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Estudos Históricos Latino-Americanos: uma avaliação dos últimos 30 anos (1987-2017) / História Unisinos / 2017
Este dossiê integra as comemorações das três décadas de criação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Ele foi concebido, ainda em 2016, tendo em vista marcar, no âmbito da revista História Unisinos, o esforço coletivo de constituição de um Programa voltado aos Estudos Históricos Latino-Americanos como área de concentração.
Da mesma forma como o conjunto dos Programas de Pós-Graduação em História no país, ao longo destes 30 anos, desde 1987, o lugar da América Latina nos estudos históricos brasileiros não pode ser visto como uniforme. Em uma combinação delicada entre inflexões políticas lato senso, políticas acadêmicas e os avanços da disciplina, a América Latina se realiza ao mesmo tempo como uma parcialidade e como uma especialidade. Movimentos oscilatórios que promovem sua integração ou sua dissociação de outros lugares e saberes são reveladores das concepções que crítica ou intuitivamente são estabelecidas acerca dela.
Talvez seja necessário levar em conta, para além das condições nacionais – tanto históricas quanto historiográficas de maneira estrita – alguns eventos, de mais longe alcance, como a reunificação da Alemanha (em 1989) e a dissolução da União Soviética (em 1991), e seus efeitos simbólicos transnacionais para se pensar o lugar da América Latina, inclusive como conceito, em sua apropriação historiográfica mais recente. O peso relativo disso certamente é merecedor de avaliações mais ponderadas do que esta apresentação é capaz de fazer dentro de seus limites.
Ao lado disso, as tensões entre as dimensões específicas e aquelas outras que articulam a detecção do comum nas experiências diversas estão sempre rondando os historiadores em seu labor. A América Latina, neste sentido, pode ser vista, ora como campo de realização da experiência compartilhada, em detrimento do olhar sobre o particular, ora como o lugar interno de um diálogo e de um contato inexistentes. Na segunda opção, no limite, como uma utopia.
Se estas questões já foram pensadas muito tempo antes da curta duração eleita para este dossiê, acreditamos que ela possa ganhar densidade analítica mais recentemente, tendo em vista as diversas contribuições advindas de uma maior abertura de nosso campo disciplinar a outras perspectivas.
Nas últimas décadas, é possível perceber, por exemplo, o abandono de posturas (políticas) sectárias frente às produções historiográficas realizadas por pesquisadores estrangeiros, notadamente ligados a instituições dos Estados Unidos, acerca da realidade histórica latino-americana. Aprendemos, neste caso, que um certo “nacionalismo historiográfico”, se assim podemos denominar, acabou por produzir compreensões menos ricas e complexas da história, tendo em vista limites autoimpostos de apropriação do conhecimento que passam longe de critérios acadêmicos ou epistemológicos. Em uma leitura reducionista, pesquisadores estrangeiros foram vistos como “agentes do imperialismo norte-americano”.
Ao lado dessa abertura, nosso campo de estudos beneficiou-se – e ainda pode colher bons frutos – de uma disposição para dialogar com outros campos disciplinares de maneira mais efetiva e menos retórica. Isso implica, sem dúvida, estar disposto a operar abordagens interdisciplinares ou transdisciplinares quando for o caso. Ou seja, quando a questão de investigação proposta exigir tal aproximação. É sabido que alguns dos temas que hoje fazem parte da pauta do trabalho de pesquisa dos historiadores foram frequentados anteriormente e com proficiência por investigadores de outros campos disciplinares. Desde a história, é preciso que nos perguntemos o que temos a ganhar com isso. Ou melhor, o que o conhecimento histórico pode obter dessa aproximação, tanto em termos teóricos quanto metodológicos. A história indígena em largo espectro e a história das ditaduras recentes, por exemplo, são duas especialidades que certamente podem se beneficiar com esse encontro.
Ainda que os impérios coloniais e as nações não sejam ficções historiográficas, forjar os diversos regionais que se configuram nesses espaços descontínuos e, ainda, no intranacional ou no transnacional, pode se configurar em estratégia metodológica útil para melhor nos acercarmos daquilo que é a particularidade de nosso objeto de estudo. As histórias comparadas e as histórias interconectadas que podem eventualmente emergir desta percepção no trato com as fontes, não é exatamente um caminho usual na historiografia da América Latina, mas que pode ser bastante promissor.
Este não é exatamente um programa de pesquisa, mas essas breves considerações encerram algumas das questões que têm comparecido no debate historiográfico contemporâneo, entre tantas outras que ficaram de fora, e que merecem o empenho de nossa reflexão. Passamos, a seguir, a apresentar os artigos que foram submetidos ao dossiê e que tiveram aprovação dos avaliadores do periódico.
Nosso dossiê inicia com o artigo de Tiago Silva intitulado Comércio e conquista na História das duas Índias do abade Raynal, trabalho em que o autor analisa a Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des européens dans les deux Indes, publicada no ano de 1780, a fim de estabelecer uma reflexão sobre a expansão colonial europeia. Nesse texto famoso, o francês Guillaume-Thomas Raynal (1713-1796) sustentou o que compreendia ser o “papel civilizador” do comércio em contraste com as consequências perniciosas suscitadas por políticas coloniais assentadas na “conquista”, as quais haviam sido criticadas por várias vozes, entre as quais a mais conhecida é a do dominicano Bartolomeu de Las Casas.
O artigo inicia com uma análise dos argumentos por meio dos quais alguns dos mais conhecidos pensadores “ilustrados” no século XVIII elogiaram o papel civilizador e humanístico das trocas comerciais, em contraposição à violência que estava associada às práticas dos impérios de além-mar. Vários percebiam, assim, no comércio, uma via alternativa para o estabelecimento de relações pacíficas (e mais proveitosas economicamente) entre europeus e nativos americanos. Além do mais, as riquezas geradas pela conquista através das armas, desde os impérios antigos, acabavam sendo rapidamente dilapidadas por meio do “fausto bárbaro” e em desfavor da valorização do trabalho e das “artes úteis”. Raynal esposava, como esclarece o artigo, uma visão ampliada do termo “comércio”. Assim, entre os benefícios das trocas comerciais, estaria a ampliação do “conhecimento a respeito da diversidade humana”.
A análise de Tiago Silva, rastreia os argumentos pelos quais o pensador francês acompanhava as concepções de vários pensadores ilustrados sobre este tema, como, por exemplo, os do autor do Espírito das leis, que entendia que o comércio trazia a paz por colocar as nações envolvidas em uma situação de reciprocidade. Raynal defendia, de acordo com o autor do artigo, que quando uma nação usufrui de vantagens comerciais, a guerra não lhe é vantajosa. Assim, segundo Silva, a História das duas Índias foi uma das primeiras obras a operar com a versão moderna do conceito de “civilização” formulado na França na segunda metade do século XVIII.
Desta forma, o artigo realiza uma ótima análise do diálogo de Raynal com outros expoentes do círculo das Luzes, contribuindo para refletirmos, entre outros aspectos, sobre leituras que o colonialismo europeu mereceu por parte dos contemporâneos.
No artigo seguinte, intitulado Para uma nova epistéme do luso-tropicalismo: análise comparativa da luxúria clerical no Atlântico Português (1640-1750), Jaime Ricardo Gouveia reflete criticamente sobre alguns paradigmas que tiveram grande influência na historiografia sobre o Brasil. O autor se refere, em especial, ao luso-tropicalismo e às noções de um “catolicismo à brasileira” e de uma “democracia étnica numa civilização luso-tropical”, cujas matrizes encontra na obra de Gilberto Freyre. Ele propõe que uma abordagem de tipo comparativo1 (considerando outros territórios do império português, como também a metrópole, e as colônias de outros impérios), e uma atenção maior às fontes, permitem a revisão deste corpo de ideias.
A partir de uma pesquisa em arquivos do Brasil e de Portugal, o autor coloca em debate a “especificidade” do caso da colônia brasileira2, e evidencia que a “luxúria clerical” fazia parte da realidade das “duas margens do Atlântico Português”. Com isto, compreende que se deve recusar alguns dados fortemente representados na historiografia brasileira – em teorias que ele chama de luso-tropicalistas –, segundo os quais a lascívia presente na sociedade colonial seria o resultado da natureza e do meio ambiente, constituindo-se, por consequência, em uma realidade exclusivamente colonial. O autor refuta, de fato, a própria ideia de uma especificidade da colonização portuguesa (que ele denomina de alteridade lusotópica) baseada na questão do relacionamento interétnico.
Outro elemento desta interpretação, também revisado pelo texto, é o de que o relaxamento nas condutas do clero colonial se via favorecido pela inoperância intencional das estruturas de vigilância e disciplinamento. Segundo esta interpretação, recusada pelo autor do artigo, a não aplicação dos decretos tridentinos no Brasil seria parte de uma estratégia política imperial destinada a estimular, junto com a prática do “desterro”, o incremento populacional.
Sob este aspecto, o trabalho discute com autores como o celebrado estudioso dos impérios ultramarinos modernos, Charles Boxer. Segundo Gouveia, ainda que Boxer tenha dedicado pouca atenção à questão religiosa nas sociedades coloniais portuguesas em suas obras, ele sugeriu que as autoridades metropolitanas teriam preferido, no Brasil e África coloniais, um clero inferior e imoral a sua inexistência. Outro estudo que merece sua atenção é o de Stuart Schwartz que, embora reconheça a existência de dispositivos de controle sobre os religiosos desde o início da colonização da América portuguesa, conclui que as Índias ofereciam oportunidades de “um apetite sexual desenfreado de laicos e padres”, ancoradas na existência de grandes populações mistas, nas distâncias e menor capacidade de controle das instâncias inquisitoriais, entre outros elementos.
Segundo o artigo, estudos atuais no Brasil e em Portugal têm chegado a novas conclusões, valendo-se do trabalho com fontes eclesiásticas originais, às quais, como sugerido pelo autor, devem ser submetidas a análises “contrastivas” e “comparativas” com a realidade da metrópole e de outros territórios do império ultramarino português. Para o caso brasileiro, a pesquisa de Gouveia encontrou uma teia de agentes da justiça episcopal – como párocos, confessores, pregadores, visitadores e missionários -cooperando com a Inquisição para promover a catequese e manter vigilância sobre as condutas morais da sociedade.
Assim sendo, a análise “poliédrica” dos casos estudados pelo pesquisador, e que convidamos os leitores a apreciar, permite que ele conclua não apenas que na colônia brasileira existiam mecanismos e agentes judiciais eclesiásticos de vigilância e disciplinamento. E, ainda, que esta não era uma realidade exclusiva do Brasil, pois se verificava, também, na metrópole, onde os índices de luxúria eram igualmente altos, o que o leva a refutar amplamente o “luso-tropicalismo”.
Os próximos artigos deste dossiê se voltam à análise da historiografia relativa aos povos nativos americanos, trazendo para o debate, entre outras coisas, o processo de invisibilização e silenciamento que costumou acompanhá-los, bem como o que se escreve sobre os indígenas e o que é escrito por indígenas.
História, historiografia e historiadores mapuche: colonialismo e anticolonialismo em Wallmapu é a contribuição de Sebastião Vargas para este objetivo, em artigo que, podemos dizer, apresenta dois momentos. No primeiro, o autor analisa a produção de intelectuais indígenas no panorama acadêmico latino-americano; no seguinte, avalia a contribuição aportada, neste âmbito, por historiadores mapuche. O objetivo da reflexão proposta é, esclarece o autor, difundir os trabalhos da corrente da história indígena latino-americana “que emerge da ‘periferia da periferia’”.
De fato, não é difícil reconhecer o protagonismo político e cultural de vários movimentos étnicos recentes de protesto social na América Latina, os quais são acompanhados, de acordo com Vargas, de “uma discursividade própria, que tenta colocar um fim na tutela e mediação externa”. Tal “discursividade própria” resulta do trabalho de “intelectuais indígenas”, definidos como “sujeitos relativamente novos”, especificados pela sua formação acadêmica. Para Sebastião Vargas, as elaborações discursivas resultantes aparecem marcadas por uma “evidente centralidade” da História “quaisquer que sejam as disciplinas onde os distintos autores se domiciliam”, qualidade que percebe como tributária de um conteúdo encontrável no discurso de todos eles, qual seja, “a afirmação de um vínculo colonial entre as sociedades indígenas e os Estados nacionais latino-americanos”, levando-os a refletir sobre as continuidades e mutações do colonialismo, assim como sobre as estratégias para sua superação.
A partir de tais definições, o autor se debruça sobre um conjunto de historiadores articulados em torno da autodenominada Comunidad de Historia Mapuche (CHM), refletindo sobre suas temáticas de maior interesse, principais referenciais teórico-metodológicos e propostas epistemológicas. Como demonstrado por Vargas, os trabalhos destes historiadores buscam contribuir para a reinterpretação da história mapuche, e para a “reconstrução identitária” da sua nação, explorando possibilidades epistemológicas abertas pelo diálogo entre o pensamento acadêmico e a sabedoria étnica. Tais historiadores questionam a neutralidade das historiografias oficiais latino-americanas e propõem um debate crítico sobre as condições do ensino de História e do trabalho do historiador nas mais variadas instâncias.
Entre muitas outras importantes contribuições, o artigo ainda informa sobre os diálogos deste grupo com pensadores da africanidade (e seu conceito de colonialismo internalizado), com historiadores como o maia kakchikel Edgar Esquit (e seu conceito de contrahistorias), com o mexicano Pablo González Casanova (por suas teorizações sobre as dimensões do colonialismo interno), e com autores ligados a correntes marxistas como, por exemplo, Eric Wolf (e sua concepção de “povos sem história”), entre outros.
Assim, para Sebastião Vargas, estes pensadores indígenas atuam no sentido de denunciar “o caráter monolítico do cânone epistemológico ocidental”, de reclamar contra o “colonialismo inerente às ciências humanas praticadas na América Latina”, ao mesmo tempo em que demandam o reconhecimento da validade de outros modos de conhecimento, e das potencialidades do “pensamento indígena”.
Por sua vez, o artigo de Maria Cristina dos Santos analisa os percursos da produção acadêmica dos últimos trinta anos em torno do tema dos “indígenas na História”. Caminhos historiográficos na construção da História Indígena articula, para isto, o exame da produção, na área, sobre o continente em geral, e a observação mais próxima do Paraguai colonial, área de especialidade da autora3.
De acordo com a pesquisadora, uma série de situações vividas pelos países latino-americanos neste período – “a redemocratização, a promulgação de novas Constituições, as comemorações dos 500 anos dos descobrimentos, dos centenários das Independências, ou ainda, as possibilidades de acesso dos indígenas ao Ensino Superior, com a consequente produção de conhecimento sobre suas culturas” – impactaram as ‘histórias indígenas’ produzidas no âmbito americano, recomendando a necessidade de análises do tipo que o artigo se propõe a fazer.
Segundo Santos, a construção da historiografia recente em torno da questão indígena deu-se a partir das contribuições da Arqueologia, da Etnologia e da História, encontrando seu ponto de articulação na Antropologia. Por isso, ela procurou centrar a reflexão “na forma como foram incorporados os estudos, temas e conceitos antropológicos na análise histórica, gerando caminhos paralelos no desenvolvimento historiográfico da História Indígena”. Tal exame foi elaborado em torno de três blocos, em que o artigo buscou dissecar as intersecções de perspectivas teóricas e metodológicas, bem como as ênfases temáticas estabelecidas a partir das diferentes vinculações entre Antropologia e História.
O primeiro deles, “História dos Índios”, reuniu publicações realizadas a partir de uma relação transdisciplinar entre Antropologia e História, a qual, compreende a autora, se pautaria em contribuições do estruturalismo “como ferramenta problematizadora das questões apresentadas na documentação histórica com indígenas”. Santos rastreou, nesta parte do trabalho, as origens dos estudos chamados “etno-históricos”, bem como as condições em que eles fizeram seu ingresso, na década de 1980, entre importantes autores no Paraguai e Argentina. Refletindo sobre o reconhecimento institucional conferido aos estudos abrigados sob esta denominação na Argentina, o texto destaca o surgimento da Sección de Etnohistoria (1984) na UBA, e a criação da revista Memoria Americana – Cuadernos de Etnohistória, em 1991, contrariamente ao ocorrido no Brasil, em que a Etno-história não obteve, na mesma época, igual consideração.
Ainda neste segmento do texto, que merece atenção substancialmente maior que os outros dois blocos, Santos localiza uma “virada epistemológica” ocorrida depois de 1992 e que, em nosso país, foi fortemente marcada pela coletânea “História dos índios no Brasil”, organizada por Manuela Carneiro da Cunha. Neste trabalho, recorda, a expressão Etno-história foi substituída por “História dos Índios”.
Merece especial consideração, ainda, o trabalho de Viveiros de Castro em que este autor evidencia a importância da percepção dos “condicionantes da ação da estrutura desde o passado até o presente”, sem que isto signifique tomá-la como uma “história inconsciente que condenaria os indígenas a marionetes no mundo colonial”. Ao contrário, a articulação entre estrutura e evento, se bem ponderada, revelaria, para Santos, que eles vêm a ser “os verdadeiros sujeitos naquelas circunstâncias, na medida que põem em funcionamento suas perspectivas relacionais durante o contato”. Para que isto seja possível, a autora advoga abrirmos “mão de conveniências metodológicas que buscam amenizar as divergências teóricas: buscar outras fontes além dos tradicionais documentos escritos – mesmo que escritos por indígenas – produzidos pela história ocidental”.
O bloco seguinte, “Uma História para os Índios”, dissecou um grupo de publicações produzidas por meio de novos objetos da pesquisa que mostram, ainda nos anos 80, o impacto da renovação introduzida pelos Annales na historiografia. Seria sob a inspiração desta Escola que vários trabalhos procuraram trazer os indígenas para o centro das análises históricas. Isto teria ocorrido em estudos que buscam “a identificação da ‘longa duração’ através de diversas tramas presentes nos contextos coloniais que contavam com indígenas e europeus”. Os trabalhos que estão reunidos neste bloco apresentariam outra característica comum importante, ao não comungar com as análises que colocam os indígenas como “resistentes” ao processo colonial, ou como vítimas inermes do mesmo. Santos recorda que a “história das mentalidades” e a “história cultural” trouxeram os indígenas para a cena histórica por meio de um conjunto de objetos de estudo “até então só utilizados nas análises da sociedade ocidental”, tais como o cotidiano, a religiosidade, o medo, a festa, entre outros.
Em “Os Índios na História” a atenção da autora se volta às publicações cuja pesquisa documental está em consonância com a Antropologia, buscando situar os indígenas como sujeitos conscientes da história vivida no mundo colonial tanto quanto descolados da análise estruturalista. A autora discute, neste momento, a crítica que a Etno-história começou a receber, sobretudo na Argentina, como campo de conhecimento dedicado exclusivamente aos grupos indígenas. De acordo com a autora, este fato está associado à emergência de novas identidades étnicas europeias. Paralelamente, afirma, conceitos como “mestiçagem e etnogênese”4 adquiriram um significado para além das fronteiras das comunidades indígenas latino-americanas, comprovando “iniciativas de reafirmação de autorreconhecimento étnico”. Tal historiografia, “que busca uma determinada aliança com a Antropologia, evidencia que os indígenas fizeram parte da História, sob determinadas condições. Neste caminho, encontrar-se-ão documentos históricos que comprovarão a presença e a participação de indígenas em diferentes contextos”. Entretanto, ela lamenta que, se com isto os indígenas puderam chegar ao centro das atenções dos historiadores, tenha sido necessário que fossem “‘desconectados’ de uma possível estrutura ordenadora das vidas e reações”.
Os dois artigos seguintes se voltam para a região platina. O primeiro deles, “Levantamiento bajo Cárdenas”: novas abordagens em torno do conflito antijesuítico no cabildo de Assunção em 1649, de Fernando V. Aguiar Ribeiro, trata de um tema clássico da historiografia colonial do Paraguai. O tema interessa também particularmente aos especialistas em questões ligadas à ação da Companhia de Jesus na América, em especial, à expulsão dos inacianos de Asunción em 1649, depois que seu desafeto, o bispo Bernardino de Cárdenas, foi escolhido governador do Paraguai em um “cabildo abierto”. No artigo seguinte, Vitor Isecksohn explora a relação entre a Guerra do Paraguai (1864-1870) e o processo de construção do Estado e centralização do poder na Argentina, refletindo sobre como, entre os efeitos imprevistos do conflito, esteve o reforço da autoridade central naquele país.
Em “Levantamiento bajo Cárdenas”, Aguiar Ribeiro inicia seu trabalho recordando o quanto as interpretações tradicionais do movimento conhecido como Rebelión Comunera marcaram a reflexão sobre “a identidade e a construção histórica do Paraguai”. Efetivamente, pode-se dizer, de forma simplificada, que as explicações sobre este acontecimento costumam girar em torno de dois polos. Um deles centra sua atenção nas motivações pessoais de Cárdenas (que seria opositor acérrimo dos inacianos, nutrindo ressentimentos contra eles, “ajustados” em 1649), e em sua liderança na condução dos acontecimentos; o outro destaca o “caráter popular” do levante, inclusive assinalando sua condição de “precursor” das revoluções independentistas.
Este último conjunto de trabalhos associou o “ideal comunero” a um princípio de “defesa da liberdade” e “autonomismo” dos paraguaios, enquanto que a primeira perspectiva, correspondendo a uma “visão revisionista do passado”, destacou-se pela exaltação da figura de Cárdenas e do caráter heroico dos comuneros, em sintonia com o destaque conferido aos “líderes fortes” na formação histórica do Paraguai. Para o autor do artigo, tal debate, que esteve na origem da historiografia paraguaia (marcada, segundo o autor, pelo “ensaísmo” e “debilidade heurística”), veio a se constitutir em um entrave ao desenvolvimento de novas problemáticas de análise.
Outra perspectiva, formada mais contemporaneamente, envolveu uma interpretação ligada ao processo econômico paraguaio. Como sabemos, frustrados os sonhos de que ela abrigasse riquezas minerais, a Província desenvolveu sua economia em torno de elementos pouco atrativos para a comércio colonial, apresentando uma realidade marcada pela estagnação e isolamento. Relativamente a isto, o autor debate com algumas obras que associaram a rebelião comunera ao descontentamento com o fato de os jesuítas controlarem, por meio de suas reduções, boa parte da força de trabalho representada pelos guaranis. A esta fonte de fricção se somava o fato de que a graúda exportação de erva-mate pelos pueblos jesuítico-guaranis era percebida pelos colonos como causa da deterioração dos seus preços. Além do mais, os religiosos seriam favorecidos neste negócio pelas redes de relacionamentos que manejavam, em detrimento dos hispanocriollos.
Aguiar Ribeiro discorda da relação comumente apresentada entre a disputa pela mão de obra guarani e a revolta comunera. Analisando a Relación de las encomiendas del Paraguay (1674), ele conclui que foi pequeno o número de encomenderos que participaram da escolha do bispo Cárdenas para assumir o governo, razão pela qual sustenta ser preciso encontrar outra explicação para a crise aberta com esta eleição. Como o leitor poderá ver no trabalho, o autor discute as interpretações mais frequentes sobre o conflito, que costumam localizar na questão do acesso à mão de obra indígena o cerne do conflito. Não muitos encomenderos, afirma, “atuaram na eleição de Cárdenas […] e pouco contribuíram para a sustentação de suas políticas, com destaque à expulsão dos padres jesuítas em 1649”. Para o autor, foi especialmente a “ação política” do bispo, buscando uma maior ingerência frente aos povoados missioneiros e, inclusive, a secularização das paróquias, a fonte de desacordo com os jesuítas5. Por sua vez, os vecinos teriam visto em Cárdenas um poderoso aliado na luta contra a consolidação do sistema de reduções.
Buscando uma outra interpretação destes fatos, Aguiar Ribeiro sustenta que a partir do início do século XVII, através das rotas fluviais, ligando os ervais, Assunção, Córdoba e Buenos Aires, e das rotas terrestres, com destaque para o caminho de Tucumán, que ligava Potosí ao porto bonaerense, a região paraguaia integrou-se a um circuito econômico regional que possibilitou que os vecinos da capital tomassem consciência de sua situação de pobreza frente a outras regiões. Para ele, isto difere da interpretação corrente sobre a pobreza e isolamento da província, “pois não trata da quantificação da produção econômica, mas sim da percepção da população em comparação a outras regiões”, sendo que eles atribuíam aos jesuítas esta suposta condição.
A interpretação do autor para o movimento comunero, desenvolvida no artigo que compõe o presente dossiê, é a de que Cárdenas teria contribuído para galvanizar um “sentimento antijesuítico”, que, para além de interesses econômicos imediatos, como aponta a historiografia recente, se relaciona com um sentimento que conferia à Companhia de Jesus as causas da “pobreza do Paraguai”.
A importância da Guerra do Paraguai (1864- 1870) para o processo de centralização do Estado nacional argentino é o tema do artigo seguinte, uma contribuição de Vitor Isecksohn para este número da História Unisinos. No artigo que aqui apresentamos aos leitores, Isecksohn discute a possibilidade de compreender-se este conflito como o complemento da longa guerra civil argentina6, tanto quanto como uma guerra externa. Como lembra o autor de A Guerra do Paraguai e a unificação argentina: uma reavaliação, ainda que o regime rosista e a Confederação que o sucedeu tenham proporcionado “experimentos úteis de convivência” entre Buenos Aires e as províncias, a ideia de um Estado unitário enfrentava forte oposição dos partidários do federalismo, pelo que “os arranjos estabelecidos até a década de 1860 falharam na tentativa de estabelecer um consenso mínimo sobre uma união estável entre as províncias e grupos regionais”.
Assim sendo, o processo de construção do poder público enfrentava a necessidade de desarticular as forças federalistas que, por várias razões, resistiam à nova ordem que se fundava na Argentina republicana. A coleta de impostos e o recrutamento militar eram problemas evidentes e que, como analisa Isecksohn, incidiam diretamente no esforço de guerra. O artigo se apresenta, desta maneira, como uma excelente contribuição historiográfica, justamente no sentido de evidenciar como a Guerra da Tríplice Aliança contribuiu para a atração e submissão à esfera centralizadora, das lideranças provinciais. Tal subordinação teria se dado especialmente através do recrutamento militar e da repressão às oligarquias dissidentes.
A proposta de Vitor Isecksohn, portanto, se afasta da concepção tradicional de que a mobilização militar contribui para a desagregação dos Estados beligerantes, para desenvolver uma ideia contrária a esta. Isto é, de que a atividade guerreira contribui para acelerar o processo da construção do Estado. Para ele, o caso da Guerra do Paraguai se mostra especialmente fecundo para uma reflexão desta natureza, na medida em que comportou a presença de forças brasileiras na província de Corrientes, base de operações para a invasão do Paraguai7. O conflito trouxe, também, “uma mudança na escala do uso da força, produzindo transformações que afetariam o frágil equilíbrio entre Buenos Aires e as províncias, redefinindo o mapa institucional da Argentina”.
Entre outras conclusões do trabalho, está a ideia de que as circunstâncias da campanha forçaram o governo imperial brasileiro a reforçar a autoridade central argentina na região. Desta maneira, ocorreu uma colaboração das forças brasileiras para o reforço da autoridade de um adversário tradicional, o que veio a ser “um efeito não antecipado do esforço de guerra”.
Finaliza o dossiê o artigo de Hernán Ramiro Ramirez, intitulado Develando las dictaduras del Cono Sur: reflexiones en torno a sus abordajes. Neste texto, o autor empreende um esforço de interpretação das diferentes perspectivas de análise das ditaduras do cone sul, contemplando, neste debate, autores associados a distintos campos disciplinares e filiações teórico-metodológicas, e cujas obras foram produzidas em temporalidades também bastante variadas, a partir da década de 1960 até os dias de hoje. Assumindo o ensaio como forma, Ramirez se dedica a discutir, entre outras questões polêmicas acerca da historiografia das ditaduras na América Latina, a natureza ou o caráter dos governos implantados por golpes de Estado, bem como a duração que os mesmos tiveram em seus respectivos países. Traz exemplos, em especial, da historiografia sobre as ditaduras da Argentina, do Brasil, do Chile e do Uruguai, destacando tanto autores nacionais quanto estrangeiros. Propõe um conceito amplo de historiografia, no qual cabem não apenas a produção acadêmica estrita, mas escritos advindos de outros lugares de produção e que contribuem, a sua maneira, para o estudo da temática. Ramirez traz ainda ponderações acerca do uso da expressão “Terrorismo de Estado” e “Estado de Segurança Nacional”, apontando para as insuficiências destes termos no intuito de dar conta da experiência ditatorial como um todo. Em contraponto, sinaliza para a importância de se buscar perceber a dimensão cotidiana vigente nesses países, apesar (e no interior mesmo) destes regimes. Finaliza o texto chamando a atenção para a escassez de estudos comparativos sobre as ditaduras, “disponiéndose así análisis que terminan obedeciendo mucho más a las lógicas de las academias nacionales de lo que aquellas que dicen al curso del proceso”. Ao lado de outras avaliações críticas realizadas recentemente, o artigo de Ramirez oferece uma importante contribuição para se (re)pensar um tema tão urgente e sensível para a historiografia do continente.
Desejamos a todos uma boa leitura.
Notas
1, O artigo se detem na análise das ações de controle e disciplinamento da luxúria clerical na colônia brasileira, efetuando comparações pontuais com a situação metropolitana. Para tanto observou especialmente as situações envolvendo o delito de “solicitação” ao longo de um período de pouco mais de um século (1640 e 1750).
2. Segundo ele, estudos sobre outros espaços coloniais, como os impérios britânico e espanho, também encontram na sexualidade desregrada elementos de uma política imperial de incremento da colonização e aculturação. A partir de argumentos do mesmo naipe do “luso-tropicalismo”, portanto, tais estudos representariam posições próximas de um “anglo-tropicalismo” ou de um “hispano-tropicalismo”, apenas sem supô-lo como uma realidade exclusiva das respectivas colônias. Assim sendo, embora sejam importantes para ajudar a demarcar o equívoco da noção de especificidade da colonização portuguesa neste âmbito, tais estudos também se enganam, esclarece ele, ao não reconhecer a existência e importância da ação de estruturas judiciais eclesiásticas de vigilância e disciplinamento da sociedade
3. É importante esclarecer que o esforço da autora se volta especificamente para a análise de obras e artigos publicados, asbtendo-se de avaliar dissertações e teses. Ela também elucida que sua análise desta produção não obedece recortes cronológicos ou disciplinares.
4. Estes conceitos tiveram particular reconhecimento a partir dos estudos de Guillaume Boccara para explicar como os indígenas Reche do período colonial, se transmutaram nos atuais Mapuches, contribuindo para “superar problemas oriundos da confusão entre os conceitos de estrutura e identidade étnica”.
5. Em 1639, o bispo Bernardino de Cárdenas iniciou uma série de visitas pastorais às missões do Paraguai com o objetivo de aplicar nelas a delegação que lhe era concedida pelo Patronato Régio, de nomear párocos, tanto em paróquias urbanas como em missões religiosas. Como resposta a isto, os inacianos, com apoio do governador Gregorio Hinestrosa, expulsam-no em 1644. A partir daí torna-se aberta a oposição entre os jesuítas e Cárdenas, que regressa para Assunção em 1648, depois de ter sido anulada a medida de sua expulsão da província.
6. Como sabemos, a unidade territorial argentina permaneceu sendo muito precária ao longo de boa parte do século XIX, com as forças provinciais manifestando forte capacidade de resistir à interferência do poder central.
7. Outra questão instigante levantada pelo autor diz respeito à clara aproximação cultural entre as províncias de Corrientes e Misiones, e o Paraguai. Boa parte da população tendia a perceber a guerra como uma questão entre o Paraguai e o Brasil. Com exceção de Corrientes, que sofreu as consequências da ocupação, onde houve pouca revolta contra as ações guaranis, geralmente identificadas como hostis aos brasileiros. Nesta Província, além disso, as forças brasileiras, desempenharam papel de “aliado interno” do governo de Bartolomeu Mitre, uma vez que tiveram que desarticular uma possível revolta. Neste intricado panorama que refletia dificuldades internas e relações externas da república argentina, há que se considerar, ainda, que províncias como La Rioja e Catamarca se constituíam em outra fonte de dificuldades, pois contavam com apoio chileno, “numa aliança informal que apontava para a forte conexão entre as revoltas internas e as relações transandinas”.
Barbara Weinstein – New York University
Cláudio Pereira Elmir – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina.
Maria Cristina Bohn Martins – Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Maria Lígia Coelho Prado – Universidade de São Paulo
Organizadores do Dossiê
WEINSTEIN, Barbara; ELMIR, Cláudio Pereira; MARTINS, Maria Cristina Bohn; PRADO, Maria Lígia Coelho. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.21, n.3., setembro / dezembro, 2017. Acessar publicação original [DR]