A evolução improvável / William von Hippel

Von HIPPEL William 2 A evolução improvável

William von Hippel / Foto: UQ School Psychology /

HIPPEL W A Evolucao improvavel A evolução improvávelEm seu primeiro livro publicado, o psicólogo social William von Hippel (1963-) consegue se inserir na recente e já tão marcante coleção de obras que articulam os resultados de inumeráveis experimentos de laboratório, pesquisas em psicologia social e teoria da evolução. Com a primeira publicação no final de 2018 e tradução para o português em 2019, “A evolução improvável”[2] (“The Social Leap”, no original) busca utilizar as recentes descobertas da ciência evolutiva e pesquisas relacionadas para compreender vários aspectos da vida cotidiana e da história do ser humano, passando por questões aparentemente banais como o arremesso de pedras e chegando à grandes perguntas sobre a felicidade e as contradições da existência humana.

Professor de psicologia e pesquisador da Universidade de Queensland, Austrália, von Hippel estruturou seu livro de modo didático, partindo de questões mais abrangentes nos primeiros capítulos, e, aos poucos, a obra irá filtrando temas e situações específicas da vida humana que demandam mais atenção e cuidado na análise. Tais construções tornam-se nítidas já no prólogo, quando o autor utiliza três estudos de caso para responder, de antemão, uma pergunta que ele mesmo se coloca (imaginando, acertadamente, que os leitores em algum instante perguntariam), “como sabemos o que sabemos?”.

Essa pergunta, que pode parecer trivial, dialoga com o estado em que se encontra a Psicologia evolutiva no cenário acadêmico. Criada recentemente, nas décadas de 1980-1990 (com pesquisas no Brasil a partir de 2004), a Psicologia Evolutiva [3] vem enfrentando desde seu nascimento muitas críticas relacionadas a seus limites explicativos e especulativos [4], além das questões de rigor científico e de suas problemáticas interpretações morais [5]. Algumas dessas dúvidas, porém, são logo retiradas de cena quando von Hippel demonstra como a “contagem de mutações no código genético” de piolhos de diferentes tipos pode sugerir quando começamos a usar roupas (há 70 mil anos); ou como fontes históricas de registros de casamentos e mortes feitas por igrejas luteranas servem de evidência para analisar o papel das avós na história evolutiva dos humanos; e por fim, como a utilização de análises da presença de diferentes composições de estrôncio em dentes fossilizados sugerem que as fêmeas dos Australopithecus africanus abandonavam seu grupo de origem em certa idade para evitar a reprodução entre parentes próximos (evitando a endogamia).

A partir dessa breve elucidação metodológica, o livro se divide em dez capítulos, que estão, por sua vez, organizados em três partes. A primeira parte [“como nos tornamos quem somos”], será um esforço de releitura da trajetória evolutiva do Australopithecus até o Homo sapiens, destacando situações marcantes que influenciaram nossa formação evolutiva.

A nossa descida das árvores para as savanas, causada pela mudança gradual da vegetação a partir do movimento de placas tectônicas que elevou as regiões do Quênia, Tanzânia e Etiópia, secando boa parte do Vale do Rift, é um evento em destaque, pois mudou completamente a forma como convivíamos uns com os outros e com a natureza ao nosso redor, tornando a cooperação e o fortalecimento de grupos as nossas principais armas evolutivas.

O arremesso de pedra, por exemplo, dos Australopithecus afarensis, possibilitou nossas primeiras experiências de cooperação e trabalho coletivo. A evolução da esclerótica branca dos nossos olhos possibilitando uma “atenção partilhada” mais forte entre membros de um grupo, e a criação da divisão de trabalho pelo Homo erectus na produção das pedras acheulianas (mais pontiagudas e com dois gumes) fortaleceu os laços cooperativos e colaborativos humanos. Com o Homo erectus também vemos o alvorecer da maturidade evolutiva dos humanos, porque é partir de então que o ‘amanhã’ importará mais que o ‘hoje’ em nossas vidas, fato que ainda hoje nos caracteriza com ansiedades e preocupações quase sempre associadas às incertezas do “amanhã”, mas que em suas origens correspondiam à planejamentos e a uma consciência de estocar e carregar coisas para um uso futuro.

Assim, a hipótese do cérebro social é um dos principais conceitos da primeira parte, e de todo o livro, pois sugere que a nossa evolução cognitiva se deve a nossa crescente sociabilidade adquirida depois que passamos a viver nas savanas, dando margem para desenvolvermos a Teoria da Mente, a compreensão de que o outro pensa diferente de mim. Isso possibilitou maior capacidade de ensinar e aprender, como também aprimorou nossa habilidade de abstração e imaginação.

Salta aos olhos a quantidade de experiências que o autor cita ao longo do livro, o que representa uma estratégia argumentativa de nunca levantar hipóteses explicativas sem ter em mãos algumas evidências concretas para corroborá-las. Desse modo, na segunda parte [“usando o passado para compreender o presente”] von Hippel torna inteligível as vantagens evolutivas do autocontrole, mas também do autoengano, destaca nossa capacidade inventiva (Homo innovatio), inerentes a todos nós, mas que em geral se dão em inovações sociais (resolver problemas a partir de relações sociais) e com menos frequência em inovações técnicas (resolver problemas com criação de técnicas/tecnologias); e isso se explica pela nossa história evolutiva de hipersociabilidade, que nos ensinou a valorizar tanto as interações sociais com membros de nosso grupo (Homo socialis), mas não com outros grupos.

William von Hippel analisa como os riscos da interação entre grupos há milhões de anos pode ter evoluído à uma tendência de evitarmos a interação entre grupos, mesmo que valorizássemos a coesão interna do nosso grupo. Isso possui, segundo o autor, origens patogênicas além das rivalidades territoriais. Nosso organismo se adapta aos patógenos com os quais toma contato ao longo da vida do indivíduo e da história de sua genealogia, dessa maneira, o contato com grupos isolados pode trazer sérias consequências [6]. O autor amplia a análise e sugere até mesmo que essa seria a possível explicação de existir nos trópicos uma quantidade tão grande de religiões e línguas distintas, pois nessas localidades a grande quantidade de doenças gera uma maior resistência relacionada ao contato entre grupos; e continua: “Dessa forma, é provável que ameaças de patógenos sejam a fonte subjacente do que é conhecido como preconceito simbólico, ou a animosidade com grupos com práticas e crenças diferentes das nossas” [7].

Ainda na segunda parte, von Hippel estuda as implicações políticas da nossa evolução, apresentando o elefante e o babuíno como metáforas dos “tipos” de políticos mais democráticos e abnegados, e aquelas mais autoritários e individualistas, respectivamente. Esses “tipos” políticos ganham significados mais definidos com a ruptura político-social e psicológica que foi a Revolução Agrícola (estudada na primeira parte do livro).

A Revolução Agrícola transformou nossa psicologia, dando ensejo a uma série de armadilhas constituintes da nossa realidade como a propriedade privada, a desigualdade de gênero e a “normalização” da desigualdade econômica, porque só com a agricultura tais mudanças e acúmulos possuíam algum sentido e vantagem evolutiva. Assim, tal como o historiador Yuval N. Harari [8], von Hippel enxerga a Revolução Agrícola como um engodo ou a “grande fraude da história humana”, que nos trouxe vários benefícios, mas também inúmeros problemas [9].

Apesar disso, von Hippel utiliza os estudos de Steven Pinker para afirmar que a violência humana diminui significativamente ao longo dos séculos, e hoje apresenta seu menor índice em termos mundiais, em função da acelerada industrialização das cidades e do poder crescente de intervenção do Estado nas relações sociais dos indivíduos e seus conflitos.

Na última parte, denominada “usando o conhecimento do passado para construir um futuro melhor”, o autor coloca a “felicidade” no centro da discussão, e arrisca refletir sobre como podemos usar todos os conhecimentos que foram apresentados ao longo do livro para vivermos melhor. E por alguns instantes o autor parece escrever um capítulo de autoajuda, dando algumas ‘dicas’ e sugerindo ‘passos’ para uma vida mais feliz. Esse caminho é apenas uma escolha de estilo, pois desde o início von Hippel propõe ser bastante acessível e didático em sua construção intelectual, e nos últimos capítulos ele se esforça em reunir tudo que já foi dito para sintetizar as descobertas científicas recentes em lições que podem de fato nos ajudar no cotidiano, alertando principalmente para o que chama de indulgências fenotípicas, que “embora prazerosos, são apenas substitutos para nossas preferências evoluídas” [10] (p. ex.: filmes, drogas, masturbação etc.).

Desse modo, o autor não faz uso de clichês ou caminhos fáceis, e logo afirma que a felicidade não pode ser permanente, além de que, em nossa história evolutiva, sua razão de ser corresponde a sua finitude; e não só isso: a conquista da felicidade é relativa a cada pessoa, grupo e sociedade, mas todos possuem certas características biológico-evolutivas que podem ser úteis para nos conhecermos mais e assim vivermos de forma mais proveitosa. E essas características constituintes de nossa espécie são reunidas pelo autor em “dez passos fáceis”, abordando em forma de “lições” os principais pontos trabalhados nos dez capítulos do livro: (1) Permaneça no presente; (2) Busque momentos doces; (3) Projeta sua felicidade para permanecer saudável; (4) Acumule experiências, não coisas; (5) Dê prioridade a comida, amigos e relações sexuais; (6) Coopere; (7) Entranhe-se na comunidade; (8) Aprenda coisas novas; (9) Use suas forças (suas habilidades específicas); e (10) Busque a fonte original (não se satisfaça apenas com as indulgências fenotípicas) [11].

Por fim, percebemos que von Hippel foi bem sucedido em seu objetivo de apresentar uma história evolutiva humana que fosse capaz de fornecer conceitos explicativos sobre nossas vidas na contemporaneidade, permitindo-nos acessar um conhecimento prático-reflexivo, demonstrando assim a grande aplicabilidade dos estudos da evolução e da genética nas ciências sociais e humanas12, proporcionando uma compreensão dos comportamentos e das culturas humanas sob a perspectiva biológica, mas sem deixar de lado as influências e determinações associadas ao ambiente em que vivem os indivíduos e as sociedades florescem.

Notas

2. Infelizmente, a tradução do título para o português não resgatou o sentido do original, que, numa tradução livre, poderia ser “O salto social”, mais próximo do ponto central da obra que é demonstrar a importância seminal da sociabilidade para a evolução da nossa espécie; e com “salto” poderíamos interpretar a descida das árvores para as planícies das savanas, que nos obrigou a sermos mais cooperativos e sociais, marcando a separação definitiva entre nós e os outros primatas.

3. Que tem sua origem mais distante nas obras de Darwin a partir de 1859, mas surgiu como campo de estudo definido a partir da matriz da Sociobiologia de meados do século XX.

4. Ver: VERNAL, Javier. As explicações da psicologia evolutiva. Investigação Filosófica: vol. E1, artigo digital 4, 2011.

5. HATTORI, Wellisen Tadashi; YAMAMOTO, Maria Emília. Evolução do comportamento humano: Psicologia evolutiva. Estud. Biol., Ambiente Divers. 2012 jul./dez., 34(82), p. 101-112.

6. O que para a história do continente americano não é nenhuma novidade, vide o genocídio dos autóctones pela invasão dos europeus ser principalmente causado pela transmissão de patógenos não existentes neste continente. (HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 16-19).

7. HIPPEL, William von. A evolução improvável. – Tradução de Alexandre Martins. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Haper Collins, 2019, p. 207.

8. HARARI, Yuval Noah. A Revolução Agrícola. In: _____. Sapiens: uma breve história da humanidade. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2018, p. 113-219.

9. “Quando comparamos os custos e benefícios, vemos que a agricultura permitiu a nossos ancestrais algumas garantias contra a fome, mas ao custo de diversas novas doenças, menos estatura e longevidade, uma halitose repulsiva e com frequência um dia de trabalho muito mais longo. O resultado final foi que os primeiros fazendeiros trabalhavam mais para ter uma vida pior que a de seus antepassados” (HIPPEL, op. cit., 73).

10. Ibidem, p. 265-268.

11. Ibidem., p. 238.

12. Um exemplo seria a recente obra de Francis Fukuyama, As origens da ordem política, que na primeira parte do livro utiliza os resultados de pesquisas em genética e teoria da evolução para explicar certos estágios e eventos fundamentais de nossas história política, usando também conceitos e raciocínios próprios da antropologia e da arqueologia socio-evolutiva. (FUKUYAMA, Francis. Antes do Estado. In:______. As origens da ordem política: dos tempos pré-históricos a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 17-115).

Agenor Manoel da Silva Filho – Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Correio eletrônico: manoel0agenor@gmail.com.


HIPPEL, William von. A evolução improvável. Tradução de Alexandre Martins. 1. Ed. Rio de Janeiro: Haper Collins, 2019. 304, p. Resenha de: SILVA FILHO, Agenor Manoel. A revolução diferenciada. História.Com. Cachoeira, v.7, n.13, p.125-129, 2020. Acessar publicação original [IF].

Assim caminhou a humanidade – NEVES et al (CA)

NEVES, Walter Alves; RANGEL JUNIOR, Miguel José; MURRIETA, Rui Sergio (Orgs.). Assim caminhou a humanidade. São Paulo: Palas Athena, 2015, 318 p. Resenha de: SILVA, Sergio Francisco Serafim Monteira da. Clio Arqueológica, Recife, v.34, n3, p.171-193, 2019.

Conforme os organizadores de Assim Caminhou a Humanidade, o Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo seria o único no Brasil, em 2015, capaz de sanar a carência de publicações em português mais atualizadas sobre o tema da evolução humana. O ensino da Biologia, Antropologia, Arqueologia no nível da graduação e a divulgação científica ao grande público, seriam o foco desta publicação. A partir de um curso de pós-graduação e da disponibilidade de réplicas de hominínios da coleção Thomas Van der Lann, foi proposto o plano deste livro, onde os alunos também protagonizaram seus subtemas.

Entre algumas das publicações internacionais inacessíveis a esse ‘grande público’ brasileiro estariam, por exemplo, o The Human Lineage, de Cartmill e Smith; o The Human Career, de Richard Klein; o Handbook of Human Symbolic Evolution, de Lock e Peters; Human Evolution, Trails from the Past, de Cela- Conde e Ayala; The Human Evolution Source Book, de Ciochon e Fleagle; ou o Handbook of Paleoanthropology, em três volumes, editados por Winfried Henke e Ian Tattersall, por exemplo2. Outras, assemelhadas ao Assim caminhou a humanidade, em português, estão o Como nos tornámos humanos, de Eugénia Cunha e duas traduções, Evolução Humana, de Roger Lewin e O despertar da cultura: a polêmica teoria sobre a origem da criatividade humana, de Richard G.Klein e Blake Edgar3. Este último apresenta alguns rudimentos do The Human Career.

Sobre o mesmo tema, de uso para o ensino e a aprendizagem nas universidades e escolas nos EUA, está o Our Origins (Discovering Physical Anthropology), de Clark Spencer Larsen, do Departamento de Antropologia, da The Ohio State University e as três primeiras partes do Anthropology, de Willian A. Haviland, da University of Vermont. Também, de uso em sala de aula, destaca-se o livro Exploring Physical Anthropology, capítulos 1, 10 a 14, de Suzanne Walker- Pacheco, da Missouri State University4. Esta autora também utiliza réplicas de hominínios fósseis para ilustrar seu texto e as atividades propostas para os alunos. Nas livrarias menos acessíveis ao ‘grande público’, também disponibilizaram no Brasil, a custos módicos, o Evolution, the human story, livro ricamente ilustrado, de autoria de Alice Roberts5.

Retornando ao nosso livro em português sobre evolução humana, Assim caminhou a humanidade, vamos localizar algumas autodescrições, feitas na apresentação e na introdução. Reinaldo José Lopes, repórter e colunista da Folha de S. Paulo, acrescenta que este livro perfaz, provavelmente, o relato mais completo em língua portuguesa sobre o conhecimento que temos dos nossos parentes, também primatas e da nossa própria história como espécie. O livro trata da gênese dos primatas (incluindo aqui, a do homem anatomicamente moderno) e de forma sucinta e clara, foca nos métodos e formulações de hipóteses que caracterizam toda forma de ‘boa ciência’. Os ‘decentemente alfabetizados’ poderão ler e entender este livro. O passado remoto, para ser reconstruído, gera perguntas à ciência, que nem sempre são trivialmente respondidas, como a questão de como nos tornamos bípedes ou o que teria ocasionado a extinção dos neandertais. Reinaldo agradece os organizadores pelo lançamento do livro, com crítica a uma demora pelo seu lançamento e considera a importância do livro para o desenvolvimento e fundamentação mais adequados dos textos jornalísticos sobre evolução humana.

Na Introdução, os organizadores adiantam que o livro é uma forma de divulgar em linguagem acessível, aquilo que há demais importante e atual sobre o estudo da evolução humana, área do conhecimento científico que progride rapidamente e na qual as informações podem se tornar ultrapassadas em questão de meses. Assim, no final de cada capítulo, propõem um tema para discussão em um quadro que denominaram ‘O que há de novo no front’, para minimizar a velocidade e o atraso que caracterizam o estudo da evolução humana. Talvez esse atraso possa ser minimizado pelo poder da ditadura Genômica (comparativa) e os avanços inquestionáveis da Bioinformática (e possivelmente da Proteômica) aplicada à própria Genômica. Observar a morfologia (plausível no contexto da arqueologia, paleoantropologia, em fósseis e fragmentos de ossos e dentes) ou observar o genoma inteiro (plausíveis no contexto da genética médica, em contextos clínicos ou hígidos): compreender o todo da evolução.

Assim, os livros citados nos primeiros parágrafos desta resenha já estariam, de certo modo, ‘atrasados’ em relação ao desenvolvimento líquido da evolução humana (teoria evolutiva moderna). Esse ato retroativo, o voltar ao passado e compreender o avanço do presente e o futuro é absolutamente líquido. As novidades estariam – pois já não estão mais, obviamente – nos artigos científicos publicados entre 2013 e 2014 na área da evolução humana. A atualização é uma prerrogativa do livro e uma forma de presumivelmente mantê-la está na previsibilidade de novas hipóteses a serem verificadas no futuro. Nessa linha, os conceitos sobre espécie, especiação e gênero não são imutáveis e estão sempre em processo de construção. Desse modo, o livro está segmentado em sete capítulos relacionáveis ou sinergeticamente vinculados, sempre contendo um campo para temas novos e sugestões para leitura.

O primeiro capítulo, Nós primatas, apresenta as características físicas gerais dos primatas, sua classificação (anatômica e molecular) e diversidade; o campo especial do estudo da primatologia; o comportamento social dos primatas em sociedades complexas, variáveis e estáveis (sociobiologia dos primatas); a competição e a cooperação entre os primatas, em especial em relação as hierarquias de sexo; elementos de uma ‘cultura’ primata associados à vocalização e uso de ferramentas; os riscos de extinção dos primatas e formas de preservação de suas populações no nível global. O ‘nós’ inclui, obviamente, o Homo sapiens.

A história evolutiva dos primatas é desenvolvida no segundo capítulo. Os aspectos biológicos estão amalgamados aos estratos, à geomorfologia, ao tempo e à mudança. É traçado um panorama do cenário para a origem dos primatas, com registros paleontológicos de cerca de 56 milhões de anos atrás, no Eoceno. Neste capítulo, um texto selecionado trata da cladística para a classificação dos seres vivos e outro sobre anatomia do esqueleto. Na sequência, são discutidas a deriva continental e as mudanças climáticas; a causa do aparecimento dos primatas; os primatas ‘arcaicos’; os euprimatas do Eoceno; o surgimento dos primeiros antropoides; a origem e diversidade das famílias dos antropoides na África, Europa e América; as questões ambientais relacionadas a evolução dos antropoides; questões sobre a origem dos proconsulídeos (o conhecido Proconsul africanus, por exemplo); os hominoides (o Dryopithecus e o Sivapithecus), a origem dos mais antigos tarsiiformes e os paleoambientes dos primeiros dos primeiros hominoides.

Uma descrição sintética das principais pesquisas e descobertas dos fósseis de australopitecíneos, pré-australopitecíneos e os primeiros Homo desenvolve-se em Primeiros Bípedes, o terceiro capítulo. O surgimento da nodopedalia e da bipedia como características dos hominínios; o aparato mastigatório dos hominínios; a diversidade dos pré-australopitecíneos. Neste capítulo são apresentadas as características de três gêneros de pré-australopitecíneos que viveram entre 7 e 4,4 milhões de anos atrás (Sahelanthropous, Orrorin e Ardipithecus). Um texto incluso apresenta as técnicas de datação dos registros fósseis. O capítulo segue apresentando as origens, diversificação e morfologia dos australopitecíneos, incluindo os australopitecíneos gráceis entre 4,5 e 1,78 milhão de anos atrás (Australopithecus anamensis, A. afarensis, A. africanus, A. garhi, Kenyanthropus platyops e A. sediba) e australopitecíneos robustos, entre 2,7 e 1 milhão de anos atrás (Paranthropus aethiopicus, P. boisei e P. robustus). Quanto a diversidade  dos primeiros primatas bípedes, consideram-se 4 espécies de préaustralopitecíneos e 10 de australopitecíneos, aí incluindo o A. bahrelghazali e a coabitação entre eles durante o Mioceno, Plioceno e Pleistoceno, entre 7 e 1 milhão de anos atrás. Hipóteses menos controversas indicam a relação de especiação entre A. afarensis, A. africanus, A. sediba e Homo sp. São apresentadas questões sobre o Orrorin e a sua relação ancestral com humanos e chimpanzés, a evolução da dieta dos australopitecíneos e a bipedia diversificada entre os autralopitecíneos a partir de análise de ossos dos membros inferiores de um A. sediba.

No capítulo IV é introduzida a questão da origem e dispersão do gênero Homo. A nomeação do ‘homem habilidoso’, o Homo habilis é dada por Louis Leakey aos registros fósseis anatomicamente semelhantes aos australopitecíneos e associados a artefatos líticos encontrados em Olduvai, na África, sendo este continente considerado o centro de dispersão do gênero Homo. O H. habilis estaria situado em cerca de 2,4 a 1,4 milhão de anos e produziu artefatos líticos associados a indústria lítica Olduvaiense, representados por talhadores do tipo ‘choppers’ e lascas simples. Entre eles destacam-se no capítulo o fóssil KMN-ER 1813 (H.habilis) e o KMN-ER 1470 (H. rudolfensis ou Kenyanthropus rudolfensis). Sobre o Homo erectus, foi citado o fóssil KMN-ER 3733, de 1,8 milhão de anos, encontrado no Lago Turkana, Quênia, África e o D2700 (variação de H. erectus ou de H. habilis), encontrado a 1,8 milhão de anos em Dmanisi, na República da Geórgia, no Cáucaso fora da África. A questão do H. habilis ou formas transicionais ou erectíneas fora da África, com cérebros menores e industrias líticas reduzidas é consolidada.

No mesmo capítulo, o Homo erectus aparece no registro fóssil na África há 1,6 milhão de anos e se expande até a Indonésia por volta de 27 a 70 mil anos. O fóssil LB1, crânio de Homo floresiensis, espécie com nanismo insular, teria habitado a Ilha de Flores entre 74 e 17 mil anos. Sua indústria lítica moderna contrasta com a pequena capacidade craniana de 385 a 417cm3. Este constituiria mais uma variação do Homo, para além do H. habilis e do H. erectus (ou uma de suas variações). Na China o H. erectus foi datado em 700 mil anos. Possuía estatura inferior a 1,60m. Na Europa, o H. erectus aparece entre 1,2 milhão de anos (Atapuerca, Espanha) a 450 mil anos (Ceprano, Itália).

O capítulo possui uma seção destinada à descrição da morfologia do H. erectus (incluindo o caso do ‘garoto de Turkana’, o WT-15000, COM 1,6 milhão de anos e com idade biológica estimada entre 8 e 12 anos e com estatura de 1,70m). Produziam artefatos Olduvaienses e Acheulenses (Modo 2, retocados dos dois lados). As marcas de cortes em ossos indicam descarnamento de carniças e de carcaças de animais também recém-abatidos pelo H. erectus. Entre 1,5 e 1 milhão de anos, o H. erectus utilizou o fogo. Neste capítulo é feita uma introdução ao estudo do Homo heidelbergensis , cujo holótipo teria sido encontrado nos depósitos fluviais do rio Neckar, a cerca de 10km a sudoeste de Heidelberg, na Alemanha, em 1907 e datado entre cerca de 569 a 609 mil anos. A este novo Homo, seguiram-se os de Petralona e Arago (Europa), Bodo, Ndutu, Kabwe e Elandsfontein (África) e Kocabas, Hathnora , Dali e Maba (Ásia), todos com definição de espécie um tanto complexa. Produziram artefatos líticos de indústrias Acheulenses e Musterienses e abrigos de rochas e galhos por volta de 380 mil anos. No quadro referente ao algo novo no front, os autores do capítulo apresentam evidência favorável a presença do H. erectus em Dmanisi; o H. erectus é associado ao surgimento da indústria lítica Acheulense e ao uso controlado do fogo entre 790 mil (Israel) e 1 milhão de anos atrás (África do Sul).

O capítulo V trata do tema Os Neandertais. Esta espécie de Homo teria se originado, juntamente com os denisovanos, há cerca de 500 mil anos a partir da população de Homo heidelbergensis que habitava a região da Eurásia. Na África, a população de H. heidelbergensis originou há 200 mil anos o Homo sapiens. Esta espécie de homem anatomicamente moderno dispersou-se pela região de Israel há 120 mil anos e para os demais continentes por volta de 50 mil anos. O H. neanderthalensis na Europa foi substituído pelo sapiens em um período de 10 mil anos aproximadamente. Essa dinâmica de extinções e especiação é descrita neste capítulo. O holótipo do H. neanderthalensis é a calota craniana do Neandertal 1, descoberta na caverna de Feldhofer, vale do rio Neander, Alemanha, em 1856. O artigo faz referência a produção de cerca de 250 artigos sobre o Homo piltdownensis (classificado assim por Arthur Keith), um fóssil criado por volta de 1908 (fragmentos de neurocrânio humano, mandíbula de Pongo e dentes de um Pan fóssil) e cuja fraude foi descoberta em 1953. A encefalização nesse caso teria  ocorrido antes da mudança na dieta. A descoberta da fraude, do pseudofóssil, denota, segundo os autores, a autocorreção da ciência. Sobre os neandertais, ocuparam a Europa Ocidental, Oriente Médio, Rússia (Sibéria), sem, contudo, aparecerem no registro fóssil africano ou do sul da Ásia. Habitaram essas regiões entre as eras glacial e interglacial, no Pleistoceno Superior, entre 170 mil e 30 mil anos. Seus crânios são menos neotênicos que os do H. sapiens, com tórus supraorbitário característico, face projetada para a frente, abertura nasal ampla, capacidade craniana e volume craniano elevados, neurocrânio longo e baixo, dentes volumosos (taurodontia) e incisivos em forma de pá, occipital proeminente (occipital bun, ou coque occipital), ausência de queixo e espaço retromolar. Sua morfologia e volume corporal associava-se a adaptação a ambientes frios. Teriam deficiência no balanço corporal, denotada pelas características da cóclea no ouvido interno em corridas e ênfase no sistema visual, pelas dimensões orbitárias; antebraços e pernas mais curtos que os do H. sapiens; estaturas variando de 1,69m a 1,60m; tórax em forma de tonel; pelve larga. Essas características apontam adaptação a ambientes frios. Pesquisas com mtDNA de um H. neanderthalensis de 38 mil anos possibilitaram identificar um ancestral comum com o H. sapiens a cerca de 600 + 140 mil anos. Em pesquisas com DNA nuclear o gene FOXP2, relacionado à fala, está presente no neandertal e no sapiens. Em 2010, segundo pesquisadores do Instituto Max Planck, um novo sequenciamento de DNA de neandertal indicou compartilhamento de 99,84 por cento entre esta espécie e o H.sapiens. A origem do H. neanderthalensis estaria relacionada ao Homo antecessor, espécie derivada do Homo erectus na região mediterrânica. O capítulo salienta, para fins de síntese, considerar os H. neanderthalensis como uma variante do H. heidelbergensis na Europa e o H. sapiens uma variante do H. heidelbergensis na África. A árvore filogenética do gênero Homo torna-se complexa com a introdução dos denisovanos, geneticamente mais próximos do H.heidelbergensis.

Na árvore filogenética proposta no capítulo V indica que possivelmente em diferentes regiões da Eurásia, populações de H. sapiens, H. neanderthalensis, H.floresiensis, H. erectus, denisovanos teriam coexistido por um breve período de tempo, entre 20 mil e 30 mil anos, ou pouco mais. O capítulo trata da tecnologia lítica e domesticação do fogo entre as várias espécies. Estima que os neandertais, em relação ao comportamento, viviam em grupos pequenos, resultando em baixa diversidade genética. Vivendo em regiões de clima glacial, sua expectativa de vida não chegava aos 40 anos, possuíam deficiências nutricionais severas, traumas e injúrias constantes e que eram alvo de cuidados por longos períodos. Análises dos esqueletos e dentes dos neandertais indicaram que possuíam alto nível de atividade física e demandavam elevado consumo de calorias, com dieta onívora.

Deveriam organizar estratégias de subsistência (caça, pesca, coleta, cozimento dos alimentos, consumo, usos e processamento de plantas) e convivência complexas e cooperativas. O capítulo ilustra possibilidades para o desenvolvimento do pensamento simbólico entre os neandertais, pelo uso de pigmentos e conchas perfuradas. Entretanto, os autores do capítulo afirmam que existe dificuldade em aceitar a ideia de que os neandertais realizavam sepultamentos pela ‘ausência de artefatos claramente simbólicos’ no local da inumação. Trata-se de um problema, visto que a deposição mortuária de La Chapelle-aux-Saints possuía ossos de um mamífero em associação. Entretanto, a necessidade da presença de ‘artefatos claramente simbólicos’ para caracterizar deposições funerárias em qualquer população humana não é uma regra.

Ainda neste capítulo, de novo no front há a possibilidade de formas híbridas resultantes de intercruzamentos entre neandertais e sapiens; as expressões diferenciadas de mesmos genes em humanos modernos e neandertais; indicadores de possíveis intercruzamentos entre neandertais e H. sapiens arcaico.

No capítulo VI, Origem e dispersão dos humanos modernos, os autores retomam a história geral dos estudos da origem do ser humano e do pensamento simbólico e representações resultantes. Em formato linear e cronológico, o Histórico neste capítulo cita vários eventos relacionados ao estudo das origens do ser humano: antes do séc. XVIII, com viés religioso, com a criação das espécies por divindade sua explicação e repetição continuada por centenas de anos (e mesmo na história do presente): no séc. XIX, com a divulgação de ‘A Origem das Espécies’, de Charles Darwin, com a formulação da evolução das espécies e o mecanismo da seleção natural; o foco no registro fóssil, desde a primeira metade do séc. XIX, seguindo-se ao achado fortuito da calota do vale do rio Neander em 1856, holótipo do H. neanderthalensis; de remanescentes de H. sapiens (Cro-Magnon 1, 2 e 3) de Les Eyzies, na França, em 1868, de Chancelade, em 1880 e de Combe-Capelle, em 1909, na França; em toda a Europa o homem anatomicamente moderno estava presente por volta de 35 mil anos; em 1897 surge a caverna de Altamira, na Espanha e entre 1871 e 1901 as cavernas de Grimaldi, na Itália são escavadas; os sítios com artefatos líticos e em osso da República Checa, escavados entre 1881 e 1904; em Java foram localizados remanescentes de H.sapiens de 6 mil anos entre 1888 e 1890; em 1912, foram descobertas as cavernas de Les Trois Frères, em Ariège, com registros rupestres e artefatos líticos e em osso; surgem as importantes cavernas de Lascaux e Chauvet, na França, ambas com registros rupestres.

Este capítulo cita e associa o desenvolvimento do método arqueológico no início do século XX a Gordon Childe e Mortimer Wheeler e as novas direções técnicas nas pesquisas que se seguiram. A origem e dispersão do H. sapiens puderam ser estudadas a partir das descobertas de outros sítios que incluíram, entre outros, Singa, Sudão (1924); Skhul V, Israel (1932); Qafzeh 6, Israel (1933); Hofmeyer, na África do Sul (1952); Liujiang, China (1958); Omo I, Etiópia (1967); Kow Swamp, Austrália (1967); Laetoli, Tanzânia (1976); e Oase 2, na Romênia (2003).

São descritas as características anatômicas cranianas e ‘pós-cranianas’ do H.sapiens. A morfologia do nosso crânio e ‘pós-crânio’ pode ser caracterizada pela capacidade cefálica elevada (acima de 1300cc), neurocrânio alto, escama do occipital arredondada e sem tórus, dimorfismo sexual relativo, face ortognata ou mais retraída, presença de fossas caninas, presença de queixo, arco superciliar e  bordas supraorbitárias substituem o tórus supraorbitário, ausência de espaço retromolar, antebraço e pernas mais longos (em relação aos neandertais), abertura nasal anterior mais estreita que nos neandertais, quadril e tronco mais estreitos (em relação aos neandertais e H. erectus), entre outras. Associados a essa análise morfológica comparada, os estudos moleculares têm sido mais intensivos e modificam paradigmas antigos a cada semana. As inferências genéticas caracterizam os fósseis de uma forma que as análises morfológicas diretas dos fósseis (mesmo a morfometria geométrica comparada e a análise epigenética) não possibilitariam alcançar: seus resultados são mais contundentes.

A reconstrução das relações entre populações pré-históricas cada vez mais prescinde das análises de mtDNA e do cromossomo Y, usados para reconstituir longas linhagens de descendência (feminina). Arvores que expressem relações evolutivas entre populações podem ser construídas considerando-se a similaridade observada entre variantes novas existentes entre as populações, fixadas pela deriva genética, ou a mudança aleatória da frequência gênica em populações de diferentes tamanhos. Nesse sentido, o mtDNA e o cromossomo Y (sua contraparte masculina), são adequados para verificar a extensão da relação entre ancestralidade e descendência entre populações humanas que compartilham um único ancestral (‘Eva mitocondrial’). Tanto o mtDNA, quanto o cromossomo Y, indicam que o ser humano teve origem na África e depois se dispersou (pelos haplogrupos M e N e os seus haplogrupos diversificados, A, B, C, D e X, presentes nos grupos humanos americanos). As técnicas de extração do DNA em  ossos antigos consideram a abundância do mtDNA em relação ao DNA nuclear. É evidente que o controle ineficaz de agentes contaminantes por gerenciamentos laboratoriais deficientes prejudica e inviabiliza quaisquer análises biomoleculares.

Ainda, no penúltimo capítulo, as contribuições da arqueologia podem gerar explicações diferentes sobre um certo fenômeno evolutivo e de mudança comportamental. A origem do H. sapiens pode ser explicada mediante as hipóteses da origem multirregional ou trellis model (anos 1970); pela saída da África ou Out of África e pela hibridização. Esses modelos são explicados e consideradas as suas limitações e alcances explanatórios para a nossa origem.

Todos levam em consideração a origem africana do H. erectus, sua dispersão pelo Velho Mundo a partir de 1,8 milhão de anos. As variações nos modelos surgem em relação à forma de evolução da espécie humana moderna: no primeiro caso, do trellis model, os humanos evoluíram em um continuum a partir de um ancestral (H. erectus), ocupando os 4 continentes; no Out of África, os humanos originaram-se de populações africanas de H. heidelbergensis e foram substituindo as outras espécies de hominínios existentes; no terceiro modelo, os humanos originaram-se do H. heidelbergensis, na África, com expansão para os 4 continentes caracterizada por trocas gênicas com as outras espécies de hominínios existentes.

Sobre a antiguidade do H. sapiens, o capítulo cita os achados do sítio Omo, na Etiópia, com remanescentes de 200 mil anos; no sítio Herto, também na Etiópia,   com 154 a 160 mil anos; nos sítios Qafzeh e Skhul, em Israel, com fósseis datados entre 130 mil e 90 mil anos, já em área de transição entre África, Ásia e Europa.

Assim, os humanos saíram da África pelo Oriente Médio, antes de chegar à Europa e Ásia. Outros registros fósseis indicam a presença na Europa de neandertais entre 150 mil e 30 mil anos e de H. sapiens após 40 mil anos. Na Romênia, República Checa e na França (Cro-Magnon), as datações para o H. sapiens alcançam 35 mil, 31 mil e 27 mil anos, respectivamente. Na China, em Zhoukoudien, Tianyuan e Liujiang, as datações indicam 30 mil, 40 mil e 68 mil anos para a presença do H. sapiens moderno. Na Indonésia, em Niah, foram datados entre 39 mil e 45 mil anos. Em Laetoli, Tanzânia, África, o crânio Ngaloba LH 18 foi datado em 120 mil anos. Um fóssil de H. sapiens encontrado em Singa, Sudão, apresentou idade entre 120 mil e 150 mil anos. Na perspectiva genética, com o emprego de métodos moleculares (análise de mtDNA, n DNA e cromossomo Y) o H. sapiens originou-se na África entre 220 mil e 120 mil anos. Então, o H. sapiens teria surgido a cerca de 200 mil anos, no nordeste da África.

As rotas de dispersão do H. sapiens perfazem um dos temas tratados neste capítulo. São sugeridas algumas das rotas de dispersão humana a partir da África, que levam em consideração a presença de registros fósseis humanos nos continentes e as suas relações, ‘movimentos migratórios’, ‘ondas migratórias’, ‘recolonizações’, ‘contatos’, ‘dispersões’, ‘hipóteses de colonização’. São consideradas as datações, morfologia comparada do registro fóssil e dados de modelos genéticos. O continente americano teria sido o último a ser ‘colonizado’ Entre 30 mil e 13 mil anos, o nível do mar possibilitava a passagem de hominínios entre o Alasca e a Sibéria e nesse caso, remanescentes da sua presença foram datados entre 15 mil e 13 mil anos.

Outro aspecto tratado no capítulo VI é a ‘explosão criativa do Paleolítico Superior’, caracterizado pela presença de vestígios representativos das formas de pensamentos simbólicos ou expressões simbólicas do pensamento, sob a forma de objetos de cultura material (e imaterial). Nesse subtema, a questão está na ‘evolução do comportamento simbólico’, uma ‘especificidade humana’ do H.sapiens. Essa ‘revolução’ teria ocorrido no Paleolítico Superior, por volta de 50 mil anos. Para os autores do capítulo, a palavra ‘cultura’ somente poderia ser empregada ‘em todo o seu potencial’ a partir de 50 mil anos. Existiria um ‘antes’ e um ‘depois’ de uma ‘explosão criativa’, que teria gerado inúmeros registros arqueológicos da sua ocorrência e que ‘evolui’ até os dias atuais. A identificação de uma mudança cognitiva há 50 mil anos caracteriza o modelo explicativo (especulativo) de Richard Klein, o modelo neuronal. Existiriam ‘genes’ ligados ao ‘desenvolvimento cerebral’ e a sua ‘evolução abrupta’ teria levado a essa ‘revolução cultural’. Esta perspectiva merece uma refinada revisão que não cabe nesta resenha. A palavra cultura (e não o conceito de cultura) é aclamado, sem aspas e sem restrições. Antes – de 50 mil anos – deve ser usada como ‘cultura’, com ‘restrições’.

Um dos pontos apresentados em defesa de uma ‘verdadeira cultura humana’ está na variabilidade ou substituição da matéria prima (lítica) escolhida para a construção dos artefatos; ferramentas cada vez ‘melhor trabalhadas’; substituição das lascas por lâminas; uso do fogo para queima controlada da argila, outra matéria prima da revolução cultural; construção de ferramentas compostas por mais de uma matéria prima; pontas ósseas elaboradas com propósitos específicos (abater, sangrar, agarrar, transpassar, amortecer); propulsores; uso de recursos marinhos para alimentação e adorno; construção de embarcações e instrumentos próprios para a pesca; uso de pigmentos e elaboração de tintas (a partir do momento no qual os neandertais podem ter feito uso de pigmentos, esta prática não está mais associada ao comportamento simbólico complexo do H. sapiens, exclusivamente); as formas de ‘arte’ expressas pelas representações antropomorfas tridimensionais e pelos registros rupestres de cenas diversificadas da vida cotidiana e dos outros animais e objetos. ‘Arte’ significa a demonstração de algum ‘grau de simbolismo’, com ‘complexidade significativamente maior’. As pinturas rupestres ‘bem acabadas’, esculturas que sugerem ‘xamanismo’ e as ‘pequenas esculturas simbolizando a figura feminina com traços de fertilidade exagerados’ (vênus de Brasseimpouy, de Willendorf I, de Lespugne), as figuras de animais esculpidas ou gravadas em osso e marfim (cabeça de cavalo de Mas de A’ zil, hiena de Madeleine-Dordogne e um mamute de Madeleine-Dordogne) e e os primeiros registros de ‘atividade religiosa’.

Os sepultamentos humanos são um componente social importante da revolução criativa pós 50 mil anos. Mesmo não sendo exclusivos desse período, somente nele é que passaram a ocorrer em grande número e aumentar sua incidência no registro arqueológico. Em Cro-Magnon ocorrem nos sepultamentos, conchas e dentes perfurados, com ocre abundante. Os sepultamentos foram denominados pelos autores de ‘sepultamentos ritualísticos’, numericamente expressivos no Paleolítico Superior. Outra característica da ‘revolução’ (ou ‘mutação’, no sentido genético) estaria no aumento da complexificação da organização social. Recursos ambientais escassos implicavam em grupos sociais pequenos, com menos de 30 pessoas. Recursos abundantes, grupos sociais expandidos a mais de 200 pessoas.

Instituem-se áreas específicas nos assentamentos para a elaboração de certos artefatos e práticas. O capítulo considera a ‘explosão cultural’ do Paleolítico Superior como ‘avassaladora’ em relação as suas evidências no registro arqueológico. Distinguem-se comportamento moderno de comportamento não-moderno, mediante a explicação do modelo neuronal de Klein. Entretanto, objeções à cronologia fixa dos 50 mil anos existem. Na África do Sul, os sítios de Blombos e de Pinnacle Point apresentaram conchas perfuradas, com ocre, artefatos em osso, uso controlado do fogo para a construção de objetos e caça especializada de moluscos entre 76 mil anos e 164 mil anos. Portanto, 50 mil seria pouco para a ‘explosão criativa’. Um modelo não-neural associa a origem da expressão simbólica ao surgimento gradativo e cumulativo dos comportamentos simbólicos  no período de aproximadamente 150 mil anos. Para justificar essa hipótese, considerou-se a presença de oferendas e adornos em sepultamentos e uso de pigmentos encontrados em Qafzeh, Israel, com 100 mil anos, como sinônimos de comportamento simbólico complexo. A acumulação lenta de hábitos complexos pode estar relacionada a concentração de pessoas em grandes assentamentos e sua relação com outros assentamentos, propiciando o comportamento simbólico. O comportamento simbólico complexo depende, então, de uma condição demográfica favorável. Poderia existir sempre, dentro do H. sapiens, entretanto, nem sempre em condições de ser impulsionado. Funciona como uma hélice do DNA ou um cromossomo Y: seria biocultural, sociobiologicamente determinado.

Sim, a ‘evolução da capacidade cultural do ser humano é um dos temas mais intrigantes do estudo da história do H. sapiens’ e pode ser ‘datada’ com instrumentos da arqueologia, paleoantropologia, da genética e da linguística, dentro de um ‘arcabouço filogenético’. Pronto: 170 mil anos. Somente depois a quantidade de ‘cultura’ aumentaria.

Finalmente, no capítulo VII, o Neolítico: domesticação e origem da complexidade social, acredita-se que somente as novas descobertas arqueológicas e paleoantropológicas poderão ser capazes de alimentar o amplo e dinâmico debate sobre a evolução humana. Trata do homem ‘herói’, já morfologicamente moderno e capacitado culturalmente. Os modos diversos e as cronologias sobre a manipulação e domesticação de plantas, animais e a criação de novos materiais a partir do processamento da matéria prima pelo calor interessam. O manejo dos  ciclos reprodutivos de plantas e animais deve satisfazer as necessidades do novo humano moderno. As privações anteriores a 170 mil ou a 50 mil anos são suplantadas pelo aparecimento da ‘complexidade social’. Entre as feições principais do Neolítico estão a domesticação de plantas e animais e o surgimento de vilas e cidades. A emergência da complexidade implica em desdobramentos sociopolíticos, culturais e ecológicos. A narrativa apresentada, segundo os autores deste capítulo, restringe-se a domesticação e a complexidade social.

Domesticação refere-se a mudanças genéticas e fenotípicas, ao manejo humano, a ação humana. Distinguem-se a não-domesticação, a pré-domesticação e a domesticação propriamente dita. Pode ser considerada como processo evolutivo, com contingências biológicas e ambientais seletivas que transformam uma população em um momento da sua história evolutiva. Assim iniciam-se os pressupostos ou aspectos elementares da domesticação neste capítulo. A complexidade social é tratada a partir da possibilidade de reuso condicional do discurso de Elman R. Service (a sequência bando-tribo-chefias-estados), de Gary M. Feinman, com a presença de elites gerenciadoras da sociedade, em estruturas hierárquicas estáveis que funcione como um nexo organizacional e estruturante do coletivo. Nesse sentido, sociedades caçadoras-coletoras, sem clãs, não seriam complexas, mas igualitárias, com tarefas generalistas, sem hierarquização social.

A complexificação (vertical e a horizontal) está associada a compartimentação, especialização, diferenciações funcionais, hierarquização dentro da estrutura social. O capítulo ainda trata da chamada “Revolução Neolítica” no âmbito do  surgimento da agricultura, considerando e descrevendo as características de zonas específicas (Crescente Fértil, Egito, Bacias dos rios Yangtzé e Amarelo, Planalto na Nova Guiné, África Subsaariana, Amazônia, Norte da América do Sul, Mesoamérica e Leste dos Estados Unidos). Os debates apresentados no capítulo referem-se ao porque do aparecimento da Revolução Neolítica, relacionando-o a teoria da sociedade afluente original, do antropólogo Marshall D. Sahlins, da Uinversidade de Chicago.

Nos primórdios da agricultura, a caça e a coleta também deveriam coexistir, antes do processo de aumento crescente da produção de alimentos por muitas sociedades humanas. As primeiras domesticações teriam se originado em ambientes plenos em recursos da natureza e não em ambientes estressantes, bem mais tardios, representados pelo sedentarismo crescente, surgimento de epidemias nos períodos mais recentes, associadas ao convívio com os animais domesticados.

Os autores vislumbram, segundo o arqueólogo Brian D. Hayden, a possibilidade da projeção de informações etnográficas nos contextos pré-históricos para a compreensão das reuniões entre grupos humanos para a realização de banquetes (a partir de 50 mil anos), tocas, distribuições ou mesmo a destruição de alimentos e bens relacionados a posições de prestígio social. Alcançava-se prestígio entre os líderes locais e estímulo à produção e acúmulo de excedentes. Pelo menos, entre 10 mil e 2 mil anos, teria ocorrido um rompimento, justaposição ou sobreposição do modo de vida nômade dos caçadores-coletores ao das populações agricultoras.

A alta concentração demográfica associada a domesticação de plantas e animais  passa a caracterizar a ‘complexidade social’ em várias regiões do planeta. Entre 9.500 anos e 5.000 anos, mudanças climáticas teriam favorecido a domesticação de plantas e de animais. Neste contexto estariam Jericó e ÇatalHoyuk. O livro é, minimamente, imprescindível nas escolas e universidades brasileiras.

Notas

2 CARTMILL, Matt; SMITH, Fred H. (Eds.) The Human Lineage.New Jersey: Wiley-Blackwell, 2009; KLEIN, Richard G. The Human Career. Human Biological and Cultural Origins. Chicago: The University of Chicago, 2009; CELA-CONDE, Camilo J.; AYALA, Francisco J. Human Evolution. Trails from the Past.

Oxford: Oxford University Press, 2010; LOCK, Andrew; PETERS, Charles R. (Eds.) Handbook of Human Symbolic Evolution. Oxford: Blackwell, 1999; HENKE, Winfried; CIOCHON, Russell L.; FLEAGLE, John G. (Eds.) The Human Evolution Source Book. 2ed.New Jersey: Pearson, 2006; TATTERSALL, Ian (Eds.) Handbook of Paleoanthropology. New York: Springer, 2007, 3 vols.

3 CUNHA, Eugénia. Como nos tornámos humanos. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010; LEWIN, Roger. Evolução Humana. Tradução de Danusa Munford. São Paulo: Atheneu, 1999; KLEIN, Richard G.; EDGAR, Blake. O despertar da cultura. A polêmica teoria sobre a origem da criatividade humana. Tradução de Ana Lúcia Vieira de Andrade. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2005.

4 LARSEN, Clark Spencer. Our Origins. Discovering Physical Anthropology. New York: W.W.Norton & Company, 2008; HAVILAND, Willian A. Anthropology. 7 ed. New York: Harcourt Brace Colege Publishers, partes I a III, 1994; WALKER-PACHECO, Suzanne E. Exploring Physical Anthropology. 2 ed. Englewwood: Morton Publishing Company, 2010.

5 ROBERTS, Alice.Evolution. The human story. New York: DK Dorling Kindersley, 2011.

Sergio Francisco Serafim Monteiro da SilvaDepartamento de Arqueologia, UFPE. E-mail: sergioarqueologiaforense@gmail.com

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