Cultura y violencia: hacia una ética social del reconocimiento | Myriam Jimeno

Filosofia e Historia da Biologia 17 Cultura y violencia
Myriam Jimeno (terceira, da esquerda à direita) | Foto: Agência de Notícias UNAL |

SCOTT The common wind 21 Cultura y violenciaUna reseña tradicional suele parecerse a un resumen analítico de la obra  en cuestión. Para el caso, aquí se referiría a la compilación de catorce artículos  sobre la violencia escritos por Myriam Jimeno entre 1996 y 2015. Los artículos  están organizados en cuatro partes que incluyen, cada una, aspectos sobre la  relación entre violencia, cultura, política y emociones. Si bien en el prólogo  Joanne Rappaport recomienda leer los artículos en orden cronológico y tomar el  concepto “configuración emotiva” para evidenciar cómo la autora fue evolucionando en su investigación, esta recomendación de la prologuista también tiene  intención pedagógica: mostrarles a los estudiantes que “la investigación es algo  que se desarrolla a través del tiempo y que nunca es algo aislado y puntual” (p. 8).

En lo metodológico, se destacan dos consideraciones, una inductiva y otra  deductiva. Sobre la primera, Jimeno subraya que la compilación de artículos  retoma la tradición antropológica de entender los fenómenos sociales a partir  de la comprensión que sobre ellos tienen los propios actores sociales. Luego de  tamizar estos relatos un investigador haría evidentes las regularidades detectadas. En la deductiva, se identifican algunos trabajos que han procurado relacionar el análisis sobre subjetividad y violencia con los macroprocesos políticos  o históricos. En este mismo enfoque se ubican los artículos de la tercera parte,  destacando entre ellos uno sobre el partido radical del siglo xix . Leia Mais

Sem consentimento: a ética na divulgação de informações pessoais em arquivos públicos | Heather MacNeil

Heather MacNeil é uma das referências contemporâneas no campo arquivístico. Professora da Faculdade de Informação na Universidade de Toronto, no Canadá, suas pesquisas abordam temas que vão da confiabilidade dos documentos em ambientes analógicos e digitais a análises que tomam arquivos e instrumentos de pesquisa como artefatos culturais. Mais recentemente, com sua colega Wendy Duff, tem se dedicado ao papel dos arquivos em contextos de busca por justiça social. Foi editora-chefe da revista Archivaria, um dos mais influentes periódicos da área, entre 2014 e 2015. Leia Mais

Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy – ATKINSON (C)

ATKINSON, Dennis. Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy. Cham, Switzerland: Springer/Palgrave Macmillan, 2018. Resenha de: BACKENDORF, Jonas Muriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy é o mais recente livro da série Education, Psychoanalysis, and Social Transformation, organizada pela Palgrave MacMillan. De acordo com a apresentação do livro, uma das finalidades principais da série é: “to play a vital role in rethinking the entire project of the related themes of politics, democratic struggles, and critical education within the global public sphere” (p. ii). Embora não trate diretamente das idiossincrasias do cenário brasileiro e sul-americano, o livro aborda com profundidade questões de fundamental relevância para a nossa realidade presente, em especial o caráter cada vez mais explícito com que as humanidades, as artes, e o pensamento desprendido como um todo vêm sendo atacadas pelo atual governo – por meio de argumentos que vão desde a ausência de “retorno para o contribuinte” até a “militância política”1 dessas áreas de estudo, argumentos que exemplificam com transparente precisão a relevância do ataque de Atkinson aos modelos pedagógicos instrumentais, bem como da defesa de uma educação crítica e desobediente.

O autor é professor emérito na Universidade Goldsmiths, de Londres, além de ocupar o cargo de docente visitante nas universidades do Porto, de Helsinki, Gothenburg e Barcelona. Um aspecto importante da sua biografia é a experiência que tem no ensino secundário, por ter trabalhado, na Inglaterra, de 1971 a 1988. O livro de que ora me ocupo é o sexto da bibliografia do autor, sendo os outros igualmente voltados para as questões educacionais: Art in education: identity and practice; social and critical practice in art education (coautoria de Paul Dash); Regulatory practices in education: a lacanian perspective (coautoria de Tony Brown e Janice England); Teaching through contemporary art: a report on innovative practices in the classroom (coautoria de Jeff Adams, Kelly Worwood, Paul Dash, Steve Herne e Tara Page) e Art, equality and learning: pedagogies against the state. O mais próximo, em conteúdo, do atual é justamente o último, em que o autor trata, já com profundidade, de algumas das questões centrais para o presente livro, a questão da desobediência e a da postura combativa frente aos modelos fechados da pedagogia instrumental. Leia Mais

Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais – LEON (C)

LEON, Denis (Org.). Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais. São Paulo: FiloCzar, 2017. Resenha de: TRINDADE, Gabriel Garmendia da. Conjectura, Caxias do Sul, v. 23, n. 3,  p. 637-642, set/dez, 2018.

Poucos tópicos de reflexão são tão polarizadores quanto a questão das relações éticas estabelecidas entre humanos e membros de outras espécies.

Não é de se surpreender, portanto, que essa temática venha ganhando, cada vez mais, espaço nos programas de estudos e adentrando as salas de aula de instituições acadêmicas brasileiras. Em anos recentes, diversas obras têm sido lançadas precisamente com a finalidade de promover e estimular a investigação e o ensino de tais assuntos em território nacional. Dentre as últimas publicações dessa série, se encontra a coletânea Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais, organizada pelo educador e pesquisador paulistano Leon Denis.1 O livro é composto de quatro ensaios escritos por pesquisadores de variadas searas do saber, os quais almejam problematizar a chamada “Educação Vegana” interdisciplinarmente. Por “Educação Vegana”, o organizador da coletânea entende “uma ação direta pedagógica, cujo objetivo é levar a teoria dos direitos animais, sua prática e o modo de vida vegano ao conhecimento do maior número de pessoas”. (LEON, 2017, p. 13). Para fazê-lo, explica Denis, o educador vegano “insere no currículo escolar de sua disciplina todas as problemáticas inerentes ao debate suscitado pelo recorte biótico chamado Ética Animal”. (2017, p. 3).

Dado que a construção de um debate suficientemente aprofundado, acerca do modo como deveríamos agir para com os animais não humanos, depende de uma análise adequada de diferentes tópicos correlacionados, educadores veganos bebem de múltiplos campos do conhecimento, tais como: filosofia, biologia, psicologia, ciência política, nutrição, entre outros.

Denis, todavia, faz questão de ressaltar que, longe de se mostrar como uma ruptura antagônica do currículo adotado em instituições de ensino, a educação vegana surge, em realidade, para complementar a base comum dos manuais de educação desenvolvidos nos últimos anos, a qual atenta para a seriedade do combate ao sexismo, racismo e elitismo. (2017, p. 14).

Nesse sentido, educadores veganos partem dos costumes e sistemas curriculares preestabelecidos e, simplesmente, adicionam o especismo – i.e., a discriminação arbitrária de membros de outras espécies – à lista de preconceitos a ser urgentemente desmantelada.

O primeiro capítulo da obra, elaborado pelo próprio organizador do volume, intenta justamente expandir a discussão acerca desse tema. Mais precisamente, em seu ensaio, Leon Denis reflete sobre a possibilidade de fundamentar a Educação Vegana no cenário brasileiro por meio de propostas ético-filosóficas de cunho neoaristotélico. É observado que essa educação, quando tratada de maneira apropriada, é capaz de avançar um aspecto essencial da evolução educativa e do aprendizado que tem sido, há muito, deixado de lado, qual seja, a busca pela excelência no viver. No que tange ao âmbito nacional, até mesmo educadores veganos vêm negligenciando continuamente esse elemento pedagógico de crescimento ético-pessoal em seus seminários. Uma das principais razões para essa aparente falha educativa seria a ênfase exagerada dada à discussão de duas correntes de pensamento da ética voltada aos animais não humanos. Por anos, pesquisadores brasileiros da área têm centralizado suas investigações, quase exclusivamente, em apreciações consequencialistas, cujo principal defensor é o filósofo australiano Peter Singer, e/ou teorias baseadas em direitos, como as desenvolvidas por Tom Regan e Gary L. Francione. Embora as contribuições desses três autores para o campo em pauta sejam indiscutíveis, o contínuo foco na literatura por eles produzida tem, por sua vez, vendado muitos investigadores para a riqueza de posições concorrentes, tais como as neoaristotélicas.

Após feitas essas constatações, Leon Denis imediatamente lança-se em uma exposição pontual dos distintos posicionamentos pautados por virtudes de Stephen R. L. Clark, Rosalind Hursthouse, Bernard E. Rollin e Martha Nussbaum. Conceitos-chave dos posicionamentos – e.g., eudaimonia e telos – são, cuidadosamente, examinados em relação à Educação Vegana, bem como suas possíveis implicações pedagógicas. Ausentes dos comentários feitos por Leon Denis estão, no entanto, as costumeiras objeções filosóficas esboçadas contra a ética das virtudes e suas respectivas vertentes. Por exemplo, a crítica de que as virtudes não seriam capazes de fundamentar um código normativo propriamente dito. Tais objeções seriam particularmente significativas, sobretudo de um ponto de vista didático, em uma comparação entre as vantagens e desvantagens das propostas neoaristotélicas apresentadas ante os frameworks consequencialistas ou aqueles baseados em direitos. Não obstante esse pequeno detalhe, o capítulo elaborado por Leon Denis constitui uma importante e aguardada contribuição aos estudos brasileiros sobre a consideração moral de não humanos e à Educação Vegana como um todo.

O segundo capítulo é assinado pela educadora social Priscila Tessuto. Em seu texto, Tessuto examina a condição dos membros de outras espécies como propriedade por intermédio da teoria sociológica durkheimiana.

Como relatado em múltiplas publicações pelo jurista norte-americano Gary L. Francione, o status dos animais não humanos como propriedade é uma instituição inerentemente problemática. Uma vez que não humanos são tidos como coisas/mercadorias, quer de um ponto de vista econômico quer cultural e/ou político-filosófico, eles acabam sendo classificados em diferentes categorias com base em seus usos – e.g., não humanos para consumo, não humanos para entretenimento, experimentação, companhia, etc. – facilitando, assim, sua exploração sistemática. Tal exploração é, por seu turno, conservada e fomentada através de inúmeras práticas e tradições adotadas pela sociedade humana.

À vista disso, Tessuto utiliza, então, a noção durkheimiana de “solidariedade mecânica” para explicar os dispositivos sociais facilitadores da perpetuação da exploração não humana. Mais especificamente, é argumentado que a personalidade dos indivíduos estaria absorvida de tal maneira pela personalidade coletiva que o uso e o consumo de membros de outras espécies passaria a ser tomado como uma faceta completamente natural da sociedade humana; de modo que o repúdio ao exercício desses costumes ou atividades seria, por sua vez, imediatamente chacoteado pela grande maioria. A partir disso, Tessuto faz uma breve, porém acurada comparação histórico-social entre o tratamento depreciativo dispensado àqueles que se opunham à escravidão humana e os que hoje contestam o status dos outros animais como propriedade. Tessuto conclui sua análise defendendo a necessidade de uma mudança de paradigma concernente à condição de humanos e não humanos, a qual poderá, enfim, levar ao cerne da questão social como atualmente é compreendida. Se bem-explorada em sala de aula, a conexão entre os escritos de Durkheim e a proposta de Francione se verá que tem todos os ingredientes para gerar vários debates envolventes, sobretudo no campo das ciências sociais aplicadas.

O terceiro capítulo é, sem sombra de dúvida, o mais ambicioso da obra. Nesse, a Professora Sarah Rodrigues analisa a possibilidade da inclusão de tópicos referentes aos direitos não humanos em aulas de matemática.

Tomando como ponto de partida as ideias do educador matemático dinamarquês Ole Skovsmose, que articula uma abordagem pedagógica voltada à educação matemática crítica, Rodrigues propõe que o papel do docente da área sob escrutínio seja reconsiderado. Ao invés de estar limitado à mera função de propositor de “exercícios de fixação”, o professor de matemática deveria ser incumbido da responsabilidade de estimular a criticidade de seus estudantes. Tal responsabilidade abarcaria, entre outras coisas, a contemplação de questionamentos éticos, os quais estariam em linha com a realidade e vivência dos discentes.

Entre os assuntos a serem ponderados de forma crítica, encontra-se a polêmica atinente ao tratamento moral concedido aos integrantes de outras espécies. Para justificar a inserção dessa temática no leque de conteúdos apreciados pelo professor de matemática, Rodrigues constrói, então, um diálogo pormenorizado com a perspectiva educacional de Skovsmose e salienta a urgência e atualidade da questão não humana.

Em um segundo momento de seu texto, Rodrigues elenca sugestões específicas de como trabalhar a Educação Vegana matematicamente. O fato é que alguns manuais didáticos já apresentam exercícios matemáticos nos quais animais não humanos figuram – porém, somente de forma periférica e sob o completo prisma de uma consciência especista e antropocêntrica.

Por exemplo, há livros que solicitam aos alunos que calculem, com base em determinadas informações, o valor da arroba de boi gordo ou a região em que um cão de guarda acorrentado poderia circular livremente. Uma vez que ainda não existem compêndios da matemática que retratem os não humanos de modo alternativo, Rodrigues recomenda que o formador interessado em explorar a dinâmica das relações interespécies faça proveito de materiais complementares que possam contextualizar tais assuntos sob uma outra ótica.

Para citar um exemplo, dados sobre o desperdício de água na indústria do leite poderiam ser utilizados em aulas de estatística no Ensino Médio. Isso talvez possa levar à revitalização da matemática escolar, a qual é comumente estereotipada como inaplicável e estranha ao dia a dia dos estudantes. Há muito o que se considerar aqui. Se as reflexões levantadas por Rodrigues realmente atrairão docentes do campo da matemática para a problematização da Educação Vegana é uma pergunta em aberto. Dito isso, a proposta do capítulo em voga certamente será vista por muitos como sendo, no mínimo, intrigante.

O quarto e último capítulo de Educação Vegana versa sobre o ensino de Literatura e a ética nas relações interespécies. Mais especificamente, os pesquisadores Evely Libanori e Diego Fascina explicitam como as obras da aclamada escritora Clarice Lispector podem ser empregadas para despertar a preocupação moral dos alunos para com os membros das outras espécies.

É do conhecimento comum que muitas das publicações de Lispector trazem personagens que exibem uma inquietação bastante forte acerca do tratamento outorgado aos não humanos. Libanori e Fascina, todavia, vão além do que é geralmente conhecido acerca desse tema e estruturam uma apreciação escrupulosa do lugar do animal não humano na bibliografia lispectoriana.

Cerca de dez textos – entre romances, contos e crônicas – são examinados, constituindo uma avaliação que percorre desde o primeiro livro de Lispector, Perto do coração selvagem (1943), até o último: Um sopro de vida (1978).

As atitudes das personagens diante dos não humanos são diligentemente averiguadas à luz dos posicionamentos de algumas das maiores referências da “Ética Animal”, tais como Singer e Francione. Tudo isso é feito tendo em mente o que poderá ser requisitado dos estudantes em sala de aula.

No tocante a este capítulo final, pode-se afirmar, com segurança, que as obras de Lispector aparentam ser uma boa porta de entrada para discussões que relacionem clássicos da literatura brasileira e o pensamento ético contemporâneo direcionado aos outros animais. Entretanto, talvez valha a pena mencionar a necessidade de evitar extrapolações e exageros interpretativos ao realizar essas conexões. Pois, como Libanori e Fascina fazem questão de relatar, a despeito das especulações morais levantadas em seus escritos acerca dos integrantes de outras espécies, Lispector não era vegana ou vegetariana – o que revelaria os limites de tais comparações.

Em conclusão, Educação Vegana é um livro curto, porém significativo. Os contribuintes desse volume trazem à tona uma gama de tópicos rotineiramente negligenciados por educadores veganos e/ou pesquisadores brasileiros da “Ética Animal”. Tópicos os quais são passíveis de ser incorporados a seminários de diversas áreas em distintos níveis educacionais.

Tendo pontuado isso, ocasionais leitores da coletânea em pauta talvez possam ter a sensação de que muito mais poderia ser dito, no decorrer dos quatro capítulos, acerca das notórias dificuldades no processo de implementação de disciplinas voltadas à Educação Vegana. Afinal de contas, apesar da consideração de animais não humanos atrair, cada vez mais, a atenção de acadêmicos e docentes de numerosos campos do saber, a inclusão de cadeiras que abordem essa temática – especialmente em instituições com currículos já consolidados – continua sendo uma tarefa bastante árdua. É por isso que talvez seja importante realizar a leitura de Educação Vegana em conjunto com outras publicações organizadas pelo próprio Leon Denis, como, por exemplo, sua obra Educação Vegana: tópicos de Direitos Animais no Ensino Médio, a qual detalha, entre outras coisas, as possíveis maneiras de sobrepujar os obstáculos comuns ao desenvolvimento e à execução de aulas que lidem com Educação Vegana. Se assim for feito, essa nova antologia pode muito bem se tornar o alicerce intelectual de incontáveis colaborações interdisciplinares futuras sobre as relações mantidas entre humanos e não humanos.

Nota

1 Leon Denis é autor de Educação Vegana: tópicos de direitos animais no Ensino Médio (Libra Três, 2012) e organizador da antologia Educação e direitos animais (Libra Três, 2014).

Gabriel Garmendia da Trindade – Doutorando em Global Ethics pelo Centre for the Study of Global Ethics. Department of Philosophy da University of Birmingham (Reino Unido). E-mail: garmendia_gabriel@hotmail.com

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Metafísica e ética. A filosofia da pessoa em Lima Vaz como resposta ao niilismo contemporâneo – OLIVEIRA (V)

OLIVEIRA, C. M. R. Metafísica e ética. A filosofia da pessoa em Lima Vaz como resposta ao niilismo contemporâneo. Coleção Estudos Vazianos. São Paulo: Loyola, 2013. 295p. Resenha de: RIBEIRO, Elton Vitoriano. Veritas, Porto Alegre, v. 63, n. 2, p. 814-818, maio-ago. 2018.

O livro Metafísica e ética de Cláudia Oliveira, professora de metafísica da FAJE, é fruto de seu doutorado em filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma, Itália). Segundo a própria autora, este livro quer explicitar num grande panorama o percurso de Lima Vaz, na intenção de ser “uma introdução à sua proposta de reler a metafísica de Tomás de Aquino à luz da dialética platônico-hegeliana” (OLIVEIRA,2013,p.22). Este panorama, desenhado pela autora tem dois núcleos de atração, a metafísica e a ética na modernidade. Modernidade que Lima Vaz esforçou-se por compreender seus projetos, caminhos, descaminhos, conquistas e desilusões (OLIVEIRA,2013,p.25). Neste esforço, Lima Vaz fez em sua obra uma grande rememoração percorrendo toda a história da filosofia para pensar filosoficamente a existência humana num mundo. Mundo contemporâneo em contínua, rápida e variada transformação.

A pergunta inicial que guia a autora, em sua reflexão é muito interessante. Lima Vaz, em seu pensamento, distanciando-se da filosofia pós-metafísica, no livro “Introdução à ética filosófica 2” afirma: não há ética sem metafísica. A partir daí a autora se pergunta: existe uma relação necessária entre metafísica e ética? Nos termos da autora: “Se, por um lado, para Lima Vaz não há ética sem metafísica, por outro lado, é possívelafirmar que para ele exista metafísica sem ética?” (OLIVEIRA,2013,p.12). Aqui está, em germe, desenhado todo o percurso do livro que vai se desdobrando e encontrando dificuldades a ser analisadas. A primeira é a seguinte: o que Lima Vaz entende por metafísica? A pergunta pela ética, outro núcleo importante da reflexão foi respondida por Lima Vaz em vários livros e artigos, especialmente nos dois volumes de “Introdução á ética filosófica“. Mas, por outro lado, Lima Vaz nunca escreveu um livro de metafísica. Daí podemos perceber o valor da investigação da autora em resgatar a questão metafísica presente no pensamento de Lima Vaz. Ou, filosoficamente, resgatar a compreensão de Lima Vaz desta experiência de abertura ilimitada ao horizonte transcendente, fundamento e origem de toda experiência que o ser humano faz do próprio ser e do próprio agir.

Segundo a autora, Lima Vaz entende a metafísica num duplo sentido: um estrito e outro amplo (OLIVEIRA,2013,p.13). Em sentido estrito, a metafísica é o discurso que explicita diretamente a experiência do Uno. Em sentido amplo, é todo percurso que parte do múltiplo e se dirige ao Uno. Ora, Lima Vaz inspirado em Tomás de Aquino “estabelece a relação necessária entre a ética entendida como ontologia do agir humano e a metafísica entendida tanto em sentido estrito como em sentido amplo” (OLIVEIRA,2013,p.14). É esta relação que a autora busca elucidar. A elucidação tem como pano de fundo duas questões fundamentais sempre presentes no pensamento de Lima Vaz: (1) o problema do sentido da existência e (2) a pergunta a respeito da orientação ética para as ações humanas.

Este percurso elucidativo da autora, acerca do pensamento de Lima Vaz, tem como horizonte de realização a modernidade e a pós-modernidade. Na modernidade o desafio ao pensamento metafísico se configura na primazia da racionalidade técnico-científica e da exacerbação da subjetividade. Na pós-modernidade, o desafio é o avanço do niilismo ético e metafísico que questiona constantemente todas as tentativas de reflexão e ação. Assim, diante disso, a proposta de Lima Vaz é fazer memória do ser a partir de uma releitura dialética da metafísica de Tomás de Aquino. Didaticamente, a autora divide sua investigação em duas partes com três capítulos cada.

A primeira parte tem por título “Um percurso filosófico: ponto de partida, método e opção teórica”. Nela a autora identifica algumas questões importantes que acompanham a reflexão filosófica de Lima Vaz.

Pensar a existência e o agir humanos a partir da situação história é uma delas. A outra é pensar esta problemática a partir da abertura ilimitada ao horizonte transhistórico da Verdade e do Bem. Por isso, o primeiro desafio da autora é pensar a “Modernidade e o Niilismo” (capítulo 1). Neste capítulo, a reflexão caminha na direção de elucidar a interpretação da modernidade de Lima Vaz. Surge um enigma, o enigma da modernidade que tem que enfrentar a racionalidade moderna e a autonomia da razão técnico-científica, que se apresentam como desafios para o nosso tempo. Diante destes desafios o método filosófico de Lima Vaz é o “Método dialético” (capítulo 2). Segundo a autora, para Lima Vaz a dialética é um caminho de reflexão que parte de aporias concretas. Como método, Lima Vaz é devedor da filosofia de Platão e Hegel. Cada um destes filósofos, analisados pela autora em suas reflexões acerca da dialética filosófica em seus contextos, influencia Lima Vaz. Assim, Lima Vaz constrói seu próprio método buscando também, refletindo sobre os dualismos presentes na história, a unidade de sentido tão importante para a filosofia. Finalmente, no terceiro capítulo, a autora busca explicitar a reconstrução que Lima Vaz faz da metafísica tomista. “A opção por Tomás de Aquino” (capítulo 3) faz este trabalho importante de reler os textos sobre Tomás de Aquino; textos escritos por Lima Vaz e publicados ao longo de sua carreira filosófica. Reler e interpretá-los ajudando o leitor a compreender a importância fundamental da metafísica de Tomás de Aquino no pensamento de Lima Vaz.

Na segunda parte do livro o foco é a “Filosofia realista da pessoa” de Lima Vaz. Segundo a autora, a filosofia da pessoa de Lima Vaz é uma via alternativa ao niilismo pós-moderno, analisado na primeira parte, o qual Lima Vaz se apresenta como um crítico feroz. Esta filosofia da pessoa vaziana se apresenta como uma proposta de releitura dialética da metafísica de Tomás de Aquino inspirada na estrutura triádica da filosofia do espírito de Hegel (OLIVEIRA,2013,p.17). Ora, sendo aristotélico-tomista, esta filosofia tem um tríplice nivelamento: a pessoa humana, a pessoa moral e a pessoa absoluta. “A Pessoa Humana” (capítulo 4) deve ser interpretada filosoficamente a partir da experiência que cada um de nós faz do próprio ser. Nossa experiência, para Lima Vaz, acontece numa síntese dinâmica entre essência e existência. Nesta síntese, a pergunta fundamental que guia a busca de sentido à vida humana é: quem sou eu? Pergunta inalienável e fundamental para o ser humano e que guia também toda reflexão filosófica. Na busca de uma resposta o ser humano se descobre como ser em ato porque “aquilo que ele é por essência deve tornar-se na existência concreta” (OLIVEIRA,2013,p.18). Assim, neste percurso de indagação o ser humano se descobre como um ser paradoxal, um ser histórico. Mas, também, como não poderia ser diferente para a filosofia de Lima Vaz, um ser aberto ao horizonte transcendental da verdade. Os outros dois capítulos são, evidentemente, desdobramentos deste primeiro. “A Pessoa Moral” (capítulo 5) reflete sobre a pessoa a partir da famosa pergunta aristotélica, apropriada por Lima Vaz em sua filosofia: como convém viver? Pergunta ética por excelência ela quer apontar para a busca de significação da pessoa humana como pessoa moral. Pessoa moral que aponta, segundo Lima Vaz, contra muitas correntes filosóficas contemporâneas, para “A Pessoal Absoluta” (capítulo 6). Este sexto capítulo é o mais exigente na leitura, e para bem apreciá-lo em toda a sua potência é exigido profundos conhecimentos de metafísica, especialmente, metafísica tomista. Neste capítulo, no qual a autora demonstra seus profundos e articulados conhecimentos de metafísica, o caminho é lento e, por vezes, penoso. Diga-se de passagem, como deve ser todo caminho profundamente filosófico. A autora faz dialogar com Lima Vaz, para ajudar o leitor na compressão desta “experiência metafísica do ser absoluto que se constitui como condição de possibilidade da experiência do nosso ser como unidade dinâmica de essência e existência” (OLIVEIRA,2013,p.18), autores como J. B. Lotz (Transzendentale Erfahrung), J. Marechal (Le point de départ de la métaphysique) e J. De Finance (Existence et liberte), entre outros. Neste capítulo, Tomás de Aquino, Hegel e Heidegger são referências constantes na elucidação da experiência metafísica do Absoluto seja pela “via compositionis ou descensos“, seja pela “via resolutionis ou ascensus“. Neste percurso a autora conclui que “ao seguir o personalismo cristão, Lima Vaz também defende que o Absoluto real, afirmando em sua pessoalidade, constitui-se como fundamento último da pessoa humana. A experiência metafísica remete, pois, à experiência religiosa da Pessoa Humana” (OLIVEIRA,2013,p.270). Concluindo, para a autora “a experiência ontológica que fazemos do nosso próprio ser e agir nos remete à experiência metafísica como experiência do fundamento” (OLIVEIRA,2013,p.270).

A conclusão final da autora é de que “toda a filosofia de Lima Vaz deve, pois, ser interpretada a partir do seguinte pressuposto fundamental: ele era um cristão e sua filosofia é uma filosofia cristã. Ela nasce da experiência profunda da abertura radical ao transcendente e pretende ser tematização discursiva dessa experiência radical como resposta ao enigma de um tempo histórico” (OLIVEIRA,2013,p.273). No caso o nosso tempo histórico, onde somos convidados a responder a pergunta fundamental pelo sentido. Pergunta que nos coloca diante da realidade história, diante das aporias do pensamento, diante de nossa própria existência com os outros no mundo. Neste percurso, que parte da experiência ôntica, rumo às experiências ontológica, metafísica e religiosa; somos também nós, convencidos pela filosofia de Lima Vaz que existe uma “íntima ligação não apenas entre ética e metafísica, mas também entre metafísica e ética” (OLIVEIRA,2013,p.279). Portanto, temos aqui uma excelente reflexão filosófica que merece ser lida por todos os que se ocupam com o labor filosófico de alta qualidade em nosso país.

Elton Vitoriano Ribeiro – Professor de Filosofia – FAJE: Faculdade Jesuíta. E-mail: eltonvitoriano@gmail.com

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Ética e subjetividade – CESCON (Ph)

CESCON, Everaldo (Org). Ética e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: DALSOTTO, Lucas Mateus. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 1, p.171-177, jan./jun., 2018.

Para todos aqueles que anseiam aprofundar seus conhecimentos a respeito da fenomenologia e, em especial, da relação desta com a ética, há pouco tempo foi publicado no Brasil um livro de imprescindível leitura, a saber: Ética e Subjetividade, organizado pelo competente e destacado professor Everaldo Cescon (Vozes, 2016, 314 p.). Note-se que a força e relevância do texto não decorrem apenas do fato dele fornecer uma ampla e apropriada abordagem a respeito da fenomenologia e, por conseguinte, de alguns de seus principais teóricos, tais como Edmund Husserl, Emmanuel Levinas, Edith Stein, Michel Henry, entre outros, mas especialmente por chamar a atenção do leitor a temas fenomenológicos que nos permitem falar diretamente da ética. Ainda que a obra resguarde uma homogeneidade no que diz respeito ao estilo e à forma de como cada autor estabelece sua discussão, isto não exclui em nada a riqueza de ca da um dos textos. Em linguagem acessível e com interpretações e análises acuradas, o livro conta com a contribuição de uma vasta gama de reconhecidos especialistas brasileiros e internacionais (i.e., Argentina, Colômbia, Portugal, Espanha e Itália) na área.

Ao considerar que a ética contemporânea desenvolve-se num vazio de sentido, na medida em que as bases ontológicas e metafísicas para a reflexão desta foram removidas, o escopo do presente livro reside em apresentar a fenomenologia como sendo capaz de fornecer princípios para um novo agir. O trabalho de fundamentação de nossas escolhas morais continua sendo um problema fundamental e indispensável no domínio da ética, o qual não se restringe em ser um problema meramente teórico, mas, tanto mais, um problema prático. Assim, é somente reivindicando a exigência do valor e refundando as crenças morais que será possível enfrentar uma sociedade cada vez mais atrelada à necessidade, à instrumentalidade e à utilidade do valor.

A fim de levar a cabo tal proposta, Ética e Subjetividade está dividida em cinco seções, cada uma delas cumprindo uma função especial no objetivo geral da obra. Partindo do processo metodológico de constituição da fenomenologia e perpassando pelo pensamento ético husserliano, as análises dirigem-se às mais variadas abordagens e desenvolvimentos éticos que surgiram a partir dessa corrente teórica. Estas seções são ainda precedidas por uma breve e oportuna introdução, a qual, nas palavras de Cescon, visa apresentar a eminente necessidade de repensarmos a ética no sentido de “permitir ao indivíduo constituir-se enquanto pessoa autor-responsável, livre, solidária e aberta” (p. 9).

Considerando o fato de que Husserl era entendido como um filósofo teórico e que, portanto, a ética sempre foi um dos temas que menos recebeu atenção por parte de seus estudiosos, a primeira seção do texto tem por finalidade principal expor a concepção de racionalidade prática que parece emergir de sua fenomenologia. Neste contexto, são apresentadas duas fases principais da obra husserliana no tocante à reflexão ética, uma de tipo lógico centrada na crítica e na teoria do conhecimento, e outra centrada na subjetividade humana e na noção de dever no sentido da vocação/missão. Na sequência, defende-se que em ambas as fases o objetivo de toda a fundamentação fenomenológica de Husserl foi sempre salvaguardar a objetividade, tanto das proposições teóricas quanto dos valores e das proposições éticas. Então, busca-se analisar o excurso Natur und Geist nas Lições de Ética, de 1920 a 1924, a fim de esclarecer o “âmbito do humano espiritual para, assim, saber ao que exatamente a ética se refere” (p. 68). Por fim, é avaliado se a ética de Husserl obtém sucesso em reivindicar que juízos de valor possuem uma validade que independe das particularidade dos agentes que os emitem e em defender que há alguma coisa como uma obrigação moral absoluta que vincula incondicionalmente a vontade dos agentes à ação.

Diferentemente da primeira seção, onde a reflexão estava centrada na noção de racionalidade prática e de objetividade moral na ética husserliana, a segunda seção visa discutir a questão da subjetividade ética e mostrar a influência de Husserl sobre outros autores. Partindo deste último, inicialmente é mostrado que a intencionalidade da consciência permite aos agentes perceber que os valores lhes são dados do mesmo modo como os objetos da intuição sensível o são e que, desse modo, a esfera afetiva – subjetiva – dos agentes faz parte do âmbito da moralidade. Num segundo momento, busca-se evidenciar a herança de Husserl na antropologia de Edith Stein, especialmente no que diz respeito ao método, uma vez que esta última incorpora integralmente em sua proposta a ideia de epoché daquele. No que se segue, discute-se a transcendência ética em Levinas no sentido de que a razão é incapaz de captar o outro sem reduzi-lo ou objetificá-lo e que, por isso, ela é incapaz de reconhecer a radicalidade do chamado do outro. A resposta a este chamado produz um “transbordamento da intencionalidade” (p. 156), o qual é impossível de ser capturado pela consciência intencional do agente.

Em continuidade à anterior, a terceira seção aborda a questão da subjetividade ética e o problema do corpo a partir da contribuição de alguns autores filiados – de alguma forma – à tradição fenomenológica. Primeiramente, avalia-se a possibilidade de uma fenomenologia da individuação a partir do conceito de encarnação de Michel Henry. O ponto central é que aquilo a que fazemos referência – noema – em nossa experiência intencional, dando-lhe sentido – noesis –, implica, em alguma medida, torná-lo carne, especificamente “carne de minha carne” (p. 164). Em seguida, o pensamento de Michael Henry é apresentado como estando vinculado a um tipo de fenomenologia do corpo – da subjetividade – segundo o qual a ética se dá no cuidado da vida e, nesse caso, na não-instrumentalização do corpo de cada indivíduo. Ao final dessa seção é exposta a posição Nicolai Hartmann, que, pensando a partir da fenomenologia, realizou uma vigorosa crítica à metafísica, tanto antiga quanto moderna, no sentido de chamar atenção à pluralidade e complexidade dos valores que afetam a vida dos agentes.

Na quarta seção, a questão da subjetividade ética ainda permanece no foco das discussões, mas agora atrelada ao problema da ação e sob o viés de outros autores. O ponto de partida de Ética e Subjetividade aqui é mostrar o esforço de Paul Ricouer em conciliar a teleologia aristotélica e a deontologia kantiana e, ao mesmo tempo, eliminar o problema – atinente a ambas as teorias – da exclusão da alteridade e da reciprocidade nas relações interpessoais. Posteriormente, expõe-se a teoria de Xavier Zubiri com vistas a sugerir que a reflexão moral não é uma questão de descobrir a que normas se está obrigado a cumprir, mas, ao contrário, de descobrir quais são as estruturas e características próprias de organização, solidariedade e corporeidade do ser humano. Finalizando a seção, o fenômeno da hospitalidade é analisado como uma forma de agir passivo em que há, nos termos de Levinas, um ‘transbordamento’ – as bordas de um fenômeno transbordado nunca poderão ser evidentes –, o qual, por sua vez, torna a apreciação conceitual uma tarefa delicada e complexa. A impossibilidade de tal apreciação deve converter a hospitalidade numa espécie de transgressão cujo resultado será a acolhida do hóspede, do estrangeiro ou de qualquer um outro.

Na última seção, as análises concentram-se na compreensão da relação existente entre subjetividade pessoal e comunidade ética. Num primeiro momento, o trabalho de Edith Stein é tomado em questão para evidenciar que a realização do ser humano como pessoa reside no encontro deste com o outro no interior de uma comunidade, onde esta comunidade é fonte de força vital e espiritual para os agen-tes na medida em que ela gera um sentido de pertença entre todos eles. A seguir, retorna-se a Husserl para mostrar que, embora a personalidade dos agentes seja regida por normas racionais que se ajustam ao telos próprio de cada um deles, é impossível imaginar que o ideal ético pessoal seja realizável sem abertura aos outros. Por fim, faz-se uma interpretação do fato da irrupção dos pobres – termo cunhado pelo teólogo Gustavo Gutiérrez ao se referir ao crescente número de marginalizados existentes nas grandes e pequenas cidades – na América Latina a partir do conceito de Jean-Luc Marion de fenômeno saturado – fenômeno que ultrapassa todas as significações conceituais e horizontes prévios de compreensão.

Para concluir, é importante chamar atenção para o fato de que, além de muito bem escrito, Ética e Subjetividade oferece uma segura síntese a respeito do atual estado da arte entre fenomenologia e ética. Apesar de toda a complexidade dos temas e análises realizadas nos textos, o livro é de fácil e acessível leitura, mesmo para aqueles que não estão familiarizados com os autores ou com os principais tópicos da discussão. Ainda que alguns temas pareçam carecer de maiores explicitações e, talvez, merecessem até uma exposição mais detida e minuciosa, é possível afirmar que o livro cumpre plenamente sua função, a saber: apresentar a fenomenologia como sendo capaz de fornecer princípios para um novo agir ético. Portanto, Ética e Subjetividade é uma das mais importantes contribuições editoriais no domínio da fenomenologia realizadas no Brasil nos últimos anos e, por conseguinte, é imprescindível sua leitura e discussão nos mais diversos ambientes da academia filosófica de nosso país.

Referências

CESCON, Everaldo (Org.). Ética e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2016.

Lucas Mateus Dalsotto – Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:  lmdalsotto@hotmail.com

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Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant – NODARI (C)

NODARI, Paulo César. Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. Paulus, 2014. Resenha de: RECH, Moisés João. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 2, p. 401-407, maio/ago, 2017.

A tarefa que Paulo César Nodari se coloca é, em grande medida, ambiciosa, para dizer o mínimo. Sua pesquisa de tese de Pósdoutoramento que se constituiu na presente obra, tem como mote o “projeto filosófico da paz no contratualismo moderno” (2014, p. 298), na qual Nodari empreende profundos estudos acerca de autores clássicos do pensamento político-moral da modernidade: Hobbes, Locke, Rousseau e Kant – com notória ênfase no pensador de Königsberg. O inovador enfoque elaborado em Ética, direito e política… é justamente olhar sob um novo prisma os autores destacados, qual seja, o prisma da paz. Desse modo, Nodari desembaraçar-se da carga pessimista que os autores contratualistas carregam consigo, no que diz respeito à propensão da natureza humana à guerra.

Para tanto, o texto se desenvolve a partir de duas partes, que se dividem em seis capítulos. A Primeira Parte, intitulada: “O contratualismo moderno e o projeto filosófico da paz: Hobbes, Locke e Rousseau” é subdividido em três capítulos, que, igualmente, são divididos em partes de contextualização e de inovação. Leia Mais

A medicina financeira. A ética estilhaçada – VIANNA SOBRINHO (TES)

VIANNA SOBRINHO, Luiz. A medicina financeira. A ética estilhaçada. Rio de Janeiro: Garamond, 2013. 336p. Resenha de: CASTIEL, Luis David. A dimensão financeira da medicina em questão. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.1 , jan./abr. 2017.

A revista Piauí de setembro de 2015 apresenta como matéria de capa a reportagem “O lobby dos remédios”, intitulada “Intoxicado de ofertas”. Um médico pesquisador participa de um congresso de psiquiatria com o firme propósito de se oferecer como ‘prescritor’ aos desígnios do bric-a-brac do marketing da indústria farmacêutica de psicofármacos. E faz fila para receber lanches, ganha brindes de qualidade, serventia e gosto duvidosos, joga videogames – num deles sua missão é salvar uma jovem da depressão munido de um antidepressivo virtual. Ao final da jornada, sai com seis sacolas com quase nove quilos de bugigangas e ainda conclui que, de certa forma, esta promiscuidade pode ser tratada alegoricamente com uma dose de benevolência, como um polvo, do qual os braços ‘somos todos nós’, assim como o alimento. Mas de quem é a cabeça do polvo?

Apesar de inegáveis benefícios farmacológicos dos medicamentos, é difícil sustentar uma postura de atenuar e relativizar a atuação poderosa e notadamente abusiva da indústria farmacêutica – no contexto do neoliberalismo sustentável em suas estratégias mercadológicas. Estas são identificadas por estudiosos do campo por visarem a proliferação contínua do consumo de medicamentos por meio de recursos eticamente discutíveis (Elliott, 2010), algo como o lado escuro da força da Big Pharma. Por exemplo: a minimização/omissão de efeitos farmacológicos adversos; a aquisição do uso de nomes de pesquisadores (com anuência destes) como autores de artigos favoráveis ao uso seguro da droga escritos por ghostwriters da própria indústria; a realização de dispendiosos ensaios clínicos com resultados que legitimam a inclusão de resultados favoráveis enviesando metanálises ao evitar a publicação de resultados desfavoráveis; o reforço à utilização abusiva de órteses e próteses, práticas de oferecer viagens, refeições, financiamento para eventos, brindes vários, entre outros agrados e lembranças que seduzem médicos, farmacêuticos e inclusive bioeticistas.

Inclusive, está documentado que pesquisadores da indústria farmacêutica elaboram uma nova droga e, conforme seu espectro de efeitos farmacológicos, profissionais do marketing da empresa devem vinculá-la ao tratamento de determinadas afecções e promover seu uso junto aos médicos como o tratamento ‘mais indicado’. Isto pode até implicar em encontrar uma doença incomum cujas respectivas fronteiras possam ser expandidas para incluir mais pacientes ou redefinir aspectos desagradáveis da vida cotidiana como patologia médica (por exemplo: a distimia, que tem o mau humor como sintoma). Este fenômeno costuma fazer parte destacada do que pode também ser designado por ‘medicalização’. Elliott (2010) enfatiza que a medicina já foi encarada como uma profissão, não como um negócio. Hoje os empreendimentos médicos são enormes e é duro admitir que o código de confiança implícito entre médicos, pacientes, pesquisadores e sujeitos de pesquisa não está mais assegurado.

Em uma matéria publicada no Le Monde DiplomatiqueQuentin Ravelli (2015) descreve as estratégias de ‘marketing’ da Big Pharma, representada pela gigante Sanofi-Aventis. Os médicos que mais interessam são aqueles com alto ‘potencial de prescrição’. Para localizá-los, há um bom tempo existem programas computacionais que os mapeiam por intermédio de dados coletados junto a distribuidores e com base nas vendas diretas em farmácias que exigem a apresentação e retenção de receitas. Além disto, são agregadas outras informações veiculadas por enquetes ad hoc de médicos.

Em busca de maior efetividade em suas ações, os setores de marketing elaboram uma tipologia de perfis de médicos: aqueles vinculados a movimentos sindicais, os afáveis e potencialmente receptivos, os acadêmicos, os ansiosos, os resistentes às investidas. Em síntese, o que interessa é sobrepujar qualquer enfrentamento retórico com argumentos e práticas que obtenham a fidelização dos prescritores aos medicamentos produzidos pela empresa. Isto se dá mediante treinamentos/workshops com vistas à formação de representantes hábeis em chegar aos resultados comercialmente desejáveis: o consumo dos produtos pelos pacientes. Para tanto, deve-se obter a aquiescência aos argumentos convenientes enunciados pela indústria farmacêutica.

Para resenhar e comentar este livro que aborda a dimensão financeira das práticas atuais da medicina, é preciso falar do seu autor. Talvez assim seja possível esclarecer não apenas seu conteúdo, mas algo que se sobressai da leitura, a inevitável ironia crítica que atravessa seus argumentos.

O autor é um médico cardiologista que também teve uma experiência na gestão técnica de um sistema de seguro de saúde de uma instituição pública de pesquisa, ensino, serviços e produção de insumos em saúde. A origem desta importante obra se localiza numa dissertação de mestrado em bioética que não foi defendida, mas que foi retomada, ampliada, atualizada e desenvolvida por iniciativa persistente do autor durante quase uma década.

Desde logo, percebe-se a estrutura acadêmica do livro. Impressiona a extensão do texto, a grande quantidade de referências e notas de rodapé. Mas esse formato é amenizado pela apresentação de exemplos provenientes da literatura e do cinema, e também de narrativas de eventos pessoais, muitas vezes, exibindo uma coragem admirável.

Vale repetir que o estilo empregado incide numa mordacidade que se harmoniza com a perspectiva de crítica necessariamente indignada diante das contradições precarizantes dos modos como se configuram atualmente as muitas engrenagens das cadeias de produção e consumo de sistemas e práticas de saúde. O livro também tem a ousadia de descrever aspectos que transitam pela hipocrisia por parte dos agentes que participam de situações que transitam por uma banalização do mal.

Assim, somos postos diante de médicos cujas práticas são configuradas por uma perspectiva de um neoliberalismo sustentável, abandonando o papel de cuidador e assumindo o lugar de gestor de condições de saúde, em função de critérios que ajustam meios e fins gerencialmente definidos. Tais médicos implodem a relação médico-paciente e diante do cliente (não mais um paciente, alguém que padece de algo), e tendem a se tornar profissionais impessoais que prestam serviços padronizados de qualidade variável, cuja efetividade em termos de resolução dos problemas dos pacientes é discutível.

Há uma atuação abusiva das empresas farmacêuticas e de equipamentos médicos que chega praticamente a uma forma mal disfarçada de suborno de médicos. São oferecidos presentes que participam, como indica o subtítulo, do estilhaçamento da ética, pois, por mais que os médicos achem que isto não influi no ato médico em si, há estudos que mostram como existem efeitos destas práticas na prescrição de medicamentos, próteses e órteses a pacientes.

São descritas as práticas de hospitais e planos de seguros de saúde que não conseguem camuflar os interesses mercantis na determinação dos níveis de capacidade de consumo de saúde dos clientes. Desta forma, assistimos à metamorfose precarizante daqueles que eram designados como ‘pacientes’ em ‘consumidores’.

Por sua vez, as ciências biomédicas e epidemiológicas sustentam uma perspectiva exacerbada na produção de evidências, metanálises e revisões sistemáticas sem levar em conta pressupostos metafísicos não explicitados quanto à noção de ‘realidade’ em questão, nem aspectos que são incluídos, não-incluídos e apagados nos procedimentos de pesquisa em saúde, segundo autores dos estudos sociais da ciência.

Além disto, importa mencionar que há evidências suficientes acerca dos enviesamentos que as corporações farmacêuticas geram nos resultados de ensaios clínicos que escamoteiam a real efetividade e os efeitos adversos dos novos fármacos postos no mercado. Da mesma maneira, não se apresentam sob a forma de publicação os resultados de estudos que apontam para achados desfavoráveis em relação aos medicamentos experimentados.

Este quadro inevitavelmente contamina a cadeia de produção de ‘guidelines’ que sustentam o gerencialismo baseado na lógica de adequação de custos em termos de insumos e produtos/serviços. Isto cinicamente termina por prover na extremidade do paciente a provisão de ‘cuidados’ de saúde já definidos, na sua origem, por um selo imaginário de qualidade precária. Por mais duro que possa parecer, é impossível se conter e não enfatizar a dimensão de cinismo que se manifesta nas práticas cotidianas de (des)atenção à saúde.

Os leitores do livro irão perceber configurações que muitos irão vincular a penosos eventos como pacientes ou como pessoas de sua família. A origem da palavra ‘paciente’ indica sua posição como alguém que está afetado por algo que o ameaça ou o faz sofrer ou o deixa enfraquecido diante das demandas da sua vida (enfermo é aquele que está num estado de debilidade; doente é originalmente aquele que sente dor). Não se trata do sentido de quem é obrigado a ter paciência, que aguenta com resignação não só a manifestação de sinais e sintomas, mas, também, ao alto risco de ser maltratado durante seus encontros com as incômodas facetas do atual Complexo Econômico-Industrial da Saúde.

Referências

AMARAL, Olavo. Intoxicado de ofertas. Revista Piauí, Rio de Janeiro, n. 108, p. 20-28, set. 2015. [ Links ]

ELLIOTT, Carl. White coat, black hat. Adventures on the dark side of medicine. Boston: Beacon Press, 2010. [ Links ]

RAVELLI, Quentin. Nos subterrâneos da indústria farmacêutica. Le Monde Diplomatique. Disponível em: <http://outraspalavras.net/destaques/nos-subterraneos-da-industria-farmaceutica>. Acesso em: 25 dez. 2015. [ Links ]

Luis David CastielEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil <luis.castiel@ensp.fiocruz.br>

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(P)

Entangled empathy: an alternative ethic for our relationships with animals – GRUEN (C)

GRUEN, Lori. Entangled empathy: an alternative ethic for our relationships with animals. New York: Lantern Books, 2015. Resenha de: MARIN, Ana Paula Foletto; TRINDADE, Gabriel Garmendia da. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 3, p. 672-677, set/dez, 2016.

Recentemente, empatia se tornou um tópico de interesse em múltiplos campos profissionais (e.g., direito, administração, recursos humanos, etc.), além de alvo de pesquisa em diferentes áreas do conhecimento (e.g., psicologia, filosofia, neurociência, etologia, etc.).

Embora empatia seja um termo constantemente empregado como se o seu significado fosse aceito por todos, é surpreendentemente difícil encontrar uma base comum entre especialistas não apenas no que concerne à melhor maneira de defini-la, mas também de entendê-la. Leia Mais

La venganza de la memoria y las paradojas de la historia – CUESTA (CCS)

CUESTA, Raimundo. La venganza de la memoria y las paradojas de la historia. Lulu.com, 2015.136p. Resenha de: LÓPEZ FACAL, Ramón. La “historia con memoria” como herramienta de futuro. Com-Ciencia Social – Anuario de Didáctica de la Geografía, la Historia y las Ciencias Sociales, Salamanca, n.20, p.151-155. 2016.

“En un país gana el futuro quien llene el recuerdo, acuñe los conceptos y explique el pasado.” (Michael Stürmer; citado por Reyes Mate en el prólogo del libro de Noufuri, 1999)

La lectura de la reciente obra de Raimundo Cuesta La venganza de la memoria y las paradojas de la historia (2015) me ha traído a la cabeza la cita de Michael Stürmer, formulada durante la conocida disputa de los historiadores alemanes (Historikerstreit) y que Reyes Mate ha reproducido en diversas ocasiones.

Para construir el futuro que se desea es necesario ser capaces de explicar el pasado, de manera que permita acuñar conceptos, construir imágenes mentales, que nos ayuden a interpretar el mundo que nos rodea.

Hace muchos años que conozco y admiro la ácida lucidez de Raimundo Cuesta y sus análisis, poco complacientes, sobre prácticas y colectivos que suelen serlo en exceso.

Sus escritos a veces me han deslumbrado, otras me han hecho dudar y alguna vez me han suscitado incomodidad o desaprobación. Pero nunca me han dejado indiferente.

Entre sus aportaciones más recientes me han interesado especialmente las referidas a memoria e historia.1 Esta perspectiva en la investigación y análisis del uso público del cierta medida, una nueva y fértil línea respecto al camino iniciado hace ya años sobre la genealogía de la historia como disciplina escolar, un campo en el que sus aportaciones han sido y son fundamentales. La facilidad de acceder a la mayor parte de sus publicaciones, que están disponibles en abierto, me exime de detallar aquí la extensa bibliografía de la que es autor.

La venganza de la memoria y las paradojas de la historia se estructura en 14 capítulos breves. En la primera mitad se realiza una genealogía de la memoria (De potencia del alma a facultad psíquica) excelentemente documentada, incluso erudita, que sirve de preámbulo a las complejas relaciones entre historia y memoria a partir del siglo XX.

La segunda parte de la obra es, en mi opinión, la más interesante. Tras resumir, en el capítulo 7, la resistencia a la irrupción de la memoria por parte de historiadores tan prestigiosos como Pierre Nora, Tony Judt y Margaret MacMillan, que “se han erigido en defensores corporativos del territorio y jurisdicción de la memoria para tratar el pasado” (p. 60) y de contraponerlos a un uso público de la historia, que supere la posición gremial de los historiadores (posición de Habermas durante la polémica de los historiadores alemanes), recurre a Burke quien, desde la historia cultural, supera las concepciones gremialistas y abre nuevos caminos para una historia con memoria:

“Tanto la historia como la memoria parecen cada vez más problemáticas. Recordar el pasado y escribir sobre él ya no se consideran actividades inocentes. Ni los recuerdos ni las historias parecen ya objetivos. En ambos casos los historiadores están aprendiendo a tener en cuenta la selección consciente o inconsciente, la interpretación y la deformación. En ambos casos están empezando a ver la selección, la interpretación y la deformación como un proceso condicionado por grupos sociales o, al menos, influidos por ellos. No es obra de individuos únicamente.” (Burke, 2000, p. 66).2

Se realiza un seguimiento esclarecedor de los orígenes de la recuperación de la memoria como instrumento necesario para explicar el pasado, desde Halbwachs a Habermas y Traverso, pasando por Walter Benjamin y Horkheimer y, en España, Reyes Mate o Emilio Lledó.

“Hasta cierto punto se diría que el nuevo imperativo categórico enunciado por Adorno (‘la exigencia de que Auschwitz no se repita es la primera de todas la que hay que plantear a la educación’) se trasmuta y convierte en una guía para educar contra la barbarie y por la emancipación, lo que conduce a cultivar y propugnar unos determinados deberes de memoria.” (p. 80).

La filosofía de la memoria emerge de, y asume, la solidaridad con las víctimas, con el dolor ajeno, con el rechazo de la razón instrumental: “la razón [que] encuentra en la ciencia y en el beneficio material una ultima ratio por encima del ideal de un justo bienestar humano” (p. 79). La memoria así considerada no es solo, ni fundamentalmente, un instrumento de conocer lo que ha sucedido en el pasado sino que es un proyecto de futuro: la herramienta de liberación para construirlo que necesita comprender cómo se percibieron los sufrimientos y el dolor de las víctimas.

La aportación más relevante de la obra es un nuevo concepto para desarrollar una historia con memoria:

“La combinación de ‘exactitud positivista’ y atención al sufrimiento debe ser motivo principal de nueva alianza de memoria e historia bajo el signo del pensamiento crítico. Rigor ‘científico’ e interés emancipatorio son estrictamente necesarios y quedan soldados a los supuestos de una historia con memoria, tal como la que defendemos en este ensayo. Esto es, se propone una pesquisa genealógica de nuestros problemas sociales de hoy.” (p. 100).

La venganza de la memoria y las paradojas de la historia es un libro necesario que deja al lector, al menos al lector preocupado por construir una didáctica crítica, con ganas de más, porque…

“(…) los acontecimientos más brutales de la civilización moderna (desde el genocidio colonialista hasta la destrucción masiva de los campos de exterminio de la Segunda Guerra Mundial) tienen dificultad de enca jar en la estrecha horma perceptiva de la historiografía convencional, porque no cabe concebirlos neutralmente como distantes acontecimientos observables con fría objetividad. El acercamiento a esos fenómenos de violencia extrema hace inevitable un cierto compromiso ético desde el presente hacia el pasado, lo que conlleva una evocación difícilmente neutral o meramente ‘científica’.” (pp. 126-127).

Partiendo de una concepción más amplia del uso público habermasiano “que extienda el concepto, por ejemplo, al mundo de la educación escolar y de las instituciones culturales no formales, en tanto que espacios civiles deliberativos donde se confrontan memorias sociales” (p. 103), hubiera deseado, al menos, un epílogo en esta dirección.

Aunque espero que Raimundo Cuesta aborde esta tarea en el futuro.

El conocimiento histórico, y el uso público que se haga de él, constituyen una preocupación de primer orden para quienes pretendemos promover una educación orientada a la comprensión de los problemas sociales como base o herramienta para construir un futuro mejor. Por ejemplo, María Auxiliadora Schmidt (2015), quien asume las tesis de Jörn Rüsen sobre la didáctica de la historia, explica por qué la preocupación por un conocimiento del pasado que sea de utilidad para construir un futuro, desde el conocimiento informado, ha sido excluida de las reflexiones de los historiadores sobre su propia profesión, siendo sustituida por la metodología de la investigación histórica (Rüsen, 2010, p.27). El resultado ha sido un divorcio entre enseñanza e investigación. La educación histórica se ha considerado una actividad menor, secundaria, sin estatus “científico”, limitada a la mera reproducción del saber académico para contribuir a las finalidades que, desde el poder, se esperaba de la escolarización: fundamentalmente la de formar patriotas.

Esa separación, continúa Schmidt, acabó dejando un vacío en el conocimiento histórico académico, el vacío de su función, pues desde el siglo diecinueve, “cuando los historiadores constituyeron su disciplina, empezaron a perder de vista un principio importante, como es que la historia necesita estar conectada con la necesidad social de orientar para la vida dentro de una estructura temporal” (Rüsen, 2010, p. 31). Se ha justificado la existencia del conocimiento histórico erudito como base para la enseñanza, pero no se justificaba la enseñanza de la historia, porque su función para la vida práctica se había perdido. Esa desconexión de la asignatura de historia y el sentido práctico, si por una parte ofreció a la historia el status de disciplina erudita, por otro generó un vacío sobre su función en la escuela. Este punto de vista llegó al culmen a mediados del siglo XX, momento en el que la historia formal no se orientó directamente a la esencia del conocimiento histórico escolar. Los historiadores consideraron que su disciplina podía legitimarse por su mera existencia. Los estudios históricos y su producción serían como un árbol que produce hojas: “El árbol vive con tal que tenga hojas, es su destino vivir y tener hojas. Se prescindió de dar a la historia cualquier uso práctico o función real en las áreas culturales donde puede servir como un medio para suministrar explícitamente una identidad colectiva y una orientación para la vida” (Rüsen, 2010, p. 34).

En este contexto es en el que, en mi opinión, adquiere especial relevancia la reconceptualización de la memoria para un nuevo uso social de la historia realizada por Raimundo Cuesta. Se trata de una apuesta muy enriquecedora para un debate necesario en el que tan solo echo de menos que no se ocupe explícitamente de la dimensión didáctica en este libro. Es cierto que sobre eso ha escrito ya en numerosas ocasiones (por ejemplo, en esta misma revista: Cuesta, 2011b y Cuesta et al. 2005, entre otros) proponiendo una didáctica crítica basada en la crítica de la didáctica, no solo de aquella asentada en rutinas y tradiciones profesionales sino también de las propuestas alternativas a las que no reconoce su dimensión crítica. Este enfoque es el que más dudas me plantea en las posiciones que viene manteniendo Raimundo Cuesta (y Fedicaria), que, como indico, no están presentes en esta obra al no ocuparse específicamente de la dimensión educativa.

Coincido con Cuesta en que “la didáctica crítica que sugerimos implica una crítica de la didáctica (de la enseñanza escolar en su estado actual) y postula, a modo de principios de procedimiento, ‘problematizar el presente’ y ‘pensar históricamente’, ambos enunciados López Facal consustanciales a esa mirada de tinte genea

Referencia principal

Cuesta, Raimundo (2015). La venganza de la memoria y las paradojas de la historia. Lulu.com. 136 pp.

Referencias

BARTON, K.C. (2009). The denial of desire: How to make history education meaningless. En Symcox, L. y Wilschut, A. (Eds.). National History Standars. The problem of the canon and the future of teaching History. Charlotte, NC: Information Age Publishing, pp. 265-282.

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CUESTA, R. (2011a). Memoria historia y educación.

Genealogía de una singular alianza. En Lomas, C. (coord.). Lecciones contra el olvido: memoria de la educación y educación de la memoria. Madrid: Ministerio de Educación, Cultura y Deporte, pp.163-195.

CUESTA, R. (2011b). Historia con memoria y didáctica crítica. Con-Ciencia Social, 15, 85-92.

CUESTA, R. (2014). Genealogía y cambio conceptual: Educación, historia y memoria. Archivos Analíticos de Políticas Educativas, vol. 22, pdf 23. <htpp://epaa.asu.edu/ojs/article/ download/1527/1226>. (Consultado el 15 de enero de 2016).

CUESTA, R.; MAINER, J.; MATEOS, J.; MERCHÁN. F.J. (2015). Didáctica crítica: allí donde se encuentran la necesidad y el deseo. Con- Ciencia Social, 9, 17-54.

DOMÍNGUEZ ALMANSA, A. y LÓPEZ FACAL, R. (2015). Paisajes invisibles, patrimonios en conflicto: experiencias en la formación del profesorado y la educación primaria. En Hernández Carretero, A.M., García Ruiz, C R., De la Montaña Conchiña, J.L. (Eds.). Una enseñanza de las ciencias sociales para el futuro: Recursos para trabajar la invisibilidad de personas, lugares y temáticas. Cáceres: Universidad de Extremadura-AUPDCS, pp 713-720. <http://didactica-ciencias-sociales.org/ wp-content/uploads/2013/07/2015-caceresR. pdf>. (Consultado el 11 de noviembre de 2015).

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NOUFURI, H. (1999). Tinieblas del crisol de razas. Buenos Aires: Cálamo.

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SEIXAS, P. (2013). The Big Six Historical Thinking Concepts. Boston: Cengange Learning.

[Notas]

1 Raimundo Cuesta se ha ocupado de este tema en trabajos anteriores: Cuesta 2007, 2011a, 2011b y 2014.

Merece la pena destacar el último apartado del artículo publicado en 2014, en el que vincula la “memoria con historia” con la didáctica crítica, y que no desarrolla ahora en esta obra.

2 Citado por Cuesta, p. 61.

3 <http://www.proyectos.cchs.csic.es/integracion/es/content/grupo-eleuterio-quintanilla>; o también <http://educacion.gijon.es/page/13152-grupo-eleuterio-quintanilla> (Consultado el 20 de enero de 2016).

Ramón López Facal – Universidad de Santiago de Compost.

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[IF]

Literatura e ética: da forma para a força – KLINGER (A-EN)

KLINGER, Diana. Literatura e ética: da forma para a força. Rio de Janeiro: Editora da Rocco, 2014. Resenha de ANDRADE, Antonio. A força ética de uma reflexão. Alea, Rio de Janeiro, v.17 n.2, july/dec., 2015.

O livro Literatura e ética: da forma para a força, de Diana Klinger – lançado pela coleção Entrecríticas (coordenada por Paloma Vidal) – situa, a meu ver, os leitores e pesquisadores da literatura contemporânea diante da problemática mudança de paradigmas que o declínio de valores éticos e estéticos da modernidade provoca. A passagem do campo da autonomia da obra de arte – do objeto literário, ficcional ou poético – para o “pós-autônomo” – termo utilizado por setores da crítica dedicados à reflexão sobre a produção contemporânea que se afasta das ideias de literariedade e autorreferencialidade do texto literário para aderir a um modo de escrita que se faz “em continuidade com os dados da realidade” (KLINGER, 2014: 41) – implica, para esta ensaísta, a necessidade de se repensar pressupostos teóricos que instrumentalizam o estudioso da literatura, com vistas a estabelecer uma rede de conceitos e estratégias de leitura capazes de funcionar como critérios de escolha e positivação de autores e textos.

Esse movimento do discurso crítico-ensaístico de modo algum é simples. Na verdade, constitui no texto de Diana um profundo empenho de ressubjetivação que se produz por meio de mecanismos de endereçamento, haja vista a mescla do gênero epistolar com o ensaio nas três cartas à amiga Luciana Di Leone, que marcam momentos fundamentais do livro: pela forte presença do autobiográfico na escrita crítica, configurada pela articulação da narrativa memorialística com a argumentação teórica ou analítica; pela construção de um lugar de autoria que joga, de maneira proposital, com referências dialógicas de ordens distintas ao desdobrar, por exemplo, reflexões em torno de poemas ou estudos críticos produzidos por amigos, alunos e colegas, ao lado de citações e discussões sobre Nietzsche, Adorno, Benjamin, Deleuze, Blanchot etc. Tal empenho não se produz, sem dúvida, isento de contradições. Ao buscar uma espécie de tom “menor” para seu ensaio, incorre na negação (psicanalítica) daquilo que se é, ou se deseja: “Os textos sobre esses autores não são de crítica literária nem têm essa pretensão. São anotações de pensamentos suscitados por essas leituras” (KLINGER, 2014: 14 – grifos meus). Não à toa, em alguns momentos centrais do texto, a autora não se vexa em assumir a enunciação assertiva, e até certas construções de caráter prescritivo, no afã de conduzir/persuadir seus leitores/destinatários: “A literatura não é uma força, mas é preciso transformá-la numa força” (ibidem: 191); “O que a poesia de Tamara encena é […]” (KLINGER, 2014: 107 – grifos meus). E, decerto, devido à percepção dessa contradição, enxerga a necessidade de modalizar suas formulações, que, se por um lado, “apostam” na recuperação ressignificada da ideia de resistência da literatura, por outro compreendem a relatividade do alcance da potência discursiva do literário – a qual parece advir de sua própria fragilidade: “Talvez seja possível, no entanto, apostar numa forma de resistência mais ‘fraca’ ou sutil” (KLINGER, 2014: 162).

Buscando através dessas sutilezas uma forma de expressão crítica que se coadune à ideia de crise, Diana tenta em seu texto configurar, retomando Barthes, o lugar tensivo de uma meia distância, isto é, de um distanciamento crítico “que não quebre o afeto” e que seja atravessado pela “delicadeza” (KLINGER, 2014: 118). Isso significa, em outros termos, ruptura com os valores de objetividade e frieza que tanto o estabelecimento de critérios de correferencialidade e padrões esteticistas canônicos da arte autônoma quanto os parâmetros generalistas da aparente “chave de leitura” concebida pela perspectiva pós-autônoma parecem projetar. Em oposição a eles, seu olhar crítico mobiliza-se em torno das ideias de singularidade, diferença e excepcionalidade, locupletando, por sua vez, o forte anseio por modos “singulares” de expressão e de subjetivação configurados pelos discursos teóricos relacionados às questões do contemporâneo. Cito, como exemplo, sua justificativa para a eleição dos autores focalizados no livro (a saber: Cortázar, Barthes, Kamenszain e Bolaño): “Trago Bolaño aqui não apenas porque ele me ajuda a pensar a vivência do medo. Também porque ele, como os outros autores a que me referi antes, sugere em sua obra uma aproximação com a própria vida que não tem nada a ver com propostas performáticas e autoficcionais de sua geração” (KLINGER, 2014: 134).

Nota-se, então, que nesse recorte está embutida certa “queixa” – a meu ver, também, bastante necessária – em relação à replicação de modelos estéticos que se tornaram hegemônicos na literatura atual. Entretanto, não se pode negar que suas escolhas, pelo menos as mais aprofundadas, se assentam sobre nomes consagrados do passado e do presente, cujo valor já constitui uma espécie de “indubitável”. Desse modo, não haveria já um forte processo de singularização desses autores e de seus textos? Se concordamos que sim, é possível compreender, então, que a tarefa crítica é menos a de desvelar singularidades camufladas em meio ao “semsentido” – para usar um termo empregado pela ensaísta -, e mais a de mediar a relação de seus interlocutores com essas vozes “singulares”.

Outro ponto que se explicita na construção de seu critério eletivo é a importância da relação literatura e vida, que fomenta e atravessa toda a discussão em torno do afeto e da ética no livro. Tal relação serve-lhe de base para pensar a escrita “como uma prática ou ritual, uma forma de estar no mundo” (ibidem: 49), concebendo-a assim fora do modelo estético da representação. E, também, para pensar a leitura, ou melhor, o modo como o sujeito pode ser afetado pelos textos, aproximando pois literatura e leitor no complexo processo de procura do sentido da vida. A condição paradoxal, no entanto, dessa busca é que ela se faz justamente negando tudo aquilo que se considera banal, tudo que estaria submetido à ordem do capitalismo cultural, ou preso às diretrizes da “sociedade de controle”, para usar um conceito deleuzeano discutido pela autora. Nesse sentido, a afirmação da vida, bem como a inscrição da ética no âmbito da imanência – de acordo com os pressupostos filosóficos que engendram aí a articulação entre Spinoza, Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari – interpelam intelectuais como Diana a assumir um posicionamento contradiscursivo, avesso ao funcionamento comum da linguagem e aos dispositivos habituais de produção dos sentidos – sobretudo os que se ligam ao poder midiático.

“Da forma para a força” é a formulação postulada já no subtítulo da obra para sinalizar o movimento de passagem de uma instância de reflexão sobre o biopoder para a proposição de uma biopotência afirmativa: força de resistência não imobilizada pelo espectro das representações, e sim propulsora de “práticas alheias aos modos de subjetivação estatal” (KLINGER, 2014: 81), com o intuito de “construir um plano de consistência para afetos que não estejam atravessados pela axiomática da troca” (KLINGER, 2014: 71). O trajeto argumentativo de Literatura e ética é, portanto, o de afirmação desse lugar singular da potência: o que seria, em si mesmo, já uma atitude ética. Contudo, não só o fato de tal atitude ser pensada a partir da dicotomia entre gestos especiais, repletos de “intensidade”, e práticas cotidianas, ainda mais esvaziadas de sentido se vistas com as lentes desta ótica filosófica, mas também a consciência de um iminente fracasso da literatura nesse intento de criar e difundir práticas que liberem o desejo, os afetos e as relações dos aparatos culturais e discursivos que os (re)capturam a todo instante, deslocam qualquer grau de certeza em relação à noção de ética para o espaço de um interrogante: o que é ético? Esta atitude é realmente ética?

Percebe-se, em diversos momentos do texto de Klinger, a dimensão problemática dessa dúvida. Não à toa, no capítulo “O remorso da literatura” assinala-se a questão da culpa como aporia constitutiva tanto da arte autônoma quanto da pós-autônoma. Já em “O sentido da escrita”, a ensaísta trata de dar sustentação teórica à afirmação da ideia de potência e à aposta na literatura como forma de promessa, que, conforme demonstra sua releitura de Benjamin, deve ser contínua e simultaneamente desauratizada e apropriada como meio de busca do sentido em face do vazio e da banalidade. A construção dessa perspectiva, que para alguns leitores pode soar como demasiado positiva, é dialetizada pelo capítulo “Em nome próprio”, em que, por meio da incursão no terreno autobiográfico, tensamente relacionado à leitura de Tamara Kamenszain, Diana produz uma interessante reflexão a respeito das noções de fuga, esquecimento e sobrevivência, chamando a atenção para as possibilidades de proposição de novos agenciamentos políticos a partir da perda.

Todo o desenvolvimento dessa discussão parece impelir Diana a endossar uma visão filosófica negativa da ideia de comunidade, na clave de Bataille, Nancy e Blanchot. Isso é bem perceptível em “A comunidade em suspenso”, capítulo que, se por um lado revela grande fôlego teórico da autora/pesquisadora, não obstante conduz, por outro, a um fechamento da leitura, na medida em que desinveste os traços identitários que constituem os diversos tipos de arranjo comunitário de qualquer potencialidade possível, chegando a realizar afirmativas como: “o que os seres compartilham é a diferença que os singulariza” (KLINGER, 2014: 111). A meu ver, este tipo de frase tende a certa clicherização na esfera crítico-acadêmica. É preciso, portanto, ler nas dobras da contradição que esse discurso deixa escapar a produtividade da tensão entre fuga e pertencimento: note-se que, embora a ensaísta seja uma argentina radicada no Rio de Janeiro, suas escolhas afetivas de leitura nesse livro revelam a priorização de escritores também hispânicos – dois argentinos (Cortázar e Kamenszain) e um chileno (Bolaño) que, como ela, viveu durante muito tempo fora de seu país natal. E é justamente em “Queime os livros!”, capítulo onde analisa a obra de Bolaño, que o texto de Diana alcança grande capacidade de captura do leitor: após belo momento autobiográfico sobre a violência e o medo que ocupam suas memórias de infância e juventude na Argentina, a autora desenvolve a seguinte reflexão no bojo de sua leitura do romance 2666: “A literatura está imersa nesse território da violência, nesse deserto onde só cabe desaparecer; por outro lado, a literatura é o único território” (KLINGER, 2014: 140), reafirmando assim sua aposta no literário como espaço de potência ética.

Essa perspectiva ainda se desdobra no capítulo “Spinoza e a potência da literatura”, no qual se oferece ao leitor um bom estudo sobre os modos de recuperação e reverberação do pensamento spinoziano na filosofia contemporânea (Negri & Hardt, Deleuze & Guattari, sobretudo), e em “Uma pequenina luz”, capítulo em que chama a atenção para o caráter dúplice que o poder de resistência da literatura enceta: “força ambígua, ao mesmo tempo desmesurada e desesperançada. Essa frágil força do desejo” (KLINGER, 2014: 183-184). Porém, é sob essa luz pequenina, sob essa força frágil, que Diana ensaia o risco de uma escrita original e instigante, que, em vez de partir do prognóstico apriorístico da impotência do discurso literário na contemporaneidade, investe na indagação dessa potencialidade problemática, perguntando-se, ao longo de todo o percurso: “o que pode a literatura?” (KLINGER, 2014: 135).

Antonio Andrade – Professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como docente permanente do programa de pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Desenvolve pesquisas nas áreas de análise do discurso, formação de professores e literatura contemporânea. Publicou diversos artigos em livros e revistas acadêmicas, dentre os quais se destacam “Diálogos e tombeaux: Haroldo de Campos, Néstor Perlongher e Severo Sarduy” (Gragoatá, v. 31) e “Literatura e comunidade na formação de professores de Espanhol/LE (Abehache, v. 4). E-mail: antonioandrade.ufrj@gmail.com.

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Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt – ASSY (ARF)

ASSY, Bethânia. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva; São Paulo: Instituto Norberto Bobbio, 2015. Resenha de: DIAS, Lucas Barreto. Argumentos – Revista de Filosofia,, Fortaleza, n.14, jul./dez. 2015.

A interpretação de um pensamento talvez seja uma daquelas atividades da qual nunca se pode dizer ter chegado a um término. Mas a que fim se propõe o pensar? Se visado como possível de pôr fim a algo, não há qualquer fim, sua finalidade não se esgota, mas é sempre tema para um novo pensamento. Dizer que pensar é um constante repensar significa dizer que não há um ponto de chegada que o pensamento possa pretender alcançar. O que então, alcança o pensamento? Do que ele é capaz? Estas reflexões, próprias daquele tipo de vida que se acostumou chamar de contemplativa, podem soar dissonantes quando se tornam tema central de uma autora como Hannah Arendt, conhecida sobretudo por seus textos políticos. Talvez por isso seja pouco vista a utilização de sua última e inacabada obra – A vida do espírito – como bibliografia central para se interpretar o seu pensamento.

Ao se lançar a tal empreendimento sobretudo em razão das controvérsias geradas por Eichmann em Jerusalém, algo pode ser retido: a banalidade do mal (“conceito” que desponta na obra sobre o burocrata nazista) impulsiona Arendt a tentar compreender melhor o que ela chama de “plena capacidade de pensar” [thoughtfulness] em contraposição à “incapacidade de pensar” [thoughtlessness].

Porém uma das questões que surgem daí diz respeito a saber o que o pensar pode fazer para evitar o mal, não mais interpretado como radical, mas como fruto de uma banalidade. Antes mesmo, contudo, poder-se-ia ponderar: tem o pensar qualquer relação com os conceitos duais bem/mal? Pode o pensar nos guiar na vida prática? Há que se dizer que o debate sobre tal tema é por vezes evitado entre estudiosos de Arendt, isso porque frequentemente ou se cai em uma interpretação que beira a metafísica platonista em que o pensar guia o homem para o Bem, ou se nega qualquer possibilidade de o pensamento ter qualquer coisa a acrescentar- -nos acerca dos assuntos humanos. Falar sobre ética em Hannah Arendt, por conta disso, é provavelmente uma empreitada das mais escorregadias. O texto de Bethânia Assy, porém, traz algo que faltava à bibliografia brasileira sobre Hannah Arendt: uma interpretação que tem como foco central as questões éticas de seu pensamento presentes, sobretudo, nos escritos tardios de Arendt, sejam seus escritos decorrentes de seminários que ministrou e artigos acabados, sejam obras inacabadas, como no caso de A vida do espírito.

Dividido em cinco capítulos, os quatro primeiros parecem uma preparação que Bethânia Assy faz para o ponto central de sua interpretação presente no capítulo cinco: é possível uma ética que não derive seus princípios de ação de leis morais universais, mas que também não recaia em uma ética da impotência? Talvez seja esta a questão que toda sua obra tenta responder, porém como a própria autora formula primeiramente a questão:

minha preocupação é articular […] uma dimensão ética, cuja base remeta à visibilidade de nossas palavras e atos, em que, a despeito das nossas melhores intenções, transpareça a relevância ética da ação e da experiência (p.xxxvii).

Esta passagem da introdução nos remete diretamente para um dos maiores ganhos para as discussões sobre Arendt: a preocupação com o framework no qual se insere os conteúdos éticos do pensamento arendtiano, isto é, a busca por compreender o quadro teórico-metodológico que subjaz às suas concepções. Ainda que Bethânia não se dedique a explorar tais aspectos, ela ressalta recorrentemente a base fenomenológica das reflexões arendtianas de cunho existencial e hermenêutico.

A estratégia argumentativa se baseia em delinear o que Assy chama de uma “nova gramática ética” (capítulo 01) partindo das intuições que fizeram Arendt falar, em Eichmann em Jerusalém – da banalidade do mal como a incapacidade de pensar, para, aos poucos, sublinhar uma “Ética da visibilidade” (capítulo 02) que encontra suporte no texto arendtiano sobre a fenomenologia da vida contemplativa, A vida do espírito. Trata-se aqui, sobretudo, de sustentar a ética arendtiana tanto pela noção de aparência, quanto pelas atividades do espírito.

No entanto, embora Bethânia chame esta Ética da Visibilidade de uma ontologia política da aparência, seu principal enfoque não é a questão política, cuja eminência hermenêutica é tangencial. Dedica-se, inicialmente, às noções de responsabilidade pessoal/moral e responsabilidade política, postas em discussão no contexto da banalidade do mal e como posicionamento contrário à

teoria do dente de engrenagem”, a qual “postula que dentro de um sistema os sujeitos não agem como indivíduos, mas como engrenagens de uma máquina, de modo a tornar impossível atribuir-se individualmente qualquer culpabilidade moral ou legal. (p. 22).

Tal concepção tem como intenção não subsumir a culpa pessoal dos burocratas nazistas capazes da solução final, assim como sua responsabilidade coletiva, em uma falta de responsabilidade pessoal, como se desta última se derivasse uma impossibilidade de que suas ações e cumprimentos de ordens fossem julgados em tribunal.

É justamente para mostrar que tais indivíduos têm sim que ser julgados legalmente que Bethânia Assy, após expor o problema no capítulo 01, parte, em seguida, para considerações mais gerais acerca da noção de singularidade.1 É no segundo capítulo que se concentram os conceitos de Arendt mais vinculados à visibilidade, tendo como centro hermenêutico o conceito de aparência, este que é constantemente o ponto de partida e de chegada das discussões tanto relativas à vita activa quanto às da vida contemplativa. É nesse sentido que Assy compreende ser por meio do conceito de autoapresentação a melhor maneira de explicitar a formação da doxa em relação com a aletheia tendo em vista a singularidade com a qual aparecemos aos outros que compartilham o mundo conosco. Mostrando a reflexão arendtiana que não coloca doxa e aletheia como conceitos diametralmente distintos, o ganho, que Assy chama de epistemológico, resume-se a não repetir a perspectiva com a qual a tradição do pensamento ocidental pôs em lados opostos o chamado verdadeiro ser frente à mera aparência. Arendt, em A vida do espírito, nega à razão a possibilidade de se chegar à verdade, deixando ao campo fenomênico tal atributo junto também da possibilidade do falso. Isto confere ao mundo o estatuto de ser a base na qual tanto o verdadeiro quanto o falso aparecem, isto é, a verdade e a falsidade pertencem ambas ao domínio da aparência. Assim, ainda que a opinião não se identifique diretamente com a verdade, ela também não é reduzida meramente à falsidade.

A formação da doxa, no entanto, não pode prescindir da pluralidade humana, isso porque a própria apreensão das aparências por cada um de nós depende também do fato de que outros confirmam aquilo que meus sentidos percebem.

É justamente por a doxa se relacionar à aparência e sua apreensão depender de um contexto compartilhado com outros que confirmam a mim a aparência percebida – criando o que Arendt chama de sensação de realidade [reallness] – que Assy afirma que “a doxa é o própria significado ontológico da pluralidade no domínio das aparências.” (p. 47) o que nos levaria a uma “fenomenologia da ação política, […] [uma] valorização ontológica da experiência visível.” (p. 49) Bethânia afirma que de tais considerações acerca da doxa e da aletheia2 decorre uma dupla implicação para a ética que visa expor: 1) conferir à visibilidade o critério pelo qual as doxas de cada um são expostas aos demais, de modo que a ética passa a não ser enquadrada na “boa pessoa, mas, sim, em termos do que significa agir consistentemente e de forma responsável” (p. 50, 52) retirando a ética do domínio puramente do self, Arendt dá uma forte dimensão interpessoal à doxa e a põe no contexto do cidadão visível no domínio público.

O esforço de Bethânia, a partir disso, será o de analisar os papeis desempenhados pelas três atividades do espírito na formação da doxa e como isso se reflete no campo dos assuntos humanos, mas, com ênfase maior, na ética. Bem se sabe que o modelo que Arendt elege para a figura de pensador é Sócrates, personagem que também figura de maneira central em suas discussões sobre ética.

Frente a isso, Bethânia define três tópicos que considera como principais na discussão entre a faculdade de pensar e a Ética: a) pensar como espanto; b) pensar como consciência de si; e c) pensar em sua relação com a faculdade de julgar e com a doxa. Esta maneira de compreender a atividade de pensamento nos conduz a uma forma de entendê-la como um modo de vida, isto porque é um pensar cônscio de ser sempre vinculado a um mundo, isto é, aquilo que Taminiaux denominou de “paradoxo do pertencimento e da retirada”. Embora se retire do mundo das aparências para efetuar o diálogo da alma consigo mesma, o pensador não deixa de ser uma aparência entre tantas outras. Além do mais, no pensamento o homem é capaz de encontrar, se não uma pluralidade, já uma dualidade que representa que mesmo a atividade considerada como a mais solitária não é realizada por um self puro, mas indica o significado originário da palavra reflexão: tal qual me divido em dois em um reflexo meu em um espelho, me divido em dois ao pensar. O espanto frente a um acontecimento exige minha retirada do mundo para pensá-lo, decisão que me faz dividir-me em dois e me torna cônscio de mim mesmo, preparando espaço para o juízo e, assim, à formação da doxa frente ao que me aparece, ao dokei moi.

É disso que Assy irá aos poucos dar um passo importante em sua interpretação sobre a ética arendtiana, formulando aqui uma primeira versão que denomina de uma “ética de emergências”, ou, ainda, de uma “ética de não participação.” (p. 73) que Arendt – em Basic Moral Propositions – chama de uma ética da impotência (p. 86). Ainda que em uma versão preliminar do pensamento ético de Arendt, já temos aqui uma contraposição ao normativismo ético e às duas perspectivas éticas da filosofia continental: a procedimentalista e a comunitarista. Não se trata aqui de criar uma teoria moral, seja com pretensões de alcançar princípios universais, seja visando constituir uma comunidade de valores. (p. 100-101). A ética da impotência pode ser caraterizada como “uma ética desprovida de prescrição.” (p. 103), ela não demanda o que fazer, mas apenas indica um ‘parar e pensar’. Daí Bethânia assinalar como propriedades-chave do pensamento os critérios de consistência e de pluralidade, ambos compreendidos a partir do modelo socrático de pensar. A pluralidade, ainda que primária, provém no pensamento do dois-em-um, do diálogo da alma consigo mesma, onde Arendt põe o questionamento de “com que eu gostaria de conviver”? Tal questionamento demanda a consistência do pensar com o agir, afinal, “gostaria eu de conviver com um assassino”? É justamente neste sentido que o pensar não origina uma teoria prescritiva da moral, mas é, ao menos, capaz de incapacitar o sujeito que pensa de realizar uma ação que o tornaria incapaz de conviver consigo mesmo.

Dados tais aspectos, Bethânia inicia em seu quarto capítulo uma investigação que tem como objetivo compreender como o indivíduo decide como agir.

Talvez seja esse o ponto mais controverso do texto. A controvérsia não é à toa, afinal, os problemas acerca da faculdade da vontade em Arendt se tornam complicados de serem tratados se lembrarmos que em seus textos políticos ela critica as concepções que conferem à Vontade a característica de ser o órgão mental que produz a liberdade. Porém, como bem pontua Assy, um dos maiores ganhos com a discussão de Arendt sobre a Vontade é trazer de modo forte a contingência como cerne do argumento.

Embora não resolva efetivamente os percalços da relação entre a liberdade compreendida como proveniente da vontade e sua relação com a liberdade política, Bethânia Assy dá um passo importante para a discussão. Isso porque, segundo a intérprete, compreender aqui a contingência relativa à vontade significa compreender a factualidade presente já nessa faculdade, pois “a contingência implica inevitavelmente em factualidade.” (p. 123). Se lembrarmos de como Arendt interpreta o conceito de aparência, a importância de trazer à faculdade do espírito o elemento de contingência se torna latente junto à sua factualidade. A contingência assume, diferente do que costumou ser interpretada na tradição, um aspecto positivo e ativo, pois “não se define como mera privação, deficiência ou acidentalidade”, isto é, “a contingência é um modo positivo de ser.” (p. 123). É justamente este o ponto que Bethânia usa para reforçar o argumento central de tal capítulo: a “de que neste atributo da vontade, de agir ou não agir, se assentaria o fundamento ontológico da liberdade política.” (p. 124). Para tanto, Bethânia assenta tal assertiva não com o intuito de afirmar ser a liberdade da vontade já uma liberdade política, mas que o fundamento da liberdade política se encontra na capacidade da vontade de decidir algo novo. Sabe-se largamente que um dos principais conceitos políticos de Arendt é o início, isto é, a capacidade proveniente da natalidade que o homem tem de começar algo novo, de trazer novidade, deste modo, para Assy, “assim como a ação anuncia o milagre da natalidade na vita activa, a virtude criadora da vontade anuncia o milagre da natalidade na vita contemplativa.” (p. 130), isso para poder afirmar que “nossa faculdade de querer nos impele, de certa forma, à ação” (p. 131).

A vontade, nessa compreensão, é o fundamento não-político da liberdade política e “adquire uma dimensão ética mais direta que a atividade de pensar” (p.132), pois dela decorre o que Bethânia chama de uma ética da responsabilidade, ou seja, um passo à frente da ética da impotência. Isso, claro, não significa que qualquer prescrição normativa provenha da vontade, a negatividade da ética compreendida pelo pensar não dá espaço para a criação de princípios morais, mas, agora, por meio do querer, é capaz de legar à ação a dimensão da natalidade. A promessa, junto ao amor mundi, são, a partir disso, vistos como aspectos que atrelam a vontade à responsabilidade pessoal, pois, segundo Arendt, enquanto o Pensar se relaciona com o passado sob a forma de memória, o Querer se relaciona com o futuro. A promessa é a maneira pela qual Arendt vê a possibilidade de se comprometer com o mundo e com o outro. Junto a isso, a Vontade também diz respeito ao modo pelo qual cada um se individua, isto é, a singularização de cada um de nós, a decisão de quem eu decido ser e que responsabilidades eu assumo ao mostrar-me.

Porém, a formação da doxa não é efetivamente executada pela faculdade da vontade, assim como permanece incompleta através do pensar, visto não ser ainda uma doxa capaz de expor um posicionamento positivo por meio do pensamento, mas apenas negativo, a ética da impotência, tendo apenas uma parcela de positividade proveniente do Querer efetuado pela vontade, que nos legou o princípio de uma ética da responsabilidade. A hipótese anunciada já na introdução por Bethânia é a de que “as atividades do espírito […] não conduzem a juízos determinantes, à boa vontade racional, a acordos consensuais, ou a meras decisões individuais autônomas” (p.xxxiii), sendo, por isso, necessária uma interpretação que ultrapasse tais questões em vistas de uma “ética de responsabilidade pessoal […] ligada à visibilidade de nossas ações e opiniões articuladas publicamente, que, por sua vez, estão associadas ao cultivo de um éthos público”, o que nos leva a tentar entender “como o sujeito se singulariza na comunidade política.” (p.xxxiv). Tais pontos, embora apareçam tangencialmente nas demais atividades do espírito, só encontram morada hermenêutica na faculdade de julgar.

Em seu último capítulo, Bethânia tem como preocupação chegar a uma ética da responsabilidade baseada em figuras que por vezes são postas como excludentes: o ator e o espectador. A teoria do juízo arendtiana é aqui compreendida como a possibilidade de não se recair na normatividade ou no puro agonismo, leituras feitas por Benhabib e Villa. Cabe tanto ao espectador quanto ao ator a capacidade da mentalidade alargada, o ser capaz de pensar simulando os olhares de outros, assim como a capacidade de pensar por si mesmo. É assim que certas noções de Arendt ganham destaque aqui:

o prazer desinteressado, […] a mentalidade alargada, o sensus communis como o cultivo de sentimento público, a estreita ligação entre aletheia e doxa, a validade exemplar […] e a questão da companhia”, isto é, o “com quem desejo ou suportaria viver junto? (p. 145).

Em diálogo constante com a terceira crítica kantiana, Assy, então, esmiúça a teoria do gosto com a intenção de superar o egoísmo a fim de “conduzir-nos a uma dimensão afetiva comum” para “elucidar a pluralidade de nossos juízos” (p. 149), os quais, assim, liberados do mero interesse privado, podem se dar através de um interesse desinteressado. Tal tomada de postura possibilita a cobrança aos outros desta mesma maneira de julgar, não, com isso, buscando uma validade universal, mas, sim, geral. Trata-se de julgar “o mundo em sua visibilidade e na comunalidade dos afetos.” (p. 157) sem com isso pretender se chegar a qualquer juízo consensual universal. O gosto não se reduz a uma mera preferência subjetiva, mas provém de uma sensação de prazer acerca de algo que aparece aos demais e que será por eles alvo de aprovação ou desaprovação. Dada a possibilidade de ser julgado pelos demais que compartilham um mesmo espaço de aparência, Assy sublinha como critério da (des)aprovação tanto a comunicabilidade como a publicidade.

O interessante aspecto que aparece neste ponto do texto é o de incutir, ainda que talvez não propositalmente, uma caraterística do pensamento hermenêutico de Arendt: a admiração que se segue à aprovação de um juízo de gosto expresso é capaz de realizar um ajuste à vida social; esse ajustar-se se vincula não ao conhecimento de propriedades do que é admirado, nem à publicidade fenomenicamente cognoscível, mas porque o acesso a um senso público faz aparecer o meio intersubjetivo no qual a doxa se forma, como diz Bethânia: O prazer ou desprazer que um juízo reflexivo evoca não se arbitra meramente pela sensação imediata de satisfação ou insatisfação, e sim à medida que aprovamos ou desaprovamos nosso deleite, à medida que nosso prazer/desprazer se apropria do interesse público. (p. 165).

O que é relevante aqui é o significado/sentido que provém do prazer/desprazer, não de uma cognoscibilidade objetal, e embora o conhecimento empírico seja também mediado pela pluralidade, é o sentido de como se é afetado por algo que tem relevância para a comunidade ético-política, daí a importância do sensus communis, o sentido intersubjetivo que nos auxilia a nos ajustar à vida compartilhada.

Por fim, gostaria de comentar a fenomenologia da exemplaridade, tal como nomeada por Assy e que serve como fechamento de sua interpretação, ao acrescentar a denominação de a ética arendtiana ser uma ética da experiência. Após a breve passagem de uma ética da impotência tendo em vista a ética da responsabilidade, por em relevo a experiência e o papel do juízo – após se sublinhar os papeis do pensar e do querer – para a formação da doxa serve como modo de dotar a ética aqui, sem cair em prescrições ou normas, de uma dimensão positiva.

Na escolha de “com quem gostaria de viver”, o outro critério a ser acrescido à validade geral é o da validade exemplar e seu atrelamento às experiências. Junto à mentalidade alargada em que torno presente para mim as considerações dos outros, penso neles sobre o signo da exemplaridade a partir das preferências públicas, isto é, junto ao exemplo se soma o interesse desinteressado, o interesse pelo bem comum, a preocupação pelo mundo: o amor mundi.

É assim que, para Bethânia Assy, em Arendt se é capaz de desenvolver uma teoria ética que é chamada pela intérprete de uma teoria crítica do juízo baseada em um juízo político dos afetos comuns. É este comprazimento com o mundo comum e o ajuste pelo sensus communis à pluralidade humana que Bethânia defende uma ética da responsabilidade que se vincula, pelos afetos comuns, a um sentimento de justiça ou injustiça, e não há associação massiva a eventos que vão de encontro à pluralidade e à dignidade humana que libere o homem de sua responsabilidade pessoal. A experiência nos propicia pensar, julgar e direcionar nossa vontade para a ação. A teoria ética de Arendt ganha um ótimo ponto de apoio e discussão com esta obra de Bethânia Assy.

Notas

1 Tal estratégia visa preparar o terreno para os três últimos capítulos, os quais seguem a estrutura na qual A vida do espírito deveria ter sido escrita caso Arendt não tivesse falecido: o primeiro versa sobre o pensar, o segundo, sobre o querer, e o terceiro, sobre o julgar.

2 Bethânia, todavia, dá enfoque aqui a uma dimensão mais epistemológica do que fenomenológica. Tal compreensão não parece ser condizente com o texto de Arendt, sobretudo porque parece não dar espaço para uma das principais distinções conceituais de A vida do espírito e que perpassa toda a obra arendtiana: a diferença entre Pensar e Conhecer que serve como base para o desmantelamento das falácias metafísicas.

Reduzir tais aspectos a uma epistemologia parece tender para a indistinção entre a cognição e o pensamento, levando a uma perda não apenas a nível conceitual e filosófico, mas, sobretudo, às características éticas e políticas.

Lucas Barreto Dias – Doutorando do Programa em Pós-graduação da UFMG. Professor da Faculdade Católica Rainha do Sertão. E-mail: nog_ibd@hotmail.com

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Empirically Informed Ethics: Morality between Facts and Norms – CHRISTEN et al (FU)

CHRISTEN, M.; VAN SCHAIK, C.; FISCHER, J.; HUPPENBAUER, M.; TANNER, C. (Eds.). Empirically Informed Ethics: Morality between Facts and Norms. London: Springer, 2014. Resenha de: TRUJILLO, Laura Yenisa Cabrera. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.16, n.2, p.194-197, mai./ago., 2015.

Historically, facts and norms have been considered as two separate realms, each one approached by different analytical tools and each one studied with different purpose in mind. Empirically Informed Ethics: Morality between Facts and Norms gathers contributions from philosophers, theologians and empirical scientists who, in spite of their firm standings in their own disciplines, see the value of crossing to realms beyond their traditional one and learning how these other realms can inform their own work.

This book is of interest for two main reasons. On the one hand it provides an overview of recent developments in empirical investigations of morality. On the other hand it assesses their importance and impact for ethical thinking. Empirically Informed Ethics is suitable for those who are new into cross-disciplinary work, those who want to learn more on the benefits and caveats that come with it, or just to get a picture of empirical investigations within ethics.

The book is organized in six parts; each one with the exception of the last one consists in three chapters. Part I, entitled ‘What is empirically informed ethics?’, begins with a chapter (Chapter 1) by M. Christen and M. Alfano outlining the field of empirically informed ethics. They start by presenting the phenomenon that empirically informed ethics investigates, namely moral agency. This chapter continues with some important distinctions in how empirical data is used, e.g. as an indicator of the feasibility of ethical thought, as foundations of normative theory or as framing of an ethical problem. In what follows Christen and Alfano provide an overview of the different kinds of empirical methodologies and data that can inform ethics. The chapter concludes by presenting several problems raised by this approach.

The second chapter by J. Fischer focuses on how understanding of the field affects the role of empirical research on morality for ethics. Fischer provides three arguments in favor of comprehending ethics as a rational justification of moral judgment, the first one rooted in the very essence of morality, the second on its authenticity and the third one on its being necessary to deal with moral conflict. Fischer also argues that empirically informed ethics “can deliver crucial insights into the type of reasons involved in moral reflection” (p. 39) and thus “be better suited in guiding us to the right moral thinking compared to an ethics that purely understands itself as the rational justification of morality” (p. 43).

The final chapter of Part I is by A. Naves de Brito (Chapter 3) and deals with moral behavior and moral sentiments. He starts with the hypothesis that “moral values can be understood and their authority explained on the basis of how humans are naturally disposed to behave in groups” (p. 45). He draws a distinction between universalism and egalitarianism in relation to a theory of value and explains the different problems each of these have in terms of naturalization. For universalism this relates to the search for the natural basis of normativity in morality, whereas in egalitarianism to the natural basis for considering equality as a moral value (p. 57). In his conclusion Naves de Brito puts forward that “universality and equality are to be defended in any tolerable human concept of morality, simply because they are constituent elements of human morality, and not fundamentally because it is rationally plausible to choose them” (p. 62).

Part II, entitled ‘Investigating origins of morality’, starts with a chapter by C. van Schaik and colleagues (Chapter 4). Van Schaik and colleagues’ chapter ‘Morality as a biological adaptation – An evolutionary model based on the lifestyle of human foragers’ offers a departure from the traditional way in which morality is seen as rooted in rational reflection. They present sympathy, concern with reputation, the wish to conform and the sense of fairness as the “major components of human moral psychology upon which our reflective morality is built” (p. 77). Furthermore they suggest that these moral emotions arise very early, which suggest an innate moral core.

The next chapter (Chapter 5) by S.F. Brosnan deals with the evidence for moral behaviors in non-human primates. She starts by discussing the evolution of moral behaviors, making clear that the scientific goal of understanding what moral behavior is and the ethicist’s goal of determining what ought to be are not the same. Brosnan describes that behavior that is shared between species due to common descent is known as homology, whereas behavior that may be shared among species due to common environmental pressures, constraints and opportunities is known as convergence. Social interventions, reciprocity, inequity and prosocial behavior are four behaviors put forward by Brosnan as behaviors that uphold social norms. In addition she puts moral emotions as a potential mechanism for moral behavior that is common between humans and other species.

This part ends with a chapter by J.J. Prinz (Chapter 6) entitled ‘Where do morals come from? A plea for a cultural approach’. Prinz argues that such an approach has implications for “how to think about the biological contributions to morality and the processes by which moral values are acquired” (p. 99). In the first part of his chapter he discusses what morality is, including the role of emotion and moral judgment and the content of morality. The second part of the chapter focuses on where moral values come from. Is morality innate or is it influenced by culture and history? Connected to this, Prinz argues that the scientific study of morality should include “fields that track sources of cultural variation” (p. 116). This chapter is a very nice addition to this part of the book as a call for even further expansion of the sources of empirical data used to inform ethics.

Part III of the book is entitled ‘Assessing the moral agent’ and starts with a chapter by C. Tanner and M. Christen on moral intelligence (Chapter 7). They start by defining what moral intelligence is—the agent’s capacity to process and manage moral problems—and then move on to present a model that provides the foundation for the moral intelligence framework, a framework for understanding moral competencies. According to Tanner and Christen, the moral intelligence framework includes: a reference system (moral compass), ability and willingness to prioritize (moral commitment), ability to recognize a moral issue (moral sensitivity), an ability to develop and determine a morally satisfactory course of action (moral problem solving) and the ability to build up moral behavior by acting consistently despite barriers (moral resoluteness) (p. 122).

Then they introduce the elements and moral competences that they deem as essential for moral agents, and conclude by presenting some ideas on how to improve moral intelligence.

The next chapter (Chapter 8) is on ‘Moral brains – possibilities and limits of the neuroscience of ethics’. K. Prehen and H.R. Heekeren start this chapter by providing a brief overview of traditional recent psychological models on moral judgment and behavior. Then they introduce the neuroscientific approach and the methods applied to the study of the ‘moral brain’, such as examination of brain damaged patients and neurostimulation. They move on to present major lines of research while at the same time offering a critical overview of these. They end by presenting their own empirical findings on the influence of individual differences in moral judgment competences based on neuroimaging studies (p. 138).

The last chapter of this part (Chapter 9) focuses on using experiments in ethics. Here S. Nichols, M. Timmons and T. Lopez start by introducing ethical conservatism. They move on to highlight the problem of moral luck and two different epistemic accounts of luck-blame judgments: the rational inference account and the epistemic bias account. Nichols and colleagues then discuss psychological research on moral luck, as well as luck in the context of control and negligence.

Part IV of Empirically Informed Ethics, entitled ‘Justification between rational reflection and intuitions’, starts with a chapter on intuitions in moral reasoning by G.J.M.W. van Thield and J.J.M van Delden. The authors discuss normative empirical reflective equilibrium as a model for substantial justification of moral claims. Van Thield and van Delden argue that this model differs from the traditional reflective equilibrium approach in two main respects: (i) moral intuitions of agents other than the thinker are included and (ii) empirical research is used to obtain information about these intuitions (p. 179). In this chapter van Thield and van Delden also discuss four types of coherence in moral justification: explanatory, deductive, deliberative and analogical coherence, as well as durability, transcendence and experienced perception as ways to assess the justificatory power of moral intuitions.

Chapter 11 by M. Musschenga touches on issues of moral expertise. In this chapter Musschenga argues that in order to strengthen the quality of reflective equilibrium the initial judgments should come from moral experts. According to the author, “a moral expert is someone who, by virtue of his knowledge, training, experience, and other skills […] is competent enough to make justifiable judgments on issues in his particular moral domain” (p. 200). In terms of the limits of moral expertise, Musschenga argues that “[f]or moral experts the ultimate source of moral beliefs and values that guide their judgment and decisions are not their own moral views, but the views of society at large which are embodied in the relevant documents and policies” (p. 207).

The final chapter of this part (Chapter 12) touches on issues of social variability in moral judgments. In this chapter E.H. Witte and T. Gollan introduce the prescriptive attribution concept by its formal analysis, report two extensions of the model, present empirical measurement of the justification and conclude by offering some empirical results on determinants of prescriptive attributions.

Part V, ‘Practicing ethics in the real world’, starts with a chapter (Chapter 13) by D. Narvaez and D. Lapsley on becoming a moral person. In particular they emphasize moral development and moral character as a result of social interactions.

In the next chapter (Chapter 14), M. Huppenbauer and C. Tanner write about ethical leadership with a focus on how to integrate empirical and ethical aspects for promoting moral decision-making in business practice. In doing so, the core of their argument is based on the idea that “empirical research without normative reflection is ‘blind’ […] similarly normative reflection is ‘empty’ without empirical insights” (p. 240). I find this chapter in particular to truly speak about the goals of the book.

The last chapter of this part (Chapter 15), ‘The empirical turn in bioethics’, by T. Krones, emphasizes the benefits of transdisciplinary work within bioethics, namely to “improve theory and practice of medicine and health care” (p. 256).

Part VI, ‘Critical Postcript’, ends with the chapter by A. Kauppinen entitled ‘Ethics and empirical psychology – Critical remarks to empirically informed ethics’. Kauppinen starts by presenting two main theses of empirical facts within armchair traditionalism and then presents how these theses are seen under what he calls ethical empiricism. In both the bold and modest claims of empirical empiricism what is key is that armchair traditionalism is rejected. Kauppinen then charts various ways in which empirical results might be or have been claimed to be important to metaethics and normative ethics, and closes the chapter by suggesting that “while armchair reflection will and ought to continue to be central to ethical inquiry, findings about what, why, and how we judge may stimulate and even challenge its results at several important junctures” (p. 305).

Overall the book is clear and covers a wide range of important aspects for those aiming to make the contributions of ethics more valuable and relevant for society. In particular, I enjoyed reading the opening chapter, the chapter by Prinz and the one by Huppenbauer and Tanner. This book deserves to be read by anyone interested in stepping out of their traditional norms and facts boundaries or by those who have never found the world of facts and norms as mutually exclusive realms, and particularly by anyone new to this field. For those already familiar with some (if not all) of the topics that the book covers, there is still some benefit to be gained from reading about some recent empirical investigations in areas in which they may not have such detailed knowledge or using different approaches from the ones they are familiar with.

Laura Yenisa Cabrera Trujillo – Assistant Professor of Neuroethics Michigan State University Center for Ethics & Humanities. USA. E-mail: laura.cabrera@hc.msu.edu

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[DR]

 

Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética – SANDEL (C)

SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Trad. de Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Resenha de: MEURER, Quétlin Nicole. Conjectura, Caxias do Sul, v. 20, n. 2, p. 230-237, maio/ago, 2015.

Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética é fruto de vários estudos e principalmente da participação do autor no Conselho de Bioética criado pelo presidente George W. Bush em 2001, com o intuito de refletir em torno de temas controversos ligados à engenharia genética. Por isso, o autor explora dilemas morais relacionados à busca do ser humano para aperfeiçoar a espécie.

O livro é dividido em cinco capítulos: a ética do melhoramento; atletas biônicos; filhos projetados, pais projetistas; a nova e a velha eugenia; e domínio e talento; além do epílogo. Também conta com notas e índice remissivo, o que permite melhor manuseio da obra.

O primeiro capítulo abre-se com reportagens de jornais, como do Washington Post, que relatam histórias sobre escolhas genéticas. O autor se pergunta: O que há exatamente de errado em gerar um filho que seja um gêmeo idêntico do pai ou da mãe, de um irmão mais velho que morreu tragicamente ou, até mesmo, de um cientista, um atleta ou uma celebridade admirada? Discute, a partir de então, o porquê de nos sentirmos perturbados com essa ideia. O problema inicial estaria na falta de autonomia dessas crianças que nasceriam predeterminadas, ou seja, não inteiramente livres. Entretanto, posteriormente, desfaz esse argumento, uma vez que, mesmo não havendo um projetista (nesse caso os pais), ninguém escolhe sua herança genética. Mesmo assim, o fato de crianças poderem ser geradas sob encomenda nos causa uma imensa inquietude moral. Segundo o autor, existem exemplos de biotecnologia desenhados no horizonte: melhoramento muscular, da memória, da altura e escolha do sexo, sendo eles uma escolha de consumo.

Então, apesar de todos os melhoramentos genéticos começarem na tentativa de prevenir uma doença ou um distúrbio genético, hoje são instrumentos de melhoria da espécie. A diferença, portanto, entre curar e melhorar tem cunho moral. Logicamente, é sabido que, quando a ciência avança mais depressa do que a compreensão moral, a humanidade luta para articular seu mal-estar com conceitos de justiça, autonomia e direitos humanos. Porém, nos parece, assim como para o autor, que o melhoramento de músculos em atletas para torná-los mais competitivos, por exemplo, não está relacionado com uma questão de justiça. Já existem atletas mais aptos geneticamente, simplesmente por herança e se esse fosse o principal argumento, se essas modificações estivessem disponíveis a todos, não haveria problemas a serem discutidos. Isso, no entanto, não acontece. A questão censurável, portanto, está voltada a motivos que vão além da justiça e da igualdade.

No segundo capítulo, analisa nossa resposta moral ao melhoramento, isto é, não haveria mais dedicação e talento; significa que daríamos mais importância ao farmacêutico do que ao jogador, por exemplo, uma vez que treinamento e disciplina não teriam mais importância, mas sim, o melhoramento genético a que foi submetido o atleta. O problema estaria no que Sandel chama de “superoperação, uma aspiração prometeica de remodelar a natureza, incluindo a natureza humana, para servir aos nossos propósitos e satisfazer os nossos desejos”. (p. 40). Não haveria mais dádiva na natureza humana. Reconhecer que a vida é uma dádiva é reconhecer que nossos talentos não são mérito unicamente nosso. Isso nos conduz à humildade e, apesar de parecer religioso, tem efeitos para além da religião. Entretanto, tem-se percebido diversas formas de “alterar” atletas sem esteroides ou qualquer outro medicamento ou mesmo sem modificações genéticas. Os casos apresentados pelo autor são a dieta hipercalórica para ganho de peso de alguns jogadores de futebol americano e da casa da Nike nos EUA, que possui oxigênio limitado, a fim de simular grandes altitudes e aumentar, desta forma, a produção de glóbulos vermelhos nos atletas. Esse aumento os tornaria mais aptos à corrida, uma vez que estariam acostumando seu corpo à reduzida oxigenação. Desse ponto, faz uma análise sob duas perspectivas: se, por um lado, considerarmos o esporte como sendo uma disputa de talentos, esse ficaria prejudicado com as modificações genéticas.

Entretanto, por outro, se fosse apenas um entretenimento, em que regras são pouco importantes, e o que faz a diferença é a quantidade de público que atrai, poderia ficar beneficiado caso atraísse mais pessoas. Porém, é óbvio que o esporte evidencia uma disputa de talentos e que, se fosse apenas um passatempo, não existiriam regras nem torcida e, tampouco, disputa admirada pelos espectadores. Os jogadores seriam nivelados, de certa forma, pela engenharia genética.

Em “Filhos projetados, pais projetistas” fica evidente a intenção do autor em demonstrar o lado perturbador da eugenia. Para ele, os filhos sempre foram dádivas e merecedores de amor incondicional dos pais. O amor destinado aos filhos nunca foi dependente das qualidades e talentos que esses, porventura, pudessem possuir ou vir a adquirir. Não escolhemos, em suma, nossos filhos e, tampouco, o seu futuro.

Entretanto, há pelo menos uma década, os pais resolveram se tornar maestros da vida dos filhos. Além de exercerem sua função natural de educadores, interferem de modo pontual na vida deles: matriculam-nos nas melhores escolas, em alguma atividade esportiva, em aulas de balé, contratam professores particulares e, inclusive, encaminham-nos a curso pré-vestibular para que possam frequentar as melhores universidades.

O autor aponta que nos Estados Unidos os administradores de faculdades precisam ser treinados para controlar pais dominadores que chegam a fazer as monografias dos filhos e dormir em conjuntos habitacionais estudantis para averiguar exatamente como os filhos estão se portando.

Outro apontamento é o uso excessivo de medicamentos como a Ritalina. Tal medicamento que anteriormente era utilizado apenas para tratar distúrbios de deficit de atenção, hoje, é utilizado em pessoas perfeitamente saudáveis para aumentar a sua concentração. É claro que o amor incondicional não impede que os pais moldem e dirijam a vida de seus filhos de modo a desenvolvê-los da melhor maneira possível. Por isso, a pergunta central deste capítulo é: Qual a diferença que há entre oferecer ajuda aos filhos por meio de educação e disciplina e fornecê-las por meio do melhoramento genético? A diferença, segundo o autor, reside no fato de que os pais que desejam melhorar os filhos tendem a exagerar e a converter os mesmos em produtos da sua vontade ou instrumentos da sua ambição: pais alucinados por algum tipo de esporte acabam determinados a transformar os filhos em campeões. Há, também, aqueles que predeterminam a profissão da criança. O autor termina o capítulo  com a opinião de que, no campo da moral, a eugenia e a educação fornecidas por pais ansiosos em moldar seus filhos não apresentam grande distanciamento. Ao mesmo tempo, porém, não devemos abraçar, por isso, a eugenia. Devemos, sim, questionar essa dominação dos pais que deixam de lado o sentido de dádiva da vida.

A velha e a nova eugenias demonstram que não há grande diferença entre o que se pensava e o que se pensa hoje em termos de engenharia genética. Primeiramente, cabe destacar que o termo eugenia foi criado pelo cientista Francis Galton com o sentido de bem-nascido. Ele entendia que o principal papel da racionalidade era o aprimoramento da raça humana, e que essa ideia deveria ser uma nova religião. Em nome disso, inúmeras pessoas (para catalogar e coletar dados) foram encaminhadas a prisões, hospitais, asilos e sanatórios, juntamente com outras que já se encontravam nesses lugares, após serem consideradas defeituosas, foram esterilizadas. Destaca-se que em 1927, a Suprema Corte dos Estados Unidos defendeu a constitucionalidade das leis de esterilização dos mais diversos Estados do país em nome da não propagação de uma raça de manifestamente inadequados. Da mesma forma, em 1933, quando conquistou o poder, Adolf Hitler promulgou uma lei de esterilização na Alemanha sobre a qual orgulhosamente se manifestou em Mein Kampf [Minha luta]. Contudo, como se sabe, a eugenia alemã foi muito além da esterilização, com assassinatos em massa. Em momento mais recente, por volta de 1980, o governo de Cingapura ofertava dinheiro às famílias pobres que se submetessem à esterilização e estimulava, ao mesmo tempo, mulheres de nível universitário a terem mais filhos. Isso tudo em nome da preservação dos padrões de educação. Apenas a título de curiosidade, somente em 2003 (após reportagens investigativas) os americanos fizeram pedidos formais de desculpas aos esterilizados compulsoriamente. Assim, o termo eugenia, no passado, passou a ter um sentido repugnante. Hoje, não está mais ligada ao Estado, mas às ambições humanas e, consequentemente, ao comércio de genes. Pais podem comprar óvulos e espermatozoides com características genéticas que desejam para os filhos e procederem a uma inseminação artificial, sem qualquer coerção. Isso demonstra que não era a coerção do Estado o único problema. Com a liberdade de escolha, as intenções eugênicas do passado não foram deixadas de lado, o que provoca um mal-estar social. Os bancos de semên catalogam apenas doadores com características exigidas pelos clientes, entre elas, formação universitária. É claro que há biótipos determinados  também. Assim, o discurso sobre a biotecnologia vem sendo revivido principalmente no que diz respeito a uma eugenia liberal. Geneticistas, atualmente, acreditam que se os melhoramentos fossem distribuídos de modo igualitário, as medidas eugênicas não seriam censuráveis, mas moralmente necessárias. Para endossar essa ideia, o autor cita John Rawls (Teoria da Justiça) e Ronald Dworkin (Playing God: Genes, Clones and Luck). A diferença primordial entre a eugenia do passado e a atual está no individualismo. Antes se tinha um Estado autoritário e disposto a melhorar a sociedade como um todo e com métodos discutíveis, é claro.

Hoje, se trata de pais abonados financeiramente e dispostos a pagar quantias altas para terem filhos conforme desejam e armá-los para uma sociedade competitiva. O autor destaca que os eugenistas liberais, em sua maioria, defendem, também, que essas modificações devem deixar em aberto o futuro dessas crianças, ou seja, não podem determinar carreiras ou modos de vida. Embora com defensores de peso já citados anteriormente, é trazido à baila um importante filósofo alemão contrário a essa permissividade. Trata-se de Jürgen Habermas. Sandel informa que, na teoria de Habermas, a eugenia liberal não pode ser permitida, uma vez que desconsidera conceitos espirituais e teológicos, além da autonomia e da liberdade – não depende de nenhuma concepção particular de bem-viver. Prejudicaria a autonomia uma vez que esses indivíduos não seriam autores da própria história e, quanto à liberdade, na medida em que destrói relações simétricas entre seres humanos livres e iguais. Termina esse capítulo informando que a teoria de Habermas é muito mais profunda, pois leva em conta, ainda, talentos adquiridos e conquistas humanas, bem como a postura dos pais diante do mundo e suas atitudes de dominação dos filhos.

No último capítulo, “Domínio e talento”, as questões centrais são a humildade, a responsabilidade e a solidariedade diante da possibilidade de a biotecnologia dissolver nosso senso de dádiva em relação à vida.

Sob a ótica da religião, não compreender que nossos talentos e nossas potências não se devem unicamente a nós mesmos é não compreender nosso lugar na criação e confundir nosso papel com o de Deus. Mas não é só sob o ponto de vista da religião que podemos descrever nossa relação com a humildade, com a responsabilidade e com a solidariedade. Em um mundo social que preza o domínio e o controle, a experiência de ser pai ou mãe é uma escola de humildade, já que não podemos escolher os filhos que teremos. Essa também seria diminuída ao passo que nos  acostumaríamos ao automelhoramos ou deixássemos de escolher determinadas características: mestres de nossas cargas genéticas, maior o fardo que carregaremos em relação às qualidades que não possuímos.

Isso, paradoxalmente, poderá reduzir nosso grau de solidariedade com os mais carentes. O autor aponta (como exemplo) os planos de saúde. Os saudáveis acabam subsidiando os doentes, uma vez que unem seus recursos e riscos. Isso só acontece porque as pessoas não conhecem nem controlam os próprios fatores de risco. Se conhecessem, provavelmente, não nutririam qualquer sentimento moral que a solidariedade social requer. Os bem-sucedidos não sustentariam a noção de dádiva (que nenhum de nós é completamente responsável pelo próprio sucesso) que os premiou e não sentiriam qualquer responsabilidade moral em relação aos menos afortunados na loteria genética. Por se tratar do último capítulo, o autor defende seus argumentos contra o melhoramento genético pressupondo as objeções que outros autores poderiam fazer a tais argumentos. Em relação à vida ser uma dádiva, explicita que não há, necessariamente, uma questão religiosa relacionada, pois, embora alguns creiam que Deus é o responsável pela nossa vida, não é preciso acreditar nele para valorizar a vida e a reverenciar. Podemos compreender a vida como um direito inalienável e inviolável sem, necessariamente, abraçar os conceitos de santidade. Após, Sandel argumenta que não deseja provar que o custo da biotecnologia é maior que o benefício.

Apenas acredita na ponderação, uma vez que as modificações genéticas são aparentemente uma forma de nos dominarmos para nos encaixar no mundo. Isso não é autonomia; é apenas contemplar nossa vontade. Além disso, poderá significar um retrocesso, uma vez que, após décadas, o homem percebeu que não precisa dominar a natureza, mas apenas juntar-se a ela como parte dela.

Para finalizar, no epílogo, cujo título inicial refere-se à ética embrionária, o autor defende que há diferença entre curar e melhorar. Defende a pesquisa com células-tronco para a cura de doenças, argumentando que nem tudo que nos é dado é uma dádiva e que, para a cura de determinadas doenças, é necessária tal manipulação de genes.

Nesse sentindo, não seria uma conduta antiética. Porém, tal questão retoma antigas discussões sobre a existência (ou não) de vida nesse estágio do embrião. Além disso, questiona-se a existência de diferença na conduta humana: se esses embriões fossem excedentes e descartados de tratamentos para infertilidade ou se fossem clones, a conduta humana na pesquisa seria eticamente louvável? O projeto de lei sobre células-tronco votado pelo Congresso americano (vetado por Bush em 2006) fazia distinção e só permitia pesquisas com embriões excedentes de tratamentos de infertilidade. Aparentemente, essa distinção parece moralmente defensável, mas não se sustenta sob o ponto de vista de que não deveria haver embriões excedentes (na Alemanha há lei que proíbe os médicos de fertilizarem óvulos que não serão implantados). Destaca-se, que para fins de pesquisa, o embrião acaba por ser destruído na fase de blastócito (células das quais se pode reproduzir tecidos humanos).

Assim, parece-nos um tanto mórbido, ao menos, criar vidas humanas para destruí-las com o único propósito de explorá-las. Alguns senadores norte-americanos, à época, justificaram seu voto desfavorável afirmando que não se pode considerar aceitável matar deliberadamente um ser humano para ajudar outro. Porém, os que eram a favor da pesquisa argumentavam que a Fecundação In Vitro (FIV) produz inúmeros embriões excedentes para aumentar as probabilidades de uma gravidez bem-sucedida, já sabendo que vários serão descartados. Então, se poderia utilizar esses excedentes, que teoricamente serão descartados, para salvar vidas. Segundo dados trazidos pelo autor, um estudo recente revelou que 400 mil embriões congelados estão definhando nos Estados Unidos.

Assim, uma vez que esses embriões já existem, não haveria nada a perder. Entretanto, quanto ao embrião-clone ou ao excedente, como bem argumenta o autor, não há diferença. Se considerarmos antiética a destruição de embriões excedentes para fins de pesquisa por já haver vida, da mesma forma temos que considerar na clonagem. Não há como fazer diferença sobre esse aspecto, uma vez que o cerne da questão é a existência de vida na fase em que são destruídos os embriões. Para Sandel, blastócitos são apenas células e não um bebê propriamente dito, considerando falha a crença religiosa de que a alma surge no momento da concepção, e que a vida humana é inviolável desde essa mesma concepção, já que não há uma linha para delimitar o início da personalidade. Para ele o blastócito é como uma célula epitelial. Ninguém negaria que é humana e viva, mas também ninguém tentaria argumentar que se trata de um ser humano propriamente dito. Sustenta que o fato de toda pessoa ter sido um dia um embrião não prova que o embrião é pessoa, são apenas seres humanos em potencial. A vida humana se desenvolve em níveis. O fato de haver um desenvolvimento contínuo que transforma o blastócito em embrião, esse em feto e, finalmente, em recém-nascido, não determinaria que um bebê e um blastócito fossem, no sentido moral, equivalentes. Na verdade, se estivéssemos convencidos de que são equivalentes, proibiríamos as pesquisas com células-tronco e baniríamos tratamentos de fertilidade que produzem e descartam embriões excedentes, tratando como assassinato e sujeitando os cientistas à punição criminal.

Outro argumento do autor é o de que muitos embriões são perdidos durante uma gestação natural, ou por aborto, ou por não conseguirem se fixar no útero, e, em nenhum desses casos, a religião (maior defensora da vida incipiente) prega que se façam os rituais funerários que se fariam para a morte de um bebê. Deixa claro, entretanto, que os embriões não são objetos ao nosso dispor. Devem ser respeitados como vida em potencial, e só não devem ser considerados pessoas. Para ele não devemos partir da alegação kantiana de que o universo moral se divide em termos binários: tudo é pessoa ou coisa. Afirma, ainda, que a pesquisa com células-tronco voltada à cura de doenças debilitantes é um exercício nobre do engenho humano para promover a cura e desempenhar nosso papel de reparar o mundo dado. A única ressalva é a necessidade de leis que regulamentem essas pesquisas para tornar o progresso da biomedicina uma bênção para a saúde e frear o uso descontrolado da vida humana.

Quétlin Nicole Meurer – Mestranda em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: quetlin.meurer@inss.gov.br

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A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios: Ética, memória e acontecimento na história oral | Alessandro Portelli

O livro “A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios: ética, memória e acontecimento na história oral” proposto para análise é de autoria de Alessandro Portelli, que o dividiu em duas partes: “Oralidade, ética e metodologia” e “Acontecimentos, memórias e significados”, respectivamente.

Alessandro Portelli é um dos autores mais importantes no cenário mundial no que se refere ao tema da História Oral. Professor de literatura norte-americana na Universidade de Roma, Portelli fez inúmeros trabalhos de campo nos Estados Unidos e na Itália, resultando na publicação de obras que são referências na História Oral, entre elas “Biografia di una città. Storia e racconto: Terni, 1830-1985”, “Storie Orali. Racconto, immaginazione, dialogo” e “Ensaios de História Oral”. O autor fundou o “Circolo Gianni Bosio” – espaço para pesquisa de memória, música e culturas populares – onde desenvolve, comunica e expande seus trabalhos. Leia Mais

International Ethics: concepts/ theories/ and cases | Mark R. Amstutz

Mesmo tendo um papel ainda secundário nos debates de relações internacionais, o estudo sobre ética e moralidade nunca deixou de ter um lugar importante nesse campo do conhecimento. Desde as obras mais clássicas – em que se destacam os capítulos XV e XVI da obra seminal de Hans Morgenthau, Política entre as Nações – até a contemporaneidade com os estudos de Eric Patterson, há uma permanente preocupação em se discutir os limitantes morais e éticos do exercício do poder dentro do sistema internacional.

Diante desse contexto, a obra de Mark Amstutz renova sua análise acerca da temática com uma rica sistematização para os acadêmicos interessados em se aprofundar em torno dos conceitos e especificidades da ética internacional. Ainda que a primeira edição da obra tenha sido publicada em 1999, a quarta edição do autor traz contribuições inéditas ao propor uma discussão sobre temáticas contemporâneas recheadas de consistentes estudos de caso, tais como sobre as implicações do 11 de setembro, a invasão do Iraque e a proteção de civis no conflito líbio. Leia Mais

Ensaio filosófico sobre a dignidade: antropologia e ética das biotecnologias – BAERTSCHI (C)

BAERTSCHI, Bernard. Ensaio filosófico sobre a dignidade: antropologia e ética das biotecnologias. Trad. Paula Silvia Rodrigues Coelho da Silva. São Paulo: Loyola, 2009. Resenha de: WEBBER, Marcos André. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 163-166, maio/ago, 2013.

Bernard Baertschi é professor e pesquisador no Departamento de Filosofia da Universidade de Genebra. Ao lado da pesquisa sobre a filosofia francesa dos séculos XVIII e XIX, Baertschi possui muitos livros e artigos publicados com o foco voltado ao pensamento ético, especialmente no que se refere aos fundamentos da ética, à ética das biotecnologias e à neuroética.

Atualmente, é titular da disciplina de Bioética no Instituto de Ética Biomédica e do Departamento de Filosofia da Universidade de Genebra. Leia Mais

A ética do uso e da seleção de embriões – FRIAS (Ph)

FRIAS, Lincoln. A ética do uso e da seleção de embriões. Editora UFSC, 2012.  Resenha de: KRAUSE, Décio; MERLUSSI, Pedro. Philósophos, Goiânia, v.18, n. 1, p.219-232, jan./jun, 2013.

Os acadêmicos em filosofia são diversas vezes acusados de tratar de temas que não possuem qualquer relevância fora do âmbito das universidades. O livro A Ética do uso e da seleção de embriões, de Lincoln Frias, contribui para colocar em causa esta ideia popular, constituindo-se como um grande exemplo acerca de como os filósofos podem ser mais ousados e tentar contribuir ativamente para a discussão pública de assuntos importantes. O livro tem méritos inegáveis quanto à discussão informal de senso comum, tratando de tema atual e relevante, para o qual maior atenção deveria ser dada, o que faz de seu trabalho um texto importante para a discussão pública de questões filosóficas.

Infelizmente, o nosso uso do termo “tentar” não foi por acaso. O livro de Frias é apenas uma tentativa de tratar do problema ético da seleção de embriões, visando trazer o debate ou, mais especificamente, muito da argumentação sobre o tema, para a tradição analítica em filosofia, como sustenta o próprio autor à página 21. Mas é neste ponto que apresenta falhas evidentes. Com esta resenha, objetivamos apresentar algumas críticas ao modo expositivo de Frias, lembrando que o trabalho de crítica, embora muito comum em países de língua inglesa, é pouco comum em países como o Brasil, onde as críticas são, via de regra, levadas para o lado pessoal. Esperamos que esta resenha não seja considerada deste modo.

O problema geral discutido neste livro é o de saber se a prática da seleção de embriões é moralmente permissível. Seja qual for a resposta que se ofereça, e aqui não estamos defendendo qualquer delas, deve-se apresentar razões a seu favor. Quem defende que a seleção de embriões para pesquisas não é permissível, precisa oferecer razões, por exemplo, a favor da tese de que os embriões são passíveis de consideração moral, isto é, que eles instanciam propriedades moralmente relevantes. Por outro lado, os que sustentam a permissibilidade da seleção de embriões parecem se comprometer com a tese de que os embriões não têm relevância moral. O livro de Frias defende esta última posição. Possui três capítulos e uma breve introdução ao problema.

Na introdução, como é de se esperar, o autor apresenta uma breve caracterização da questão. Os objetivos dos capítulos seguintes são apresentados pelo próprio Frias:

O primeiro [capítulo] trata da seguinte questão: a pesquisa com células- tronco embrionárias deve ser permitida, mesmo que signifique a morte de embriões sadios? Para justificar uma resposta positiva, a argumentação procura mostrar que o concepcionismo (a tese de que o embrião possui direito à vida desde a concepção) está equivocado. Isso é feito examinando os principais argumentos que poderiam sustentar essa posição e apontando as falhas de cada um deles. (FRIAS, 2012, p.31).

O segundo e o terceiro capítulos se concentram na seguinte questão: a seleção genética de embriões deve ser permitida, ainda que implica a morte de embriões sadios e mesmo que não se restrinja a motivações terapêuticas? Para justificar uma resposta positiva, o terceiro capítulo (sic) argumenta contra o antisselecionismo, a ideia de que há algo de moralmente errado na seleção de embriões […].

O terceiro capítulo é dedicado a indicar quando a seleção é aceitável e quando ela não é”. (FRIAS, 2012, pp.31-32). O que se espera de um livro que lida diretamente com um problema filosófico e avalia, na tradição analítica em filosofia, é solidez dos argumentos a favor e contra suas principais tentativas de solução, bem como que o autor domine com precisão conceitos que qualquer profissional da área tem de dominar: no caso de sua proposta, mencionamos conceitos como os de argumento, validade, solidez (correção), etc., ou seja, conceitos elementares de lógica, mesmo que a de lógica informal. O objetivo desta resenha é o de mostrar que o autor usa de maneira indisciplinada alguns conceitos elementares de lógica e filosofia. Não nos posicionaremos a respeito da tese defendida pelo autor.

Para começar a justificar nossas críticas, é importante considerar o conceito de argumento. Textos tradicionais (e aqui mencionamos somente dois casos), definem argumento do seguinte modo: Um argumento é uma série conectada de frases, afirmações ou proposições (chamadas “premissas”) que pretendem dar razões de algum tipo para uma frase, afirmação ou proposição (chamada a “conclusão”). (ARMSTRONG & FOGELIN, 2010, p.3).

Um argumento, no sentido do lógico, é qualquer grupo de proposições das quais uma é afirmada como se seguindo das outras, que são consideradas como fornecendo suporte ou razões para a verdade da primeira (COPI, I.M. Introduction to Logic 8th edition, 1990, p.6).

Como se vê, tratam-se de dispositivos elaborados em uma certa linguagem que procuram sustentar uma conclusão, mas deixam em aberto uma série de outras questões, como o que se deve entender por “sustentar” (a conclusão), “dar razões”, “provas evidentes” e “verdade”. Porém, deixemos esses esclarecimentos de lado, os quais somente dão indícios a favor da ideia de que é difícil encontrar nos textos comuns uma definição suficientemente precisa e não ambígua de argumento. Pensamos que podemos ser mais flexíveis do que as definições acima permitem, de modo a acolher os argumentos considerados por Frias, e dizer que, informalmente falando, de um ponto de vista lógico, um argumento é uma coleção de sentenças de uma determinada linguagem que pode ser separada em duas sub-coleções não vazias e não necessariamente disjuntas, a primeira sendo dita coleção (ou conjunto) das premissas e a segunda de coleção (ou conjunto) das conclusões. Importante é que um argumento não pode ser simplesmente uma coleção de asserções, mas as premissas devem, de alguma forma, estabelecer as conclusões. Igualmente importante é notar que assumimos esta definição para acomodar os “argumentos” contemplados pelo autor da presente obra, assim que um argumento pode conter mais de uma conclusão.1 Ora, uma caracterização informal como esta traz a necessidade de outros esclarecimentos. O que se entende por  “estabelecer”? (deixaremos implícitas as noções de linguagem e de asserções ou sentenças formuladas nesta linguagem).

Por “estabelecer as conclusões” queremos dizer que as conclusões devem se seguir de um modo não subjetivo (e isso é importante), das premissas. Geralmente, isso pressupõe o uso de algum tipo de lógica, mesmo que indutiva. Porém, via de regra os argumentos que utilizamos são formulados de modo a conterem uma única conclusão, que deve se seguir dedutivamente das premissas. A lógica em questão dá sentido preciso à noção de inferência que permeia a de argumento.

Note-se que aqui estamos enfatizando a noção de dedução e não de verdade; normalmente, os textos (como o de Copi acima mencionado) classificam um argumento de válido se, e somente se, a conclusão (ou as conclusões, mas não falaremos mais no plural) é verdadeira sempre que as premissas forem verdadeiras. Mas aqui entra em jogo o problemático conceito de verdade. Porém, se admitirmos que em última instância os argumentos considerados possam ser vertidos para a linguagem da lógica elementar clássica (ou, na maioria das vezes da linguagem do cálculo proposicional clássico), podemos deixar de lado a noção de verdade em prol da de demonstrabilidade, tendo em vista a completude dessas lógicas.

Cabe aqui, no entanto, uma observação. Quando usamos tais linguagens para mapear ou traduzir argumentos, há que se fazer uma convenção, a saber, a de que é possível tal empreitada, pois os conectivos, expressões quantificadas, etc. das linguagens naturais não coincidem exatamente com as correspondentes noções lógicas. Mas isso não constitui problema para a definição que estamos realizando, pois em momento algum Frias verte seus argumentos em linguagem lógica ou faz uso explícito de uma lógica bem determinada.

Mérito seu? Não cremos. O uso de linguagens informais tem seus limites, e se Frias pretendesse discutir as argumentações contra e a favor da utilização de embriões informalmente, sem o rigor da filosofia analítica, nossa resenha nem mesmo seria escrita. Contudo, da forma como ele apresenta seus argumentos, vis. com premissas e conclusões, cremos que uma explicação lógica deva ser dada.

Frias nos apresenta uma série de “argumentos” dispostos em premissas e conclusões. No entanto, na quase totalidade das vezes, o que se percebe é uma sequência enorme de falhas elementares na formulação dos “argumentos, de non sequitur na maioria delas, de termos utilizados dubiamente e com vários sentidos numa mesma argumentação.

Ou seja, seu trabalho, dentro da tradição analítica, é primário e mal feito. É surpreendente que um livro com uma apresentação dessas tenha granjeado tamanha reputação favorável.

Mas vejamos alguns casos particulares, pois se fôssemos considerar todos teríamos que reproduzir aqui praticamente o livro todo.

Vejamos um exemplo de um argumento dado pelo autor, chamado de “Argumento da Desigualdade”, onde as Ps são premissas e as Cs são conclusões:

P1 – A seleção de embriões é muito cara (e provavelmente não deixará de ser) P2 – Se for disseminada, ela será usada predominantemente por ricos.

C1 – A seleção de embriões aumentará a desigualdade social.

P3 – Os ricos já têm muitas vantagens sobre os pobres.

P4 – É injusto que exista desigualdade social muito grande.

C2– A seleção de embriões é injusta.

C3– A seleção de embriões não deve ser permitida. (FRIAS, 2012, p.150).

Obviamente, a conclusão C1 não se segue. Assumindo a definição modal de validade, a saber, que um argumento é válido se, e só se, é impossível ter premissas verdadeiras e conclusão falsa, é fácil ver que C1 não se segue de P1 e P2.

Isto porque a seleção de embriões “dos pobres” (se fosse possível caracterizar precisamente esta classe de pessoas) poderia ser financiada pelo governo ou pelos próprios ricos (idem), o que diminuiria a desigualdade ao invés de aumentá-la. Assim, é possível ter conclusão falsa mesmo que as premissas sejam verdadeiras. Em filosofia tradicional, diz-se Non Sequitur de uma situação assim. O argumento, como podemos observar, é mal formulado. As demais premissas são igualmente absurdas, o que se constata por simples inspeção, devido à vaguidade dos conceitos empregados (justiça, vantagem, etc.).

O leitor poderia pensar que este caso tenha sido isolado, talvez um equívoco isolado do autor. Mas não é. Citamos mais alguns exemplos:

P1- Se os gametas não têm direito à vida e os recém-nascidos o têm, é preciso identificar um momento entre eles em que há a aquisição do direito.

P2 – Esse momento precisa corresponder a alguma mudança no feto que justifique a atribuição de direito à vida.

P3 – Não foi encontrado nenhum critério satisfatório para identificar um momento decisivo durante a gestação em que ocorresse uma mudança no feto que justificasse a atribuição do direito à vida a ele.

C1 – Portanto, a gestação é um processo descontínuo, sem saltos.

P4 – A fertilização é um processo descontínuo, um salto.

C2 – Portanto, a aquisição do direito à vida se dá na fertilização (FRIAS, 2012, p.51).

Esse raciocínio é válido e suas premissas P1, P2 e P3 são aceitáveis.

Ora, dizer que até o momento não foram encontrados quaisquer critérios não implica que eles não existam. Um argumento que visa sustentar as conclusões não pode ser formulado deste modo. De que momento o autor está falando? Do dia da publicação do seu livro ou de quando a premissa foi escrita? E ele se refere a todas as partes do mundo ou a apenas o que é apresentado na literatura? Claro que o leitor poderia dizer que Frias está expondo os argumentos dos seus adversários, os quais ele visa combater.

Mas nenhum desses “argumentos“ é apresentado da forma como a tradição analítica sugere (para tal, basta consultar um livro de lógica, como o de Copi antes mencionado). E se ele pretendia outra forma de discurso, por que se juntou, ou pretendeu se juntar, a esta tradição? A objeção aqui é simples: os filósofos têm de ser suficientemente caridosos com as posições adversárias e oferecer formulações plausíveis dos argumentos que procuram sustentar a contraditória daquilo que defendem. Frias não faz isso; pelo contrário, simplesmente apresenta os argumentos menos sofisticados contra o que defende.

Repare ademais na última frase do autor: ele diz que o raciocínio é válido. Esta é uma afirmação curiosa. Pode ele demonstrar que isso é de fato assim? (Este é um desafio: nos mostrar, dentro da tradição à qual está se vinculando, que o argumento é válido). É fácil perceber que as supostas conclusões do raciocínio não se seguem das premissas. Elas certamente não se seguiriam mesmo se conseguíssemos formalizar o argumento na lógica proposicional clássica.

Também certamente não se seguem se isso fosse feito na lógica de predicados clássica. O que se pode sugerir é que o que ele nos apresenta seja um entimema, ou seja, um argumento com premissas suprimidas. Muito provavelmente é o que ocorre no caso acima. Entretanto, torna-se inútil expor o raciocínio daquela maneira. Tipicamente reconhecemos um entimema quando o formulamos em sua forma canônica; mas a forma acima não é nem de longe canônica. A formulação de Frias nada mais é do que uma exposição imprecisa de um suposto argumento com inúmeras premissas suprimidas.

Outro problema notável – embora recorrente – é o uso da dupla negação na premissa 3. A dupla negação é uma afirmação, diziam os latinos. Certamente que não há problemas em cometer esse tipo de engano em nossa vida cotidiana. Mas aqui estamos diante de uma obra acadêmica que tem a pretensão de ser um livro sério e logicamente disciplinado. É um erro elementar que não poderia passar despercebido.

A crítica que fizemos da afirmação acima, a saber, de que o argumento é válido, foi para indicar que o livro comete erros conceituais elementares em lógica. O leitor poderia pensar que este caso tenha sido isolado, talvez um equívoco isolado do autor. Mas não é. Citemos mais alguns exemplos:

P1 – nós temos direito à vida porque nós somos nós.

P2 – nós somos da espécie Homo sapiens.

P3 – embriões são da espécie Homo sapiens.

C – embriões têm direito à vida.

Não há dúvidas de que P2 e P3 são verdadeiras e de que C é válida (sic) caso P1 também seja verdadeira (FRIAS, 2012, p.61).

Um dos erros elementares da passagem acima é a afirmação de que a conclusão é válida. O autor comete um erro categorial, porque a propriedade de ser válido é instanciada por argumentos, não por conclusões de argumentos. O conceito de “fórmula válida” é outro e não se aplica aqui. A rigor, a conclusão de um argumento não pode ser válida. A conclusão pode ser verdadeira ou falsa, pois é um portador-de- verdade. Ademais, o que quer ele com o adendo à premissa 1 “porque nós somos nós”? Afirmar o princípio da identidade? Para quê? Afinal, é supostamente uma lei lógica.

Vamos tentar formalizar esse argumento na linguagem da lógica elementar clássica. Frias poderia ter agido da seguinte forma. A premissa 1 ficaria algo como “Para todo x, se x=x, então Dx”, em que Dx significa que x tem direito à vida. Ora, é trivial que isso equivale a “para todo x, Dx”.

Aceitemos esta como a primeira premissa: assim teríamos de modo óbvio

P1- Para todo x, Dx

P2- Para todo x, Hx (onde Hx = x é da espécie Homo Sapiens)

P3- Para todo x, se Ex então Hx. (onde Ex = x é um embrião)

C – Para todo x, se Ex então Dx.

Deste modo, pode-se comprovar facilmente que o argumento é válido aplicando-se as regras da lógica quantificacional usual, enquanto que na formulação proposta a derivação se afigura dúbia, porque o argumento está mal formulado. Apesar do nome sugestivo dado por Frias, sua P1 não é uma premissa. É, antes disso, um argumento.

“Temos direito à vida porque nós somos nós” é um argumento, o que é fácil de ver pelo indicador de premissa “porque”. Pretende-se sustentar a conclusão de que temos direito à vida com base na premissa de que nós somos nós.

O que ele provavelmente queria dizer, aplicando o princípio da caridade, era o seguinte: se nós somos nós, então temos direito à vida. Mas isto é uma condicional. E, é claro, uma condicional não é um argumento. Ademais, é um condicional com antecedente verdadeiro. Então, se é aceito como uma premissa, para que o antecedente? O que Frias poderia ter feito para formular o argumento de maneira simples e correta era apenas isto: assumindo que o domínio de quantificação seja o conjunto de seres vivos, temos o seguinte argumento:

  1. Para todo x, se x é da espécie Homo sapiens, então x tem direito à vida.
  2. Os embriões são da espécie Homo sapiens.
  3. Logo, os embriões têm direito à vida.

Esta formulação torna o argumento dedutivamente válido.

Obviamente não o torna sólido (correto), com premissas verdadeiras. Mas esse é outro problema. Como já dissemos, não é nosso objetivo discordar da conclusão do autor, mas antes denunciar o uso indisciplinado de conceitos elementares de lógica.

Infelizmente, as incongruências neste que poderia ser um belo texto não param por aí. Vejamos mais um exemplo, dado à página 62, que procura mostrar como um grupo justifica sua superioridade. Diz ele:

P1’ – nós temos direito de escravizar

P2- nós somos brancos

P3- nuvens são brancas C- nuvens têm o direito de escravizar.

O autor diz que a conclusão é absurda, mas sua justificativa é completamente errada. O que ele faz é apresentar a famosa falácia dos quatro termos. O termo “branco” está sendo usado em dois sentidos diferentes. Para mostrar que os brancos não têm o direito de escravizar, ele teria de ter feito isso mediante outro argumento, não mediante uma falácia muito conhecida. O que se poderia dizer é que simplesmente ter uma determinada cor de pele não garante relevância moral a um agente. O termo “branco” não se aplica de igual modo a nuvens e a pessoas, pois pessoas não são “brancas” no mesmo sentido em que nuvens o são.

Dissemos acima que uma conclusão não pode ser válida, pois a validade é uma propriedade de argumentos. É importante insistir que os argumentos não são portadores- de- verdade. Proposições são, presumivelmente, portadores primários de valor de verdade. Frases declarativas são portadores- de-verdade. Argumentos seguramente não o são.

Novamente o autor parece desconhecer esta trivialidade, como ele afirma: “Logo, se o Argumento do Futuro de Valor é verdadeiro, o concepcionismo também o é, o embrião possui direito à vida desde a concepção” (FRIAS, 2012, p.89).

Vários outros exemplos de erros conceituais elementares poderiam ser apontados, mas deixamos os demais exemplos implícitos, acreditando que nossos poucos exemplos já são suficientes para se perceber que a opção feita pelo autor de seguir o viés analítico e na forma de apresentação dos argumentos comprometeu significativamente a sua obra, que no entanto tem mérito, como dissemos, por tratar do tema que trata e pela significatividade das teses que defende, ou que pretendeu defender.

Uma das virtudes de uma obra filosófica é levar em conta as posições contrárias ao que se defende. Mas não é uma virtude fazer uma caricatura das posições contrárias à que se defende. Os argumentos que Frias apresenta contra a tese por ele defendida são caricaturas grosseiras e filosoficamente ingênuas. Considere finalmente o seguinte exemplo dado por ele:

P1 – É errado brincar de Deus.

P2 – Selecionar embriões é brincar de Deus.

C – Logo, a seleção de embriões é errada (FRIAS, 2012, p.125).

Qual filósofo profissional defendeu ou defenderia este argumento? Asseguramos que esta não foi uma pergunta retórica.

Não há quaisquer referências no livro de Frias que nos ajude a respondê-la. A premissa P1 é tão vaga que não é inteligível como possa ser usada em um argumento. O que pode significar “brincar de Deus”? O argumento, pelo tanto quanto sabemos, não foi defendido, tal como exposto, por qualquer filósofo profissional. Não haveria problemas se o autor dissesse que o objetivo deste capítulo era o de refutar argumentos usados pelo senso comum. Mas não é o que ele diz. Na Introdução da obra, Frias diz que, no segundo capítulo, “são consideradas as principais alternativas sobre o que há de errado na seleção: o Argumento Brincar de Deus […]” (FRIAS, 2012, p.31). E, como citamos no início desta resenha, ele quer considerar os principais argumentos contra sua posição. Não há razão em apresentar esse tipo de objeção numa obra que quer considerar as principais alternativas e os principais argumentos contra o que quer defender.

Em resumo, procuramos mostrar com alguns exemplos que esta obra comete inúmeros erros elementares. Há erros conceituais, espantalhos com a posição adversária, entre diversos outros problemas. Um dos méritos do autor é a clareza na escrita, que evidenciou com facilidade os erros que aqui denunciamos. Nosso objetivo nesta resenha não foi o de discordar da conclusão defendida pelo autor. A obra infelizmente carece de competências mínimas que a permitiriam discuti-la de maneira filosoficamente rigorosa.

Concluímos que a obra não pode ser considerada como uma tentativa séria de solução para um problema filosófico genuíno.

O que se há de lamentar, finalmente, é que uma obra como essa seja usada como referência na área, tamanho é o seu primarismo argumentativo.

Nota

1 Aqui distinguimos uma noção pragmática de argumento, captada pelas duas definições que citamos acima, e uma noção lógica de argumento, que é a definição que oferecemos para acomodar os argumentos apresentados por Frias. Agradecemos ao professor Newton C. da Costa por notar esta distinção.

Décio Krause – Professor Adjunto na Faculdade de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. E-mail:  deciokrause@gmail.com

Pedro Merlussi – Mestrando na Faculdade de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. E-mail:  p.merlussi@gmail.com

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Lecciones de ética – KANT (FU)

KANT, I. Lecciones de ética. 3ª ed. Barcelona: Crítica, 2009. Resenha de: SCARIOT, Juliane. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.3, p.442-445, set./dez., 2012.

Como eram as aulas de filosofia prática do professor Immanuel Kant? Qual era a bibliografia básica utilizada nas referidas aulas? Quais eram os temas centralmente abordados? Na função de professor, Kant possuía um estilo similar àquele do Kant filósofo? Essas perguntas servem de estímulo para a leitura da obra Lecciones de ética, a qual foi editada a partir de manuscritos de ouvintes dos cursos de Kant. Frise-se que a mencionada obra constitui um dos cursos acadêmicos kantianos mais negligenciados, pois, enquanto outro curso, a Antropologia sob o ponto de vista pragmático, foi publicado ainda em 1798, as Lecciones de ética foram editadas somente em 1924.

Apesar de contar com uma tradução para o inglês desde 1930, a edição em espanhol foi publicada somente em 1988, e ainda não há nenhuma versão para o português. A edição espanhola aqui utilizada tomou por base o texto Moralphilosophie Collins, datado de 1784-1785, o qual integra o primeiro volume do tomo XXVII das Obras completas editadas pela Academia. Ademais, em notas ao pé da página, a versão em espanhol apresenta as pequenas divergências existentes entre o texto de Collins, base da tradução, e o de Menzer. Aliás, é importante lembrar que há várias versões das Lecciones de ética, cada qual com uma data diferente, mas com o texto praticamente igual.

Na introdução da edição em espanhol, Roberto Rodríguez Aramayo ressalta que a descrição das aulas de Kant como descontraídas não é compatível com um professor que dita pontualmente todo o conteúdo. Assim, surge a hipótese de que Kant lecionava de forma tão vivaz e repleta de digressões que os alunos eram incapazes de anotar integralmente as palavras dele, o que culminava no comércio de apontamentos para que fosse possível ter uma versão completa. Em relação à descontração nas aulas do filósofo de Königsberg, resta evidenciado que o mestre contava anedotas, era bem-humorado e incentivava os estudantes a pensarem por conta própria. Tendo em mente tais características, pode-se ler as Lecciones de ética e aproveitar as explicações pormenorizadas do professor Kant.

A obra é estruturada a partir de duas grandes partes: a primeira, cujo título é Philosophia Practica Universalis, fornece uma visão geral da filosofia prática, com ênfase na seara conceitual; a segunda, nominada Ethica, com destaque para a aplicação dos preceitos éticos no cotidiano dos seres humanos. Já no Proemio da primeira parte, delimita-se o âmbito da filosofia prática: regras de comportamento ligadas ao livre-arbítrio, as quais contrastam com a filosofia teórica, composta por regras de conhecimento. Destarte, a filosofia prática possui ações e condutas livres como objeto e, ao abstrair tal objeto, pode-se afirmar que a referida modalidade de filosofia proporciona uma regra do bom uso da liberdade, regras que determinam o que deve ser mesmo que nunca tenha ocorrido. Assim, examina-se um ser que possui livre-arbítrio, ou seja, um ser racional, sendo que Kant deixa claro que pode não ser exclusivamente o ser humano.

Conforme o professor Kant, as regras do que deve acontecer são expressas através de imperativos. Dessa forma, há três espécies de regras, as quais correspondem a três diferentes tipos de imperativos. Primeiramente são apresentadas as (i) regras de habilidade, expressas por imperativos problemáticos, cujo enunciado traduz uma necessidade da vontade relacionada a um fim arbitrário, pois aqui se considera algo bom quando é meio de obtenção para um fim apetecido. Tais regras não integram a filosofia prática, pois mandam apenas hipoteticamente. Assim, apenas as regras de (ii) sagacidade e de (iii) moralidade pertencem ao âmbito da filosofia prática; estas são necessárias objetivamente, enquanto aquelas o são de forma subjetiva.

As (ii) regras de sagacidade são enunciadas por imperativos pragmáticos, constituindo regras do entendimento sobre o que seja a felicidade e dos meios adequados para alcançá-la. Dessa maneira, há um fim determinado, a felicidade, que exige destreza no uso dos meios. Por fim, as (iii) regras de moralidade são expressas por imperativos morais, nos quais “o fim é propriamente indeterminado e a ação tampouco está determinada conforme ao fim, mas se dirige unicamente ao livre-arbítrio, seja qual for o fim. O imperativo moral manda, pois, absolutamente, sem atender aos fins” (Kant, 2009, p.42). Assim, o imperativo moral requer boa vontade expressa em ações livres, o que proporciona ao agente um valor interno – a moralidade.

Após as regras e imperativos, Kant passa a analisar o summum bonum, o qual é definido como um ideal, um arquétipo do conceito de bem que se liga tanto à felicidade das criaturas racionais como à dignidade destas. Ao expor o bem supremo segundo Diógenes, Epicuro e Zenão, Kant aponta os equívocos de cada pensador. Na sequência, o sistema moral é concebido como intelectual, ou seja, sem fundamentos externos, como na educação ou no governo. Nesse sentido, a lei moral possui uma necessidade categórica, que não decorre da experiência, mas da razão pura; possui fundamento na índole interna, o que exclui fundamentos externos, como o teológico. Além disso, as ações podem ser exigidas prática ou patologicamente, isto é, segundo leis da liberdade ou da inclinação sensível.

Kant lembra que todos os fundamentos do discernimento moral são objetivos, mas os fundamentos da execução também podem ser subjetivos. Quanto à execução, é importante mencionar a coação, imposição de uma ação a contragosto, o que pode possuir motivação prática ou relacionada às inclinações sensíveis. Assim, o ser racional pode satisfazer sua obrigação por coação ou por dever, ou seja, motivado interna ou externamente. Aliás, interna e externa também pode ser uma das classificações das obrigações. Estas são obrigações perfeitas, integrantes do âmbito jurídico, nas quais posso ser coagido por outro; já as obrigações internas são imperfeitas, correspondentes à seara ética, na qual cabe autocoação. Nota-se que as obrigações externas são maiores que as internas, pois as obrigações externas podem ser internas, mas não o contrário.

Ao diferenciar o jurídico do ético, Kant faz algumas afirmações que merecem destaque: (a) as disposições de ânimo não podem ser exigidas juridicamente, pois sua natureza interna impede seu reconhecimento; (b) a satisfação da obrigação jurídica é condição para todo dever ético; (c) as omissões éticas, ao contrário das jurídicas, não são propriamente ações. Isso significa que Kant já reconhecia que: (a) o direito apenas pode exigir ações ou abstenções, não intenções; (b) os deveres jurídicos têm primazia sobre os éticos, de forma que não cabe discussão acerca da ação ou omissão que é exigida juridicamente, apenas deve ser cumprida independentemente da intenção do agente. Por fim, (c) na concepção kantiana omissões éticas não podem ser imputadas ao agente por outro ser humano.

O professor Kant também analisa o castigo nos âmbitos jurídico e ético. Neste classifica a punição como puramente retributiva e naquele como preventiva, seja através da melhoria do infrator ou da dissuasão dos demais pelo exemplo. O filósofo afirma que há dois foros para julgar as ações humanas: um externo, competência do direito, e outro interno. Este tribunal interno, chamado de consciência moral, julga e sanciona as ações. Como fica claro na segunda parte da obra, Kant atribui à consciência moral o julgamento do próprio agente conforme a lei moral. É interessante notar que, após a condenação ou a absolvição, deve ocorrer o arrependimento moral e a adequação das ações ao ditame judicial, sendo que há destaque ao segundo ato – a adequação. Afinal, nem no foro humano a dívida é satisfeita somente com o arrependimento.

Na segunda parte, o filósofo de Königsberg continua a distinguir ética e direito, reiterando que um bom cidadão diferencia-se do homem virtuoso, pois este age com base na boa intenção, enquanto aquele é motivado pela coação. Na sequência, examina-se a religião, concebida como resultado da união da teologia com a moralidade. Para o filósofo, a crença na existência de Deus deriva da razão. Afinal, “qual seria a razão de nutrir intenções puras que, à exceção de Deus, ninguém pode perceber?” (Kant, 2009, p.122). Esse Ser Supremo é concebido como onisciente, para que perceba as intenções do agente, sendo impossível nutrir intenções morais puras sem acreditar que há um Ser que as observa.

Quanto aos deveres, tema central da Ethica, Kant enfatiza os deveres do ser racional para consigo mesmo, pois são negligenciados pelos filósofos e constituem a base para que o sujeito seja capaz de praticar qualquer outro dever. Além disso, os deveres para consigo mesmo atendem à dignidade do gênero humano, e sua violação despoja o homem de seu valor em termos absolutos, enquanto a violação dos demais deveres éticos apenas retira o valor em termos relativos. Daqui emerge a concepção de dignidade, que primeiramente inviabiliza que qualquer ser racional utilize a si próprio como meio. É óbvio que uma pessoa pode trabalhar e, nesse sentido, ser meio para outra pessoa, mas nem por isso perderá sua condição de pessoa e de fim. Aliás, Kant condena a preguiça e a ociosidade, afirmando que, quanto mais ocupados, mais vivos nos sentimos.

No tocante à dignidade, esta é delineada como algo cujo valor é superior à vida. O filósofo reitera que a vida em si não representa o bem supremo que foi confiado ao ser humano e tampouco o que deve ser atendido em primeiro lugar. A dignidade possui valor superior à sobrevivência, pois “quando o homem não pode conservar a vida senão humilhando sua condição de ser humano, mais vale que a sacrifique” (Kant, 2009, p.196). Em que pese essa afirmação kantiana, o filósofo considera o suicídio um ato intrinsecamente detestável, pois representa a destruição da humanidade e coloca esta abaixo da animalidade. Igualmente condenável é a prostituição, que transforma o ser humano em coisa para a satisfação da inclinação sexual de outro.

Já quanto aos deveres para com outros homens, Kant divide-os em deveres de afeto ou benevolência e deveres de justiça ou obrigação, de forma que há um instinto para a benevolência, o que não ocorre com a justiça. Sob a rubrica de deveres para com outros seres racionais, incluem-se os deveres para com outros seres vivos não racionais e coisas. Ademais, Kant afirma que os seres humanos são como hóspedes da natureza, que possuem a obrigação de restringir o consumo, pois devem desfrutar dos recursos vitais tendo em vista a felicidade alheia. Nesse ponto, nota-se que, apesar de elaborar uma ética antropocêntrica, Kant manifesta claramente uma preocupação ambiental, principalmente com o consumo consciente e com a não violência para com animais e vegetais.

Por fim, o filósofo de Königsberg trabalha brevemente vários temas, dentre os quais se destaca a retomada da ideia de humanidade, ao argumentar que se pode diferenciar o homem mesmo de sua humanidade e que os juízes devem observar esta ao aplicar o castigo, inclusive no caso de um grande criminoso. Também é delineada uma concepção de amizade calcada em um ideal de que, se todos os homens zelassem pela felicidade dos outros, o bem-estar próprio seria atingido através dos demais. O último tema é a educação, composta pela formação e pela instrução, sendo que aquela é negativa e visa à segregação de tudo o que é contrário à natureza, enquanto a instrução pode ser negativa, ao prevenir o cometimento de erros, ou positiva, ao agregar conhecimentos. Assim, todo o lado negativo da educação chama-se disciplina, a qual supõe coerção, contrapõe-se à liberdade, e seu aspecto mais elementar baseia-se na obediência. Para Kant, a suprema perfeição moral que o gênero humano pode alcançar depende do transcurso de muitos séculos e da educação.

Em suma, Immanuel Kant dispensa apresentações, afinal representa um marco na Filosofia, mas a obra Lecciones de ética possibilita aos leitores conhecer uma faceta negligenciada de Kant: a de professor. Neste ofício, ele se socorre da filosofia de Baumgarten e, com exemplos e explicações pormenorizadas, clarifica muitos dos temas abordados nas obras Crítica da razão prática, Fundamentação da metafísica dos costumes e A metafísica dos costumes. A obra evidencia a veracidade da declaração inicial contida na introdução da edição espanhola de Lecciones de ética, qual seja, que, além de filósofo, Kant é um autêntico mestre da humanidade.

Juliane Scariot – Universidade de Caxias do Sul. Caxias do Sul, RS, Brasil. E-mail: juliane.scariot@gmail.com

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[DR]

 

Justiça: o que é fazer a coisa certa – SANDEL (C)

SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.Resenha de: BOMBASSARO, Alessandra. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 2, p. 183-186, maio/ago, 2012.

Considerando um dos mais importantes filósofos de sua geração, Michael Sandel leciona há mais de vinte anos na Universidade de Harvard, no famoso curso “Justice”, por onde passaram cerca de 15 mil alunos.

Quando ele profere as suas aulas no amplo anfiteatro universitário, quase mil alunos o acompanham na exposição de temas sumamente instigantes.

Sandel é ouvido atentamente ao abordar grandes problemas filosóficos relacionados a prosaicos assuntos da vida cotidiana, incluindo, por exemplo, a união entre pessoas do mesmo sexo, suicídio assistido, aborto, imigração, impostos, o lugar da religião na política, os limites morais dos mercados.

Para ele uma abordagem da filosofia – considerada por ele a mais segura – ajuda a entender melhor a política, a moralidade, contribuindo também para a revisão de aferradas convicções.

As questões propostas por Sandel, que integram um extenso elenco de problemas contemporâneos, são cada vez mais discutidas por sua complexidade. Por exemplo: Quais são as nossas obrigações uns com os outros e em uma sociedade democrática? O governo deveria taxar os ricos para ajudar os pobres? O mercado livre é justo? Às vezes é errado dizer a verdade? Matar é, em alguns casos, moralmente justificável? É possível, ou desejável legislar sobre a moral? Os direitos individuais e o bem comum estão necessariamente em conflito? Sandel é um crítico do liberalismo. Sustenta que essa ideologia política se caracteriza pela importância que dá aos direitos civis e políticos dos indivíduos. É a defesa intransigente da “liberdade pessoal”, em torno da qual se agregam a liberdade de consciência, de expressão, de associação, de ocupação e de exercício sexual. Os liberais não admitem que, em tais âmbitos, o Estado pretenda intrometer-se, a não ser para proteger os que poderiam sofrer dano.

Enquadrado no grupo dos “comunitaristas”, Sandel denuncia, nas críticas ao liberalismo, uma concepção anti-histórica, associal e incorpórea do sujeito, implícita na ideia de um indivíduo dotado de direitos naturais que preexistem à sociedade. O autor nega a tese da prioridade do direito sobre o bem, que se encontra, por exemplo, no centro do novo paradigma liberal estabelecido por John Rawls.

O que Sandel pretende destacar reside no fato de que o liberalismo se apoia, erroneamente, no pressuposto de que as pessoas podem escolher e revisar os seus fins na vida “sem nenhuma dependência de laços comunitários”. Adotando uma posição contrária, o autor afirma que certas obrigações comunitárias são “constitutivas” da identidade dos indivíduos, além de toda escolha. Tais obrigações compartilhadas formariam a base para uma “política do bem comum”, contrastando com a “política dos direitos” do liberalismo.

Tais pressupostos são apresentados por Sandel, principalmente, em sua obra Liberalism and the limits of Justice, literalmente [Liberalismo e os limites da Justiça] (2000). É com ela que o autor participou, contribuindo para o início do “debate liberalismo-comunitarismo” que dominou a filosofia política anglo-americana nos anos 80 (séc. XX). Sandel também defende que certas liberdades civis, tais como a de consciência e da sexualidade, são melhor entendidas como protetoras de fins “constitutivos” do que como protetoras de escolhas “sem limites”.

Sandel pretende ressuscitar uma concepção de política como domínio onde cada um reconhece o outro, ambos como participantes de uma mesma comunidade. Contra a inspiração kantiana do liberalismo, baseada nos direitos, os comunitaristas apelam para Aristóteles e Hegel. E, contra o liberalismo, Sandel apela para o republicanismo cívico. É o que deve favorecer o regresso a uma política do bem comum baseada em valores morais partilhados. Entretanto, não fica clara a questão: Mas como fica a defesa da liberdade individual? Feitas essa aproximações às posições e propostas do autor, é importante agora guiar a atenção, objetivamente, para a obra de Sandel: Justice, título original em inglês, aqui traduzida como [Justiça: o que é fazer a coisa certa]. Ela foi publicada em 2009, nos Estados Unidos, tendo sido traduzida por editoras de vários países. No Brasil, todos os seus direitos foram adquiridos pela Editora Civilização Brasileira, cujos livros são distribuídos pela Record.

Em dez capítulos, Sandel discorre sobre a filosofia do livre mercado, enfatizando a ganância com o abuso dos preços. Examina o socorro financeiro aos bancos, no decorrer da presente crise internacional. Faz uma reflexão sobre o utilitarismo de Jeremy Bentham e a posição de John Stuart Mill.

Enfoca a questão da tortura, da desigualdade econômica e do Estado mínimo pretendido pelos liberais. Insinua-se, em seguida, no âmbito da bioética, abordando temas como o suicídio assistido, a barriga de aluguel, a utilização de células-tronco, o direito ao aborto. Quando enfoca questões atinentes aos direitos humanos, analisa o pensamento kantiano em torno da maximização da felicidade, moralidade, liberdade e justiça. Logo, Sandel examina a teoria da justiça de Rawls. Evolui para o problema da segregação racial, do propósito da justiça, do significado de política e vida boa, de justiça e vida boa, finalizando com o desejo de uma política do bem comum.

O livro Justiça – como o próprio Sandel afirma –, começou como um curso. Por quase três décadas, o autor teve o privilégio de ensinar filosofia política a universitários de Harvard e, durante vários desses anos, ministrou aulas sobre uma matéria chamada “Justiça”. O curso expõe aos alunos algumas das maiores obras filosóficas escritas sobre justiça e também aborda controvérsias legais e políticas contemporâneas que levantam questões filosóficas.

Alessandra Bombassaro – Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: ale.bomba@ibest.com.br

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A felicidade na ética de Aristóteles – PICHLER (C)

PICHLER, Nadir A. A felicidade na ética de Aristóteles. Passo Fundo: Ed. da UPF, 2004. Resenha de: VIANA, Luisa Andrea. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 238-240, jan/abr, 2012.

Pichler possui graduação em Filosofia pela Fundação Educacional de Brusque (1992) e Mestrado em Filosofia pela Unisinos (2003).

Doutor em Filosofia pela PUCRS (2009), na área de Filosofia Medieval, com tese sobre A beatitude na filosofia moral de Tomás de Aquino. Atualmente, é professor adjunto na Universidade de Passo Fundo. Publicou vários artigos, produções técnicas, textos em jornais e revistas, trabalhos em anais de congressos, capítulos de livros e livros, tais como Filosofia e pós-modernidade (Imed, 2011) e A felicidade na filosofia moral de Tomás de Aquino (Méritos, 2011).

O livro A felicidade na ética de Aristóteles, de Nadir Antônio Pichler, nasceu da sua Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos, em 2003. Leia Mais

L’etica della democrazia – Attualità della filosofia del diritto di Hegel – CORTELLA (V)

CORTELLA, Lucio. L’etica della democrazia – Attualità della filosofia del diritto di Hegel. Genova/Milão: Casa Editrice Marietti, 2011. 270 p. Resenha de: COSTA, Danilo Vaz- Curado R. M. Veritas, Porto Alegre v. 57 n. 1, p. 180-190, jan./abr. 2012.

A democracia tem necessidade de uma ética? É com uma pergunta que percorre todo o prefácio que se inicia o livro do professor Lucio Cortella, o qual se desenvolve em torno de uma introdução – Moralidade e eticidade: dois conceitos chaves para aceder à concepção hegeliana da política – e quatro capítulos: 1. A liberdade e o absoluto; 2. A época da liberdade universal; 3. A eticidade realizada: a esfera do Estado e, por fim, 4. Linhas de uma eticidade pós-idealística: uma democratização da filosofia política de Hegel.

Ocorre que bem ao estilo hegeliano, o prefácio do livro possui independência e quiçá assume a tarefa de fazer o leitor dar-se conta de que é possível a pergunta de uma democracia em Hegel, algo um tanto e num primeiro olhar paradoxal, e que é também pertinente uma demanda acerca de um ethos próprio aos processos de organização política de viés democrático oriundo desde a vazante hegeliana. Estas duas indagações percorrerão, ora em maior e ora em menor medida, todo o desenvolvimento do livro.

Metodologicamente nossa resenha se dividirá em dois grandes blocos. O primeiro bloco reconstruirá a estrutura argumentativa apresentada pelo professor Lucio Cortella, expondo sua tematização, tendo sempre em vista seu objeto acerca de uma ética da democracia e como este ethos democrático pode ser exposto desde a Filosofia do Direito de Hegel. O segundo bloco de análise do livro se prenderá apresentar criticamente se o livro, que ora se resenha, realiza seu objetivo (uma ética da democracia) através de seu objeto (a filosofia do direito hegeliana).

Assim, esperamos apresentar a resenha ao mesmo tempo de forma informativa e crítica, expondo o desenvolvimento dos conceitos e meditando sobre sua pertinência ou não. Outro ponto que nos motivou a elaboração da presente resenha é suprir uma lacuna no português acerca da obra de Lucio Cortella.

Lucio Cortella é professor do Departamento de Filosofia e Bens Culturais da Università Ca’ Foscari, de Veneza, Itália, e mesmo sendo um reconhecido estudioso, na Europa, da tradição dialética, especial daquela oriunda da Escola de Frankfurt e desta à Hegel, o autor é um ilustre desconhecido entre nós.

1 Desvelando a estrutura do texto A ética da democracia: atualidade da Filosofia do Direito de Hegel

a) Há na democracia necessidade de uma ética? O autor inicia seu prefácio (p. 9) com uma constatação: Hegel não pertence à tradição do pensamento democrático. Contudo, sua reflexão conduz às mesmas aporias do pensamento democrático, que se resume a uma dicotomia a responder se: (i) as normas jurídicas são capazes de por si só regularem os processos políticos nas sociedades ou (ii) é preciso apelar a um sistema de valores compartilhado por todos no sentido de uma ética comum? As tendências democrático-liberais, segundo a análise de Cortella (p. 9-10), claramente afirmarão que é desnecessária uma ética como base da convivência social e reprocharão que tal perspectiva repousa numa indistinção entre o público e o privado, assinalando que o caráter privado dos bens não pode ser confundido com o caráter público da justiça e que a clareza nesta separação é o fundamento estável de um Estado democrático, ao mesmo tempo justo individual e socialmente sem a ocorrência da subsunção de uma esfera pela outra.

Uma outra não menos importante corrente do pensamento político democrático contemporâneo, os comunitaristas, argumentarão que as normas jurídicas são frágeis para serem tomadas em si mesmo e sem o suporte de uma ideia comum de bem e um conjunto de valores, que confiram identidade ao social, poderem constituir a estrutura político-social de uma comunidade jurídica, concluindo pela insuficiência do sistema normativo como modelo para a regulação dos processos sociais. Nesta perspectiva, qualquer compreensão da sociabilização para ser coerente deve apelar simultaneamente a normas e valores.

Lucio Cortella aponta os déficits de ambas às perspectivas, seja a dos liberais e do consequente esgarçamento social provocado pela perspectiva jurídico-abstrata, seja a comunitarista e o sempre iminente

risco de apropriação da liberdade individual pelo Estado, e aponta uma alternativa ancorada na perspectiva institucionalista, afirmando que para tanto “[…] basta individuar e tornar explícita qual ética está já incorporada e operante nas instituições do Estado democrático e por este motivo está já na base do vínculo social entre os cidadãos” (Cortella,p. 11). E é na eleição da perspectiva institucionalista de análise do fenô-meno político democrático contemporâneo por oposição tanto a liberais como a comunitaristas que Cortella (p. 12) consegue conectar o status pós-tradicional do pensamento democrático hodierno com Hegel, articulando o pano de fundo para o desenvolvimento da paradoxal tese de uma ética democrática desde Hegel.

Mas, como afirmar um institucionalismo em Hegel? Para tal tarefa, Cortella (p. 12) defende que

A eticidade hegeliana não é constituída por um sistema particular de valores, nem pretende impor ao Estado uma específica identidade histórica, nem significa a re-proposição dos vínculos comunitários. […] A ideia de Hegel é, porém, que a liberdade, uma vez dissolvida as velhas tradições e o ethos dos pais, se seja feita por sua vez ethos, isto é, tenha plantado raízes, objetivando-se num sistema jurídico, numa práxis social, em instituições políticas e civis.

Cortella postula (p. 13) que foi Hegel quem compreendeu que na Modernidade os processos de emancipação conduzem a uma tradição da liberdade, onde ser livre e reconhecer o outro como livre a partir de vínculos que são ao mesmo tempo individuais e supraindividuais, ou seja, institucionais nos permitem assumirmo-nos como humanos, e por isto, portadores de uma segunda natureza.

Para o autor, “a solução está num ethos comum e compartilhado, que seja ao mesmo tempo universal, participado por todos em linha de princípio, e concreto, isto é, já operante historicamente na prática das instituições políticas.

b) Moralidade e eticidade: dois conceitos chaves para aceder à concepção hegeliana da política Lucio Cortella (p. 19-20) inicia a introdução demarcando a impor-tância da compreensão do conceito de Sittlichkeit por oposição ao de Moralität, enfatizando que já entre os próprios gregos havia a existência no próprio ethos da distinção entre êthos (costume) e éthos (hábito). Cortella acentua, contudo, que o próprio Hegel em nota ao parágrafo 33 assinala que entre os gregos há preponderância no ethos do aspecto da morada, afastando-se os gregos de nossa compreensão da mora-lidade.

Ocorre que o próprio Cortella recoloca o papel da distinção hegeliana entre Sittlichkeit e Moralität, por ser esta aparente distinção etimológica a base de toda a reflexão hegeliana acerca da vida ética, em suas dimensões individual e política.

Esta ligação entre eticidade e a morada, bem presente em Aristóteles e após retomada por Hegel, indica uma conexão da vida ética bem diversa daquela que nós comumentemente atribuímos à esfera moral e é a verdadeira chave para compreendermos o sentido da distinção hegeliana (Cortella, p. 20).

O jogo entre a eticidade e a moralidade desempenha, na filosofia hegeliana, primeiro uma distinção semântica que demarcará as esferas de estruturação no espírito do subjetivo e do objetivo, e em seguida, na própria diferenciação das esferas o ligame que exige que a compreensão tanto do espírito subjetivo, como a do espírito objetivo, seja realizada em estreita conexão entre ambos, pois o moral e o ético são como que faces do mesmo processo de autodesenvolvimento da sociabilidade, o primeiro em sua dimensão individual e o segundo em sua perspectiva pública e social.

Cortella (p. 23) assinala, ademais, que na perspectiva desta distinção, Hegel se coloca na posição de suprassumir a perspectiva kantiana esboçada na Metafísica dos Costumes, que dividia a sociabilidade em apenas dois níveis, aqueles das relações exteriores entre os indivíduos, o direito, e aquele outro das relações interiores dos indivíduos, a virtude. Ao estabelecer que moralidade e eticidade não se opõem, mas se autopõem, Hegel eleva-se para uma perspectiva na qual as relações exteriores, o direito abstrato, pudessem junto com as relações interiores, a moralidade, se desenvolver sob a base de relações nas quais a distinção entre exterior e interior estivessem guardadas e elevadas, pois suportadas pelo movimento da cultura, coroando a sua Filosofia do Direito com a esfera da eticidade.

Neste sentido, o direito para Hegel assume a função não apenas de cuidar de questões jurídicas, mas de ser a explicitação da liberdade num mundo exterior. Cortella (p. 23) enfatiza que A noção hegeliana de direito pode-se legitimamente compreender como aquele mundo complexivo da normatividade que se eleva a partir da específica pretensão de validade indagáveis sob a base dos critérios de justiça.

E dentro desta específica distinção entre eticidade e moralidade, uma diferenciação na qual o diverso se preserva no distinto de si, que

será possível, na leitura que Cortella elabora desde Hegel, a diferença da liberdade dos antigos face à dos modernos. Modernos os quais, nós, devemos nos incluir na perspectiva posta por Cortella ao término do presente capítulo as páginas 30-31.

2 A liberdade e o absoluto

A abertura do capítulo já nos coloca face a tese forte do autor de que, em Hegel, há uma concepção coerentista da liberdade. Tal concepção rompe com as leituras que compreendiam a herança hegeliana nos quadros da Modernidade e de seu ancoramento da liberdade no primado do sujeito por oposição à natureza.

Cortella ressalta que tal oposição, própria dos modernos, entre um mundo pautado por leis mecânicas de causa e efeito, em verdade não se opõe a este outro mundo da liberdade, e que foi Hegel que, ao desenvolver “[…] a liberdade não mais pensada apenas como uma propriedade da interioridade humana e signo da sua superioridade sob a natureza, mas como lógica última do real” (p. 33), colocou as bases de uma compreensão de liberdade ampla, não restrita a compreensão de oposição entre a natureza e sua privação da liberdade e o espírito como reino da liberdade.

Em Hegel, a liberdade perpassa todas as esferas do real, pois ela é seu elemento intrínseco e constitutivo, para tanto e de modo a dar razões desta sua perspectiva, Cortella (p. 34) desenvolve como em Hegel se relacionam liberdade e ontologia.

A seção liberdade e ontologia é a reconstrução da refutação hegeliana do espinosismo, como alternativa para a compreensão desta postulada liberdade coerentista, que Cortella aponta presente em Hegel. Mas, em que consiste refutar o espinosismo e qual o papel de tal refutação? Espinosa compreende a essência como substância e necessidade. Dentro deste horizonte, a liberdade cede lugar à cega necessidade e em havendo Espinosa razão, Hegel estaria equivocado ao colocar o espírito como a verdade da natureza, pois seria a substância a sua verdade. Hegel, ao compreender, segundo Cortella (p. 35), a liberdade como o autoconhecimento do espírito, tem que refutar o espinosismo, demonstrando que a verdade da substância é o sujeito mediante a elevação da natureza ao espírito.

Cortella (p. 35) afirma, inclusive, que, em Hegel, a fundação da liberdade equivale a uma verdadeira fundação do idealismo. Uma tal identidade entre a liberdade e o idealismo em Hegel se manifesta na própria superação do espinosismo, tal qual apresentada, segundo Cortella, por Hegel na seção relação absoluta da Ciência da Lógica

através da noção de ação recíproca, a qual demonstra como a substância se autocondiciona num movimento reciprocamente ativo-passivo.

A superação da cisão entre natura naturans e natura naturata, enquanto divisão do movimento substancialmente entre o ponente e o posto, e o reconhecimento de que a verdade da substancialidade ontológica é o pensar, ou o pensamento em seu movimento reflexivo sobre si é consoante, segundo Cortella (p. 37), com a novidade do idealismo hegeliano da liberdade.

Cortella (p. 38), portanto, defende a tese de que a lógica se manifesta como o sistema categorial da liberdade, e assim é o absoluto liberdade porque suprassumiu a totalidade das determinações finitas do pensamento. O absoluto hegeliano é o próprio movimento da totalidade das determinações compreendidas em sua unidade como manifestando-se a si mesmo.

Neste horizonte epistêmico, Cortella (p. 39) afirma que “em definitivo: a liberdade (como o pensar) não é uma unidade indistinta, mas é um processo, uma multiplicidade, um percurso, no qual o êxito final mantém em si a totalidade das categorias que percorre”.

Cortella (p. 42 e s.) afirma que a primeira característica desta novaconcepção coerentista de liberdade, apresentada por Hegel, é a autorre-flexividade, a qual consiste “naquela especial relação que o pensamento tem consigo mesmo, graças a qual, referindo-se a si, determina a si mesmo e se faz independente de tudo o que não coincide consigo” (p. 42).

Este primeiro nível da liberdade se coloca na condição de ser fiel tanto à concepção aristotélica de homem livre como aquele que detém sua finalidade em si, como à noção moderna e kantiana de autonomia, segundo a qual livre é o homem que se determina de modo independente de qualquer móvil externo à razão prática.

O segundo momento da liberdade hegeliana, na interpretação de Cortella (p. 44), é a negatividade da liberdade, a qual o autor divide em negatividade absoluta e determinada. O uso de absoluto agora, neste contexto, corresponde à universalização ilimitada da negatividade, revelando sua destrutividade inerente. Contudo, a liberdade em sua absolutidade revela-se autodestrutiva; este movimento é a indução à sua determinação. O movimento da liberdade não se limita a ser a destruição de toda a exterioridade, mas sim o movimento de afirmação de si como possuído da propriedade de dar-se leis.

Neste percurso, a liberdade hegeliana se apresenta como liberdade relacional, na qual o dar-se a lei e não se determinar por nada que lhe seja exterior não implica a afirmação da autorreflexividade, mas exatamente sua suspensão, posto que o outro não é mais o que retira ou limita a liberdade, mas a liberdade mesma, em sua plenitude.

Acerca destas conclusões a que chega, Cortella (p. 56) afirma que “se Hegel corrigi os modernos e Kant negando que a liberdade seja uma propriedade do sujeito ou uma faculdade, colocando-a como uma realidade relacional e objetiva, por outro lado, também radicaliza o aspecto subjetivo dela”.

3 A época da liberdade universal

No cotejo da obra hegeliana, Cortella (p 59) identifica as raízes teológicas da concepção hegeliana de liberdade, explicitando que, em Hegel, a encarnação de Cristo implica a assunção e o ingresso no mundo histórico da liberdade de Deus, uma liberdade não apenas como ideia, pois esta não é exterior aos homens, pois estes são ideia.

Segundo Cortella (p. 60), a liberdade universal, oriunda deste evento teológico e realizada na Modernidade é um “mundo complexo de relações e práticas objetivas da qual a liberdade individual é o sustento e a alimentação”. Este complexo de relações que compõe a liberdade universal se realiza mediante três incursões no espírito objetivo: como liberdade jurídica, como liberdade interior e como liberdade social, ou liberdade externa à pessoa, consciência interna da autonomia do sujeito e liberdade do homem econômico e do indivíduo abstrato da sociedade civil.

Dentro deste contexto, toda a exposição do capítulo acerca da liberdade universal recompõe os passos dos três níveis de exercício e efetivação da liberdade num verdadeiro debate com os principais expoentes alemães da Hegel-Forschung, como Theunissen, Bubner, Horstmann, Ritter, Angehrn, Fulda, entre outros, no sentido de demonstrar o equilíbrio em Hegel e nas suas conclusões da unidade entre o descritivo e o normativo, da exposição e da crítica, do ser e da validade.

A busca desta unidade, segundo Cortella, é o que torna possível a compreensão da liberdade universal em Hegel, sem cair nos lugares comuns do quietismo ou do progressismo, entre outros chavões a que se impõe ao texto da Filosofia do Direito de Hegel.

Cortella (p. 120), no cotejo da interpretação de Theunissen, exposta em Sein und Schein, de uma proto-teoria da liberdade comunicativa em Hegel, propõe um modelo de liberdade relacional, na qual os níveis da família, sociedade civil e Estado representariam os graus da relação intersubjetiva da imediatidade, do estranhamento e alienação e da relação propriamente dita, onde assimetria e simetria se colocariam numa permanente tensão constitutiva.

Dentro deste escopo de apreensão da liberdade universal desde Hegel, Cortella (p. 128) se coloca a demanda de apresentar como a passagem da liberdade universal ao Estado, tal como por ele reconstituída

à luz da Filosofia do Direito em Hegel, é capaz de fazer jus à tensão entre liberdade individual, relacional e à própria noção de universalidade, sem cair numa eticidade perdida em seus extremos, tal como descrita, como alerta, pelo próprio Hegel, no § 1841 de sua Filosofia do Direito.

4 A eticidade efetiva: a esfera do Estado

Em Hegel, desenvolve-se uma compreensão de eticidade em termos estritamente próprios e inauditos, pois Hegel não concebe o conceito de eticidade, segundo Cortella (p. 129), “[…] fazendo o retorno ou fazendo retornar a constelação ontológica antiga, na qual ética e política fundavam-se sob a natureza e a tradição”, nem tampouco colocando em xeque os ganhos da Modernidade, os quais Cortella enuncia como sendo: a separação da ideia do bem da natureza e sua compreensão em termos da liberdade, a conexão entre bem, liberdade, e a subjetividade individual.

Todo o terceiro capítulo do livro de Cortella, que ora se prefacia é este intento de demonstrar a gênese da eticidade moderna, que Hegel apresenta na sua filosofia e que se coroa com sua apreensão conceitual da realidade, tal como exposta na Filosofia do Direito. Segundo Cortella, a eticidade seria uma espécie de metatema que perpassa toda a for-mação teológica e filosófica de Hegel, e a prova de seu argumento ele pretende demonstrar reconstruindo, em cada momento, seu percurso formativo.

Para Cortella (p. 130), na juventude, Hegel assume uma eticidade como sustentáculo à crítica do paradigma subjetivístico e à concepção kantiana baseada na universalidade da liberdade, sendo a eticidade o conceito hábil, neste período, a superar as cisões entre o indivíduo e o Estado, a liberdade e a natureza, etc. Em Iena, Cortella pondera que Hegel, ao assumir a perspectiva política aristotélica exposta na obra Política, torna-se capaz de desenvolver a eticidade como habilitada à compreensão de princípios como a natureza da polis, a prioridade do Estado com relação ao indivíduo, desenvolvendo uma perspectiva nitidamente comunitária.

Ainda em Iena, Cortella (p. 131) identifica uma mudança no paradigma da Sittlichkeit hegeliana, o qual na sua leitura consiste no abandono da perspectiva ontológica, herança da influência de Schelling e Espinosa, e que se pode identificar no próprio prefácio da Fenomenologia do Espírito e sua predileção pelo sujeito em detrimento da substância. Esta passagem

de uma perspectiva ontológica para uma perspectiva lógico-subjetiva se põe em Hegel pelo papel que desempenhará o conceito [Begriff] na economia da posterior reflexão hegeliana.

Cortella (p. 131) afirma que “a noção de conceito, a partir deste momento em diante se tornará uma das noções chaves de toda a filosofia hegeliana, possui um significado preciso mesmo nas relações da esfera político-jurídica”. Na estruturação desta nova concepção de eticidade, tal como desenvolvida por Hegel, Cortella é bastante tributário das pesquisas de Manfred Riedel, especialmente de Studien zu Hegels Rechtsphilosophie, e do famoso artigo de Riedel, Natur und Freiheit in Hegels Rechtsphilosophie.

A eticidade é apresentada se expressando como (i) a unidade entre liberdade e natureza (p. 131), (ii) unidade entre liberdade e história (p. 137), (iii) a conciliação entre universalidade e ethos (p. 144), (iv) a eticidade como uma segunda natureza (p. 146), (v) a condição de recomposição das rupturas da modernidade (p. 153), (vi) unidade prática entre sujeito e objeto (p. 160).

Não obstante este aparente caráter omnicompreensivo da eticidade, Cortella (p. 189) apresenta aquilo que ele designa como a acidentalidade do ético, o qual consiste no caráter de unidade da eticidade apenas nos limites internos ao Estado, ou seja, a eticidade se desenvolveria como um conceito intraestatal, sem condições hermenêuticas de apreender e compreender os processos externos à constituição interna doEstado.

Cortella demarca que a eticidade, tal como a compreende na Filosofia do Direito, fora dos limites do Estado, atua por recíproca exclusão, num verdadeiro fechamento nacionalístico do ethos (p. 194).

Em vista destas colocações e conclusões a que chegara, Cortella (p. 205) se coloca a tarefa de desenvolver uma alternativa de bases ainda hegeliana, mas com nítidas influências da teoria crítica de Frankfurt, à eticidade, e para tanto apresentará, no último capítulo do seu livro, as bases de uma eticidade pós-idealista.

5 As linhas de uma eticidade pós-idealística: uma democratização da filosofia política de Hegel

Para Cortella (p. 207), todo o percurso de constituição da eticidade e do complexo conceitual que ela comporta traduz-se numa verdadeira fratura da liberdade. Tal ruptura reside exatamente nos limites da compreensão hegeliana de liberdade, a qual possui como escopo os limites do Estado nacional por oposição e recíproca exclusão dos demais Estados nacionais.

Na leitura desenvolvida no citado livro, a eticidade hegeliana se mostra por demais singularística, ao reduzir-se ao estabelecimento de nexos hermenêuticos intraestatais, impossibilitando uma compreensão mais universalista da liberdade em contextos, por exemplo: supranacionais, de direitos internacionais e mesmo de demandas acerca dos direito humanos, etc.

A tese surpreendente de Cortella (p. 235) para este dilema é a compreensão da democracia como ethos, e para tanto o autor propõe que se deve Ao invés de considerar a democracia como a mais refinada técnica de distribuição do poder e da obtenção do consenso, tratar-se em verdade de repensá-la como aquela nova comunidade que é a saída do cenário das velhas comunidades tradicionais, àquelas ligadas a ponto específicos, como às memórias de grupos, aos usos e costumes […] (p. 235).

Para Cortella, é falso que inexistam no homem contemporâneo laços comunitários, pois da dissolução do ethos se seguiu a constituição de uma nova eticidade baseada em regras universais e impessoais, com as quais os cidadãos se identificam. Ainda segundo Cortella, O homem contemporâneo faz das regras impessoais do Estado de Direito o seu novo habitat, a sua nova casa. E se habituou à legalidade, à responsabilidade jurídica, à participação ativa numa esfera pública que vai para muito além dos velhos confins que caracterizam a sua casa, sua família e sua cidade (p. 235).

Para Cortella, deve-se assumir que, neste novo momento, vive-se uma espécie de eticidade democrática no seio da qual, habituada a comportamentos liberais e democráticos, se internalizam práticas e regras como virtudes republicanas. Dentro deste contexto de reapropriação das teorizações ético-políticas de Albrecht Welmmer, Cortella (p. 242) afirma que é possível democratizar Hegel e responder a estas novas demandas da contemporaneidade.

Para Cortella, a configuração político democrática não pode admitir a imunização das instituições da tomada de distância crítica dos cidadãos e da sua possível transformação, ou seja, é preciso pensar a compatibilidade entre os comportamentos democráticos com a inexistência de uma subs­tância ética, subtraída das condições da crítica, e é este ponto do modelo hegeliano que deve ser reconsiderado. Pois, segundo Cortella, “o ponto de ruptura fundamental entre a ideia de um ethos democrático e a concepção hegeliana do Estado reside naquela caracterização substancialística da esfera ética que em Hegel desempenha uma função central” (p. 243).

Para Cortella, este novo ethos, constituído após a queda daquele baseado numa concepção naturalística e substancial da tradição, se configura pela primazia do ser construído e pela sua artificialidade, resultante dos processos culturais de formação, logo esta segunda natureza, não é mais natureza, mas convenção. Nisto resulta o caráter pós-tradicional deste novo ethos.

Para tanto, Cortella constrói sua perspectiva pós-tradicional do ethos pela assunção das seguintes notas como lhe sendo constitutivas:a) formalidade, b) pluralismo, c) universalidade e d) deflacionamento da dimensão político estatal. Em tal perspectiva, o ethos pós-tradicional seria capaz de efetivar tanto a autenticidade individual como a justiça universal.

Todavia, nos diz Cortella com Christoph Menke2 que os conflitos entre autonomia e autenticidade à luz das escolhas individuais deve ser resolvido de modo plural e diferenciado, em certa medida assumindo individualmente a Ideia moral de bem como critério de orientação das escolhas.

Cortella assume, para tanto, uma concepção de comunidade de valores (Wertgemeinschaft) pós-tradicional, fundada sobre a liberdade dos singulares, na qual estes acedem livremente, bem como na qual a escolha dos valores e dos planos de vida aos quais querem aderir também o são livres.

Neste contexto, a democracia é menos um modo de organização política e mais uma cultura de valores consensualmente estatuídos e livremente aceitos e reconhecidos.

À guisa de conclusão

A presente obra, que se apresentou em formato de resenha, estabelece a instigante tese de apropriação de Hegel, sem contudo querer atualizá-lo, mas partindo de algumas de suas intuições e desenvolvimentos, assim como de várias de suas conclusões, a fim estabelecer um marco de compreensão razoável para complexos fenômenos da contemporaneidade, mais especificamente a possibilidade de se estabelecer uma ética da democracia em bases não substancialistas.

Apenas por este motivo, a obra possui méritos que lhe irão garantir, por longo período, a sua permanência nos debates políticos e filosóficos acerca das tão conflituosas relações entre o indivíduo, o Estado e a comunidade.

Notas

1. HEGEL. Filosofia do Direito, § 184: “Es ist das System der in ihre Extreme verlorenen Sittlichkeit”.

2. MENKE, Christoph. Tragödie in Sittlichkeit (1996) e, também, Liberalismus in Konflikt (1993).

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – Professor da UNICAP. Doutorando em Filosofia na UFRGS. E-mail: danilo@unicap.br ou danilocostaadv@hotmail.com

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Filosofia, ética e educação: de Platão a Merleau-Ponty – PAVIANI (C)

PAVIANI, Jayme. Filosofia, ética e educação: de Platão a Merleau-Ponty. Caxias do Sul: Educs, 2010. Resenha de: SABBI, Caros Roberto. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 241-245, jan./abr, 2012.

Nas dobras do tempo, tal qual um legítimo pontifex,1 Paviani liga mais de dois mil e trezentos anos que separam um dos expoentes da filosofia, senão o maior – Platão – ao filósofo fenomenólogo francês Merleau-Ponty na sua obra Filosofia, ética e educação: de Platão a Merleau- Ponty.

O primeiro, representando a Academia, criada por ele próprio em 387 a.C., num olival situado no subúrbio de Atenas, enquanto o segundo, em 1952, ganhou a cadeira de Filosofia no Collège de France. De 1945 a 1952, Merleau-Ponty foi coeditor (com Jean-Paul Sartre) da revista Les Temps Modernes. Leia Mais

A ética da autenticidade – TAYLOR (C)

TAYLOR, Charles. A ética da autenticidade. Trad. de Talyta Carvalho São Paulo: É Realizações, 2011.Resenha de: BELTRAMI, Fábio. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 230-233, jan/abr, 2012.

Charles Taylor é um autor contemporâneo, nascido em 5 de novembro de 1931, na cidade de Montreal, no Canadá. É professor de Filosofia e Ciência Política na Universidade McGill, na cidade de Montreal. O livro A ética da autenticidade, no original The ethics of authenticity (1992), lançado no Brasil pela editora É Realizações, no ano de 2011, com 128 páginas e tradução realizada por Talyta Carvalho, está estruturado em dez capítulos, nos quais Taylor busca uma compreensão acerca das relações atuais dos indivíduos e como os mesmos tendem a se comportar atualmente, focando seu estudo em questões relativas à autenticidade.

No que tange à autenticidade, Taylor percorre uma trajetória histórica sobre as fontes da mesma, citando Rousseau e o contato íntimo do ser humano consigo mesmo, bem como Herder, com a ideia de que cada ser humano tem um jeito original de ser humano e a necessidade de um contato consigo mesmo, com sua natureza interior, com o ser humano que é o modo particular de cada um ser humano. Para Taylor a autenticidade está baseada na ideia de que, independentemente de mim, existe algo nobre, valioso e, portanto, significativo na configuração da minha própria vida. A partir desse pressuposto, Taylor propõe um estudo sobre questões referentes à autenticidade e propõe uma alternativa focada nela, sustentando a possibilidade de defesa de um ideal de autenticidade. Leia Mais

Principia ethica – MOORE (C)

MOORE, George Edward. Principia ethica. Trad. de Maria Manuela Rocheta Santos e Isabel Pedro dos Santos 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Resenha de: SCARIOT, Juliane. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 234-237, jan/abr, 2012.

Qual é o âmbito da ética? O que é bom? O que é o bem? O que é bom em si mesmo? O que significa dizer que determinada ação é um dever? Essas são questões abordadas pelo filósofo inglês Moore (1873- 1958) no livro Principia ethica, um clássico da ética, publicado em outubro de 1903. Originalmente, a obra era composta de seis capítulos e um prefácio, mas a edição aqui utilizada inclui o prefácio à segunda edição, no qual Moore analisa as críticas tecidas ao seu texto e aponta algumas alterações que seriam necessárias; também há o artigo “O conceito de valor intrínseco”, publicado em 1922, e o texto “O livrearbítrio”, que integra Ethics, obra publicada em 1912 e reeditada em 1966.

É importante mencionar que, além dos textos de Moore, a obra tem uma introdução na qual apresenta, brevemente, o autor e a obra. Leia Mais

Formação ética: do tédio ao respeito de si – LA TAILLE (EPEC)

LA TAILLE, Y. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009. 315 p. (ISBN 978-85-363-1692-5). Resenha de: RAZERA, Júlio César Castilho. O ensino de Ciências entre a cultura do tédio e do sentido. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.13, n.01, p.157-164, jan./abr., 2011.

A BUSCA DA VERDADE: ESPERANÇA DE UM MUNDO MELHOR

A preocupação com os rumos tomados pela sociedade contemporânea é observada na literatura em diversas discussões. Dentre elas, incluem-se aquelas que inserem o relevante papel da educação como referencial de esperança para um mundo mais justo, digno e harmonioso. Dentro dessa perspectiva, na qual a Educação é inserida na construção de um futuro ética e moralmente modificado para melhor, encontramos nos argumentos e reflexões de Jares (2005) e La Taille (2009) subsídios de interesse para o ensino de Ciências, porque ambos colocam a verdade como valor a ser buscado na dimensão educativa escolar. Ao analisar o atual panorama sócio-político mundial, com seus sérios problemas e conflitos, Jares (2005, p. 126) coloca a Educação como sede principal da promoção de esperança, justiça e dignidade em virtude do potencial de seu trabalho sobre a busca da verdade. “Educar a partir da e para a verdade” é um de seus pressupostos. Para Jares (2005, p. 196), “precisamos de uma pedagogia de esperança que nos guie na direção do crítico caminho da verdade”. E complementa, afirmando que “a esperança se constrói por meio da busca da verdade”. A obra de La Taille, que é objeto desta resenha, também trilha por esse mesmo caminho, mas com o diferencial de conter consistentes argumentos, análises e reflexões fundados na Psicologia. Yves de La Taille é professor titular do Instituto de Psicologia da USP. O conjunto de suas pesquisas e teorias constitui um referencial relevante, extrapolando a área da Psicologia Moral em que atua. “Formação ética: do tédio ao respeito de si” tem essa característica abrangente, pois encontramos nessa obra subsídios de interesse que também podemos trazer para o ensino de Ciências.

De modo especial, provoca nossa atenção quando as abordagens e reflexões do autor enfatizam a verdade como um importante valor a ser buscado na dimensão educacional, a fim de evitar a cultura do tédio. Nesse caso, o ensino de Ciências também tem o seu papel na construção daquilo que La Taille chama de cultura do sentido, cuja expectativa é de um futuro ética e moralmente modificado para melhor. Com o embasamento da Psicologia Moral, podemos encontrar neste livro argumentos proveitosos que dirigem nossa atenção para uma efetiva aproximação entre o ensino escolar de Ciências e a formação ético-moral. Uma aproximação teoricamente orientada pela autonomia que, por exemplo, pode atuar em prol do processo de compreensão crítica da Ciência e da atividade científica por parte do aluno em sala de aula. Vejamos.

O QUADRO DA FORMAÇÃO ÉTICO-MORAL EM LA TAILLE

“Formação ética: do tédio ao respeito de si” divide-se em duas partes que, respectivamente, são assim denominadas: “Plano ético” (pp. 13-156) e “Plano moral” (pp. 157-310). Cada parte é constituída por dois capítulos. No conjunto dessa obra, que tem como referência teórica e fonte inspiradora um outro trabalho seu anterior (LA TAILLE, 2006), o autor faz abordagens correlativas entre o plano ético e o plano moral, isto é, entre a “vida boa” e “os deveres” de ser justo, generoso, digno. No plano ético entram em discussão a dimensão contextual contemporânea, intitulada de “Cultura do tédio” (capítulo 1) por causa de sua característica de predominância pessimista, e a dimensão educacional, chamada de “Cultura do sentido” (capítulo 2). O plano moral segue com o mesmo formato, cujas abordagens passam pela “Cultura da vaidade” (capítulo 3) e, posteriormente, pela “Cultura do respeito de si” (capítulo 4). Nas discussões que faz de ambos os planos, La Taille segue a mesma lógica de contraposição: primeiro analisa as características da sociedade atual, nos capítulos ímpares, depois discute os aspectos educacionais para mudanças do status quo, nos capítulos pares. Em suma, o autor nos apresenta uma leitura do presente em que sobressai na nossa sociedade a cultura do tédio, da vaidade, do pessimismo. A persistir esse panorama, configurado pela cultura do tédio, não encontramos expectativa de um futuro modificado para melhor, pois essa expectativa somente é possível na cultura do sentido, por meio da Educação ético-moral. Pesquisas diversas mostram que a maioria das pessoas é heterônoma, isto é, tendem a apenas aderir às idéias e valores que circulam no meio social em que vivem. Nesse caso, uma mudança de perspectiva para um futuro melhor implica a formação moral para a autonomia: “somente uma cultura do sentido pode vencer uma cultura do tédio” (LA TAILLE, 2009, p. 79). Para tanto, a formação moral no contexto da escola e das disciplinas torna-se relevante e, até mesmo, imprescindível. Essas ideias passam pelo  potencial das escolas e das disciplinas escolares na perspectiva de mudanças, pois em qualquer cenário de futuro a Educação aparece como atividade inconteste para que a cultura do sentido seja manifestada. Concordamos com La Taille ao dizer que cabe à escola tomar parte na formação moral de seus alunos e não apenas ficar restrita a transmitir conhecimentos, sem aproveitar-se deles com vistas à melhoria do futuro. Afinal, “os próprios conhecimentos transmitidos na escola são portadores de sentido que transcendem a especificidade de cada matéria. A escola é uma verdadeira usina de sentidos, […] e não há outra instituição social de que se possa dizer o mesmo” (LA TAILLE, 2009, p. 81). Para a escola e, em especial, para a busca da verdade como valor, devemos nos voltar para a construção daquilo que La Taille chama de “cultura do sentido”, pois ela não existe sem Educação para o sentido. E para falar de uma Educação para o sentido, o autor enfatiza a relevância da busca de um valor em especial: a verdade. Ainda que haja limitações, erros e ilusões quando mencionamos o termo “verdade”, o empenho nessa busca é investimento para a cultura do sentido, ou seja, a formação moral também perpassa por esse valor (da verdade).

Em suma, eleger a verdade como valor não somente é um bem em si mesmo para a procura de sentido para a vida: a capacidade de a ela chegar é também ferramenta necessária para se situar com um mínimo de precisão em um universo político de tantas mensagens dúbias, de tantas afirmações imprecisas, de tantas análises confusas, de tantas promessas duvidosas, e também de claras tentativas de enganação. Para sobreviver em tal ambiente equívoco, se faz necessário a chamada capacidade de crítica, não entendida como disposição a julgar negativamente, mas sim como vontade de passar o que se ouve, se vê, se pensa e se diz pelo crivo da razão, para debelar possíveis erros, possíveis mentiras, possíveis ilusões. Não há crítica honesta sem amor à verdade (LA TAILLE, 2009, p. 91, grifo nosso).

PARA BUSCAR A VERDADE

Baseado em Williams (2006), La Taille aponta dois obstáculos que dificultam a busca da verdade: os interiores e os exteriores. Os obstáculos exteriores são inerentes aos objetos e os interiores são inerentes ao sujeito. Sobre a superação dos obstáculos exteriores, que se referem a objetos de pesquisa, a psicologia não tem o que auxiliar. Esse auxílio pode ser dado, no entanto, na superação dos obstáculos interiores, relacionados ao sujeito. Sobre esses obstáculos, La Taille diz que podem ser de três tipos, os quais a Educação pode ajudar a superá-los: lacunas no conhecimento, fragilidade ou insipiência das ferramentas intelectuais e ausência de determinadas virtudes.

a) Lacunas no conhecimento: Para que um sujeito busque a verdade (ou confirme o que é transmitido) sobre algum evento ou fenômeno, ele precisa lidar com informações e dados diversos, ou seja, há necessidade não apenas de apropriar-se de conhecimentos específicos, mas também correlacioná-los e observálos de maneira crítica para resolver o seu problema. Para La Taille (2009, p. 97), compete essencialmente às instituições educacionais a tarefa de trabalhar com essas lacunas e “fazer que as pessoas possuam conhecimentos variados”, especialmente no campo científico e filosófico.

b) Ferramentas intelectuais: Ter somente conhecimentos não é suficiente para desvendar verdades. De acordo com La Taille, além de conhecimentos (conteúdos) é necessário que os indivíduos também mobilizem formas precisas de raciocínio. “Para raciocinar, ou seja, para produzir conclusões fiáveis, o ser humano dispõe de duas ordens de ferramentas intelectuais: as operações e os procedimentos”. Sobre as operações, o autor baseia-se no sentido piagetiano de “ações interiorizadas reversíveis, […] porque todo pensar é uma ação”. As operações são ferramentas da mente que usamos para estruturar e promover ajustes na lógica de nosso raciocínio. “Não houvesse operações, não haveria critérios que nos permitissem afirmar que um raciocínio é válido ou não. A lógica […] garante consistência, objetividade e possibilidade de comunicação” (LA TAILLE, 2009, p. 101). Nesse caso, trabalhar operacionalmente com a verdade implica aprendizagem sobre as possibilidades de falhas nas nossas observações e conclusões para que não sejam precipitadas e falhas ou contaminadas, por exemplo, por ilusões de óptica ou por equívocos de construção de lógica. Em discussões que envolvem a natureza da Ciência temos diversos exemplos ilustrativos desses problemas. Sobre os procedimentos, são sequências de ações para se chegar a determinados resultados, que podem ou não ser interiorizadas. Podemos dizer que, enquanto a operação corresponde à lógica interna do pensamento, os procedimentos correspondem aos passos por ele percorridos. Para auxiliar o entendimento entre ambos, pode-se fazer uma analogia interessante ao dizer que “a operação está para a teoria como o procedimento está para o método”, pois, como sabemos, os métodos de pesquisa são criados e utilizados para verificar a validade de teorias. “Logo, se não há busca da verdade possível sem postura teórica, tampouco é possível chegar a ela sem procedimentos adequados” (LA TAILLE, 2009, p. 104). Isso posto, La Taille insere aspectos compreendidos por nós como úteis aos propósitos correlacionais que vislumbramos para o ensino de Ciências.

[…] embora variados procedimentos possam ser criados pelos alunos para dar vida prática a suas operações e chegar a verdades múltiplas, na maioria das vezes eles são ensinados pela escola. Melhor dizendo: aqueles atinentes à ciência são apresentados pela escola. Ou deveriam. […] para que os alunos não sejam coagidos a se limitarem a acreditar nas verdades produzidas pelos cientistas, é preciso que tenham acesso aos variados procedimentos por intermédio dos quais os pesquisadores colocam à prova suas teorias. Não se trata de desconfiança em relação a eles, mas sim da necessidade de se apoderar, na medida do possível, dos procedimentos que eles criam e empregam para chegar a suas respectivas verdades (LA TAILLE, 2009, p. 105).

Para La Taille (2009, p. 105), não existe procedimento geral possível de ser aplicado a todos os problemas. Cada um deles tem um correspondente. Contudo, quando é implementado um trabalho com o aluno que envolve busca da verdade, não há como excluir o ensino de procedimentos. “Trata-se de mostrar a ele [aluno] que a busca da verdade depende de uma ‘disciplina’ da reflexão, disciplina essa que se traduz pela criação e emprego de procedimentos”. Acaba-se demonstrando, então, que a busca da verdade não é tarefa fácil e que sua realização leva em conta a lógica e os procedimentos correspondentes dessa busca. Para reforçar esses argumentos, o autor fala sobre os resultados positivos obtidos da iniciação à pesquisa científica que dá a seus alunos, pois eles trabalham com teoria, métodos e procedimentos. E complementa dizendo que as escolas básicas, guardando as devidas proporções, poderiam fazer o mesmo.

c) Virtudes: A tese é de que sem determinadas virtudes, mesmo tendo mobilizado conhecimentos, operações e procedimentos, a pessoa não se dispõe a buscar a verdade, satisfazendo-se mais facilmente “com ideias prontas, com fatos não comprovados, com preconceitos de toda ordem, com reflexões brumosas e afirmações peremptórias”. (LA TAILLE, 2009, p. 106). Nesse caso, a verdade entendida como valor requer virtudes de boa-fé, exatidão, paciência, simplicidade e humildade para buscá-la. Apoiando-se em Comte-Sponville (1995), La Taille diz que uma pessoa dotada de boa-fé busca e respeita a verdade. As virtudes decorrem de desenvolvimento pela aprendizagem, porque não são inatas e nem correspondentes a traços de personalidade biológica. O que coloca a escola em evidência, porque é instituição em que o amor e o respeito pela verdade são (ou deveriam ser) fundamentais, desde o nível infantil até a universidade. “Um professor que não seja inspirado pelo mesmo amor [à verdade, que também os cientistas devem ter] é, além de pessoa inconsequente e alienada, um possível cúmplice de possíveis imposturas: como pode ele sem critérios de veracidade, ensinar o que quer que seja?” (LA TAILLE, 2009, p. 109). De acordo com os argumentos de La Taille (2009, p. 110), a verdade implica exatidão. Exatidão entendida “como apreço pela clareza, pela precisão, pelo rigor, pelo controle”. Portanto, quem se inspira na verdade sabe que ideias vagas, raciocínios lacunares, frases obscuras são obstáculos à sua busca. Pode-se ter uma opinião, mas que não se confunde com verdade. Nesse ponto, o autor chama nossa atenção para algumas estratégias de aula que tanto podem corresponder a ricos modelos de exatidão como permanecerem somente no nível de troca de opiniões e, nesse caso, ajudando a fortalecer o relativismo em detrimento da verdade. Vê-se, portanto, que a forma, a estratégia de aula tem papel de destaque nessa questão da busca da verdade e, ainda, que as aulas de Ciências encaixam-se igualmente nesse papel por causa das características de seu objeto, ou seja, a Ciência. Ao discutir as estratégias de aula, La Taille retoma as ideias de Piaget acerca das relações de coação e de cooperação, com a ressalva de que as relações de cooperação defendidas por Piaget não excluem aulas expositivas. Da mesma forma que o método ativo envolvendo as relações de cooperação não é garantido, por si só, no simples fato de promover discussões entre alunos. Relações de cooperação, na perspectiva piagetiana, devem apresentar as seguintes características que convergem para a participação simétrica dos membros: saber ouvir os outros; procurar expressar-se de forma clara; avisar sobre possíveis mudanças de ideia; usar os mesmos conceitos. Essa perspectiva, aliás, contém similaridades com as ideias apresentadas na teoria habermasiana da ética do discurso. Então, fica esclarecido que convencimento é diferente de imposição e, consequentemente, ambos implicam aspectos antagônicos em relação à moralidade. Ainda que tenhamos priorizado aspectos pontuais, deve ter ficado ao leitor – pelo menos essa foi nossa intenção – uma percepção de relevância dessa obra, que é completa e provocadora de muitas reflexões. Embora trabalhe com um conteúdo complexo e de certa especificidade na área da Psicologia, o conjunto de argumentos trazidos por La Taille acaba implicando importantes subsídios referenciais e de reflexão, tanto para investigadores da área de Educação em Ciência como para o trabalho do professor em sala de aula.

Referências

COMTE-SPONVILLE, A. Petit traité des grandes vertus. Paris: PUF, 1995.

JARES, X. R. Educar para a verdade e para a esperança: em tempos de globalização, guerra preventiva e terrorismos. Porto Alegre: Artmed, 2005.

LA TAILLE, Y. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed, 2006.

LA TAILLE, Y. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009.

WILLIAMS, B. Vérité e véracité. Paris: Gallimard, 2006.

Júlio César Castilho Razera – Doutorando em Educação para a Ciência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP, Bauru, SP). Professor do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB, Jequié, BA). E-mail: juliorazera@yahoo.com.br

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[MLPDB]

Elementos da filosofia moral – RACHELS (C)

RACHELS, James. Elementos da filosofia moral. Trad. de Roberto C. Filho. 4. ed. Barueri: Manole, 2006. Resenha de: BRESOLIN, Keberson. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, Jan/Abr, 2011.

Pensar ética é pensar sobre o modo como as pessoas relacionam-se consigo mesmas, com o outro, com a sociedade e em alguns casos, com o sobrenatural e o ambiente. Ou seja, pensar a ética é pensar a totalidade das relações que se desdobram sobre o horizonte da historicidade humana. Isso não é fácil, muito menos simples. E, quando o assunto em pauta é ética, parece que todos entendem; ou ainda, quando não entendem usam um argumento infalível [unfehlbar], qual seja, “a ética é subjetiva, então, depende de cada um”, logo, a contenda é encerrada.

Essa postura, além de relativista, demonstra a necessidade de um estudo profundo e profícuo sobre a ética para, assim, compreender que ela é uma maneira de agir a partir de princípios e/ou valores definitivamente refletidos e fundamentados. A tentativa de James Rachels, no seu livro Elementos da filosofia moral, é exatamente esta: abordar temas centrais do pensamento moral com a finalidade de mostrar seus fundamentos e seus argumentos sejam eles sustentáveis ou não.

Rachels, filósofo norte-americano, nasceu em Columbus, Geórgia em 30.5.1941 e faleceu em 5.9.2003. Proferiu aulas nas seguintes universidades: University of Richmond, New York University e na University of Alabama at Birmingham onde permaneceu por 26 anos. Sua primeira obra intitulada Moral problems (1971), ao ser lançada, contribuiu para que as faculdades norte-americanas repensassem o modelo de ensino da ética, ou seja, nesse momento, nos EUA, a metaética dominava os debates nas universidades, de modo que sua obra contribuiu a que o ensino da ética se voltasse para questões morais de envergadura prática.1

Em 1975, no início dos debates em torno de questões bioéticas, Rachels escreveu um artigo intitulado “Active and passive euthanasia”.

No ano de 1986 aparece, então, o livro The elements of moral philosophy [Elementos da filosofia moral] e, no mesmo ano publica The end of life (1986) e, em seguida, Created from animals2 (1990), Can ethics provide answers? (1997), The legacy of Socrates (2007). Pouco antes de ser diagnosticado com câncer, Rachels conclui seu livro Problems from philosophy, que foi publicado postumamente. Além disso, escreveu inúmeros ensaios e artigos e editou vários livros, mas seu best-seller é, sem sombra de dúvidas, o livro Elementos da filosofia moral.3 Esse livro já está na sua quarta edição no Brasil, justamente por ser um excelente livro de filosofia moral. Apresenta uma linguagem simples, sem deixar de ter argumentos extremamente bem-elaborados. Combina de maneira formidável exemplos práticos com teorias éticas complexas, sem ser, por isso, leviano ou descritivo. Diferentemente de outros livros, os quais abordam a ética com a metodologia por autores, o livro de Rachels aborda temas, dentro dos quais desenvolve os principais autores que abordaram tal assunto. Dessa forma, os temas escolhidos para estigmatizarem os capítulos são postos não com uma preocupação histórico-temporal, mas, a nosso ver, com uma preocupação de inserir e instruir o leitor nos mais importantes debates/temas éticos.

Rachels elaborou 14 capítulos para seu livro, sendo que podemos encontrar nele não apenas questões centrais da milenar ética normativa, mas também questões da jovem metaética. Como todo bom livro, o primeiro capítulo (“O que é a moralidade”?) desenrola uma discussão sobre a natureza da moral. Faz isso de maneira inusitada utilizando-se de três exemplos práticos nos quais a decisão moral não é simples. Os exemplos: a bebê Teresa (bebê anencéfalo), Jodie e Mary (gêmeos siamesas) e Tracy Latimer (vítima de paralisia cerebral), de cunho prático, são apresentados em toda a sua complexidade e dificuldade de resolução.

Depois disso, Rachels apresenta o que ele chama “concepção mínima de moralidade”, a qual, a nosso ver, reflete uma postura utilitarista. A concepção mínima de moralidade é o esforço ou, pelo menos, o esforço para dirigir nossa conduta por razões ou, ainda, fazer aquilo que nos mostre as melhores razões para fazer sem deixar de ser, ao mesmo tempo imparcial, ou seja, considerar os interesses de todos os envolvidos na ação de maneira não parcial. Segundo Rachels, essa é a melhor concepção moral porque ela é mínima, ou seja, aquilo que todos podem igualmente concordar em fazer, não exigindo uma moralidade austera ou ascética do agente.

No segundo capítulo intitulado “O desafio do relativismo cultural”, Rachels aborda de maneira genuína o problema que o relativismo cultural desencadeia para a moral. Primeiramente, o autor se coloca na postura de um relativista cultural de maneira a extrair daí as consequências sérias de ser relativista cultural. Demonstra, então, que não poderíamos criticar outras culturas pelas suas ações e atos, visto que o certo e o errado são relativos de cada cultura em um determinado momento espaciotemporal.

Faz isso utilizando-se de inúmeros exemplos, como a excisão no Togo, as diferentes e antigas práticas funerais entre os gregos e os Calatinos (tribo de indianos). Os exemplos/fatos são algo marcante em toda obra, tornando-a, pois, atraente não apenas a estudantes de ética, mas também a pessoas leigas no assunto que possuem uma centelha de curiosidade pela ética.

“O subjetivismo em ética” é o título do terceiro capítulo, no qual aborda o relativismo em uma dimensão doméstica, ou seja, “particularista-subjetivo”. Aborda, além disso, a questão do sentimento moral e sua nova estruturação dada pelo emotivismo e a complexa questão posta pela oposição cognitivista versus não cognitivista em moral, qual seja, existem ou não fatos morais? No quarto capítulo, “Dependerá a moralidade da religião?”, o autor realiza uma excelente análise sobre a relação religião/moral e como elas se aproximaram ao longo do processo ético-histórico. Rebate categoricamente o fato de algumas pessoas crerem que, se não existir um Deus punidor, então, não há motivo algum para haver ações morais, ou seja, por que agir moralmente se não há castigo, nem vida pós-morte? Ausculta, ainda, a teoria dos mandamentos divinos, demonstrando como esse argumento é carente de fundamentação. Faz isso a partir da célebre afirmação de Sócrates no diálogo Eutifron, no qual se pergunta se o comportamento é correto porque os deuses ordenaram ou os deuses ordenaram porque é correto. Aborda, também, com alguma mazela a teoria da lei natural.

No quinto capítulo aborda “O egoísmo subjetivo” no qual se apropinqua da possibilidade de altruísmo. Mas, a nosso ver, o capítulo sexto intitulado “O egoísmo ético” é muito mais consistente e persuasivo.

Trabalha com argumentos a favor e contra o egoísmo e acaba com o lendário mito de que todo indivíduo egoísta é moralmente mau. Egoísmo é uma concepção moral. Ser egoísta é preservar unicamente seus interesses. No capítulo sétimo “A abordagem utilitarista” e o oitavo “O debate sobre o utilitarismo”, Rachels aborda genialmente o utilitarismo, demonstrando, então, a origem do mesmo e, em seguida, novamente citando vários casos concretos, propõe argumentos prós e contras. Como já dito anteriormente, o livro, segundo nossa leitura, possui um cunho utilitarista leviano, ou seja, não compromete a obra, muito menos a torna tendenciosa. A própria solução apresentada por Rachels ao relativismo cultural, no capítulo segundo, ou seja, um critério neutro de avaliação cultural, apresenta, indiscutivelmente, personalidade utilitarista.

Ao tratar de Kant, nos capítulos nono e décimo, o autor perscruta o âmago da concepção moral kantiana. No capítulo nono, proposto em forma de pergunta (“haverá regras morais absolutas?”), objetifica a moralidade kantiana, demonstrando os dois imperativos: categórico e hipotético. A partir da perspectiva kantiana a resposta à pergunta que originalmente está posta no título do capítulo é sim. Rachels demonstra que o imperativo categórico não suporta exceção e, por isso, toda regra de conduta que surge dele é categoricamente absoluta. Essa regra é apresentada como obrigação da razão e consiste, então, tanto em uma obrigação para fazer como uma obrigação para não fazer alguma ação. O autor trabalha com o famoso texto kantiano “Sobre o suposto direito de mentir por amor à humanidade” para enfatizar a absolutidade das regras categóricas, inclusive, em momentos nos quais a mentira poderia salvar uma vida. O capítulo décimo “Kant e o respeito pelas pessoas” não foi feliz como o anterior. Deixa a desejar na concepção kantiana de dignidade humana. Utiliza-se de uma interpretação da qual não pensamos ser kantiana o suficiente para abarcar a profundidade de tal percepção.

A seguir, Rachels, junto com Hobbes, expõe “A ideia de contrato social” (título do décimo primeiro capítulo), no qual ratifica o paradigma do filósofo britânico ao afirmar o caráter não social e egoísta do homem.

A natureza fez os homens tão iguais que é inevitável o conflito, uma vez que as necessidades são semelhantes, e os recursos, finitos, sendo, pois, necessário um Estado poderoso, o Leviatã, para administrar tais conflitos.

Apresenta também o famigerado dilema do prisioneiro para assoalhar que a decisão fundamentada em princípios cooperativos é a melhor escolha.

No capítulo décimo segundo “Feminismo e a ética do cuidado”, Rachels analisa um tema recente em filosofia moral. A partir dos estágios propostos pelo psicólogo Lawrence Kohlberg e de suas constatações realizadas a partir do “dilema de Heinz” de que o menino estaria em nível superior de moralidade ao ser comparado com uma menina de mesma idade, Rachels desenrola um debate, com o auxílio das ideias de Carol Gilligan, sobre como há diferença na construção de juízos de valoração entre homens e mulheres. Enquanto os homens prezam por uma ética principialista, a ética feminista possui um cunho de cuidado. Esse capítulo é excelente, porque o autor parte dos diferentes aspectos psicológicos que há entre homens e mulheres para chegar, então, a visualizar como tais diferenças influenciam a construção de juízos de valor.

No penúltimo capítulo, o autor aborda a “Ética das virtudes”. Esse paradigma ético não está preocupado, como enfatiza ele, em formular obrigações morais, mas em compreender o que torna o caráter bom. O que é virtude? Como praticá-las? Quantas são? tornam a preocupação com essa ética diferente das demais, embora continue sendo normativa.

Dessa maneira, o autor demonstra a especificidade da ética das virtudes em relação às éticas dos mandamentos morais, elaborada, principalmente, a partir da modernidade.

No último capítulo, Rachels faz uma reflexão em torno de como seria uma teoria moral satisfatória. Aqui os traços utilitaristas do autor são ainda mais claros. Evidenciando o fato de que existem inúmeras teorias éticas, que são, em muitos casos, incompatíveis entre si, Rachels pergunta-se: como seria uma teoria moral satisfatória? Promover os interesses de todas as pessoas de maneira imparcial, tratando cada uma delas como merecem, ou seja, por serem agentes racionais devem ser tratados sem distinção simplesmente por possuírem o poder de escolha.

Todavia, o autor ressalva que a ideia de promover de forma igual os interesses de todos não parece conseguir captar a amplitude da vida moral, fazendo, pois, uma reserva em relação à questão do merecimento pessoal, ou seja, à consideração das individualidades. Dito isso, o autor comenta as concepções de Smith e o “utilitarismo dos motivos” de Sidgwick, acerca do qual não se mostra simpático e propõe o “utilitarismo de estratégias múltiplas”, ou seja, o fim fundamental continua sendo o bem-estar geral, mas se pode defender estratégias diferentes como meio para buscar esse fim. Consoante Rachels, há aqui uma combinação de métodos, motivos e virtudes de tomada de decisão que será melhor para o agente, considerando as suas circunstâncias, o caráter e as capacidades.

Aqui é necessário pensar melhor no sentido de otimizar as condições de possibilidade de o agente ter uma boa vida, ao mesmo tempo que otimiza as possibilidades de as outras pessoas terem vida boa.

Sem dúvida, o livro Elementos da filosofia moral é uma excelente obra de introdução a questões éticas. Mostra-se de grande valor no ensino da ética, uma vez que isso se torna claro diante da quantidade de casos e exemplos utilizados ao longo de toda obra, sem deixar a desejar, ao mesmo tempo, um conteúdo fundamentado. Não é um livro catequético, pelo contrário, apresenta, na maioria das vezes, argumentos prós e contras à teoria abordada, embora, como já mencionado, segundo nossa leitura, possua um fio condutor utilitarista.

Notas

1 Cf. Disponível em: < http://www.jamesrachels.org/ >. Acesso em: 31 dez. 2010.

2 Rachels arguiu a favor do vegetarianismo moral e dos direitos dos animais. Neste livro Created from Animals, ele assevera que a visão de mundo darwinista tem implicações filosóficas fundamentais e [deveria] altera[r] o modo como tratamos os animais não humanos. 3 Cf. Disponível em: < http://www.jamesrachels.org/ >. Acesso em: 31 dez. 2010.

Keberson Bresolin – Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul.

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Sobre ética: Aristóteles, Kant e Levinas – NODARI (C)

NODARI, Paulo César. Sobre ética: Aristóteles, Kant e Levinas. Caxias do Sul: Educs, 2010. Resenha de: CROCOLI, Daniel José. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, Jan/Abr, 2011.

A obra Sobre ética apresenta as diferentes formas de se pensar a dimensão ética, fazendo referência ao olhar teleológico, ao deontológico e ao da alteridade. A primeira parte do texto, organizada no primeiro capítulo, descreve, a partir de Aristóteles, o entendimento teleológico da ética. A segunda parte, constituída de três capítulos, coloca a visão deontológica de Kant. O quinto capítulo se configura a partir dos estudos de Levinas e a alteridade como pano de fundo para se pensar a problematização das questões éticas. O texto é uma leitura acessível do ponto de vista argumentativo, passando pelos principais conceitos referentes ao entendimento ético dos autores em discussão. A riqueza do texto também se confirma pela vasta bibliografia consultada pelo autor ao escrever essa obra. Nas notas de rodapé, o autor nos possibilita um contato direto com os originais referidos no texto, abrindo um importante espaço para esclarecimento de conceitos.

Na abordagem aristotélica, o autor retoma a pergunta de Aristóteles: “Qual o bem supremo do homem e o fim a que tendem todas as coisas?” (p. 9) e retoma o conceito de felicidade como sendo o bem supremo a que se dirige o ser humano pela atividade racional que esteja de acordo com a virtude. O autor destaca que “Aristóteles interpreta a ação humana segundo a categoria de meio e fim”. (p. 16). E, nessa relação, há a necessidade de se pensar um limite para essa sequência. Se todas as coisas tendem a um fim, a um bem, esse bem não é unívoco, pois há uma multiplicidade de fins a que cada ser se dirige. Essa multiplicidade de bens, ou de fins, é organizada em categorias o que faz pensar em um bem supremo. “Aristóteles acredita que a felicidade é este bem soberano, porque é algo final e autossuficiente.” (p. 18). Mas como entender a felicidade no sentido universal sem cair na concepção subjetiva de que cada um possui um conceito próprio de felicidade e, ao mesmo tempo, se distanciar de Platão e manter o caráter imanente do bem soberano? A resposta surge com a ideia de natureza racional do homem, ou seja, “se nós somos seres racionais, por nossa forma natural, então, fica claro que o fim natural será agir segundo a razão”. (p. 20). A felicidade só é alcançada na medida em que o homem se orienta pela razão: “Portanto, para ser feliz, o homem deve viver pela inteligência e segundo a inteligência.” (p. 21). O homem chega à felicidade somente pelo uso da razão em conformidade com a virtude. Essa proximidade entre razão e virtude permite afirmar que o homem feliz é aquele que pensa e age a partir da virtude, e a sabedoria é virtude por excelência.

A virtude está associada à atividade da alma, própria do homem, que se divide em três partes: duas irracionais, presentes em todos os seres vivos, e uma racional, própria do homem. “Então, a parte da alma especificamente humana, que consiste em dominar as tendências e os impulsos, que são por si desmedidos, Aristóteles chama virtude ética.” (p. 25). As virtudes éticas não estão dadas por natureza, mas se desenvolvem com a prática, pelo hábito. É somente realizando ações justas que o homem se torna justo. O autor reforça que, para Aristóteles, o hábito, a ação virtuosa, é que consolida a verdadeira virtude, pois nenhum homem se torna virtuoso da noite para o dia, mas pelo conjunto de suas ações. A virtude se caracteriza não pela falta, nem pelo excesso, mas pela equidade, pelo equilíbrio.

O texto apresenta a divisão feita por Aristóteles entre as virtudes éticas e dianoéticas, ou seja, enquanto as virtudes éticas estão ligadas ao hábito, à ação, as dianoéticas estão ligadas à parte mais elevada da alma e se relacionam com a phronesis [prudência] e com a sabedoria. A phrónesi: “consiste em saber dirigir corretamente a vida do homem”. (p. 29).

Nessa primeira parte do texto, fica claro o entendimento global da abordagem aristotélica sobre a ética, de aproximar a razão, o conhecimento e a prática. A felicidade somente é alcançada a partir de uma vida virtuosa, orientada pela razão. A ética e a política estão próximas em Aristóteles, de forma que as ações concretas, realizadas de acordo com a sabedoria prática, possibilitam que o homem chegue à sua finalidade, ao seu bem, que se identifica com a felicidade e com a visão teleológica da ética.

O capítulo segundo dá início à segunda parte do texto, que se prolonga juntamente com os capítulos terceiro e quarto e faz referência à filosofia de Kant voltada ao estudo da ética. A proposta dessa parte é pensar a chamada revolução copernicana levanta para o entendimento da ética kantiana. Assim como a revolução copernicana traz a possibilidade de pensar que o conhecimento não se regula a partir do objeto, mas do sujeito que conhece, “a intuição dos objetos não deve se regular pela natureza dos objetos, mas, antes, pela natureza da nossa faculdade de intuição”. (p. 54). Assim também o fundamento da ética deve ser buscado na própria razão. A ética nos sentidos universal e racional não pode depender de fundamentos externos (como é o caso de uma fundamentação metafísica), ou pela tradição. Nesse caso, a razão deve ser entendida como autônoma e capaz de dar-se a si mesma uma vontade e uma vontade boa em si mesma. “Kant revoluciona a ética com a ideia da autonomia moral da razão, capaz de determinar a ação.” (p. 61). A autonomia nada mais é do que a possibilidade de pensar o homem com a capacidade de dar-se a própria lei no sentido universal. “O bem não deve mais ser pressuposto ou se constituir em fundamento da lei moral, mas deve, antes, ser deduzido dela.” (p. 62). Para Kant, acentua o autor, a lei moral leva à constituição do bem, ao passo que na metafísica a ideia de bem-trazida pela tradição – determina a lei moral. A parte final desse segundo capítulo reforça a ideia de que a virtude é a capacidade do homem de guiar-se pela razão, é uma conquista de si próprio como ser moral.

O capítulo terceiro apresenta o texto da Fundamentação da metafísica dos costumes para mostrar que os conceitos de lei moral e liberdade não tornam contraditória a argumentação sobre a autonomia e de que a razão se impõe uma lei justamente para se distanciar das determinações da natureza sensível. O imperativo categórico representa um acréscimo ao sujeito na medida em que esse não é somente razão, mas influenciado pelos sentidos. O caráter imperativo do “dever ser” dá condições à vontade de se manter guiada por proposições sintéticas a priori, de caráter universal e que superam as inclinações sensíveis, “de modo que aquilo para o qual as inclinações e os apetites o estimulam em nada pode lesar as leis de seu querer como inteligência”. (p. 97). Dessa forma, o imperativo categórico é uma determinação da vontade que tem como pressuposto a liberdade. É justamente por ser a vontade livre, que essa se lhe apresenta o dever-ser, fortalecendo a ideia de autonomia e de não determinação externa a si mesma. O entendimento de que é a razão, que determina os objetos no campo da ciência pelas condições de possibilidade de todo o conhecimento é a mesma razão, que no campo da ética, torna-se o fundamento de toda lei moral. Assim, se abre a noção de revolução copernicana para o entendimento da ética kantiana tendo a razão no seu aspecto normativo como fundamento da ética.

No capítulo quarto, o autor apresenta o conceito de “sumo bem”, de Kant, argumentando que a moralidade e a felicidade são os dois elementos que o compõem. Acrescenta que a felicidade e a moralidade não podem ser os princípios da vontade, pois essa deve ter seu fundamento em princípios formais o que reforça a necessidade de que a vontade tenha em si a causa de suas ações. (p. 117). Desse modo, a felicidade e a virtude se tornam consequência da lei moral e não o contrário. “O conceito de sumo bem é usado, portanto, para ligar especialmente natureza e liberdade, felicidade e moralidade”. (p. 125-126). O texto faz distinção entre saber e acreditar, mostrando a não contradição entre esses dois termos na medida em que o primeiro se refere ao mundo fenomênico, e o segundo aos elementos que estão além da experiência como é o caso dos postulados da razão (Deus, imortalidade e liberdade).

Para esse estudioso, a existência de Deus é necessária na argumentação kantiana, pois a razão coloca Deus como condição de se pensar a natureza como causada, e a felicidade como elemento subordinado à moralidade.

O sumo bem representa a totalidade dos fins morais, e essa ordenação racional exige um fim do qual decorre toda derivação, por isso a exigência de admitir a existência de Deus. A felicidade torna-se um conceito racional que indica a capacidade de autodeterminação da vontade, sendo o segundo elemento do sumo bem. A capacidade da razão de dar-se a própria lei pela determinação da vontade caracteriza a visão deontológica da ética.

A terceira parte da obra se concentra no quinto capítulo e aborda a visão de Levinas sobre a ética. Destaca o autor, já no título do capítulo, a importância do conceito de rosto como apelo à responsabilidade e à justiça. “O rosto do outro ser humano é a sua forma de apresentar-se, não de ser representado, diante do eu que o olha e o toca, mas sem objetivá-lo.” (p. 175). Pelo rosto, do encontro face a face, Levinas entende que ocorre a superação da visão ontológica do ser, pois essa aprisiona e neutraliza o outro na medida em que o reconhece a partir do eu. A descoberta do outro é a descoberta do totalmente outro, ou seja, que não se opõe ao eu, mas se apresenta como diferente. “O outro não é o que eu sou. Não é um alter ego, mas um alter do ego.” (p. 174). Significa dizer que o outro faz uma exigência ao eu, de ser reconhecido como diferente, que não se aprisiona. Na relação face a face, o outro é o fundamento da ética. “O rosto do outro é um mandamento, […] exige justiça.” (p. 177).

O eu perde seu lugar, torna-se vulnerável e é exigido a ele ser responsável e justo. Para o autor, Levinas, ao se distanciar da ontologia, permite que se pense a dimensão ética como um movimento que é anterior à própria consciência, referindo-se ao conceito de proximidade. “Bem antes da consciência da escolha, o homem aproxima-se do homem. É tecido de responsabilidade.” (p. 183). O outro, que está próximo, possibilita a criação de sentido para a subjetividade e, dessa forma, o eu se torna responsável originariamente pelo outro. A alteridade é a “relação sem relação”, originária da responsabilidade e da justiça.

Daniel José Crocoli – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: djcroco@hotmail.com

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A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel – NUNES (RFA)

NUNES, Edison. A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel. São Paulo: EDUC, 2008. Resenha de: VALVERDE, Antonio José Romera. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.22, n.30, p.299-302, jan./jun, 2010.

Se, como escreveu Otto Maria Carpeaux, “a bibliografia moderna sobre Maquiavel é imensa; menos em língua portuguesa”, com a publicação de A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel, de Edison Nunes, há que se rever a métrica de tal constatação, sobremaneira pela excelência da reflexão expressa acerca da densa obra do Secretário Florentino.

A originalidade é percebida desde a dedicatória, in memoriam, a Lorenzo di Piero de’ Medici, Clemente Settimo, Zanobi Buondelmonti e Cosimo Rucellai – respectivamente, ao príncipe ao qual Maquiavel dedicou Il Principe, ao papa que encomendou as Istorie Fiorentine, e aos amigos do Orti Oricellari, locus dos debates filosóficos políticos, que animaram a escrita dos sumarentos Discorsi sopra la prima Deca di Tito Lívio.

Objeto de tese doutoral, o livro de Nunes é resultante do trabalho árduo de fino pesquisador e de hábil escritor a suplantar conhecidos truísmos acerca da escrita e do estilo linguístico do Cidadão Florentino. O autor exerce o duro ofício de estudar Maquiavel e perspectivá-lo – desde a retórica e a ética até a ação política. O que não é tarefa para neófito, pois implica parcimônia e destreza metodológicas para vencer o ardil da construção maquiaveliana, que se movimenta de forma ora disjuntiva ora dilemática, às margens do contraditório, sob uma forma de raciocínio distinta da lógica estreita das deduções previsíveis, além de acertar contas filosóficas com o passado e a projetar o futuro da ciência política moderna, no movimento de acompanhar a teoria e a prática do dinamismo próprio do objeto de pesquisa: a política num tempo de criação, o tempo instaurador do Renascimento, sob o arco do Humanismo Cívico.

Grande parte da originalidade do livro em pauta reside na explicitação crítica da incorporação da retórica de talhe aristotélico, e pela recomposição da trama e da urdidura da extensa obra maquiaveliana, nos nexos entre retórica e conhecimento. A retórica como eloquência, como queriam os humanistas cívicos florentinos, considerada uma das ideias-força a mobilizar, desde Petrarca, o reconhecimento de que tal instituição era necessária para dar expressão às novas concepções e ações políticas surgidas nas cidades ao norte da Itália, do século XII e seguintes, como registrou Otto de Freising. As cidades redivivas ansiavam por autonomia em relação ao Império e à Igreja, autogoverno, retomada do regime político republicano e liberdade cívica. Porém, se Petrarca, na aurora do Humanismo Cívico Florentino, como querem Hans Baron e Eugenio Garin, principiou por criticar a dureza da retórica de Aristóteles, pois este “falava” mal, o resgate dos antigos romanos pelo “falar” bem, contra a dureza técnica do Estagirita, significou retomar, exemplarmente, Cícero, filósofo e político, e, por conseguinte, o entrelaçar das concepções de vita contemplativa e de vita activa, sob nova conjugação política. E para os humanistas cívicos, a segunda sempre tendeu a ser mais relevante. Nunes destaca a antecedência dessa discussão política, no encontro dos tempos, pelas recorrências constantes a Dante. No mesmo passo em que a política é analisada sob o viés trágico.

Se o sugestivo título da obra alude a um conhecido tango, o ritmo da exposição dos argumentos, à contra luz do que se escreveu criticamente sobre Maquiavel – sem milongas –, nada deixa a desejar. Lançando mão de metáfora orgânica, o autor ilumina o que a primeira parte do título sugere, mesmo não tendo sido escrita para este fim: “A figura resultante é a de uma árvore que, a partir do tronco, desse a ver apenas a um de seus galhos e, deste, um ramo que se desdobra novamente apenas para fazer surgir o único fruto visado; o restante permanece lá, somente que encoberto, como fundo” (NUNES, 2008, p.139) – felicíssima imagem.

Dividido em três capítulos amalgamados entre si, “A política e a condição humana”, “Conhecimento e retórica: os modos da verdade” e “Ação, responsabilidade e ética”, a matizar os meandros sinuosos e caleidoscópicos do pensamento ético político do Florentino. Algumas concepções de tempo, fortuna, os conflitos de humores dos grandes e do povo, as fontes e os modos de conhecimento da política, o lugar da retórica, os fins éticos da ação política, os nexos e os estranhamentos entre lei natural e virtude de talhe civil, a ação política e o espelhamento da responsabilidade, são temas recorrentes analisados ao correr da refinada análise.

O anêmico pensamento político brasileiro – se deveras existe, como inquiriu Raymundo Faoro – aditou muito com a edição deste livro original, esclarecedor sob muitos aspectos e traspassado de erudição. Em especial, o universo acadêmico, quase sempre em compasso de espera dos modismos europeus e norte-americanos. Se os ideólogos da política brasileira do passado, como Tavares Bastos, com pretensões difusas a certa envergadura liberal, não enfrentaram nem assimilaram, no detalhe, o pensamento de Maquiavel, os pesquisadores acadêmicos, durante grande parte do século passado, andaram a reboque de tal pensamento político e só recentemente principiaram por encará-lo por sua altura intelectual e inventividade. Praticamente, só foi possível ler Maquiavel, sem as peias da fortuna crítica, a pendular entre maquiavelismo e antimaquiavelismo, desde o pós-Segunda Guerra Mundial. Não que não fosse possível lê-lo e assimilá-lo, anteriormente. Mas lê-lo pela obra em si, sem apropriações indébitas e incompreensões, fruto de prejulgamentos, é fenômeno acadêmico dos últimos 50 anos. Neste ponto, a obra de Nunes é modelar, sobremaneira pela correta assimilação da tradição crítica e síntese para além dela, a remeter o leitor aos escritos exemplares de Claude Lefort e de Gennaro Sasso. Sem descuidar das assertivas maquiavelianas compostas entre si “con una lunga sperienza delle cose moderne ed una continua lezione delle antiche avendo io con gran diligenzia lungamente excogitate et examinate, et ora in uno piccolo volume ridotte…”, recolhida de Il Principe (“Nicolaus Machiavellus magnifico Laurentio Medici iuniori salutem”. MACHIAVELLI, 1999, p.107-108), e ainda “perché in quello io ho espresso quanto io so e quanto io ho imparato per una lunga pratica e continua lezione, delle cose del mondo” (Nicolló Machiavelli a Zanobi Buondelmonti e Cosimo Rucellai Saluete. MACHIAVELLI, 1994, p.101), dos Discorsi.

À página final de A Política à meia luz, há uma passagem acerca do primeiro epitáfio ensaiado pelos amigos de Maquiavel: “movido pelo amor, sujou muita neve”. Cumpre lembrar o epitáfio da lápide de seu túmulo na Igreja Santa Croce, escrito a pedido da esposa, ao lado de outros homens ilustres de Florença: “Tanto nomini nullum par elogium”.

Referência

MACHIAVELLI, n.Il Principe e altre opere politiche. Milano: Garzanti, 1994.

————-. Opere. Tomo I. A cura de Rinaldo Rinaldi. Torino: UTET, 1999.

Antonio José Romera Valverde – Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da EAESP-FGV, São Paulo, SP – Brasil. E–mail: antonio.valverde@fgv.br

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[DR]

 

Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico – DEBONA (V-RIF)

DEBONA, Vilmar. Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico. Prefácio de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: KLEIN, Glauber Cesar; SANTOS, Élcio José dos. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.1, n.1, p.151-159, 2010.

Podemos medir a excelência e a pertinência de um comentário filosófico, ou  mesmo de uma obra filosófica, a partir de dois critérios essenciais: (i) a dificuldade do  problema elegido para a investigação e (ii) a acuidade na execução do exame e da  solução, contando aqui as categorias de clareza e elegância de exposição, rigor  conceitual na análise e poder explicativo da análise do tema para o pensamento  completo do autor. O livro de estreia de Vilmar Debona, Schopenhauer e as formas da  razão: o teórico, o prático e o ético-místico, a nosso ver, contempla esses dois critérios  de excelência e de pertinência. Vejamos de que modo.

I O jovem especialista em Schopenhauer, Vilmar Debona, atualmente doutorando  do Departamento de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo e professor do  Departamento de Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do  Paraná, autor, entre resenhas e artigos, de diversos trabalhos sobre Schopenhauer, lança  agora o seu livro de estreia, Schopenhauer e as formas da razão, O teórico, o prático e  o ético-místico. Resultado de sua pesquisa de mestrado pela PUCPR, defendida como  dissertação em 2008, o livro apresenta uma versão retocada da Dissertação.    A pertinência da publicação pode medir-se já pelo seu título, que anuncia um  tema ao mesmo tempo sóbrio e provocativo. Sóbrio, pois indica um estudo temático  preciso e técnico, sendo já por isso promissor à leitura dos estudiosos em Schopenhauer.

Provocativo, por destacar a pretensão de uma leitura reformadora da compreensão da  crítica de Schopenhauer, esse celebrizado pensador irracionalista (seja como pessimista  inveterado, seja como crítico visceral dos projetos racionalistas da tradição,  abandonados, justamente, também pela influência do pensador da Vontade, do Corpo e  do Sexo), ao conceito de razão.

Neste sentido, o de se engajar em uma interpretação do autor de O Mundo como  vontade e como representação que reconsidera e revaloriza o papel da razão na filosofia  de Schopenhauer, o autor coloca, por um lado, que “justificar a razão como secundária  em relação ao entendimento e à Vontade, (…) eis um dos grandes propósitos da visão de  mundo de Schopenhauer”, que, assim, traria à primeira página de sua agenda filosófica a  tarefa de realizar “uma inversão na ordem das prioridades”, mostrando que “antes de um  homem que pensa, o ser humano é um animal que quer” – e, nisto, estamos no ponto  pacífico das interpretações schopenhauerianas –, e, por outro lado, anuncia o tema  problemático de sua investigação, o de saber “como se comporta a razão no processo de  sua própria descentralização”. Vejamos em detalhe a posição do problema.

A par da novitas schopenhaueriana, o primado da Vontade metafísica enquanto  blosser blinder Drang, segundo a qual “a razão é deslocada para uma instância  periférica em relação à centralidade que a história da filosofia lhe havia outorgado”,  abrindo-se assim um espaço vazio a ser preenchido pela tese fundamental do  pensamento de Schopenhauer, a saber, a identificação de uma Vontade cósmica com a  coisa-em-si, portanto, com a consideração do significado metafísico do mundo, a  questão posta pelo autor visa analisar em que medida e por quais caminhos a razão  reaparece como faculdade fundamental para a negação continuada da Vontade:    A alavanca impulsionadora desse estudo é, sobretudo, a afirmação de Schopenhauer de que na medida em que o santo ou o asceta alcança, de maneira excepcional, a total negação da Vontade, desabrocha com ela uma espécie de conhecimento do todo da vida, por sua vez detentor de uma índole intuitiva a ponto de se chegar a um conhecimento místico (p. 78).

II   Para responder a questão que se coloca – reformulemo-la: Se, por um lado, a  filosofia de Schopenhauer nos apresenta uma crítica radical e explícita ao conceito de  razão, dimensionando-o inauditamente como secundário em relação a um princípio mais  fundamental, o da Vontade, por outro lado, ela não parece desembocar em um  irracionalismo completo, pois igualmente compreende a capacidade racional como  essencial no registro ético-místico da viragem da Vontade como negação de si mesma –,  Debona destrincha, do primeiro ao terceiro capítulos de seu comentário, a crítica  negativa de Schopenhauer ao conceito de razão.

O primeiro capítulo, O entendimento e as representações intuitivas, detém-se no  que podemos entender como o primeiro passo da crítica schopenhaueriana da razão:  distinção entre razão e entendimento. Este é responsável por nossas representações  intuitivas; aquela, pelas abstratas. Se o primeiro capítulo desce aos pormenores do  tratamento schopenhaueriano das representações intuitivas, não sem destacar a  importância para a compreensão do pensamento do filósofo do estatuto “intuitivista” das  representações empíricas em particular, o segundo, Representações abstratas: a razão  teórica, já trata diretamente da faculdade racional, em concreto da consideração da  razão enquanto faculdade abstrata independente das intuições e do entendimento, ou,  para usarmos o vocabulário preciso e claro de Debona, a razão em sua forma teórica. O  segundo capítulo é importante, então, por iniciar propriamente a análise da crítica da  razão em Schopenhauer.

O capítulo seguinte, intitulado A razão prática, avança na análise e no  esclarecimento da segunda forma da razão no pensamento de Arthur Schopenhauer, a  saber, a sua forma prática. Qual o limite e o alcance válido da razão em seu uso prático?  Eis a questão. E aqui novamente encontramos uma leitura rigorosa, elegante e fina do  comentador. Debona não se limita às análises dos textos pertinentes à razão prática  presentes n’O mundo como vontade e como representação, na Crítica da filosofia  kantiana e no Sobre o fundamento da moral; também esmiúça os caros (embora pouco  lidos profundamente, e, por isso, menos frequentados) Aforismos para a sabedoria de  vida. A lente minuciosa de Debona nos expõe, em primeiro lugar, “que a razão prática  recebe um tratamento ‘diferenciado’ nos Aforismos para a sabedoria de vida”, pois nos  outros três textos mencionados, ela aparecia “como algo que simplesmente advém da  razão teórica como um distintivo dos homens com relação aos demais animais”,  enquanto que nos Aforismos a faculdade racional em sua forma prática é, segundo o  comentador, reavaliada, recebendo uma significação mais positiva:    Conforme podemos identificar em textos da obra de maturidade do filósofo, especificamente no texto dos Aforismos, a razão prática permite compreender, por exemplo, a noção de “caráter adquirido” que pode ser tomada como a própria razão teórica associada à experiência do entendimento. Assim, a razão prática retém em máximas conceituais a experiência variegada de vida e, através da menção do caráter adquirido, passa-se a tomar essa forma da razão enquanto proporcionadora de uma sabedoria de vida, semelhante ao que indicavam os estóicos e epicuristas com as noções de eudaimonia e de justa medida (p. 26).

Isso dá muito que pensar – a razão, a princípio tangenciada para a periferia da  explicação do mundo, seja em relação a seu papel na hierarquia das faculdades, a saber,  como mero reflexo das representações do entendimento e da intuição, seja em relação ao  papel que cumpre na explicação do significado do mundo, subalterna à Vontade, surge  agora, nos Aforismos, portanto após 30 anos da primeira edição de O mundo como  vontade e como representação, como “proporcionadora de uma sabedoria de vida”. Das sombras à “vida de modo mais agradável e feliz possível” 1.

III   A investigação sobre o conceito de razão, e de suas formas dispostas de modo  tripartite, avança para a consideração do papel da razão do ponto-de-vista estético. Neste  sentido, o quarto capítulo do livro de Debona, Da possibilidade de uma razão ético mística, começa a tocar, pela análise da Objektität des Willes e da negação da vontade  via intuição estética, na tópica mais preciosa de sua leitura, a terceira forma possível da  razão, intitulada de modo feliz por forma ético-mística.

Retrilhando pontualmente a ordem argumentativa da exposição do pensamento  de Schopenhauer disposta n’O mundo como vontade e como representação, Debona  debruça-se agora na intuição estética “como a idéia de negação da Vontade em seu  estágio mais primário” (p. 26). A arte nos oferece, diz Schopenhauer, reafirma Debona,  o degrau necessário para se alcançar o que será, no quarto livro, o sentimento de  compaixão e o “conhecimento do todo da vida, no âmbito da mística e da ascese”.

Cumpre aqui, portanto, mostrar em que medida a arte representa, para  Schopenhauer, a experiência inicial de um ato ético e místico de desprendimento das  vivências volitivas, primeiro deslocamento do puro sujeito do conhecimento das  amarras do indivíduo concreto no mundo, que é em parte puro sujeito que conhece, em  parte um corpo que quer e deseja. Ora, o que liga o tema próprio do livro de Debona –  as três formas da razão no pensamento de Schopenhauer – à análise da estética  schopenhaueriana só pode ser a explanação de qual forma (o que ela é e como se dá seu  uso) da razão aparece como condição de explicação da experiência estética enquanto  primeiro grau de negação da Vontade. Por isso, o autor é atento em iniciar aqui uma  topografia da forma ético-mística da razão.

Em primeiro lugar, aprendemos que a terceira forma da razão é denominada  ético-mística por comportar três características distintas, mas unificadas: A terceira  forma da razão é ética porque se funda “em primeira instância, no próprio sentimento de  compaixão”; mística, porque por ela chega-se ao “conhecimento do todo da vida, este  tido como o grau máximo de (re)conhecimento de que a essência de todo ser é a  mesma”; racional, porque ela é também, e só essa forma o é, Besonnenheit der  Vernunft. A terceira forma da razão, a ético-mística, é ainda e talvez plenamente  racional por mostrar-se necessária à permanência, “consciente e intencional” do estado  ascético de negação da Vontade, e à “reconquista do conhecimento livre do principium  individuatonis, atingido, em sua primeira vez, sem qualquer intenção, unmitellbar,  imediatamente” (p. 27). Em outras palavras, salvo engano, a razão em sua terceira forma  é ético-mística e só pode ser compreendida dessa forma porque atua no regime das  condições de possibilidade da experiência ética (sentimento de compaixão, que, assim,  só é possível por meio de uma viragem no sujeito, não mais ligado à sua  individualidade, mas tão-somente ao seu distintivo estado de contemplação estética) e  da experiência mística (lendo-se aqui ascese, negação da Vontade, que, por sua vez, só  pode ser prolongada e definitivamente alcançada pela clarividência da razão). Se a  estética, a ética e a mística, neste sentido, são desde o início devedoras da razão, mesmo  em suas experiências imediatas, agora na última e mais profunda retomada da razão,  como clarividência, a ascese em particular mostra-se indissociável, em sua demanda de  totalidade e permanência, da capacidade racional. A razão em Schopenhauer passa  assim, de acordo com a lição de Debona, da vacuidade de sua primeira forma, enquanto  faculdade das representações abstratas, à plenitude de visão em sua terceira forma,  enquanto faculdade da clarividência. Imperioso, então, é que detemo-nos agora na  centralidade, para os propósitos da interpretação de Debona, do conceito de  Besonnenheit der Vernunft.

IV   Vilmar Debona, no último capítulo de seu livro, Resquícios da razão na negação  total da vontade: a razão ético-mística, adentra “um terreno escorregadio e passível de  interpretações diversas” (p. 27). Não obstante este comunicado de prudência, dado o  piso traiçoeiro sobre o qual avança, o comentador segue firme em seu prumo  interpretativo, mantendo a ousadia sem nunca patinar.

A introdução do conceito de clarividência da razão é o momento mais  importante e instigante do livro de Debona, pois com ele funda-se definitivamente a  viabilidade de uma forma ético-mística da razão em Schopenhauer. Isto porque a  experiência da negação da vontade comporta, sem dúvida, um caráter intuitivo, imediato  e singular, “que é estranha ao racional”. Se parássemos aqui, compraríamos a leitura  tradicional de Schopenhauer, que Debona quer nos convencer, não dá conta da  explicação da negação total da Vontade. Dito de outro modo: os intérpretes  schopenhauerianos que não admitirem o papel da razão, em sua terceira forma, no  coração do quarto livro de O mundo com vontade e como representação, devem se  satisfazer com a explicação da ascese apenas em seu primeiro momento, fundado  certamente na imediaticidade da intuição e do sentimento; mas, assim, negligenciar-se-ão e tornar-se-ão incapazes de explicar as passagens de Schopenhauer que apontam para  a viabilidade de uma negação completa e acabada da negação da Vontade, pois esta só é  possível pela admissão de uma terceira forma da razão, que comporta uma re-significação da faculdade racional, a saber, como capacidade humana de clarividência.

A razão, em sua primeira forma, limita-se a ser uma faculdade de ter  representações abstratas, representações de representações; em sua segunda forma,  como razão prática, conquista novo significado, nos Aforismos, o de ser um uso  necessário para se alcançar a sabedoria de vida, verdadeira coleção de regras práticas que proporcionam uma vida menos insuportável, “algo preferível à não-existência” 2;  por fim, em sua terceira forma, a ético-mística, eleva-se a razão à função de clarividência, necessária à “viragem completa da Vontade” 3, à “mortificação contínua da Vontade” 4. Movimento ascensional da faculdade racional na crítica schopenhaueriana da razão, ascensão do sujeito do estado de indivíduo volitivo, para o de contemplador desinteressado do mundo na estética, soerguendo-se ao sujeito fortuito negador da Vontade, para enfim realizar-se plenamente como negador total da Vontade na ascese. Ascensão do significado da razão através das passagens da primeira à segunda e, enfim, à terceira forma da razão, paralela à ascensão da negação da Vontade, nas passagens da estética para a ética e, por fim, à mística, ascensão igualmente do sujeito, nas passagens do sujeito enquanto indivíduo para o puro sujeito do conhecimento para, enfim, reencontrar-se e conhecer-se de modo completo como sujeito renunciante da vida. Com isto Debona amarra a crítica das formas da razão à exposição  gradual das mudanças do sujeito e das formas de negação do querer, movimentos  interligados que, assim considerados, dão acabamento à filosofia de Schopenhauer. O  pensamento schopenhaueriano ganha assim clareza em relação à sua estrutura  ascensional, sendo imperativo que passemos a ler a sua filosofia, em sua significação  total, como a filosofia da ascese, em seu conteúdo e em sua forma.

Mas, afinal, o que é a Besonnenheit der Vernunft, esse conceito essencial à  interpretação empreendida por Debona? Trata-se aqui de uma interpretação  incontroversa? Os argumentos do comentador acerca da natureza de tal noção são  irreprocháveis? Devemos comprá-la, tal como ela é explicada por Debona sem  restrição?   Segundo o autor, o conceito de clarividência da razão é condição da liberdade,  uma vez que esta é entendida por Schopenhauer como um ato “possível somente no  homem devido ao seu alcance de uma visão panorâmica da vida, do conhecimento do  todo da vida”, e, assim, condição da própria negação consciente da Vontade:    Dito de outro modo, o asceta, sujeito desse conhecimento, além de portador da liberdade em seu próprio corpo, é detentor de uma clarividência, ou seja, mediante o uso da razão ele tem claro o estado de sua rejeição, sabe que chegou a um estado significativo de negação de uma maneira intencional, insistindo contra seus próprios desejos, embora não tenha tomado isso como uma finalidade e um interesse predeterminados. Nota-se, a partir disso, o elemento que até aqui não havia sido indicado para a afirmação da razão ético-mística, ou seja, se até então se sabia do lado ético (a partir da noção de compaixão) e do lado místico (sobretudo pelos exemplos de ascetas e santos) agora se pode completar com o lado racional a partir da constatação dada pelo filósofo de que mesmo no processo de negação há um papel atuante da razão (p. 119).

Assim, a clarividência da razão é entendida como condição da liberdade, e, nesta  medida, condição da negação consciente da Vontade e, por essas razões, tem de fazer  parte da explicação do processo de negação, e mais, como condição essencial da  consideração completa das formas da razão no pensamento de Schopenhauer. O caráter  racional dessa clarividência é, ademais, facilmente defendido por se tratar de um saber  necessário por parte daquele que alcança a significação última da existência, isto é, a  negação completa e consciente deste mundo. Inseparáveis são, portanto, o aspecto ético,  místico e racional dessa clarividência.

Mas como entender a fundo o caráter racional da clarividência, basta indicar a  necessidade, para a “mortificação contínua da Vontade”, de um saber que é uma “visão  panorâmica da vida”? E o que significa aqui, propriamente, uma “visão”? O termo  clarividência, como tradução de Besonnenheit, não pode trair a significação largamente  racional do conceito? Dito ainda de outro modo, não seria aconselhável depurar o  campo semântico da palavra Besonnenheit, a fim de assim trazer ainda mais à luz o  significado racional da clarividência? Os resenhadores entendem que sim, que o  comentário de Debona teria ganhado muito se tivesse adentrado mais profundamente na  problematização deste conceito fundamental. Neste sentido, cumpriria questionar o  acento demasiado enfático do caráter místico na tradução do termo Besonnenheit por  clarividência. Onde está, afinal, a indicação de um sentido místico na palavra  Besonnenheit? Não é muito mais forte nela a idéia de clareza? Não está dada em sua  origem etimológica, assim como em seu campo semântico, uma união mais estreita com  os conceitos, schopenhauerianos, de Bewusstsein, besseres Bewusstsein, Bewusstseinlos, Selbstbewusstsein, Einsicht, Sichtbarkeit, Spiegel e Gewissen? 5   A falta de um tratamento mais demorado acerca do conceito de Besonnenheit,  com o objetivo de tornar mais claras as suas ligações com os demais conceitos  schopenhauerianos próximos do seu sentido enquanto forma da razão responsável por  uma maior claridade, consciência, reflexão e compreensão, em nada desmerece, todavia,  o belo e rigoroso trabalho de Vilmar Debona, preocupado e bem-sucedido sobretudo na  tarefa de trazer à luz a presença e a importância fundamental de uma terceira forma da  razão no pensamento de Arthur Schopenhauer, a razão ético-mística. Esperamos, sim, a  continuidade da investigação, de modo a esclarecer ainda mais o conceito de  Besonnenheit der Vernunft; mas, enquanto ela não se realiza, aproveitamos a lição dada  até aqui.

V   Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico, o  livro de estreia do jovem especialista Vilmar Debona, tem o poder de tornar a nossa  leitura do quarto livro de O mundo como vontade e como representação mais clara,  profunda e instigante. Leitores, eis o convite para um Schopenhauer mais complexo e  atual.

Notas

1 SCHOPENHAUER, aforismos para a sabedoria de vida, p. 1, apud DEBONA, v. Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico, p. 58.

2 SCHOPENHAUER, Aforismos para a sabedoria de vida, p. 1, apud DEBONA, V. Schopenhauer e as formas da razão, O teórico, o prático e o ético-místico, p. 58.

3 SCHOPENHAUER, Aforismos para a sabedoria de vida, p. 121.

4 SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e como representação, p. 484, apud DEBONA, V. Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico, p. 116.

5 Neste sentido de problematizar a ênfase interpretativa na tradução do termo Besonnenheit, cabe lembrar que o termo aparece traduzido, em português, também por reflexão, cf. Cacciola, M. L. M. e O Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 27.

Referências  

SCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Ed. Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993, 5 vols.

________________. O mundo como Vontade e como representação. Trad. J. Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.   ________________. Aforismos para a sabedoria de vida. Trad. J. Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2002 (Coleção Clássicos).   ________________. Sobre o fundamento da moral. Trad. M. L. Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 2001 (Coleção Clássicos).   BARBOZA, J. Modo de conhecimento estético e mundo em Schopenhauer. In: TRANS/FORM/AÇÃO: Revista de Filosofia / Universidade Estadual Paulista. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, pp. 33-42, 2006.   ________________. Infinitude subjetiva e estética: natureza e arte em Schelling e Schopenhauer. São Paulo: Ed. Unesp, 2005.   CACCIOLA, M. L. M. e O. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: Edusp, 1994.

Glauber Cesar Klein – Mestrando em Filosofia – UFPR.

[DR]

The Historian’s conscience: Australian Historians on the Ethics of History – MACINTYRE (PHR)

MACINTYRE, Stuart. The Historian’s conscience: Australian Historians on the Ethics of History. Melbourne: Melbourne University Press, 2004. 166p. Resenha de: ARROW, Michelle. Public History Review, v.14, 2007.

Working in television making historical programs throughout 2004, my ‘historian’s conscience’ was occasionally troubled and tested by decisions we had to make about the stories we told. Mostly, these decisions were in the name of brevity, and in some ways, this was extremely useful: you cut to the heart of a story very quickly when you are forced to pare it down to its absolutes. Television resists written history’s potential for unruliness, it forces you to get to the point — quickly. While I would stress that I never felt I did anything unethical working in television, I occasionally found myself asking questions, for example, about the way we treated interviewees. Journalists such as Janet Malcolm have written at length about journalistic ethics — that the role of the journalist is to gain someone’s trust and then to betray it. Having to do this, even in small ways, was somewhat of a rude awakening for me.

So you can understand my excitement when I heard that Stuart Macintyre’s followup to the hugely successful The History Wars (co-written with Anna Clark) was a book that promised a series of essays on the ‘ethics of history’. The question of ethics seemed to be an ingenious response to the hullabaloo of the history wars, to deal with some of the issues these debates have raised: what is the purpose of history? What responsibility do historians have to the past and to their present-day readers? These are all big questions that cut to the heart of why and how we write and work with the past.

I looked through the table of contents, hoping to see essays from historians working in a broad array of fields. All historians, academic and public alike, grapple with ethical questions every day. How, I wondererd, do they make difficult decisions that have concrete consequences for our built environment or our public imaginings of our past.

How do historians deal with mistakes in their work? How might the historical profession respond to personal attacks on individual historians that flout professional codes of ethics? How do professional historians deal with political or ethical pressures on their practice? How can historians engage with the media and still feel ethical? How can academics feed community interest in their work but maintain some distinctions about the craft and practice of history? While The Historian’s Conscience has many engaging and challenging essays about history and ethics, it nonetheless disappointed me. Most of the questions I raised above are not directly addressed by the authors of this collection, although there are interesting and thoughtful essays to be found here. The biggest problem with the book is the narrowness of its scope. All contributors are academic historians, writing safely from the position of tenure or retirement. Macintyre notes (more than once) that he sought contributions from public historians but all had to decline his invitation for one reason or another. One has to ask: how hard did he look for contributors outside the academy? For example, we have Graeme Davison writing about his experiences with the National Museum here, but why not ask one of the Museum’s curators to write of their experience of being in the eye of the history wars storm? Why not ask a less well-known professional historian working at the coalface of heritage conservation or community outreach to write of ethical pressures? The close scrutiny of history engendered by the history wars has arguably had a greater impact on public historians because they do not have the luxury of the buffer zone of the academy; they are communicating with people who do not necessarily have a sympathetic ear for historical research. Yet their work is crucial to public understandings of our past. Most people gain their historical understanding not from the works of academic historians, but from the way the work of historians are translated and adapted for a broader audience through professional history, heritage and conservation, family and local history, museums and historic sites and the media. Beverly Kingston writes in her essay that ‘bad history is not life-threatening like a faulty bridge or a wrongly diagnosed illness’ (p83), and she is right, to a point. But if the professional historian or heritage consultant is unable to persuade those in power that a bridge is historically significant, for example, it might be demolished. Bad history does have consequences for our society and environment. But without contributors from public and professional historians, the Historian’s Conscience cannot fully enter into this debate.

The focus on well-known names also conceals some of the other ethical concerns involved in producing history in an era of publish or perish. The fraught process of navigating university ethics committees is of increasing concern to historians: why include not an essay on this vitally important issue? Some contributors — Penny Russell and Beverly Kingston — discuss their research methods and their reluctance to use research assistants. But research assistants are essential contributors to many contemporary history projects. Why not ask one such research assistant to contemplate their role in the production of such history? Stuart Macintyre could have asked Anna Clark to write on her experience of co-writing The History Wars. Macintyre touches on the ‘valuable contribution’ that research assistants can make in the production of histories (p10) but does not extend this to thinking about the ethical issues around these sorts of research collaborations. How historians might, and ought, to relate to each other was one of the central issues of the history wars debate, so it is a shame that this has been left relatively untouched in The Historian’s Conscience.

Nonetheless, one must review the book at hand, not the book one wishes had been written, and The Historian’s Conscience contains many riches, especially the candid, reflective essays of Penny Russell, Marilyn Lake and Iain McCalman. Lake writes of the difficulties of writing history when the sentiments and political outlooks of the Public History Review, vol 14, 2007 154 contemporary age differ from those in the past. This was particularly complicated for her because she sees her ethical obligation as an historian to ‘explain the past — people’s choices and their sense of themselves — to people living in the present’ (p95). Penny Russell explores the relationship of trust that exists between historian and reader in history, a trust she sees as fostered partly by footnotes but mainly by the ‘analytic, interpretive, narrative “voice” of the historian’ (p110) — the historian who has combed the archival record and who is able to tell us what lies there and what it means. Fiona Paisley and Rhys Issac both emphasise the ways in which remembering the past has important contemporary political implications: Paisley through a discussion of finding painful or offensive material in the archives; Issac, intriguingly, through a discussion of the presentation of America’s colonial past at Colonial Williamsburg. John Hirst gives a clear-eyed account of the ways personal circumstances influence the writing of history, outlining how he found new insights into modes of colonial authority whilst parenting an unruly teenager. All these contributors emphasise that good history requires not a disavowal of personal motivations, but honesty, compassion and empathy.

Iain McCalman’s essay is one of the few to explicitly address issues pertaining to history outside the academy and to really underline the very serious issues that are at stake in the history wars debate: In museums, in the media, in the courts and in the universities, professional historians are being required as never before to defend the truth value of our discipline. We must face the brutal reality that it is the public and the government, rather than our own academic peers, whom we must persuade of our social and intellectual worth and who, directly or indirectly, pay for our research. Part of what is at stake in the History Wars is how we are able to assert and defend our authority as expert professionals. (p155) McCalman is right. We do need to persuade the public and government of the value of our research, particularly in an anti-intellectual climate that has grown so florid that Padraic McGuinness can be appointed to the ARC advisory board with barely a word of protest. McCalman writes lucidly of his experience writing history for a mainstream audience. This is surely one of the most urgent tasks for historians — to explain what we do and how we do it to a public that is clearly interested in Australia’s history.

It seems to me that at the heart of the history wars was a sense that academic historians had lost their authority, lost their control over the telling of the national story. I wonder if this loss of authority was because we have, to a great degree, stopped talking to the nation about its past on terms it understands. We have, for the most part, abandoned this ground to filmmakers, heritage consultants and, at the extreme, to the opinion columnists and their cronies. We need to start claiming it back, in both academic Public History Review, vol 14, 2007 155 and public history contexts. The academic rebuttals of Keith Windschuttle’s work that appeared recently are one way to do this. Opening up the academic conversation about history to a broader spectrum of participants is another. The Historian’s Conscience is a good starting point for this but it is not the last word on the questions of ethics raised by the history wars. Let’s hope the conversations continue.

Michelle Arrow lectures in Modern History at Macquarie University and was a historian-presenter on the ABC-TV series Rewind in 2004. Her first book Upstaged: Australian Women Dramatists in the Limelight at Last (2002) was short listed for several prizes, and she won the 2001 NSW History Fellowship.

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Ética para Amador – SAVATER (RTDCS)

SAVATER, Fernando. Ética para Amador. Barcelona: Ariel, 1991. Resenha de: CAMPEROS GARCÍA, Karlin Andrés. Revista de Teoría y Didáctica de las Ciencias Sociales. Mérida, n7, p.277-278, ene./dici., 2002.

Fernando Savater en su libro Ética para Amador nos deja conocer su percepción sobre aspectos muy importantes del arte de aprender y vivir y, tal vez, se refiere, asimismo y quizás más específicamente, a una noción de aprender a vivir. Según Savater, quien trata de escribir su libro de forma amena, sencilla, como si fuera especialmente dedicado a un público adolescente (de hecho, parece un libro escrito de un padre para su hijo), aborda cuestiones importantes y, en muchas ocasiones cotidianas en la vida de todo ser humano, al menos en el mundo occidental.

Sin embargo, uno de los temas que me pareció sumamente interesante, y al cual Savater hace referencia en todos los capítulos de su libro, es el de la libertad de la que gozamos los seres humanos para obrar, pensar, tomar decisiones y vivir. Esta libertad para hacer, relativamente, lo que deseemos se convierte en la principal característica que tenemos los seres humanos que nos diferencia radicalmente de los demás animales y seres vivos que habitan el planeta. Los seres humanos no desempeñamos funciones predestinadas por igual, como por ejemplo lo hacen las abejas, las hormigas (soldado) y otros seres. Los seres humanos estamos en el mundo para ser humanos, lo cual implica intrínsecamente la existencia de diversidad y pluralidad de comportamientos, costumbres, anhelos, percepciones, sentimientos, de los sujetos sociales. Por lo tanto, los seres humanos deben aprender, de forma esencial, lo importante que es la condición de ser humano. También, es de mucha relevancia comprender que el pertenecer a la raza humana implica tratar a las demás personas como seres humanos, independientemente del comportamiento que ellas demuestren hacia nosotros.

Uno de los aspectos a los que Fernando Savater hace referencia en su libro es a la realidad de que los seres humanos merecen vivir como tales: merecen una buena vida. Sin embargo, ¿a qué se refiere el autor cuando habla de merecer y tener una buena vida como seres humanos que somos? La respuesta es ciertamente compleja, pero al mismo tiempo bastante precisa: tener conciencia en la vida y sobre la vida. Este aspecto referente a tener conciencia no se refiere en lo absoluto a percatarse de que la vida se desvanece con la muerte, ni actuar mucho menos de forma azorada por la amenaza constante de fallecer. En la vida, la amenaza y la ansiedad que causa el saber que, de todas formas, vamos a morir, conlleva a que muchas personas entiendan que vivir bien y hacer lo que se desee implica únicamente satisfacer las necesidades más cercanas, más urgentes o lo que se nos presenta de forma fácil y sin esfuerzo. Esto no es vivir con conciencia.

Esto es vivir bajo la angustia constante de morir y de satisfacerse de forma inmediata y con el menor esfuerzo posible para evitar lamentarse por “no haber vivido lo suficiente”.

Vivir bien implica llegar a saber que es lo que realmente se quiere y, de igual forma, conocer, por sí mismo, lo que de verdad nos satisface como seres humanos que habitamos este planeta. La ética es aprender a vivir bien. La ética es hacer lo que de verdad queremos (no las satisfacciones inmediatas), sin olvidar que todas nuestras acciones y todos nuestros comportamientos siempre tendrán influencia fundamental en nuestra vida individual, y no en la vida de los demás (como muchas veces creemos).

Cuando tratamos de dañar al prójimo, muchas veces nos causaremos peores daños nosotros. Hay que recordar (y tratar de hacer de ellos un principio de vida) que debemos tratar a los seres humanos como tales, y que al no hacerlo de este modo, seremos nosotros mismo los que no vamos a conseguir ser tratados en estas condiciones. De igual forma, si no hacemos a otros lo que no queremos que nos hagan, tampoco debemos permitir que nos hagan lo que nosotros seríamos incapaces de hacer a otros, ya que no sería justo ni de razón.

Ética para Amador es un libro que nos enseña la importancia de muchos aspectos de la vida humana que en muchas ocasiones ignoramos por considerarlos carentes de relevancia. Sin embargo, son esas pequeñas (y a la vez grandes) cosas de la vida (la libertad, las decisiones tomadas, las costumbres, los deseos, etc.) lo que hacen que la vida humana sea tal: humana. Lo importante es comprender todos los aspectos que integran la vida humana y no dejar que algunos de ellos nos dominen o afecten de forma negativa e irreversible, lo cual evitaría poder desarrollarnos como sujetos que quieren vivir bien porque se lo merecen, simplemente porque somos humanos.

Karlin Andrés Camperos García – Licenciado en Idiomas Modernos y Estudiante de la Escuela de Educación, Facultad de Humanidades y Educación.

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O parente mais próximo: o que os chimpanzés me ensinaram sobre quem somos | Roger Fouts

Nas últimas décadas, o desenvolvimento do debate sobre o direito dos animais tem levado pesquisadores de todo mundo a refletirem sobre a ética do uso de seres vivos em experimentos científicos. O parente mais próximo: o que os chimpanzés me ensinaram sobre quem somos, de Roger Fouts, leva essa discussão às suas conseqüências filosóficas e morais mais agudas. Embora seja uma magnífica obra de divulgação científica, e tenha ficado umas poucas semanas entre os livros mais vendidos na categoria não-ficção, tudo que é sólido desmancha no ar: atualmente seus argumentos pouco despertam comentários, tanto entre os estudiosos de biologia e antropologia, quanto em outras áreas do conhecimento humano. O pretensioso alvo dessa nota é tentar sacudir o público dessa sonolência.

Produzido em parceria com o escritor de divulgação científica Stephen Tukel Mills, O parente mais próximo narra a trajetória do graduado em psicologia infantil Roger Fouts (e tangencialmente também a trajetória de sua esposa e as dos seus três filhos) desde que ele próprio se engajou no Projeto Washoe, em 1967, como estudante de pós-graduação que almejava ajudar crianças autistas. Washoe é a chimpanzé (Pan troglodytes) que Allan e Trixie Gardener adotaram em 1966 quando o bebê não-humano tinha cerca de dez meses de idade. O projeto: ensinar-lhe uma linguagem de sinais, ao contrário dos severos paradigmas behavioristas, em um ambiente rico em estímulos. Não era exatamente o trabalho que Fouts procurava na época, mas ele tinha que pagar a universidade em que estudava, e Washoe literalmente atirou-se nos braços dele quando o viu pela primeira vez. Leia Mais

A Legitimidade e outras Questões Internacionais: Poder e Ética entre as Nações | Gelson Fonseca Júnior

Em seu livro A legitimidade e outras questões internacionais: poder e ética entre as nações, Gelson Fonseca Jr apresenta artigos resultantes de sua experiência ao longo dos últimos quinze anos como professor de Teoria de Relações Internacionais no Instituto Rio Branco. Sendo assim, o que se pode esperar do livro, e o que o livro realmente trás, é um conjunto de ensaios bastante intrigantes a respeito dos mais variados temas, tendo, contudo, na questão da legitimidade internacional seu ponto central (a ela, Fonseca Jr dedica dois artigos específicos).

Sendo fruto de sua experiência como professor, nada mais natural do que o fato de os textos contidos em A legitimidade assumirem um tom fortemente didático, mantendo Fonseca Jr um estilo que beira a conversação informal da sala de aula, sem, no entanto, perder o ar sério e professoral que marca os seus escritos. Leia Mais