seu próprio Eu, pois de toda forma você tem em si uma escada com cem degraus, pelos quais pode ascender ao conhecimento” (Humano, demasiado humano, I). É preciso estar bem consigo mesmo e se fartar de alegria para que o próximo passo seja transbordá-la, compartilhá-la na amizade. E para se encontrar neste ponto é preciso se afastar, buscar a solidão e, como salienta o autor acerca de Nietzsche, ele precisou se distanciar de si para conquistar, pela autodisciplina, que inclui a solidão, aquilo que ele realmente era. Somente assim ele pôde partilhar o seu tesouro, aquilo que descobriu que é. Como já afirmamos anteriormente, essa solidão não pode ser entendida como um afastamento, distanciamento para não estar mais com as pessoas. Não é uma misantropia, mas a consequência de um amor ávido demais pelos homens, um amor reservado e seletivo que é a amizade. Tratase de uma forma de evitar um amor que torna indigestível o outro.
Assim, o amigo é aquele que primeiramente alegra-se consigo mesmo e como experimenta tamanha grandeza dessa alegria consigo e com a vida, é que deseja tornar-se um afirmador, o que diz “sim”. A amizade é seu transbordamento. Espraia essa alegria por estar transbordante dela. E esta é uma virtude da relação amical, a partilha da alegria, tema do último capítulo de Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. E como pudemos ver na referida obra, os gregos se tornaram, segundo Nietzsche, também o povo da amizade, pois buscavam vencer e se destacar – isso porque foram, primeiro, um povo da alegria. Conseguiram fazer isso, pois não negavam as coisas humanas que lhes são próprias e se colocavam acima da alegria da equiparação, que leva ao enfraquecimento. Eles celebravam o corpo (não como oposto da alma) pela via da arte, pelo cultivo de si e pela valorização do trágico da existência, que se aproxima mais da vida como ela é; essa celebração não acontecia pela via das concepções idealistas que distanciam o homem de si mesmo e da vida, dando a ela uma finalidade inalcançável criada como um artefato da fraqueza.
Podemos concluir que a obra Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche apresenta de uma forma não somente didática, mas profundamente filosófica, uma reflexão acessível acerca da amizade; o fato de essa obra ser desdobramento de uma tese homônima de doutorado poderia dificultar a compreensão daqueles que não estão iniciados no assunto. Mas Jelson Oliveira trata o tema com tanta versatilidade e destreza que nos faz mergulhar em seus escritos nos impulsionando à reflexão e possibilitando uma nova cosmovisão a respeito de Nietzsche e da amizade, outrora não vistos com tanta clareza. A riqueza de citações ao longo do texto amplia nosso conhecimento à medida que nos coloca diante do próprio filósofo que questiona a ética da compaixão, adotada por certo cristianismo e busca, em contrapartida, com a ética da amizade, estabelecer novos parâmetros pelos quais o experimento desencadeará uma série de possibilidades; isso se justifica porque cada indivíduo tem sua própria vivência e é a partir de sua singularidade que ele estabelecerá suas relações, sem o medo do devir e com “novas leis” que encontra a cada passo nessa experiência de viver como andarilho.
Certamente esta obra, como o próprio autor a inicia, é um livro escrito para amigos, aqueles que já cultivamos e aqueles que ainda cultivaremos. É uma obra indicada tanto para os adeptos da filosofia de Nietzsche quanto para os que, sedentos de uma boa reflexão, desejam adentrar este mundo e aprender com o filósofo a se retirar para um lugar que possibilite o cultivo de si mesmo, a fim de não beber da cisterna de todos; eis a metáfora do lugar onde a singularidade da vida se mistura à vulgarização da multidão. Contra isso, a água própria, límpida e pura advinda da solidão e da liberdade espiritual, dá de beber a outros andarilhos-amigos.
Tiago Eurico de Lacerda – Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: tiagoe.lacerda@gmail.com
[DR]A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822 – LYRA (RBH)[
LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822. Prefácio de Izabel Andrade Marson. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. 256p. Resenha de: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.14, n.28, p.2268-270, 1994.
Cecília Helena de Salles Oliveira – Universidade de São Paulo.
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