Usos do passado, ética e negacionismos/Fronteiras – Revista Catarinense de História/2023

Introdução

A questão dos usos públicos e políticos do passado, a dimensão ética do discurso histórico e a proliferação dos negacionismos históricos são temas que vêm ocupando cada vez mais espaço na agenda de investigação no campo historiográfico contemporâneo. A maior atenção dada a essas temáticas é motivada por fatores diversos e interligados. A digitalização da vida social, que favorece a apropriação episódica de elementos do passado (em detrimento de abordagens mais processuais que caracterizam a historiografia disciplinar), somada ao acirramento das guerras culturais (ROCHA, 2021) que são alimentadas, em larga medida, pela disseminação de narrativas históricas que contestam consensos estabelecidos em nome da defesa de posições político-ideológicas, tem produzido efeitos cada vez mais sensíveis na vida social e política no Brasil e em outros países do globo. Leia Mais

Ética e Estética do Tempo Presente | Outras Fronteiras | 2021

ÉTICA E ESTÉTICA DO TEMPO PRESENTE Ou da subjetividade como afazer político

[…] a arte é considerada política porque mostra os estigmas da dominação, porque ridiculariza os ícones reinantes ou porque sai de seus lugares próprios para transformar-se em prática social

A política é a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem “natural” que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-os sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer2. Leia Mais

A teoria da história e a história da historiografia ante os desafios contemporâneos: saber histórico, comprometimento ético e ativismos políticos / Revista Trilhas da História / 2020

O dossiê “A teoria da história e a história da historiografia ante os desafios contemporâneos: saber histórico, comprometimento ético e ativismos políticos” surgiu a partir da ação conjunta do GT Nacional de Teoria da História e História da Historiografia da Associação Nacional de História – ANPUH, do Fórum de Teoria da História e História da Historiografia – FTHHH e do grupo de pesquisa Teoria da História e História da Historiografia no Brasil (UFMS), que reúnem pesquisadores de todas as regiões do país e de diversas instituições e níveis de ensino que refletem sobre a teoria da história e a história da historiografia como aspectos substanciais da produção do conhecimento histórico. Um dos propósitos que articulam esses grupos é contribuir para o fortalecimento dessa área de pesquisa não só nos meios acadêmicos, propondo agendas e debates, mas também procurando estabelecer a importância da aproximação desses historiadores com a sociedade e as demandas do tempo presente, ampliando com isso o horizonte de legitimidade social da disciplina e daquelas áreas de pesquisa.

Portanto, esse dossiê, em grande medida, se apresenta como um retrato dessas discussões. No conjunto de textos que se segue o leitor encontrará um debate sobre os múltiplos sentidos atribuídos a pesquisa e a escrita da história, pensada como um processo contínuo de construção, reconstrução e recepção do conhecimento histórico, produzido com base em critérios epistemológicos, teóricos, metodológicos, políticos, estéticos e historiográficos, mas sem perder de vista as suas responsabilidades éticas de atuar como lugar produtor de respostas possíveis para as demandas sociais e políticas de um dado período e lugar, que é sempre o presente a partir do qual o historiador perscruta o passado, visando dentre outras coisas entendimento e orientação.

O artigo que abre a discussão intitulado Rupturas na continuidade histórica e ação política: diálogos entre Hannah Arendt e Walter Benjamin de autoria de Mariana Amaral Fogueral apresenta um debate profícuo e atual sobre a produção do conhecimento histórico a partir das leituras de Hannah Arendt e Walter Benjamin, pensando essa produção a partir dos conceitos de experiência, tradição e narrativa e estabelecendo-a como horizonte político qualificado para reivindicar a intervenção direta em questões práticas do tempo presente, oferecendo um superávit cognitivo capaz de restaurar as expectativas no potencial humano, de produzir futuros menos sombrios e obscuros que o nosso presente.

Outro texto que investe nessa atualização do sentido histórico é Pós-Modernismo e Teoria da História: o relativismo revisitado, de Manoel Gustavo de Souza Neto. Nele o autor analisa o papel da linguagem na História dialogando com dois autores tidos como pós-modernos – Hayden White e J.F.Lyotard – para questionar o sentido corrente de algumas interpretações que reduzem o pós-modernismo a equiparação direta e rasa dos estatutos epistemológicos da História e da Literatura. Com essa proposta, o autor defende a primazia deste debate para a compreensão de uma necessária conciliação entre os critérios científicos da pesquisa histórica com a dimensão poética, atualizando estes autores com base em questões que já estavam sinalizadas para a pesquisa histórica desde o historicismo.

Ainda nessa senda de debate sobre representação e epistemologia histórica, o texto Emergentismo e representância: o debate historiográfico entre White e Ricoeur, de autoria de Dagmar Manieri, apresenta um debate que atualiza o sentido de objetividade histórica ao fazer uma leitura de White que ao mesmo tempo em que rebate algumas de suas proposições, incorpora outros de seus argumentos pensando-os e relacionando-os às discussões da epistemologia da história produzida por Paul Ricoeur.

Aprofundando e diversificando essas reflexões sobre a escrita da história a partir do eixo objetividade e narrativa o texto A subjetividade neoliberal contemporânea versus histórias baseadas na alteridade: identificação narrativa, linguagem e escrita da história de autoria de João Camilo Grazziotin Portal coloca como uma questão premente reconhecer que a disciplina histórica, tradicionalmente, afastou a imaginação e a subjetividade de sua narrativa, baseada numa preocupação com a verdade. Nesse sentido, o autor defende com base num diálogo com Judith Butler e Christian Dunker que a história precisa assumir seu papel de produção de corpos e inserir artifícios imaginativos e mnemônicos a partir de novas linguagens e problemáticas, principalmente se quiser alcançar públicos mais amplos que o dos pares.

Refletindo sobre subjetividade, alteridade e escrita da história, o texto Interseccionalidade como categoria de análise na Revista Estudos Feministas (1992-2019), de autoria de Janai Lopes Harin apresenta a historicização da apropriação desta categoria nos trabalhos deste periódico tão significativo para os estudos de gênero e a teoria feminista no Brasil. Para além de uma história das apropriações e usos de uma categoria de análise histórica, o texto também apresenta uma reflexão historiográfica, sobre o lugar e a importância das revistas especializadas na produção da pesquisa histórica no Brasil.

Tendo como mote analítico as categorias imaginação, estética, narrativa e performatividade o texto Paul Gilroy e a Black Britain: a figuração-performativa da narrativa e a escrita antirracista da história, de autoria de Gabriel Gonzaga apresenta uma contextualização do pensamento do autor através de um esforço de definição do seu conceito de diáspora, para inquirir sobre a possibilidade de identificar uma historiografia antirracista em sua obra e como esta pode ser mobilizada para o enfrentamento político de tais questões no presente.

A relação entre tempo presente e produção historiográfica é colocada em primeiro plano pelo texto O que a COVID-19 tem a dizer aos historiadores? Uma breve reflexão sobre o presente e o futuro historiográfico, de autoria de Marlon Ferreira dos Reis. Nele o autor professa a importância da teoria da história e dos historiadores profissionais colocarem a crise político-ambiental, escancarada pela pandemia, como um tema central das análises históricas objetivando formas de enfrentamento das fake news, dos diversos negacionismos e do anticientificismo de uma maneira geral, o que no atual contexto de pandemia no Brasil têm atingido as ciências como um todo, colocando em cheque a legitimidade social do conhecimento científico e sua capacidade de dar respostas a crises como essa que vivemos.

Na mesma trilha de pensamento do texto anterior, mas desbravando outros espaços históricos e geográficos, o texto Pensando o papel social do historiador a partir da publicação do Manifesto de Historiadores no Chile (1998-1999) assinado por Lays Correa da Silva coloca como problema central a questão ética que evolve o trabalho nos historiadores no seu fazer historiográfico. Essa análise da experiência professada no manifesto dos historiadores chilenos contra os usos públicos do passado ditatorial do Chile que tentavam enaltecê-lo ou oferecer uma leitura laudatória tem muito a dizer numa perspectiva comparativa sobre as demandas postas aos historiadores brasileiros diante de um governo que trabalha para monumentalizar o passado, fazendo tabua rasa da violência, flertando com a morte na medida que além de elogiar a tortura e torturadores publicamente, nada faz para impedir a proliferação de uma doença que já matou mais de 60 mil pessoas e segue contando…

O texto A cultura brasileira na síntese de Fernando de Azevedo de autoria de Wilson de Sousa Gomes retoma e aprofunda uma discussão corrente na historiografia brasileira de pensar os debates acerca da interpretação do Brasil e da formação nacional por meio da análise da obra de um dos seus maiores expoentes. Esse olhar para o passado mediado pela fonte, carrega um desejo fecundo e manifesto de pensar a sociedade brasileira contemporânea por meio da compreensão da historicidade de suas mazelas.

O texto (In)Confiabilidade da Memória como Introdução à Interpretação Temporal da Lembrança: um diálogo com Aleida Assmann, de autoria de Rodrigo Tavares Godoi, propõe um diálogo crítico com a autora alemã pela via de uma hermenêutica da memória estruturada no pensamento de Henri Bergson. O diálogo com a autora é mediado por um esforço reflexivo de pensar a tensão entre experiência e historicidade. A ênfase do texto recai na reflexão da memória a partir de uma dimensão retórica que se vincula há algumas ideias de história trabalhadas pela historiografia.

Como nos faz lembrar o histórico e o título da Revista Trilhas da História: “trilhas são frestas costumeiramente abertas em lugares ditos ermos, quando buscamos construir novos caminhos ou mesmo encurtar aqueles já existentes”. Elas se desenham pelo percurso de muitos passos e na tentativa de romper com as vias oficiais que se instauram. Nesse sentido, esse conjunto de textos aqui reunidos, seguindo uma orientação proposta pelo dossiê, se propuseram a apresentar a partir de suas experiências de pesquisa trilhas possíveis que podem ser percorridas e pavimentadas por outras pesquisas no futuro.

Boa leitura a tod@s, estamos certos de que será apenas percorrendo as trilhas do conhecimento que poderemos desbravar um amanhã menos tenebroso, mais humano e sustentável.

Luiz Carlos Bento – Professor Doutor (UFMS / CPTL)

Wagner Geminiano dos Santos – Professor Doutor (Redes municipais de ensino de São J. C. Grande e Água Preta – PE)

Organizadores do dossiê


BENTO, Luiz Carlos; SANTOS, Wagner Geminiano dos. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.9, n.18, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Memória, ética e reparação | PerCursos | 2019

Verdadeira obsessão nas décadas finais do século XX, o tema da memória tem ocupado diferentes campos disciplinares e gerou expressões cuja circulação se deu nos mais variados estudos, tais como “cultura da memória”, “batalhas de memória”, “dever de memória” e “lugares de memória”. Grosso modo, o debate tem se concentrado, de um lado, na memória articulada a ações de mercantilização de representações sobre o passado (como em revivals e guinadas “retrô” que tomaram a indústria da moda e do entretenimento). De outro, rapidamente derivou para demandas por reparação que, ao viés estritamente político, agregaram o jurídico, resultando, inclusive, nas chamadas leis memoriais, que tentaram estabelecer se e como determinados momentos e processos históricos deveriam ser narrados. Afirmou-se, com isso, que o passado continuava vivo no presente, embora memórias difíceis sobre tempos e episódios sombrios por muito tempo ficassem ocultadas, recalcadas. Vindas à tona, em um esforço doloroso de continuada exposição e reexposição dos traumas vividos, buscaram − e ainda buscam − não somente o reconhecimento de crimes perpetrados contra determinados grupos como a punição dos responsáveis. No horizonte, a recomposição das relações sociais por meio de uma nova ordem ética, pós-traumas. Leia Mais

História e ética: múltiplas e complexas dimensões de um problema historiográfico / História e Cultura / 2017

Em 2008, o historiador Paulo Knauss publicou um breve e denso artigo intitulado “Uma história para o nosso tempo: historiografia como fato moral”.[3] Neste texto é possível vislumbrarmos, em perspectiva historiográfica, o longo percurso que a dimensão ética da escrita da história guarda desde os seus inícios. Como afirma Knauss, a partir dos estudos de François Hartog, o próprio surgimento desse saber, vinculado ao nome do grego Heródoto, já demarca uma discussão de caráter ético, considerando-se que diferentes culturas, em diferentes tempos e espaços, já possuíam formas e modos diferentes de relacionamento com as representações do passado.

Assim, mesmo a partir da experiência grega, percebe-se que em qualquer escrita da história estão implicadas dimensões de experiências pautadas pela diferença. Os gregos constroem suas histórias pela comparação aos não gregos. O historiador, ao afirmar que faz história, também pretende dizer que participa de uma produção que não é memoria, tradição ou qualquer outro mecanismo ritual de estruturação do tempo e de ações daí advindas. Tal perspectiva pretende enunciar que não há hierarquias entre diferentes histórias: há escolhas.

Nesse horizonte, o lugar comum, comumente repetido, de que a reflexão acerca do conhecimento histórico e sobre o papel social do historiador assume outra conotação, bem mais política e propriamente ética. Da polis grega ao século XXI, a história enfrentou os dilemas que envolvem as relações com o poder. A modernidade apenas exacerbou esse aspecto recorrente ao fazê-la disciplina com pretensões científicas. Do historiador elevado à voz da razão e da verdade, no século XIX ocidental, ingressamos no novo milênio com profissionais perseguidos e acusados de doutrinadores ideológicos, a despeito dos avanços e da reconhecida qualidade da historiografia produzida no Brasil, por exemplo. Como dissemos, antes, e Knauss recorda muito bem, a perseguição aos historiadores não se trata de algo recente. Heródoto e Tucídides, considerados por muitos como “pais da história” foram exilados. A participação no debate público através da escrita tem um preço que exacerba a proposta apresentada no presente dossiê.

Por outro lado, se o poder sempre operou ou contou com o suporte da história, a partir do momento em que o ofício do historiador passou a disputar seu prisma profissional, novos problemas e debates emergiram. Alguns são muito conhecidos (e, apesar disso, ainda muito repetidos): o historiador é capaz de fornecer uma verdade superior ou, no mínimo, diferenciada sobre do passado? Sua produção possui potencial pedagógico necessário e útil à formação do cidadão e da cidadã? A história, como arte ou ciência, permite uma intervenção direta no presente atual? Em maior ou menor medida, tais indagações situam a história e os historiadores em um espaço de ação social e política que merece reflexões mais detidas e particulares no que tange à epistemologia da história e à história da historiografia.

Propusemos, então, converter o tema das relações entre história e ética em um problema historiográfico a ser trabalhado neste dossiê. O próprio texto escrito por Knauss é sintomático. Há, desde aproximadamente a década de 1970, um crescente interesse por tal questão. De exaltados a perseguidos, de donos da verdade que favoreceu os Estados nacionais a críticos da sociedade, os historiadores passaram à autorreflexão. Revisar seus princípios teóricos e metodológicos tornou-se também um gesto ético. Os resultados das pesquisas históricas são obtidos a partir de intensa investigação, mesmo conceito que liga o mundo antigo ao ano de 2017. Entretanto, nem tudo se resume à epistemologia. Esta, em si, possui elementos que interferem em ações práticas, tomadas de decisão tanto no presente como para o futuro.

Os artigos reunidos neste número de Historia & Cultura, não temos dúvidas, fornecem uma espécie de “estado da arte” no que se refere à tentativa de sistematização dessa discussão que, como afirmamos, possui certa inflexão na década de 1970, mas, no começo dos anos 2000, ganha reforço significativo. Seja a partir das relações entre história e filosofia, da análise da autoridade e da responsabilidade dos historiadores em perspectiva historiográfica, de propostas relativas a uma ética própria da história ou de importantes discussões que deslocam a Europa (mais precisamente os homens cristãos europeus) do centro das atenções historiográficas, ficamos muito satisfeitos em oferecer um panorama que pretende, esperamos, colaborar com a construção de uma agenda mais encadeada e pertinente de um tema fundamental ao presente e ao futuro do conhecimento histórico tal como hoje o conhecemos.

Nota

3. KNAUSS, Paulo. Uma história para o nosso tempo: historiografía como fato moral. História Unisinos. Vol. 12, n. 2, maio / agosto, 2008, p. 140-147.

Evandro Santos – Professor Adjunto de Teoria da História no Departamento de História do Centro de Ensino Superior do Seridó da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CERES-UFRN). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: evansantos.hist@gmail.com

Magno Francisco de Jesus Santos – Professor Adjunto de Ensino de História no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).


SANTOS, Evandro; SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 6, n. 3, dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Ética em pesquisa em contextos educativos | Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais | 2017

Ética em pesquisa em contextos educativos: problematizações luso-brasileiras

O dossiê “Ética em pesquisa em contextos educativos” teve como objetivo problematizar as questões éticas no cotidiano da produção do conhecimento cientifico, em contextos de educação formal, informal e não formal, envolvendo artefatos culturais, midiáticos e tecnológicos. Provocados por algumas perguntas norteadoras, os autores brasileiros e portugueses problematizaram a produção do conhecimento cientifico tendo a ética em pesquisa como eixo central das discussões. No Brasil, esta problemática vem produzindo interlocuções e tomadas de posições, como no caso das resoluções sobre ética em pesquisa (Resolução 466/12 e Resolução 310/16 do CNS) e nos trabalhos de investigação envolvendo sujeitos de diferentes idades. Em Portugal, a temática também vem sendo foco da atenção de pesquisadores, dentre os quais podemos citar aqueles que pesquisa com crianças ou que realizam investigações em contextos digitais.

Neste sentido, as produções procuram apresentar contributos para alimentar o debate no que se refere aos aspectos teórico-metodológicos, em torno de pelo menos uma das questões sobre ética em pesquisa em educação. A seguir apresentamos as questões presentes no dossiê e os artigos que se propõem a discuti-las. Leia Mais

Ética, Pesquisa, História: desafios na produção do conhecimento / História & Perspectivas / 2015

Com o n. 52, História & Perspectivas mais uma vez traz a público um conjunto de contribuições à compreensão do processo histórico, nacional e internacional. As interpretações aqui presentes representam uma rica mostra do que se debate e se produz na historiografia atual.

O tema central deste número é “Ética e pesquisa no campo da História”, questão atemporal e que envolve todos os campos investigativos e não apenas a História ou o macro campo das Ciências Humanas e Sociais. E isso remete à necessidade de reflexão, tanto sobre a implementação propriamente dita da pesquisa como sobre a responsabilidade sócio-acadêmica dos que a praticam e dos usos que são feitos dos resultados que, desde muito, fazem parte do cotidiano de todos nós.

É nesse horizonte que o binômio ética e pesquisa tem sido um tema recorrente nos debates da área de Ciências Humanas e Sociais, especialmente se considerarmos o contexto das mudanças significativas que resultaram na sociedade do século XXI, decorrentes da intensificação dos processos de globalização das relações econômicas, culturais e científicas.

Ao longo do tempo, os humanos foram passando da condição de coletores para a de produtores de seus alimentos, de nômades para sedentários, de grupos dispersos para sociedades organizada. Aprenderam a curar suas feridas e a se utilizar da riqueza natural que os cercava, enveredando pelos mares, subindo as montanhas, dominando as florestas e as regiões áridas; enfim, passaram a ter domínio sobre suas condições de sobrevivência, num mundo a princípio inóspito, mas que gradativamente foi sendo submetido. Ao mesmo tempo, geraram regulamentos que garantiam condições variadas de sociabilidade, permitindo o planejamento de sua hegemonia e a das gerações futuras neste mundo, além de registrar e dar sentido à sua trajetória por meio da construção da História.

Esse é um processo longo e doloroso, só possível pela habilidade do homem de observar, registrar, lembrar, fazer relações e tirar conclusões sobre o que acontece à sua volta. Característica que, respeitadas as diferenças, o acompanha desde priscas eras e que passamos a chamar em certo momento de investigação científica ou simplesmente de ciência. Nos moldes em que a conhecemos hoje, passou a tomar forma nos tempos modernos, marcados pelo uso metodizado e contínuo da razão, do experimento na busca de melhorias que garantissem cada vez mais condições de conforto ao homem ou, até, a busca da felicidade.

Muitos percalços foram enfrentados – o confronto com a religião, a luta pela garantia das liberdades –, usos condenáveis do conhecimento foram disseminados – tecnologias de guerra, de tortura, de manipulação das vontades –, mas, ao mesmo tempo, descortinaram-se benefícios infindos por intermédio da prática científica. E, com a dependência cada vez maior do homem em relação à ciência e à técnica, a reflexão sobre os usos, os procedimentos, as consequências das transformações geradas fora do circuito “natural”, gerando impactos e consequências para o meio ambiente para os quais nem o próprio homem estava preparado, geraram uma necessidade de se pensar não apenas os horizontes, mas também os riscos que se abriam e se abrem por conta da preeminência científica que a cada dia se avoluma. E essa reflexão se dá no âmbito da razão, em sociedades que respeitam regras comuns, que aceitam os direitos como patrimônio coletivo e que necessitam de assegurar tanto a convivência como a sobrevivência de todos, vislumbrando na ciência tanto a edificação de um futuro radioso como de uma catástrofe iminente.

Como superar esse impasse? Como conciliar os avanços da ciência com a preservação de valores, com o respeito ao ambiente que nos hospeda e à dignidade humana que construiu esse mundo que nos abriga? Em suma, ainda que seja unânime o reconhecimento do valor e da necessidade da ciência, também se consolidou uma visão comum da importância de se refletir sobre a prática investigativa e sobre a necessidade de se estabelecer parâmetros para sua implementação. É nesse espaço que a ética se apresenta, contribuindo para a reflexão sobre a relação do homem com o conhecimento científico. E é aí também que a História entra, ao inserir a perspectiva histórica nessa reflexão, a relação do homem com a produção e o usufruto do conhecimento ao longo do tempo.

Os textos deste dossiê não pretendem oferecer respostas ou soluções para esses e outros dilemas que assolam o ambiente acadêmico-científico brasileiro. De resto, todos nós sabemos que soluções desse tipo não existem. No entanto, contribuem significativamente para a ampliação da reflexão e para o embasamento teórico-metodológico dos pesquisadores e estudiosos sobre o debate recente em torno das resoluções emitidas pelo Conselho Nacional de Saúde regulamentando os procedimentos de avaliação e controle da prática da pesquisa no Brasil, sobre a formação do pesquisador nas universidades e nos institutos de pesquisa, sobre a pertinência da elaboração de códigos de ética para diferentes áreas, sobre a prevalência atual da bioética sobre as atividades investigativas, etc. O simples enunciado desses temas já permite ao leitor avaliar a dimensão da riqueza e do alcance dos argumentos esgrimidos pelos autores aqui reunidos, especialistas experientes tanto no tema como na prática da pesquisa, bem como na análise do processo histórico.

O presente dossiê, além disso, tem o mérito de oferecer estudos que desvelam os limites e as possibilidades da discussão em torno da regulamentação do agir investigativo, ao sinalizar para outros vetores da ética e da pesquisa, mas tendo em vista uma profícua reflexão sobre critérios centrados nas especificidades das Ciências Humanas e Sociais, em especial no campo da História, principalmente quando a relação pesquisador / objeto é matizada pela atuação intencional e planejada do cientista social. Assim, os textos do dossiê oferecem um fecundo panorama das condições de formação do pesquisador, da produção e divulgação dos conhecimentos científicos, colocando em relevo a forma pela qual a sociedade pode usufruir dos resultados da ciência sem que “prejuízos éticos” se manifestem ou reduzindo os riscos de sua ocorrência.

Repassamos agora ao público não só importantes resultados de pesquisa, mas também a responsabilidade pela leitura, pela avaliação e pela crítica, assim como pela continuidade do debate e da reflexão sobre as relações do homem com a natureza e com seus pares, mediados pela ciência.

Conselho Editorial


Ética, Pesquisa, História: desafios na produção do conhecimento. História & Perspectivas, Uberlândia, n.52, 2015. Acessar publicação original [DR].

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História Oral: problemas éticos e desafios metodológicos / Tempos históricos / 2013

A prática da história oral mantém-se plural e vigorosa entre nós na contemporaneidade. Ao reconhecemos esta dimensão de prenhe permeabilidade prática na vida acadêmica e nos espaços socioculturais de circulação e reflexividade da memória e da oralidade, não podemos ser facilmente levados a acreditar que tudo já tenha sido dito, feito e superado. Ao contrário disso, é exatamente a força da história oral como produtora de sentidos e significados emergentes, antes pouco tornados possíveis por meio de outras linguagens e fontes, que hoje nos recoloca desafios à sua continuidade com dignidade e profundidade. Ao mobilizarmos nossa atenção neste Dossiê para problemas éticos suscitados em sua feitura, assim como uma atenção aos desafios metodológicos que decorrem dessa prática cada vez mais utilizada, buscamos nesta oportunidade constituir uma parada de reflexão, todavia jamais conclusiva, para pensar potencialidades dessa ventura tão rica e cativante.

Ao reconhecemos a fecundidade da história oral para o fazer reflexivo no campo das ciências humanas, sublinhamos na mesma proporcionalidade a responsabilidade com as preocupações éticas de seu emprego. O tema da ética na história oral não é uma questão nova, todavia, vem se afirmando numa tomada de assento que permanece desafiando pesquisadores e profissionais dedicados à escuta de memórias e da oralidade. Neste sentido, a questão não raro tem se desdobrado em conflitos, especialmente em relação à atuação presente de alguns comitês de ética universitários; ora premindo à história oral rasos rigores cientificistas, por vezes utilizando-se de critérios e sentidos alheios ao campo das humanidades e suas veias sensíveis, ora interferindo diretamente na consecução de projetos de investigação, a exigir horizontes de previsibilidade da prática fria da trama burocrática, o que por sua vez devora os sentidos humanos emergentes que são avessos ao trâmite da legalidade oficiosa. Ao reconhecer tais questões, que não se resumem evidentemente aos problemas crescentes das exigências de comitês de ética, não se pretende diluir a importância de um estatuto ético para a história oral, muito menos restringir seus dilemas a apenas esta que é uma de suas maiores dificuldades do presente.

Mais do que isso, este cenário tem mostrado o quanto o crescimento frutífero da história oral se relaciona com outras questões, inclusive pautando a necessidade da continuidade do debate sobre o seu emprego ético. A primeira delas, digna de nota, é o fato de que ao se popularizar, a metodologia foi ganhando o entendimento de que sua feitura tem larga facilidade de emprego. Ledo engano! Pelo menos isso é o que podemos concluir na leitura dos textos organizados neste número. Nesta direção, questões inerentes à natureza subjetiva da ação e representação humanas, adicionadas ao do direito à memória e à informação, potencializam preocupações em relação à exigência de maior seriedade com a produção e interpretação das narrativas de um / uns, outro / os. A segunda, diz respeito ao tom emblemático daqueles sentidos políticos imanentes ao ato metodológico da história oral com preocupações éticas. Ou seja, na medida em que se amplia o escopo de atuação na investigação em favor de maior qualidade na demonstração da complexidade das realidades sócio históricas, também se tem que atentar ao risco iminente de um embate que vem sendo posto em causa, ainda que subliminar, o de retirar da história oral seu estatuto político de democratização de significados plurais e por vezes contraditórios do ato dialógico da feitura de entrevistas. Longe de advogar pelo rechaço puro e simples aos comitês científicos de ética na pesquisa com seres humanos, que hoje em algumas sendas submetem a história oral ao risco de infertilidade e sentido único, cumpre reivindicar que estes incorporem à sua dinâmica a interlocução com seus praticantes, que no caso brasileiro vem de longa data Sobre isso, vide os esforços constituídos de maneira não institucionalizada desde os anos 1980 e pela Associação Brasileira de História Oral desde 1994. É nesta direção de abertura por canais de reflexão sobre a história oral em suas muitas faces, dilemas e possibilidades, entre questões éticas e possibilidades metodológicas que estas ensejam, que este dossiê visa a se constituir como mais uma entre outras iniciativas que buscarmos dar forma em nossa lida profissional.

A relação entre História Oral e Ética é tema de diversas contribuições deste dossiê, algumas a abordando de forma central, outras de forma tangencial, com base nas próprias experiências de investigação dos autores.

A questão da ética é central no artigo “Comitês de Ética: Regulamentando a História Oral?”. Nele, Lara Rodrigues Pereira e Jaqueline Henrique Cardoso historicizam a regulamentação da pesquisa com seres humanos e a criação dos comitês de ética em pesquisa no interior das universidades, no mundo e em especial no Brasil, e problematizam a baixíssima representatividade de profissionais da área de Ciências Humanas e Sociais na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Com base na atuação do Comitê de Ética da Universidade do Estado de Santa Catarina, apresentam e discutem a regulamentação de pesquisas que envolvem história oral por parte desse e de outros comitês correlatos no Brasil.

Francisco Alcides do Nascimento, autor do artigo “Viver, ouvir e aprender: o outro nas entrevistas com a história oral”, aborda diversos procedimentos metodológicos e éticos inerentes à História Oral com base em dois projetos de pesquisa desenvolvidos no Núcleo de História Oral (NHO) da Universidade Federal do Piauí.

O artigo seguinte, intitulado “Consideraciones metodológicas y éticas del trabajo de campo con maestras en una institución geriátrica. Una experiencia en México”, a autora, de Blanca Susana Vega Martínez, expõe os limites metodológicos e as possibilidades éticas de uma investigação realizada com professoras idosas numa instituição asilar. A autora enfatiza o modelo colaborativo utilizado na investigação, no qual as entrevistas participaram ativamente da construção de suas histórias de vida.

O artigo “Narrativas sobre a história da loucura no tempo presente: o arquivo de fontes orais do Centro de Documentação e Pesquisa do Hospital Colônia Sant’Ana (CEDOPE / HCS)”, de Viviane Trindade Borges, trata da constituição do arquivo de fontes orais daquele centro. A autora perscruta a composição do Programa de História Oral do CEDOPE, o seu papel na produção de fontes orais – e, por seu intermédio, a identificação de fotografias preservadas, – e na salvaguarda de entrevistas realizadas por terceiros. Além disso, analisa as especificidades, os limites e possibilidades do trabalho daquele centro, sobretudo para a ampliação da discussão sobre a história da psiquiatria e da loucura no Brasil no tempo presente.

A partir da perspectiva dos estudos da linguagem, os autores Andrea Silva Domingues e Newton Guilherme Vale Carrozza propõem, no artigo “História Oral, discurso e memória”, um diálogo entre a História Oral e a Análise de Discurso, desenvolvida a partir dos trabalhos de Michel Pêcheux, na França, e de Eni P. Orlandi, no Brasil. Os autores consideram os depoimentos como fatos de linguagem que articulam elementos políticos, simbólicos e ideológicos, e que estes materializam discursos nos quais tanto as fontes quanto os historiadores se inscrevem.

No artigo seguinte, o historiador mexicano Gerardo Necoechea Gracia explora as possibilidades da utilização da história oral na investigação acerca do processo de politização de militantes de esquerda latino-americanos. A partir de fontes orais, o autor analisa o início da politização no âmbito familiar, a maneira como as ideias hegemônicas conformaram expectativas, como as experiências vividas transformaram as ideias em noções rebeldes e, por fim, constata como houve a aparição de experiências novas e percepções inéditas, devido ao rompimento da correspondência entre expectativa e experiência.

No artigo “Narrativas de praças acerca do movimento reivindicatório da Polícia Militar de Minas Gerais (Belo Horizonte, 1997)”, Juliana do Carmo Cardoso Alves analisa as representações construídas pelos praças protagonistas do movimento. Ao constatar que os mesmos negam sua participação na greve e reafirmam valores e princípios ensinados nos quartéis, a autora demonstra como suas narrativas compartilham a presença de um “mito fundador”, conceito trabalhado por Alessandro Portelli ao identificar histórias representativas e significativas partilhadas por uma cultura, e o conceito de “honra”.

A questão da linguagem também é discutida no artigo seguinte, “A força de contar histórias: tradição oral indígena e história oral em Roraima”, de autoria de Carla Monteiro de Souza, Maria Georgina Pinho e Silva e Carmem Nunes Spotti. Os autores refletem sobre questões relativas à aplicação da metodologia da história oral e da abordagem da tradição oral no contexto da cultura indígena. Com base em pesquisas realizadas em duas comunidades indígenas localizadas no estado de Roraima, os autores analisam narrativas de tradição oral na perspectiva dos estudos literários, discutindo a relação entre linguagem, cultura, e identidade.

Sandra Pelegrini, em seu artigo intitulado “O viver às margens das águas doces e turvas do Rio Ivaí: Memória, história e oralidade”, discute a problemática das cheias e da possível construção de pequenas centrais hidrelétricas no leito do rio Ivaí e os conseqüentes impactos ambientais, arqueológicos e culturais. Com base, entre outras fontes, em entrevistas com moradores ribeirinhos, a autora traz à tona experiências, modos de vida e memórias de pessoas que estão à mercê da criação de novos empreendimentos hidroelétricos.

Experiências e memórias de moradores do Extremo Oeste do Paraná são tematizadas nos últimos artigos do dossiê. Jiani Langaro, no artigo “Entre o campo e a cidade: Brasil e Paraguai em memórias e narrativas orais de migrantes transfronteiriços (Santa Helena – PR, décadas de 1990 e 2000)”, discute narrativas orais produzidas com brasileiros que se dirigiram para o leste do Paraguai e, posteriormente, retornaram ao Brasil, para a localidade de Santa Helena – PR, chamados na região de brasiguaios. O recurso à história oral permitiu compreender as projeções desses sujeitos sobre o Paraguai, visto como o lugar de atraso, e sobre o Brasil, tido como lugar promissor, e os sentidos políticos de suas narrativas orais, uma vez que as entrevistas são também meios para a reivindicação de direitos.

Raphael Pagliarini, no artigo “Práticas rural-urbanas: um estudo com os trabalhadores da Feira do Produtor Agropecuário do município de Marechal Cândido Rondon – PR”, analisa práticas rurais e urbanas com base em narrativas dos trabalhadores da Feira do Produtor Agropecuário daquele município. O autor discute as formas como os sujeitos dialogam, vivenciam e reelaboram práticas no viver urbano a partir de suas experiências no campo.

No último artigo, intitulado “Universitários na Cidade: Experiências estudantis em Marechal Cândido Rondon, 2000-2010”, Thiago Reisdörfer analisa narrativas orais produzidas com estudantes da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, Campus de Marechal Cândido Rondon, abordando suas vivências e sociabilidades na cidade e os sentidos e sentimentos construídos na e a partir das memórias.

Méri Frotscher

Robson Laverdi


FROTSCHER, Méri; LAVERDI, Robson. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.17, n.2, 2013. Acessar publicação original [DR]

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