Ensino de História: etnicidade e relações raciais | Crítica Histórica | 2022

Sem Titulo Maria Lidia Magliani Foto reproducaoNonada
Sem Título, Maria Lídia Magliani | Foto: reprodução/Nonada

O dossiê intitulado Ensino de História: etnicidade e relações raciais apresenta um conjunto de textos que problematizam as práticas pedagógicas fomentadas pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. O ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, bem como aquele sobre história indígena já demarcavam o artigo 26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (LDB). Mas o Brasil, bem indígena, afro e afro-indígena, ainda sofre com as mazelas geradas pelo eurocentrismo, racismo e pela mentalidade colonial. Esse conjunto de leis orientou o estudo da história e da cultura afrobrasileira e indígena em salas de aula em todo o país, assim como movimentou os currículos dos cursos de História. As pesquisas realizadas, antes das referidas legislações, apontaram que grande parte dos cursos, de base eurocêntrica, “não ofertavam aos futuros professores componentes curriculares relativos à história africana e indígena” (Guimarães, 2022, p. 10).

Em outras palavras, acreditamos que está na hora de realizarmos mudanças políticas substanciais na eleição dos sujeitos da narrativa histórica, mostrando as contribuições dos povos africanos e suas diásporas, bem como as contribuições dos povos indígenas para a história geral. Como responder às grandes questões sociais do mundo contemporâneo sem entender a história da África e da Ásia? Por outro lado, acreditamos também na atuação política dos professores que deveriam se dedicar mais ao mapeamento e criação de práticas educativas antirracistas, do que permanecer denunciando o racismo e afirmando a inexistência de materiais didáticos. Assim, a nossa intenção de discutir práticas pedagógicas antirracistas ainda se faz necessária, e urgente, em um país fortemente marcado por desigualdades sociais e defensor do mito da democracia racial brasileira. Leia Mais

Etnicidade e formação de identidades no mundo de Homero / Hélade / 2019

Há uma identidade étnica em Homero?

“Quem foram os gregos?” é uma pergunta irrespondível. Ainda na Antiguidade não foram poucos os que tentaram respondê-la, e a indagação continuou sendo feita nos séculos seguintes sem que uma conclusão pudesse dar fim a um tema tão longamente examinado. Entre mudanças e permanências, os séculos de história interditam qualquer traço unitário capaz de caracterizar o “ser grego”. Mais do que isso, se considerarmos apenas o mundo das póleis e se confiarmos nos cálculos apresentados por Mogens Herman Hansen [2], existiram pelo menos 1.500 cidades-Estado. De norte a sul, no continente e nas dezenas de ilhas, da Ásia Menor à Península Itálica, a variedade de contatos e particularidades regionais é outro elemento complicador para dar ao problema uma solução que não abra espaço para diversos questionamentos.

A partir do século V a.C., os gregos poderiam persistir com dificuldades para responder quem eram, mas a certeza de quem não eram parecia bem mais clara. A imagem do bárbaro se consolida com o advento da resistência aos persas e é especialmente difundida a partir da pena dos atenienses. Não se trata, certamente, de uma simples percepção das diferenças culturais, mesmo porque a cultura, abordada para além da superfície, desvela não apenas a assunção de que não somos iguais a outras pessoas e grupos, mas que essa diferença produz, é produzida e reproduzida por uma série de implicações que vão muito além da percepção de quem não somos.

A emergência das representações sociais dos bárbaros é francamente tomada como paradigma para pensar as noções de eu e outro a partir do ponto de vista dos gregos. Não sem razão, a consolidação da barbárie se dá no momento em que Atenas não apenas goza de influência política e econômica sem precedentes, abalada apenas com o início da Guerra do Peloponeso (431 a.C.). Entretanto, ainda que o século V a.C. tenha se tornado referencial para os estudos sobre a etnicidade, ele não representa o único momento em que o outro se tornou objeto de reflexão para a definição do ser grego. A documentação anterior ao Período Clássico é absolutamente rica em referências que ajudam a pensar esse problema, e a Ilíada e a Odisseia representam certamente um dos maiores (ou o maior, arrisco dizer) acervo de questões que podem ser exploradas para refletir sobre a história das alteridades nesse “mundo grego”.

Os artigos que compõem esse dossiê exploram o tema da etnicidade e / ou da formação das identidades a partir da Ilíada e da Odisseia. As escolhas particulares dão ao leitor um indicativo da amplitude do problema e da riqueza de um debate pautado por várias convergências e outras tantas divergências. Portanto, os trabalhos que compõem esse número da Hélade são marcados pela interdisciplinaridade, pela pluralidade de ideias, pela variedade de abordagens e pela diversidade teórico-metodológica. No entanto, nada disso interditou a incrível coesão construída em torno do objetivo geral que motivou a organização do volume.

Na abertura do dossiê, busco analisar os intensos debates que opõem estudiosos em torno da relação entre Homero e o ideário Pan-helênico. O artigo intitulado História e Etnicidade: Homero à vizinhança do Pan-helenismo, após uma breve exposição do conceito de etnicidade e sua particular utilização no âmbito da História da Grécia Antiga, discute algumas divergências bastante frequentes quando se busca refletir sobre o lugar que a Ilíada e a Odisseia ocuparam no marco da formação das identidades helênicas. Observo que, por um lado, os épicos podem ser entendidos como uma narrativa capaz de expressar uma noção de helenicidade, dialogando com as transformações que caracterizaram a formação do mundo Pan-helênico; por outro lado, diversos analistas, muitas vezes em evidente discordância, tendem a situá-los no limite que distingue as sociedades pré-helênicas daquelas que vieram a se formar no decurso do Período Arcaico.

No segundo artigo, intitulado Los comienzos de la identidad colectiva helênica, Emílio Crespo dedica sua atenção à Ilíada com vistas a reconhecer em seus versos, particularmente na célebre oposição entre aqueus e troianos, os primeiros indícios de uma identidade coletiva helênica. O autor parte do pressuposto de que as identidades coletivas exigem longo período de construção, e que a experiência do Período Clássico pode ser investigada como um processo de criação que remonta aos poemas homéricos. Assim, através da análise dos nomes coletivos, antropônimos, epítetos, topônimos e outros indicativos, Crespo defende que o início da construção identitária helênica é perceptível na segunda metade do século VIII a.C., época provável da composição da Ilíada, ainda que em bases culturais diferentes daquelas em que repousou o helenismo do século IV a.C..

O terceiro artigo, Em tempo de guerra e de confronto a noção do ‘outro’ na Ilíada, também se dedica a essa temática. Maria de Fátima Silva reconhece na Ilíada a referência mais antiga da oposição entre europeus e asiáticos que perdurou no Período Clássico. Para a autora, a noção de ‘outro’ na Ilíada já está assente em um conjunto de critérios que viriam a ser retomados com outro fôlego, na época clássica, para a definição de quadro equivalente. A análise das características dessas alteridades é feita através das representações da cidade de Príamo, seu povo e seus aliados. A autora demonstra que Ílion não apenas possui características geográficas, topográficas e urbanísticas peculiares, mas que estas peculiaridades são decisivas para a compreensão do comportamento dos troianos. Desta forma, os requintes orientais, as joias do palácio e o luxo da vida cotidiana são características marcadamente presentes no mundo asiático e associadas aos troianos, ainda que seja necessário analisá-las cautelosamente porque muitas delas também se fazem presente na vida dos gregos.

Obviamente, e ainda com base na Ilíada, é preciso reconhecer que o universo de referências de que Homero se utiliza para a construção de seus personagens é bastante amplo. Ainda que a maioria deles – talvez todos – faça parte de um menos grupo social, é certo que as particularidades das caracterizações permitem aprofundar as análises e reconhecer formas bastante peculiares de tratamento das diferenças étnicas. No quarto capítulo, O discurso étnico acerca dos troianos na Ilíada: um estudo de caso de Páris-Alexandre, Renata Cardoso de Sousa explora precisamente as representações do príncipe troiano que desencadeou o conflito em Tróia após raptar Helena. Através de epítetos, qualificativos a ele atribuídos, discursos enunciados, comportamento em batalha e demais símbolos diacríticos utilizados na formulação narrativa de seu ethos heroico, a autora procura identificá-lo como uma das sínteses que distinguem aqueus e troianos.

O tema do discurso etnográfico é abordado no quinto artigo, assinado por Graciela C. Zecchin de Fasano. Em Egipto, Fenicia, Creta: tres espacios-clave para el discurso etnográfico en Odisea, a autora entende que o vocábulo ethnos, a despeito da amplitude de grupos que tendia a abarcar, estabelece a necessidade de se compreender certa similaridade e convivência temporais. Partido desse pressuposto, observa-se que a Odisseia oferece uma representação particular dos territórios pelos quais seu protagonista transita, convertendo-os em um excelente instrumento de estudo e interpretação como espaços de um relato etnográfico, cuja tipologia discursiva sugere problemáticas ficcionais absolutamente originais. Nesse sentido, o tema dos olhares sobre o estrangeiro é pensado a partir de três espaços-chave, quais sejam, Egito, Fenícia e Creta. A variação das caracterizações sugere uma diversidade ímpar de olhares, envoltos pela atmosfera do exotismo, dos perigos, dos maus hábitos e mesmo de juízos de valor absolutamente estratégicos para pensar a dinâmica das alteridades e da formação das identidades.

Em seguida, Christian Werner igualmente se aproxima da questão das etnografias a partir do exame dos discursos de Menelau e de Homero no canto IV da Odisseia, que mencionam a viagem do herói ao norte da África, e da forma como Homero, de um lado, introduz a narrativa dos feácios (VI) e, de outro, Odisseu, o episódio dos lotófagos e o dos ciclopes (IX). Em Discurso etnográfico e as vozes narrativas na Odisseia, o autor explora nesse poema épico a tradição dos nostoi (“mitos de retorno”) e analisa alguns elementos e funções possíveis do discurso etnográfico, que, colocado de lado na Ilíada, embora não componha a matéria central da Odisseia, tornou-se uma de suas marcas distintivas no processo histórico da recepção do poema.

O sétimo trabalho, intitulado Os Residentes da Via Negativa: os cíclopes de Homero e os Tupinambás, se dedica a um exercício comparativo que relaciona as etnografias antigas e modernas a partir de um traço de semelhança que Ioannis Petropoulos reconhece como marca distintiva de tais discursos: o fato de se desenvolverem a partir da negação e da antítese. Nesse sentido, a monstruosidade dos Cíclopes é entendida como o símbolo de um mundo pré- -civilizado que se mostra reticente em relação aos pressupostos básicos da vida em sociedade, como o comércio, a agricultura, as instituições cívicas e práticas religiosas compartilhadas. Essas formações discursivas a respeito do “outro” pré-civilizado também são discerníveis nas etnografias do século XVI acerca dos nativos do “Novo Mundo”, particularmente os indígenas considerados “canibais” que ocupavam as regiões costeiras do Brasil da época. Petropoulos não apenas reconhece características comuns em discursos distintos, mas busca estabelecer relações e contrastes entre eles.

O episódio de Polifemo representa, no âmbito das epopeias homéricas, o epítome do estranhamento em relação aos costumes cultivados pelas aristocracias que os poetas cantavam. No artigo Viagens e etnicidade em Homero: Odisseu e o Cíclope, de Fábio de Souza Lessa, analisa esse discurso que irrompeu os limites do recitato aédico e foi inúmeras vezes recuperado ao longo da História para discorrer sobre os costumes insólitos dos estrangeiros. O estudo do relato de Odisseu no Canto IX da Odisseia, isto é, da descrição de seu contato com o Cíclope Polifemo, converte-se no fio condutor para a reflexão acerca das construções gregas sobre os nós e os outros. O autor observa que o Ciclope se constituirá em alteridade máxima frente aos helenos. Através do gigante de um único olho na fronte, os helenos revelavam, por oposição, os traços fundamentais de sua cultura.

Decerto que a distinção entre o eu e o outro é um dos fundamentos para a construção das identidades e para a consolidação das fronteiras étnicas, mas ainda que a alteridade represente, tanto por analogia quanto por contraste, um topos privilegiado de observação, é inegável que os poemas homéricos desvelam para os pesquisadores um incrível esforço de reflexão sobre o si mesmo, quiçá apresentando uma profunda dimensão instrutiva, pedagógica, assente na vigilância atenta das condutas esperadas dos membros do grupo. É precisamente essa preocupação que orienta as reflexões que María Cecilia Colombani nos apresenta no artigo Telémaco y la experiencia humana: tomar la palabra en el nombre del padre. Una lectura política del inicio de Odisea. De um ponto de vista antropológico, a autora analisa as transformações subjetivas por que passa o jovem filho de Odisseu e o processo de amadurecimento que experimenta ao longo do épico, em particular em função da ação pedagógica e orientadora de Atena. Desta forma, a formação da identidade de Telêmaco é duplamente assinalada no transcurso de suas relações com os homens e na fronteira que distingue os mortais dos deuses imortais.

O décimo artigo, intitulado O contexto funerário homérico: Aquiles e suas ações más (Kakà Érga), de Bruna Moraes da Silva, também se dedica ao problema da vigilância acerca dos próprios atos e sua relação com a formação das identidades. Nesse caso, porém, o valor paidêutico é pensado a partir dos códigos de conduta de Aquiles, partindo do pressuposto de que Homero não punha em evidência apenas as ações consideradas dignas de um aristoí, mas também exemplos a não serem seguidos, isto é, as transgressões realizadas até mesmo por personagens tidos como grandes heróis. À vista disso, a autora propõe analisar a maneira pela qual os aedos expuseram em suas obras, especialmente na Ilíada, as normas a serem seguidas pelos vivos diante dos mortos, dando destaque à análise das transgressões notáveis a partir da ruptura com as regras estabelecidas em um mesmo meio social.

É preciso agradecer os autores que puderam participar desse projeto e investiram os resultados de sua pesquisa para compor este volume. Acredito que a qualidade inequívoca dos trabalhos fará com que o dossiê seja recebido com entusiasmo por todos aqueles que estudam as controvérsias inúmeras legadas pelo aedo cego de Quios, por quem se interessa pelo tema da etnicidade e da formação das identidades e, num sentido mais amplo, por todos que reconhecem nos gregos antigos um espaço privilegiado para a reflexão de nossa história e vida em sociedade.

Notas

2. HANSEN, M. Polis – an introduction to the ancient greek city-state. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 1.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,5, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Fronteiras, trabalho e etnicidade / Canoa do Tempo / 2019

A revista Canoa do Tempo traz a público o dossiê Fronteiras, Trabalho e Etnicidade, com artigos que denotam a complexidade da discussão sobre a ideia de fronteira. Para além do entendimento sumário da categoria, usualmente articulada como linha divisória, há o indicativo do peso dos mundos do trabalho no estabelecimento de suas problemáticas. A Amazônia aparece como espacialidade privilegiada para a articulação de estudos desta natureza, ambientados entre o imaginário da opulência e as agruras de formas coercitivas da lida cotidiana. Ao longo do tempo, a floresta foi atravessada por diversos tipos de deslocamentos de fronteiras, cujos desdobramentos socioeconômicos e demográficos deixaram marcas indeléveis no tecido social de suas cidades, aldeias e rios.

Não por acaso, a floresta por tempos pensada no terreno do fantástico perdeu força discursiva sob a sombra do colonialismo interno, quase sempre jungido a interesses capitalistas internacionais. O ethos das mulheres guerreiras que (re)batizou o vale ao gosto do imaginário europeu, teve seus sentidos transformados com as sucessivas devassas e esquadrinhamentos do espaço em busca de riquezas. As fronteiras do paraíso terreal tiveram de ser redimensionadas, restando apenas o invólucro da mensagem edênica, que traduziu a Amazônia como terreno inabitado, disponível e à margem da História.

O artigo que abre a dossiê, assinado por Maria Clara Carneiro Sampaio, aponta referências sobre interesses estrangeiros na reciclagem das referidas imagens paradisíacas voltadas ao território amazônico nos oitocentos. A autora analisa os escritos do militar norteamericano Matthew Fontaine Maury, que redigiu um folheto largamente publicado em periódicos, pregando a viabilidade do deslocamento dos empreendimentos escravistas do Sul dos Estados Unidos em direção ao Brasil. Nesse contexto, a floresta era enxergada como fronteira para o avanço e sobrevivência da escravidão nas Américas, área que supostamente possuía clima e natureza “adequadas” para a população negra oriunda das grandes lavouras algodoeiras que marcavam as paisagens sulistas de Maury nos idos dos anos 1850. O projeto reabilitava a visão paradisíaca colonial, classificando a Amazônia como área prenhe de possibilidades, rica, mas mal aproveitada economicamente. O éden intocado ganhava novas camadas de sentido, visto como paraíso do trabalho compulsório e da escravidão.

O cerne da relação entre ideários edênicos, deslocamento de fronteiras e escravidão, continua no texto de Jéssyka Samya Ladislau Pereira Costa, que apresenta notas de pesquisa sobre a presença negra e indígena nos mundos do trabalho dos rios Purus e Madeira entre 1850 e 1889. O artigo aponta reflexões sobre a historicidade dos Altos Rios à época da sedimentação da Província do Amazonas, marcada por suas paisagens ameríndias, natureza opulenta e diversas zonas de contato. O cruzamento entre populações indígenas e negras é problematizado pela autora, que discute o alcance da sociedade escravocrata e as agencias das populações que enfrentavam interesses senhoriais na floresta. Os rios Purus e Madeira aparecem como recortes espaciais principais, destacados como importantes cursos fluviais na interiorização dos interesses econômicos da província, à época capitaneados pelo extrativismo da borracha.

O tema da escravidão também aparece no artigo de Paulo Roberto Staudt Moreira, que articula reflexões sobre os significados da liberdade e da escravidão na fronteira meridional do Império brasileiro no século XIX. Através de fontes judiciárias, o autor põe em causa a polissemia do conceito de fronteira, incluindo os limites e aproximações entre experiências da liberdade e do cativeiro. O recorte espacial do texto de Moreira enfatiza a Vila de Canguçu, localizada na província de São Pedro do Rio Grande do Sul nas proximidades de nações platinas circunvizinhas. O autor conduz os leitores em terreno atravessado por conflitos que marcaram a época Imperial no Sul do Brasil, área estratégica e de significativa importância econômica conectada aos fluxos da pecuária e agricultura.

Dando continuidade ao debate sobre as polissemias da categoria fronteira, apresentar-se-á o artigo de Fernando Roque Fernandes, que discute territorialidades coloniais do “delta amazônico” no século XVII. O autor problematiza a circulação de agentes coloniais na região da foz do Amazonas, evidenciando o papel desses personagens na conformação de fronteiras e disputas que caracterizaram territorialidades seiscentistas. Conectado ao contexto em tela, Fernandes dispõe aos leitores e leitoras um interessante panorama conceitual sobre as ideias de lugar, espaço e território, considerando suas complexas implicações étnicas e identitárias. O artigo destaca ainda a densidade geopolítica da época, ligada ao estabelecimento do Estado do Maranhão e as movimentações do aparato colonial para o controle do território amazônico.

A tônica dos deslocamentos associada com questões transfronteiriças aparece também no artigo assinado por Eduardo Gomes da Silva Filho e Júlia Maria Corrêa, que destacam outras facetas do debate, explorando a densidade de fluxos migratórios contemporâneos. Os autores colocam em causa a mobilidade humana e os mundos do trabalho entremeados entre as cidades de Bonfim, no estado de Roraima, e Lethem, na República Cooperativista da Guiana. Com base em dados e outras fontes obtidas em trabalho de campo, Silva Filho e Corrêa discorrem sobre questões relacionadas as atividades laborais, redes de comércio e serviços que vem conectando as duas cidades. A discussão sobre o panorama relacional entre Lethem e Bonfim pode servir de janela comparativa para outras realidades urbanas e transfronteiriças na Amazônia.

Após as reflexões sobre Brasil e Guiana, o dossiê encaminhará a debate para outras rugosidades da ideia de fronteira. Será apresentado um interessante artigo sobre um relato de viagem de autoria de George Kennan, que publicou em 1870 a obra Tent life in Siberia. Fechando a presente edição da Canoa do Tempo, convidamos à leitura do texto de Nykollas Gabryel Oroczko Nunes, que aborda a expedição telegráfica narrada por Kennan, ocorrida no nordeste da Rússia e carregada com os usuais recursos narrativos ligados à valorização de ideários da masculinidade, aventura e do enfrentamento da natureza selvagem. O artigo destaca as tensões discursivas da obra, estabelecidas entre desafios de alteridade, visualizados nos intercursos das ideias de civilização e barbárie numa área considerada distante e inóspita.

A diversidade de abordagens e aparatos teóricos aqui propostos demonstram a as possibilidades dos temas que abalizam o dossiê. Em tempos monocromáticos, refletir sobre a complexidade do conceito de fronteira vai na contramão de pensamentos que simplificam a realidade. Com isso, objetivamos fomentar ainda mais discussões que levem em conta o caráter movediço e múltiplo das experiências humanas no espaço e no tempo.

Boa leitura!

Antônio Alexandre Isidio Cardoso – Professor Doutor (UFMA).

Eurípedes Antônio Funes – Professor Doutor (UFC).

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Etnicidade e as políticas das identidades nas sociedades Antigas / Hélade / 2017

Etnicidade: cultura e política

De alguma maneira, a Antiguidade ressoa com bastante frequência quando o debate sobre o problema das etnicidades se enuncia. Não tanto pelo viés fonético, por mais que seja impossível dissociar, no plano da etimologia, a forma moderna do conceito do étimo grego que está na base de sua formulação. O vocábulo ἒθνος, a bem da verdade, possui um escopo semântico assaz versátil: pode ser entendido como “raça”, “povo”, “nação” (BAILLY, 1963), como “pessoas que vivem juntas”, “companhia”, “corpo de homens” (LIDDELL & SCOTT, 1996) e como “grupo mais ou menos permanente de indivíduos” e, em alguns casos, “povos estrangeiros”, “bárbaros” (CHANTRAINE, 1977). Em todas as definições, ἒθνος parece se referir a grupamentos humanos (apesar de se referir, também, a animais) com características particulares, capazes de exibir algum tipo de distinção quando comparados a outros. É uma versatilidade inquestionavelmente oportuna e constantemente evocada.

No entanto, para além do plano gramatical, ressoa a memória que se constrói acerca de eventos que, pela lente do mundo contemporâneo, parecem assumir um caráter fundante de diferenças étnicas observáveis tanto em escala regional quanto global. Refiro-me, nesse caso, à lógica sob a qual se opera a bem conhecida dissensão entre Oriente e Ocidente nos termos que Edward Said propõe no clássico Orientalismo (1978): discurso estratégico, politicamente estruturado no marco de um projeto imperialista. Na pista proposta por Kostas Vlassopoulos (2013, p. 1-2), vale recordar a controversa remissão à Batalha de Maratona, ocorrida no verão de 490 a.C., como o evento que teria fundado o longo histórico de embates entre Ocidente e Oriente e que, dentre outras coisas, segundo a leitura rápida de alguns, culminou com o atentado às Torres Gêmeas ocorrido em Nova Iorque em setembro de 2001. Observe-se, por exemplo, a difícil afirmação de Anthony Pagden, também mencionada por Vlassopoulos:

Maratona marcou o fim da primeira Guerra Greco-Pérsica. Fez descer a cortina do primeiro ato do grande drama trágico de Heródoto acerca do conflito entre Europa e Ásia, entre Gregos e Bárbaros. A partir de então, Maratona passou a ser aceita como um turning point na História da Grécia e, posteriormente, de toda Europa. Foi um momento de resiliência de uma forma política incomum – a democracia – e a confiança dos gregos em sua particular noção de liberdade foi posta à prova e emergiu triunfante (PAGDEN, p. 25).

Não é difícil reconhecer nessa narrativa a célebre e cada vez mais questionada lógica de herança que parece atribuir à Antiguidade – e à Antiguidade Clássica, em particular – toda sorte de legados históricos que amparam um movimento de naturalização de disposições sociais que, por sua vez, seguem insolúveis por força do desejo preclaro de não os solucionar. Resiste, por força de uma disposição frequentemente criticada pelas análises pós-coloniais (e, mais recentemente, pelo “giro decolonial”), a lógica de produzir estereótipos que fundam a imagem de um “bárbaro” tiranizado, escravo de suas paixões, excessivo e indisponível para o diálogo, mais especificamente para o diálogo democrático. Afinal, no mundo contemporâneo, não estamos mais diante dos persas liderados por Xerxes, mas de uma política que toma a História antes como a algema com que se ata as próprias mãos do que como um espaço de problematização para refletir sobre nossos conflitos e colocá-los em perspectiva.

É precisamente pela resistência a um tipo de lógica civilizacional2, marcadamente de caráter Iluminista, que parecia utilizar a cultura como símbolo diacrítico evocado para hierarquizar modos de vida, que o tema da etnicidade – um conceito que o pensamento social abraçou de modo entusiástico principalmente a partir da década de 1970 – propõe entender a cultura não como um fim em si, mas como um elemento politicamente reivindicado. Afinal, “a fronteira étnica depende da cultura, utiliza a cultura, mas não é idêntica a esta última tomada em seu conjunto” (CARDOSO, 2005, p. 186). O que está na base, portanto, das recentes análises do fenômeno da etnicidade, são os usos políticos da cultura, e não apenas o caráter fronteiriço que ampara processos de diferenciação social livres de toda sorte de conflito. Há, nesse ponto, um esforço cada vez mais insistente de resistência, no plano teórico e empírico, aos princípios que outrora ligavam perigosamente o conceito à ideia de raça e, portanto, a um viés essencialista, bem como ao primado do subjetivismo por longo tempo explorado a partir da sociologia weberiana. É por esse traçado que se torna menos usual tratar as identidades (em particular, as identidades étnicas) como algo que responde por si, como um objeto ligado aos sujeitos e alheio à influência das estruturas sociais. Pensar etnicidade implica, por princípio, uma reflexão sobre a política das identidades. Afinal, como bem observou Todorov (2010, p. 64), “o bárbaro não é, de modo algum, aquele que acredita na existência da barbárie, mas quem está convencido de que uma população ou um indivíduo não pertencem plenamente à humanidade e merecem tratamentos que ele recusaria resolutamente aplicar a si mesmo”. É precisamente por isso que, ainda segundo o autor, “o medo dos bárbaros é o que ameaça converter-nos em bárbaros” (TODOROV, 2010, p. 15). Trata-se – insisto – de um fato político culturalmente justificado.

Não sem razão, a proposta do dossiê Etnicidade e as políticas das identidades nas Sociedades Antigas teve uma excelente acolhida. A variedade de povos antigos analisados pelos autores que submeteram suas propostas é um poderoso indicativo para pensarmos a amplitude do problema, as inúmeras possibilidades de abordagem, a diversidade de documentos passíveis de estudo, bem como os métodos que permitem a construção de críticas de inegável qualidade acadêmica. Também indica o caráter contemporâneo da questão, posto que este é o estopim para que nossos interesses e projetos políticos convirjam para o estudo das sociedades históricas.

Notas

2. Como sinalizou Todorov em sua crítica (2012, p. 36), “Barbárie e civilização assemelham-se não tanto a duas forças que lutam pela supremacia, mas a dois polos de um eixo ou a duas categorias morais que nos permitem avaliar os atos humanos particulares”

Referências

Dicionários

BAILLY, A. Abrégé du Dictionnaire Grec-Français. Paris: Librarie Hachette, 1950.

CHANTREAINE, P. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grècque. Paris: Librarie C. Klincksieck, 1963.

LIDDELL and SCOTT’S. An intermediate Greek-English Lexicon. Oxford: Claredon Press, 1992.

Bibliografia

CARDOSO, C. F. S. Um historiador fala de teoria e metodologia: Ensaios. Bauru: Edusc, 2005.

PAGDEN, A. Worlds at War. The 2,500-year struggle between East and West. New York: Random House, 2008.

TODOROV, T. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

VLASSOPOULOS, K. Greeks and Barbarians. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,3, n.2, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História e Etnicidade / Cadernos de História / 2016

A revista Cadernos de História chega a mais uma edição temática com a publicação do Dossiê História e Etnicidade. Os artigos reunidos neste número por nossos pesquisadores colaboradores apresentam instigantes trabalhos alinhados às discussões sobre tema intensamente recorrente no atual meio acadêmico.

No editorial deste dossiê, convidamos o pesquisador italiano Massimo Canevacci para apresentar suas recentes investigações envolvendo as conexões entre história, antropologia e etnografia. Em seu trabalho, “Composições etnográficas”, Canevacci discorre sobre as transformações culturais no processo de globalização e sua relação com as realidades locais, a partir de novos mecanismos de produção comunicacional entre os grupos étnicos. Nessa ótica, o pesquisador destaca que a era digital alterou e conectou os métodos de como as comunidades locais se relacionam com o contexto global no que concerne aos mecanismos de autorrepresentação de subjetividades e na construção de suas histórias. Assim, importantes termos e expressões como “hetero-representação”, “meta-fetichismo” e “facticidade” são apresentados e definidos pelo autor para o entendimento da etnicidade, compreendida pelos vínculos de pertencimento, no cenário contemporâneo a partir de “quem representa” e “quem é representado”, complexa relação na qual ele denomina de “divisão comunicacional do trabalho”.

Nos dois primeiros artigos desse dossiê, destacam-se o percurso de determinadas comunidades africanas na constituição de um sincretismo cultural brasileiro, percebidas pela interação afroindígena amazônica e também pelo candomblé baiano. No primeiro caso, é o título de Agenor Sarraf Pacheco, “Diásporas africanas e contatos afroindígenas na Amazônia marajoara”, cujo propósito é realçar as intersecções tecidas por índios e negros desde o período colonial na região da ilha de Marajó, no Estado do Pará. O autor apresenta vários questionamentos que o instigaram a pesquisar os traços étnicos das populações marajoaras, sobretudo, seus afrodescendentes. Nessa ótica, Pacheco estima que a chegada dos primeiros africanos aos campos e florestas marajoaras ocorreu por volta de 1644, trazidos pelos portugueses para servirem como mão de obra escrava na exploração de drogas do sertão, cultivo da cana de açúcar e da mandioca. Os latifúndios e aldeamentos jesuíticos que ali se estabeleceram contavam com negros e indígenas na execução do trabalho compulsório que, consequentemente, resultaram em resistências, fugas e práticas de solidariedade na constituição de mocambos e quilombos na região.

Já o artigo do pesquisador português João Ferreira Dias, “Candomblé é a África: esquecimento e utopia no candomblé jeje-nagô”, também destaca a interação brasileira com a diáspora africana, todavia, na conjuntura baiana da virada do século XIX para o século XX. O autor aponta que a narrativa do candomblé não se constitui pela linearidade ou por um ideal de continuidade resultante da recriação simples de costumes africanos transportados para o Brasil. Assim, a partir de povos iorubás e ewe-fon, transformados em escravos no período colonial, o autor destaca os rearranjos rituais desses grupos étnicos, muitas vezes representantes de reinos rivais africanos, e como engendraram uma nova realidade religiosa compartilhando com o catolicismo popular suas memórias, similitudes culturais e esquecimentos.

Nos três artigos seguintes, apresentamos pesquisas que dialogam com a temática indígena e quilombola no nordeste e no centro-oeste brasileiros. No artigo “Não somos selvagens: cultura política dos índios no Ceará (1799-1822)”, João Paulo Peixoto Costa investiga que as comunidades indígenas cearenses – à época da transição entre colônia e império –, no propósito de receber benefícios e garantias, estrategicamente buscavam se identificar enquanto súditas da Coroa Portuguesa. Segundo o autor, a intenção dos grupos étnicos indígenas em planejar resistências e reações estava longe de ser desarticulada e puramente violenta. Já a pesquisadora Maria Jorge dos Santos Leite colabora aqui com sua pesquisa intitulada “Quilombolas e indígenas: intercruzamentos, identidades e conflitos no sertão de Pernambuco”, cujo objetivo é analisar o processo de construção identitária da comunidade quilombola de Conceição das Crioulas, no sertão do Estado pernambucano, identificando as interações étnicas e as interconexões culturais de seus habitantes com a aldeia indígena Atikum. Para arrematar a temática indígena e quilombola nessa série de artigos, Luciana de Oliveira, Tonico Benites e Rui de Oliveira Neto, em pesquisa conjunta intitulada “Sacrifício e quase-acontecimento: apontamentos sobre a visibilidade da luta pela terra dos povos indígenas Guarani e Kaiowa”, apresentam o histórico de opressão e confinamento desses grupos étnicos estabelecidos na região sul-mato-grossense e como se rearticularam na contemporaneidade para expor suas recorrentes demandas, sobretudo, no que concerne ao direito aos seus territórios frente ao agronegócio. Os pesquisadores afirmam que, embora provocando intensas disputas e controvérsias, as comunidades indígenas Guarani e Kaiowa alcançaram visibilidade ao se utilizarem das mídias sociais na reprodução de narrativas, lutas e demandas referentes à preservação ambiental, demarcação de terras e autodeterminação étnica, embasadas em princípios garantidos pela carta constitucional e pelo Estatuto dos Povos Indígenas. Os pesquisadores lançam mão de atualizados dados quantitativos para demonstrar o descaso pelo direito indígena por parte do poder público, ilustrado aqui por números alarmantes e assustadores de suicídio e alcoolismo, além de violentas disputas históricas pela terra travadas com os fazendeiros do agronegócio na região do estado de Mato Grosso do Sul.

Neste número também é discutida a relação conceitual entre musealização e patrimonialização. É o que faz Janaina Cardoso de Mello no artigo “Entre a farroupilha e a redenção: negros percursos museológicos na terra do chimarrão”. A autora utiliza-se de um amplo debate acadêmico acerca das novas definições, orientações e práticas museológicas no campo patrimonial para analisar o Museu do Percurso de Porto Alegre que – entre os anos 2008 e 2011 –, foi idealizado e iniciou seus projetos em curso. Janaina Mello pontua que tal investida sintoniza-se com a atual noção de museu de território (ou museu a céu aberto ou museu de percurso) no sentido de ressignificar trajetórias e territorialidades percorridas ou apropriadas, no caso em questão, por comunidades étnicas negras africanas presentes desde a época colonial em Porto Alegre (RS). A autora afirma que a presença negra no sul do Brasil é comumente negligenciada pela historiografia regional ao se priorizar a figura do gaúcho e seus estereótipos que evidenciam o branqueamento de costumes e lugares de memória naquela parte do país.

Em seguida, os pesquisadores José Jorge Siqueira e Ignacio José Godinho, nos respectivos artigos “Modelos de desenvolvimento, economia política e a questão do negro no Brasil” e “Ações afirmativas e o horizonte normativo da democracia racial” discutem o descaso e a imobilidade do Estado brasileiro frente às políticas públicas em relação à população afrodescendente. Os autores utilizam-se de amplo suporte bibliográfico e percorrem a trajetória dos modelos econômicos nacionais – do capitalismo agroexportador ao desenvolvimentismo – e destacam como o branqueamento e o descaso com a educação e com a população ex-escrava e suas gerações posteriores foi encoberto pela internalização da suposta democracia racial, agravando os abismos de desigualdade socioeconômica no país.

O artigo “Sírios, libaneses e judeus – paradoxo entre o grupo e a nação: participação e restrição em Belo Horizonte nos anos 1930 e 1940”, produzido por Júlia Calvo e Pedro Henrique da Silva Carvalho, analisa a presença dos grupos estrangeiros que imigraram para a capital mineira e como se organizaram em associações, estilos de vida e laços de sociabilidade, além das práticas econômicas que passaram a desempenhar no comércio da cidade. Os coautores destacam que tais grupos estrangeiros se organizaram em comunidades étnicas integradas por fortes vínculos de pertencimento e solidariedade, representadas pela União Síria e União Israelita de Belo Horizonte. Os pesquisadores discutem a discriminação sofrida por esses grupos étnicos institucionalizados, através de ações repressoras do Estado brasileiro durante as décadas de 1930 e 1940.

A perspectiva étnica na conjuntura africana também é debatida neste dossiê. Danilo Ferreira da Fonseca analisa no artigo “Etnicidade de hutus e tutsis no Manifesto Hutu de 1957”, a realidade de Ruanda – país situado na região centro-oriental do continente africano –, que mergulhou em intensos conflitos internos após o processo de emancipação política frente ao domínio belga, repercutido principalmente pelo famoso genocídio ocorrido em 1994. O autor destaca o processo de pertencimento, de interação e de conflito acerca da etnicidade dessas duas comunidades ruandesas na segunda metade da década de 1950 na articulação de diferentes projetos de independência pensados para o país.

E, por fim, integra a sequência de publicações desse dossiê, a conferência de Jocélio Teles dos Santos, “Da cultura exótica à ótica das culturas”. Nesta comunicação, o pesquisador analisa o conceito de cultura a partir de suporte teórico embasado por textos de Montaigne, Voltaire e Rousseau, e destaca como tal temática da diferenciação cultural foi produzida pela imprensa, pelos viajantes e pela literatura no Brasil oitocentista.

Vale informar aos leitores e colaboradores que esse primeiro número de 2016 traz um novo projeto gráfico da revista Cadernos de História. Nesse sentido, visando atender melhor a todos os critérios de qualidade para periódicos acadêmicos, estamos nos adaptando às diretrizes colocadas pela CAPES / QUALIS, bem como passamos a utilizar as orientações da NBR 6021 / 2015 da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, seguindo assim a recomendação da Scielo. Agradecemos mais uma vez a equipe do Setor de Revisão da PUC Minas, especialmente, aos professores Gilberto Xavier e Daniella Lopes, e aos estagiários Laila Xavier e Roberto Barcelos. Agradecemos também ao chefe do Departamento de História da PUC Minas, professor Edison Gomes, e ao diretor da Editora PUC Minas, professor Paulo Agostinho Nogueira Baptista. Agradecemos ainda aos membros do Conselho Editorial dos Cadernos de História, especialmente, aos professores Virgínia Maria Trindade Valadares e Rafael Pacheco Mourão. Ressaltamos que todas essas pessoas foram importantíssimas para tornar possível essa publicação.

Portanto, através dos artigos aqui publicados, os Cadernos de História ratificam ser um amplo espaço de discussão acadêmica que contribui com o diálogo transdisciplinar ao reunir nesse número instigantes pesquisas sobre História e Etnicidade. Desejamos a todos uma boa leitura!

Marcelo de Araújo Rehfeld Cedro – Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professor do Departamento de História da PUC Minas. Editor Gerente dos Cadernos de História.


CEDRO, Marcelo de Araújo Rehfeld. Apresentação. Cadernos de História. Belo Horizonte, v.17, n.26, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Etnicidade / Anos 90 / 2005

Pode-se dizer que atualmente existe um certo consenso que etnicidade é um tema forçosamente interdisciplinar. No conjunto das ciências humanas, os historiadores chegaram à temática depois de antropólogos e sociólogos e, por isso mesmo, não há como não lançar mão daquilo já desenvolvido, em termos teóricos e metodológicos, nas ciências vizinhas. Numa esquematização bastante simplificada, podemos situar a primazia dos antropólogos e seus estudos, que remontam ao século XIX, de culturas tribais, a etnologia, seguidos pelos sociólogos, particularmente os da Escola de Chicago, que, desde o início do século XX, analisaram contextos urbanos nos quais grupos sociais de origem diversa – diversidade sempre associada a fenômenos de imigração – passaram a dividir o mesmo espaço. Aquelas que podem ser denominadas modernas teorias da etnicidade têm sido desenvolvidas a partir da segunda metade do século XX, impulsionadas por diferentes fenômenos sociais das sociedades contemporâneas: 1) o surgimento do black power, que pôs em cheque as teorias de assimilação desenvolvidas pela Escola de Chicago; 2) o processo de descolonização da África, que deixou aos africanos a tarefa de dividir o poder político em contextos urbanos e aos antropólogos o estudo dos conflitos interétnicos; 3) mais para o fim do século, dois fenômenos, o da globalização, que maximizou as sempre existentes migrações transcontinentais, e o dos novos nacionalismos, muitos deles com base étnica, incentivou a divulgação de teorias já existentes sobre o fenômeno da etnicidade e o surgimento de novas interpretações. É nesses estudos mais recentes que vemos a atuação conjunta de antropólogos, sociólogos e historiadores.

As discussões sobre etnicidade às quais os historiadores engajam-se estão distantes de um gênero de etno-história que estuda grupos tribais e próximas de estudos que se referem a temáticas recorrentes na historiografia, como imigração, nacionalismo e colonização. Mesmo que acontecimentos da Europa contemporânea não tenham expressão na América, como o separatismo étnico-nacionalista, muitos estudos recentes de fenômenos decorrentes do processo imigratório iluminam acontecimentos de outros tempos dos países americanos, para os quais tal processo está presente em vários momentos de sua história: no povoamento das colônias pelos europeus nos séculos XVI-XVIII, na imigração forçada dos africanos, nos que vieram “fazer a América” no século XIX e nas migrações contemporâneas. É por esta razão que as teorizações mais ou menos recentes da identidade étnica têm permitido uma revitalização dos estudos da problemática da imigração e da nação entre os historiadores. Na historiografia brasileira, sem dúvida, isso é visível.

Mas os historiadores não estão num papel passivo de receptores de teorias e formuladores de casos mais antigos. Na verdade, considerando a importância da trajetória histórica e da representação do passado para a formulação identitária, tanto para os grupos étnicos quanto para as nações, antropólogos já estavam fazendo às vezes de historiadores ou lançando mão destes em seus estudos. Pode-se dizer, então, que a temática de estudos étnicos constitui-se atualmente de um campo de investigações que tem acumulado formulações teóricas, conhecimentos e análises com a contribuição de diferentes disciplinas das ciências humanas.

Desse campo de investigações, que tem, de um lado, o dinamismo daquilo que está em gestação, de outro, a ausência de um campo conceitual mais definido – ou mais difundido –, o dossiê preparado para este número de Anos 90 visa ser uma expressão. Pretende-se também, justamente, contribuir para a sistematização de interpretações, noções, temáticas, conceitos, que permitam estabelecer um patamar de comunicação que indispensável para a promoção das discussões.

O texto de Karl Monsma, sociólogo por formação e historiador por ofício, é assaz representativo de como a temática da etnicidade abre novos objetos de estudo para os historiadores. Abolida a escravidão, permanecerá a luta simbólica contra a mesma. A insistência dos negros em serem tratados com respeito mostrará o grau de internalização do sentimento de superioridade dos proprietários brancos. As fazendas de café do oeste paulista, no fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, fornecem uma espécie de “laboratório” para o estudo de relações interétnicas. A presença de imigrantes, principalmente italianos, como administradores de fazendas permite outro ponto de observação das representações étnicas presentes no mundo do trabalho e além dele. Como outras pesquisas que buscam retratar o cotidiano de épocas passadas, a fonte principal de Desrespeito e violência: fazendeiros de café e trabalhadores negros no oeste paulista, 1887- 1914 são autos penais.

Temática consagrada pela historiografia, a escravidão também pode ser revisitada pelo enfoque da etnicidade. Utilizando-se da principal proposição de F. Barth, identidade como “categoria de atribuição”, Regiane Mattos busca observar, em São Paulo, no século XIX, como as classificações externas operadas pela Igreja e pelos proprietários de escravos acabam sendo internalizadas pelos africanos. A constatação da autora de que, no Novo Mundo, diferentes grupos descobrem afinidades que “não imaginavam existir quando estavam no continente africano” lembra processo semelhante dos imigrantes que passaram a ser reconhecidos e a se reconhecerem como “teutos” ou “ítalos” e demonstra o constante processo de reelaboração identitária.

As antropólogas Denise Jardim e Roberta Peters propõem uma aproximação com a história por meio da idéia de “tradição”, analisando rituais de casamento de imigrantes palestinos. Num período em que o fenômeno da persistência das identidades étnicas nos quadros dos estados-nação é assunto para o qual historiadores também se voltam, entender como rituais de casamento contribuem para a “fabricação” da coesão social, calcada na noção de uma coletividade dotada de uma origem comum, possibilita dimensionar o grau de enraizamento da identidade étnica nos membros de um grupo que serve de base para tal identificação. A identidade étnica, pode-se dizer, mais do que a identidade nacional, está ancorada na família. Em um dos casamentos acompanhados pela pesquisa etnográfica, a noiva é brasileira e, ao passar pelo ritual do casamento muçulmano com um filho de palestino, ela se torna árabe, mesmo não tendo saído do Estado brasileiro. Para o campo historiográfico que ainda hoje tem, freqüentemente, tratado as formulações identitárias dos diferentes grupos étnicos como previamente estabelecidas – isto é, como “essenciais” –, bastando ao pesquisador recolher números e formas dessa expressão, a sutileza da análise antropológica tem um valor didático.

Os artigos seguintes lidam com uma produção textual que, em maior ou menor grau, é representativa de formas de pensar de épocas e grupos sociais. A própria existência desta produção já indica a possibilidade de indivíduos e grupos sociais refletirem sobre a realidade, expressarem representações ou elaborarem-nas, tentando interferir na sociedade. O conjunto de textos comentado por Sílvio Correa difere da produção examinada nos outros artigos, pois tratam-se de obras publicadas no país de origem dos imigrantes, no caso, a Alemanha, que ora alertam sobre os riscos de perda da cultura alemã, ora registram sua manutenção; dito de outra forma, os emigrados permitem ao conterrâneo viajante a reflexão sobre uma identidade que é também uma alteridade. A condição de viajantes de seus autores não os obrigava a definirem uma identidade de emigrados e, talvez por esta razão, seus relatos não têm o idealismo que encontramos nos discursos dos líderes de comunidades étnicas. Os relatos de viagem registram a existência de dialetos regionais dos lugares de origem (o que aponta uma falta de unidade de imigrantes que posteriormente representaram-se de forma unificada); a vida do colono é retratada mais pela monotonia e privações e do que pelo heroísmo (tal como a saga da imigração desenharia mais tarde). Quando o autor afirma que “não houve uma integração institucionalizada dos imigrantes e seus descendentes durante as primeiras décadas da imigração”, estando o construto da identidade étnica baseado em elementos distintivos como a língua e aparência física, é como se se referisse a uma identidade que era objeto de reflexão dos narradores, mas que estava ainda em estado embrionário para os imigrantes.

Os dois próximos textos, além de analisarem representações, indicam o grau de institucionalização dos grupos étnicos. Por “institucionalização” está se referindo ao fato dos grupos terem adquirido um grau de organização social que lhes permite formar sociedades, publicar periódicos ou editar obras comemorativas, instituir datas comemorativas e, num grau mais elaborado, ter seus próprios intelectuais, cuja produção textual não se destina apenas à comunidade, mas também para a sociedade envolvente. Ancorada em um grupo, a memória coletiva torna-se memória social (Halbwachs, 1990).

Examinando a produção literária da zona colonial italiana do Rio Grande do Sul, Luís Fernando Beneduzi opera com um tipo de interpretação característico dos novos estudos da imigração, qual seja, o de que as representações étnicas são reelaboradas conforme a situação vivenciada pelo grupo “do outro lado do Atlântico”.1 Lembrando Hobsbawm, podemos dizer que todas as tradições, quando examinadas com atenção são, na verdade, muito recentes. Por exemplo, para o autor, a canção Mérica Mérica, que pertence ao folclore da imigração italiana, “não deixa de ser fruto de um processo de revisão da trajetória da imigração, enfatizando o ponto de chegada, ou seja, a vitória”. O cinqüentenário da imigração italiana, em 1925, celebra não apenas a positividade desta imigração, representada, obviamente, pelos seus expoentes mais bem sucedidos, mas a própria lembrança negativa da terra de partida é refeita, afirmando agora a imagem “de uma Itália colonizadora e civilizadora”. A vitória, como sabemos, é o engajamento nos parâmetros econômicos do sistema capitalista, visível apenas no século XX, mas, como o efeito de uma representação é tanto maior quanto mais se oculta sua base real, ela fica ancorada num ethos, cujo origem é tão longínqua no tempo que se tornou imemorial, em outras palavras, passou a constituir uma característica “primordial”.2

Se Haike K. da Silva pode analisar textos que buscam refletir sobre a identidade étnica teuto-brasileira no Rio Grande do Sul já no século XIX, isso não se deve apenas à anterioridade desta imigração no conjunto do que ficou caracterizado como “colonos imigrantes”, mas ao fato de que existiu uma parcela significativa de imigrantes urbanos que ou estabeleceram-se na capital da província ou instalaram-se na área colonial em atividades não rurais (professores, párocos, artesãos). Os que “pensaram a identidade”, como diz a autora, e o fizeram por escrito para serem lidos por seus contemporâneos estavam, invariavelmente, ligados a uma instituição ou entidade: igreja, escola, editora ou jornal, sendo que as últimas entidades podiam ser derivadas de uma do primeiro grupo. A formulação intelectual escrita de uma identidade étnica depende da existência tanto de “mentores” quanto de um público receptor de tais elaborações e de canais já criados de divulgação destas publicações. A liderança étnica que Haike Kleber da Silva examina com mais detalhe, J. Aloys Friederichs, condensa várias facetas da trajetória do grupo étnico “alemão”. Trata-se de um empresário bem-sucedido, isto é, seu sucesso econômico habilita-o a ser representante do conjunto dos imigrantes. Foi o presidente, por muitos anos, da mais expressiva entidade associativa recreativa do Sul do País, o Turnerbund (Sociedade de Ginástica), e, como imigrante alemão que se instalava no Brasil, refletiu sobre sua própria condição e sobre a do grupo ao qual estava vinculado. Enquanto os viajantes refletiam sobre uma situação com a qual tinham contato que eles sabiam não ser permanente os intelectuais teuto-brasileiros vivenciavam uma condição da qual suas leituras eram também formas de ação. Portanto, as construções identitárias estão em permanente reelaboração, variando conforme o contexto.

Notas

1. A expressão é tomada de Ellen Woortmann (2000), que fez uma análise exemplar do processo de reelaboração identitária de imigrantes, estudando o caso dos alemães no Rio Grande do Sul.

2. O termo “primordial” é um dos que se tornou indispensável ao linguajar daqueles que estudam etnicidade. Referindo-se ao que é da “essência” dos indivíduos e grupos, primordial opõe-se ao que é “circunstancial” ou balizado apenas pelo interesse. Sobre o assunto, ver Glazer e Moynihan (1975).

Referências

BECKER, Howard. Conferência: a Escola de Chicago. Mana, Rio de Janeiro. v. 2, n. 2, p. 177-188, 1996.

GLAZER, Nathan; MOYNIHAN, Daniel P. Introduction. In: ______ (Ed.). Ethnicity, theory and experience. Cambridge: Harvard University Press, 1975. p. 1- 26.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice; Editora Revista dos Tribunais, 1990.

HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence (Org.). A Invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 9-23.

POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.

WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. Identidades e memória entre teuto-brasileiros: os dois lados do atlântico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 6, n. 14, p. 205-238, nov. 2000.

Regina Weber – Professora do Departamento e do PPG em História da UFRGS.


WEBER, Regina. Introdução. Anos 90, Porto Alegre, v.12, n.21 / 22, jan. / dez., 2005. Acessar publicação original [DR]

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