Os Estados Unidos na Era Trump / Esboços / 2017

Desde a emergência do fenômeno da Pax Americana no final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos se mantém como a nação hegemônica do sistema internacional. Esta liderança se sustenta em uma série de mecanismos políticos, estratégicos, econômicos, sociais e culturais que a partir de 1945 influenciam a dinâmica das relações estatais e transnacionais. Seja para gerir a estabilidade, ou para gerar a instabilidade, os norte-americanos influenciam decisivamente os rumos da política global, mas se encontram cada vez mais imersos em suas contradições e fragmentações domésticas. Neste contexto, o objetivo desse Dossiê “Estados Unidos” pela Revista Esboços é apresentar uma análise histórica e contemporânea de alguns componentes internos e externos que caracterizam esta hegemonia, em constante processo de construção e desconstrução nos séculos XX e XXI.

Abrindo o Dossiê, o artigo “A presença do petróleo nos Estados Unidos: o hidrocarboneto na história de uma grande potência”, de José Alexandre Altahyde Hage, Doutor em Ciência Política pela UNICAMP e Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), apresenta um panorama sobre a questão energética nos Estados Unidos, traçando sua evolução desde os primórdios da exploração de petróleo internamente e seu peso como elemento de projeção global. Porém, energia e petróleo não se consistem nos únicos elementos desta projeção.

No texto seguinte “Do Estado empreendedor ao mito da não-intervenção: a inovação como instituição nos Estados Unidos”, o Professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e Doutor em Relações Internacionais pela UNESP, Hermes Moreira Jr. aborda um tema central da liderança hegemônica e sua sustentação: a inovação como base do progresso e fortalecimento nacional, desmistificando, e comprovando, o peso do Estado neste campo, e a forte interdependência entre o setor público e privado neste país.

Por sua vez, no que se refere aos elementos de poder mais subjetivos, Matheus de Carvalho Hernandez em “Os Estados Unidos e as negociações sobre a criação do posto de Alto Comissário para Direitos Humanos” aborda um tema controverso nos Estados Unidos: os direitos humanos. Com isso, o autor, Doutor em Ciência Política pela UNICAMP, Professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), avalia, a participação da hegemonia em mecanismos de proteção e promoção dos direitos humanos, e as contribuições positivas e negativas dos Estados Unidos, para o debate sobre a governança multilateral neste campo.

Ainda no que se refere a direitos humanos, mas indo além deste recorte, com foco na relação bilateral Estados Unidos-Cuba, Alfredo Juan Guevara Martinez Mestre em Relações Internacionais pela PUC-MG, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) e do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da UNESP (IEEI-UNESP) e Visiting Scholar na University of South Florida, no Institute for the Study of Latin America and the Caribbean (ISLAC) analisa esta interação estatal e suas particularidades: o antes e depois da Revolução Cubana, o contexto da Guerra Fria e o fim da bipolaridade, a questão cubana como tema de política doméstica e o papel dos grupos de interesse, as transformações do século XXI de Obama a Trump são algumas das temáticas abordadas.

Visando contextualizar estas transformações do ponto de vista interno a partir de 1989, Cristina Soreanu Pecequilo, Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), dos Programas de PósGraduação San Tiago Dantas UNESP/UNICAMP/PUC-SP, Economia Política Internacional UFRJ e Ciências Sociais UNESP, Pesquisadora do CNPq e do NERINT/UFRGS, delineia os fenômenos políticos domésticos que caracterizam os Estados Unidos no pós-Guerra Fria. O choque entre democratas e republicanos, as disputas inter e intrapartidárias, o peso dos atentados terroristas de 11/09/2001 e as transformações sociais, econômicas do país são contextualizadas para demonstrar a crescente polarização do país.

Esta polarização, a política doméstica, e seus impactos nas relações internacionais, o peso da religião e da Guerra Global Contra o Terror na sociedade estadunidense e seu sistema partidário são o objeto da reflexão em “God wants me to be President: o Papel do Cinturão Bíblico na Política Contra o Terror Durante os Governos de George W. Bush”, de Filipe Almeida do Prado Mendonça & Gabriel de Almeida Ribeiro, respectivamente Professor Adjunto do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia.

De um ponto de vista mais específico, Carlos Gustavo Poggio Teixeira & José Felipe Calandrelli Professor do curso de Relações Internacionais da PUC-SP e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (PUC-SP/UNESP/UNICAMP), coordenador do Núcleo de Estudos sobre a Política Externa dos Estados Unidos (NEPEU e Graduando em Relações Internacionais pela PUC-SP, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre a Política Externa dos Estados Unidos (NEPEU) avaliam a trajetória do neoconservadorismo e a sensível avaliação do que Donald J. Trump representa neste espectro político em “Donald Trump e o Neoconservadorismo”.

Adiante, as contradições Trump e o fenômeno eleitoral a ele associado são também avaliados por Fernanda Magnotta & Victor Grinberg, em “Trump: Mídia, Opinião Pública e a Espiral do Silêncio” indicando a importância do papel da mídia no pleito de 2016. Os autores são respectivamente Mestre e Doutoranda pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) e do Núcleo de Estudos sobre a Política Externa dos Estados Unidos (NEPEU) e Especialista em Mídia, Política e Sociedade pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP), certificado em estudos de Marketing Digital e professor de Relações Internacionais e Ciências Econômicas da FAAP.

Fechando o dossiê, Corival Alves do Carmo Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe e Mestre em Economia pela Unicamp, debate um dos tópicos mais latentes, contraditórios e eficientes da agenda de campanha presidencial em “Donald Trump: a resposta norte-americana aos efeitos desestabilizadores da globalização do capital: as críticas à globalização e os impactos econômicos que esta agenda poderá ter para o elemento econômico da hegemonia do país.

A partir deste conjunto de artigos espera-se oferecer uma importante contribuição aos estudos sobre Estados Unidos, nação muito comentada, mas pouco conhecida ainda em suas especificidades. Com isso, a revista Esboços abre novas perspectivas de debate, reforçando seu papel acadêmico na promoção do diálogo interdisciplinar na história, na sociologia, na ciência política e nas relações internacionais.

Cristina Soreanu Pecequilo.

Organizadora

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Tópicos de História da Educação nos Estados Unidos (entre os séculos XIX e XX) / Cadernos de História da Educação / 2016

Embora a literatura educacional brasileira seja farta em referências à história da educação nos Estados Unidos, nos nossos meios acadêmicos circulam poucos estudos a respeito. Não que a história da educação norte-americana ganhe menos atenção dos estudiosos brasileiros do que a educação em outros países. A bem da verdade, não temos nos meios educacionais tradição de estudos internacionais.

Com algum conhecimento da historiografia da educação brasileira pode-se afirmar que as mais frequentes menções ao estrangeiro se reportam a algum item de filosofia ou pedagogia, de algum método ou currículo, de algum conceito ou obra, subtraídos dos contextos em que foram produzidos ou que funcionaram como base de lançamento para a circulação internacional que os teria trazido até o Brasil.

Com vistas a contribuir para os estudos internacionais, especialmente sobre os lugares ocupados pelos Estados Unidos nos processos de constituição e internacionalização do campo, organizei dois dossiês: o primeiro já publicado pela revista de História da Educação (ASPHE), com o tema geral A educação nos Estados Unidos: do século XIX ao século XX, que reúne artigos sobre dimensões abrangentes da educação norte-americana no período; quatro autoras brasileiras e um autor norte-americano compõem o conjunto.

Neste segundo dossiê, os artigos reunidos abordam temas mais específicos – ainda que de largo impacto – da educação nos Estados Unidos na passagem do século XIX para o século XX. O dossiê é composto de seis artigos, sendo que quatro são de autores norte-americanos e dois de autoras brasileiras. Muitos aspectos os interligam, embora os autores tenham sido convidados a explorar temas que lhe são caros desde as visões que lhe são próprias. Nem poderia ser de outro modo.

Ao esclarecer os leitores que as convergências entre os autores não incluem suas perspectivas teóricas ou de método, aproveito o ensejo para lhes informar que não concordo necessariamente com as análises que desenvolvem sobre um e outro tema. Falarei sobre isso mais adiante.

Os autores foram reunidos aqui em torno de um período da educação norte-americana de intensas reformas; um momento consagrado como era progressista no qual estão ocorrendo as transformações que gestaram os EUA moderno, hegemônico. Foram convidados a falar de tópicos que indicam a profundida e o alcance das mudanças em curso. São artigos sobre a educação norte-americana com ênfase no ambiente de fins do século XIX e começos do século XX; momento de ebulição da cultura norte-americana na qual se incluem reformas de largo alcance impactadas pelas transformações industriais e urbanas, pela imigração em massa, pelo envolvimento na Primeira Guerra Mundial, bem como pela confrontação de movimentos civis, políticos e sindicais de diferentes matizes.

Exatamente porque estão reunidos em torno de um momento decisivo da vida e particularmente da educação norte-americana, não poderiam deixar de abordar as mesmas reformas, as mesmas iniciativas e os mesmos nomes. Não há surpresa, portanto, que itens como Relatório do Comitê dos Dez e Associação Nacional da Educação sejam muito referidos; assim como nomes como os de John Dewey e Edward l. Thorndike não poderiam ser elididos em se tratando de dois próceres das reformas educacionais do período, opositores inscritos no mesmo terreno acadêmico.

Barry Flanklin, um dos importantes nomes da geração dos anos oitenta que provocou um turn point na área do currículo, trata das relevantes questões curriculares que emergem no período em tela e coloca os discursos de Dewey e Thorndike, além de Ross L. Finney, face a face na disputa pela concepção de comunidade – portanto, na disputa pela direção a ser estabelecida para o currículo. O campo da disputa é o currículo da escola secundária. Thorndike e Finney são, para o autor, expressão de um discurso de comunidade excludente, homogênea, temerosa do estranho / estrangeiro (o imigrante daquele momento); Dewey seria a melhor expressão do discurso liberal da inclusão, da diversidade, do entendimento das transformações que a indústria e a vida urbana produziram sobre os antigos agrupamentos rurais, assim da necessidade de recriação do coletivo e da unidade social. Franklin dedica um item para tratar dos problemas que contemporaneamente repõem a disputa em torno da comunidade. Com isso, é levado a concluir que a direção que o uso do discurso sobre o currículo irá tomar teria permanecido sem solução; e se pergunta: “irá nos conduzir ao estilo liberal de comunidade, tal como popularizada por Dewey ou nos levará à variação reacionária proposta por Thorndike e Finney? ”.

A polarização Dewey-Thorndike, que de fato foi alimentada para além dos muros do Teachers College de Columbia, não reaparece nos artigos de Monaghan / Saul nem de Santos que, aliás, tem Thorndike no centro das suas análises sobre o ensino da Matemática. Não estou certa que se deva alimentá-la mesmo. Também não estou certa que a perspectiva de Franklin possa ser mantida por quem não é herdeiro (romântico) do liberalismo deweyano. Do lugar que venho examinando a contenda nem Dewey se sustenta no lugar avançado que se colocava e que Franklin reafirma, e nem Thorndike se justifica no lugar do regresso que não postulava para si, mas é onde Franklin, como outros, o inscreve.

Spencer Clark foi chamado a tratar de assunto relevante ao qual tem se dedicado, complementar ao tema abordado por Franklin: a educação cívica nos EUA na Era Progressista. Em um momento de grande ardor cívico-patriótico, a educação para o civismo ganhou lugar proeminente no currículo escolar norte-americano, como resposta às grandes levas de imigrantes que tomaram de assalto os EUA entre fins do séc. XIX e começos do seguinte. Clark examina o assunto reportando-o com clareza ao movimento do americanismo e de americanização da escola norte-americana. Para tanto, repassa as tendências que mais diretamente teriam marcado o currículo – as assimilacionistas e as culturalmente pluralistas –, e centra a atenção em dois educadores representantes de cada visão, Arthur W. Dunn e, especialmente, Laura Donnan. O artigo de Clark oferece uma boa análise do tema, e por isso mesmo, exemplifica bem os limites e, portanto, o alcance, de uma visão crítica liberal sobre a americanização e o americanismo. Embora cruzem os caminhos de Franklin e Clark, os artigos de Monaghan / Saul e Santos conferem um tratamento bastante distinto às questões disciplinares e curriculares abordadas.

O artigo O leitor, o escriba, o pensador: um olhar crítico sobre a história da instrução da leitura e da escrita nos Estados Unidos, de E. J. Monaghan e E. W. Saul, publicado pela primeira vez há quase 30 anos, por sua impressionante atualidade está sendo aqui reproduzido [2] . O problema central é a prevalência por muito tempo da leitura sobre a escrita. Para abordá-lo, as autoras repassam a história do ensino da leitura desde o século XIX, destacando os movimentos que disputaram o controle dessa área, as tendências dos teóricos e dos docentes, bem como do mercado editorial. Para os leitores brasileiros que trabalham com o assunto é de grande importância se aperceber que não há direta correspondência entre os movimentos, as tendências, no ensino da leitura registrados nos EUA com os que aqui se formaram, por exemplo, as nossas querelas em torno do analítico e do sintético; do método da palavra, da sentença e da estória. Por outro lado, aqui não teria ocorrido tanto clamor em torno da leitura silenciosa como o registrado por Monaghan e Saul; assim como, o movimento científico e o progressismo educacional não teriam aqui ocorrido; ainda que se possa estabelecer algum (cauteloso) paralelismo entre o último e o escolanovismo brasileiro, este não se posicionou com a veemência e clareza em torno do ensino da leitura na mesma direção que a verificada pelo progressismo em sua luta contra o livro didático (cartilha, livros de leitura etc.) em favor da estória “escrita” pelo próprio aluno.

Ivanete Batista dos Santos examina os confrontos em torno do ensino da Matemática nas primeiras décadas do século XX. Rastreando os periódicos educacionais que circulavam à época nos EUA e parte dos livros de Thorndike, Santos constata a existência de duas propostas, uma que versava sobre uma organização de conteúdos baseada na teoria da disciplina mental e uma alicerçada em princípios da psicologia conexionista de Thorndike. A perspectiva da disciplina mental se fez presente no Committee of Ten Report e ainda se revelava em torno dos anos de 1910; a proposta de rompimento teria ocorrido a partir da publicação do manual The Thorndike Arithmetics, em 1917, como a evidência de que Edward Lee Thorndike conformou, nas primeiras décadas do século XX, um padrão peculiar para o ensino de Matemática. E que foi reapresentado em The Thorndike Algebra, em 1927. Esse artigo de Ivanete Santos, seguindo os parâmetros da sua tese de doutorado, traz à cena a figura de um Thorndike condizente com a imagem sobre ele produzida por seu maior biógrafo, a historiadora da educação Geraldine M Joncich: a de um “positivista são” (The Sane Positivist é o título principal de sua biografia a respeito de Edward L. Thorndike), cuja produção científica e escolar alterou profundamente os padrões de ensino da escola norteamericana, não só da Matemática, mas do ensino da leitura também, como apontam Monaghan e Saul, para não falar de outras disciplinas não incluídas neste dossiê

Seguem dois artigos mais independentes quanto aos assuntos focalizados. Noah Sobe centra-se na fabricação da atenção da criança em uma sala de demonstração montessoriana montada na Feira Mundial de São Francisco, em 1915. Ele quer “repensar a forma como poder e subjetividade agem na formação de atrações humanas”. Conduzindo suas análises com as categorias foucaultianas tais como a de poder, governamentalidade, analítica do poder, Sobe sugere que a atenção a partir de Montessori nos remete à química envolvida no poder, mais do que à física, uma vez que “em vez de forças e corpos que causam movimentos e distribuições, o poder aqui poderia ser pensado operando anexações e desanexações que montam e desmontam entidades”. Dessa perspectiva, Sobe propõe uma nova perspectiva para os estudos da atenção em “relação à produção de desejo e com uma analítica do poder” e não como um estado que se instaura ou não no corpo da criança.

Por fim, o artigo que escrevi para esse dossiê que desloca a… atenção para o campo acadêmico, mais especificamente para o Teachers College da Columbia University quando da criação do seu International Institute, em 1923, e o lançamento do periódico Educational Yearbook, em 1924. A minha pretensão é trazer para primeiro plano aquele College na função de epicentro da internacionalização do campo educacional. As iniciativas dos responsáveis pelo Instituto no âmbito do ensino e da pesquisa são as evidências que trago para sustentar a tese em torno daquela função central do TC, mas o periódico anual é a fonte original deste artigo, uma vez que ainda não explorado como um compêndio, uma enciclopédia, onde se reúnem as mais atualizadas e completas informações e dados sobre os sistemas educacionais de praticamente todos os países, colônias e protetorados existentes à época da sua circulação (1924-1944).

Para encerrar esta apresentação, uma palavra de agradecimento aos autores que se dispuseram a escrever ou ceder trabalhos para este dossiê e aos tradutores dos artigos, e uma palavra de lamento. Enquanto organizava esta coletânea Profa. Jennifer Monaghan faleceu e Prof. Barry Franklin adoeceu. Lamentei profundamente não ter podido conhecer a Profa. Monaghan; tenho lido seus trabalhos e usufruído do elegante, minucioso e fundamentado conhecimento que ela deixou sobre a história da leitura e da escrita nos Estados Unidos. Prof. Flanklin eu conheço pessoalmente; pessoa meiga e atenciosa e, ao mesmo tempo, um acadêmico sério e cuidadoso; desejo que as amizades e as leituras estejam lhe preenchendo os dias de afeto e distração.

Nota

2. Por razões de espaço, mas também de foco, a última parte do texto de Monaghan e Saul não foi mantido nesta versão em Português. Na parte suprimida, as autoras examinam o período Lyndon B. Johnson e o processo de valorização crescente da escrita. Os dados da primeira versão em Inglês desse texto são: MONAGHAN, E. J.; SAUL, W. The reader, the scribe, the thinker: a critical look at reading and writing instruction. POPKEWITZ, T.S. (ed). The Formation of the School Subjects. New York, London: The Falmer, Press, 1987, p. 85-122.

Mirian Jorge Warde – Doutora em Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Titular da PUC-SP. Professora Visitante Sênior do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo, no campus Guarulhos. Pesquisador Sênior do CNPq. E-mail: mjwarde@uol.com.br


WARDE, Mirian Jorge. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 15, n.1, jan. / abr., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Deslocamentos interamericanos: literaturas caribenhas produzidas nos EUA e no Canadá / Revista Brasileira do Caribe / 2015

Quando Antonio Benítez Rojo propõe sua metáfora conceitual do Caribe como meta-arquipélago, como uma ilha que se repete ao longo da bacia marítima, funda uma imagem do universo caribenho que tem muito menos a ver com uma região delimitada geografi camente do que com uma dinâmica de comportamentos que se estende e se multiplica, eu diria, para além das próprias ilhas. Pensar o Caribe como universo cultural que se infi ltra no continente, visualizando sua literatura nos vínculos de pertencimento a uma comunidade literária interamericana, é o centro articulador dos trabalhos que integram o dossiê “Deslocamentos interamericanos: literaturas do Caribe nos Estados Unidos e no Canadá”, especialmente preparado para este número da Revista Brasileira do Caribe.

A problemática do deslocamento cultural é central nas refl exões dos ensaios do dossiê, assim como nos artigos que incluímos na seção “Outros deslocamentos caribenhos”. O movimento diaspórico que caracteriza a história do Caribe, o permanente trânsito cultural, os processos de negociação linguística que se operam nesses trânsitos, a imaginação diaspórica, as múltiplas formas do biculturalismo e da extraterritorialidade, os deslocamentos de um suposto cânone, são temas discutidos no número, que integrou o trabalho de professores e pesquisadores de diferentes universidades do Brasil e dos Estados Unidos, além da obra criativa de escritores caribenhos, especifi camente cubanos, radicados na América do Norte.

Abre o dossiê um ensaio de Roland Walter, “Entre mares e lares: a poética da (des) locação na literatura do arquipélago caribenho”, que aposta em uma hermenêutica do espaço para estudar textos de escritores caribenhos estabelecidos na América do Norte, como Marlene Nourbese Philip, natural de Trinidad & Tobago e radicada no Canadá; Émile Ollivier e Dany Laferrière, haitiano-canadenses, e Jamaica Kincaid, que nasceu em Antígua e vive nos Estados Unidos desde os dezessete anos. O ensaísta estuda a relação que as subjetividades migrantes estabelecem com a noção de lugar. Para isso examina a elaboração de uma espacialidade textual nas obras objeto de estudo e como esta traduz a contínua renegociação identitária entre culturas e lugares.

A fi cção especulativa pós-colonial de Nalo Hopkinson, escritora canadense nascida na Jamaica, cuja fi cção científi ca funde elementos canônicos do gênero com marcadores que remetem claramente a uma modernidade contracultural, é estudada por Sonia Torres em “Modernidade contracultural e pós-‘clonial’ em Midnight Robber, de Nalo Hopkinson”, texto que propõe uma leitura do premiado romance de Hopkinson argumentando como a obra aponta, metaforicamente, para as tensões entre o arquivo ofi cial da modernidade e os pontos cegos dessa mesma narrativa.

Na órbita dos estudos sobre a memória, Denise Almeida estuda em “Abeng: identidades, memórias e histórias em disputa” as formas em que se opera a revisão da memória e das identidades nacional e pessoal no romance Abeng, da escritora jamaicano-americana Michelle Cliff. Ressalta-se neste ensaio o papel organizador e criativo da memória, especialmente a forma como as triagens, acréscimos e eliminações feitas sobre as lembranças impactam na construção da identidade individual e social. A ensaísta frisa o papel decisivo no romance das memórias subterrâneas e minoritárias, que desafi am a memória ofi cial e trazem à tona histórias silenciadas, colocando em confl ito uma memória nacional e pessoal.

O texto “Discursos da memória na literatura da diáspora cubana nos Estados Unidos”, de Elena Palmero González, apresenta uma leitura em diacronia do conceito de diáspora, sua ressemantização na crítica cultural contemporânea, assim como seus vínculos com a atividade memorial. A partir desses pressupostos, discute como as comunidades diaspóricas elaboram formas criativas de memória individual e coletiva, tema que estuda de maneira pontual em um conjunto de textos pertencentes ao universo da literatura cubano-americana, cuja temática central e formas discursivas dominantes estão vinculadas à estetização de uma memória diaspórica.

Na sequência, Jesús Barquet, no ensaio “A literatura hispana dos Estados Unidos: refl exões começando o século XXI”, conduz sua discussão para o tema mais abrangente da literatura latina nos Estados Unidos, incluindo em suas considerações problemas fundamentais da literatura caribenha no espaço geocultural estadunidense. Buscando desativar binarismos derivados de práticas discursivas dos séculos XIX e XX (maioria/minoria; anglo/hispano; centro/periferia), o ensaísta discute como a presença hispana, cada vez maior nos Estados Unidos, nos convoca a repensar e redefi nir o cânone da literatura estadunidense e, por extensão, também o cânone das literaturas latino-americanas e caribenhas no século XXI.

Encerra o dossiê uma breve seleção poética de cinco escritores da diáspora cubana nos Estados Unidos: Magali Alabau, Jesús Barquet, Alina Galliano, Maya Islas e Juana Rosa Pita. Trata-se de uma amostra expressiva do vigoroso movimento da poesia cubana produzida no espaço geocultural estadunidense.

Nesse conjunto notamos a singularidade estética de cada um deles, ao mesmo tempo em que reconhecemos linhas temáticas e estilísticas que caracterizam, de modo mais amplo, a poesia cubana contemporânea.

Completam o numero três ensaios e uma entrevista, que circulam por outros temas caribenhos, também articulados ao problema do deslocamento, entendido neste caso em sentido amplo, não somente como mobilidade física, mas também espiritual, linguística, ideológica, discursiva ou genérica.

O ensaio de Maria Bernadette Velloso Porto, intitulado “Representações da escuta e da palavra da noite em autores francófonos de origem antilhana”, propõe um estudo da oralidade na obra de autores francófonos oriundos das Antilhas. Sua análise aponta a ilegibilidade, a opacidade e a performatividade como formas deslocadas da identidade desses textos, aprofundandose na recuperação da fi gura do contador de histórias e nas relações entre o gesto de escutar e a prática de contar histórias, vistas como lugares de resistência cultural na obra de escritores sensíveis ao processo de crioulização. Para melhor desenvolver suas ideias, a ensaísta estuda o romance Tambour-Babel (1996), do escritor guadalupense Ernest Pépin, um texto que explora a complementaridade entre o domínio da palavra, a performance dos virtuoses do tambor e a arte da dança, enfatizando no corporal e na capacidade de improvisação ligados ao jogo performativo da escrita.

A obra de quatro escritores caribenhos – Aimé Césaire, Édouard Glissant, Patrick Chamoiseau (nascidos em Martinica) e Maryse Condé (de Guadalupe) – é explorada no ensaio de Euridice Figueiredo, intitulado “Caribe francófono e África: interseções”, a fi m de detectar o tipo de relação que esses escritores estabeleceram com a África ao longo de sua vida e de sua obra. A partir da análise dessa relação, a ensaísta desenvolve um estudo diacrônico do pensamento que articula os movimentos negros em torno a duas posições fundamentais relativas à Africa: o mito do retorno à mãe Africa (presente em Cesaire e Condé) e o desejo de enraizamento no solo americano, com o reconhecimento da crioulização como processo que jamais devolverá a Africa, só como alegoria literária (presente em Glissant e Chamoiseau).

“Pater familias por una literatura menor: la poética conceptual del Grupo Diáspora(s)”, de Idalia Morejón Arnaiz, propõe estudar a produção do grupo cubano Diáspora(s) como um dos locus teoricus privilegiados do pós-estruturalismo em Cuba.

Lembrando que o pensamento de Foucault, Derrida, Deleuze e Guattari serviu de ferramenta de interpretação da política e da arte para diversas manifestações coletivas dos anos 1980 na ilha, a ensaísta analisa como as ações concretas do grupo Diáspora(s), assim como sua fi losofi a, se articularam a esse pensamento para expressar o deslocamento substancial que o grupo marcou em relação ao cânone da poesia nacional. Além disso, a autora mostra como a experimentação estética funcionou também como dispositivo da práxis politica.

Encerra o número uma instigante entrevista realizada por Luana Antunes Costa ao escritor martiniquense Patrick Chamoiseau em junho de 2013, durante visita da pesquisadora a Fort-de-France. A conversa versa sobre o contexto sociopolítico e cultural de Martinica, as relações identitárias da ilha com as Américas e com a França; sobre a dinâmica da escrita com Eduard Glissant e sobre conceitos como beleza e política. Como era de se esperar, a conversa fl ui de maneira diáfana e sempre inteligente, tocando pontos centrais da concepção poética e política do escritor.

Vistos em conjunto, todos os textos que integram o número oferecem variações muito originais de um mesmo tema: as múltiplas formas em que o deslocamento e/ou o pensar deslocado impacta a cultura contemporânea no Caribe.

Elena Palmero González


GONZÁLEZ, Elena Palmero. Deslocamentos interamericanos: literaturas caribenhas produzidas nos EUA e no Canadá. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.15, n.20, jan./jun., 2015. Acessar publicação original. [IF].

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