Imprensa feminina e feminista no Brasil: século XIX – Dicionário Ilustrad | Constância Lima Duarte

Excluídas de uma efetiva participação na sociedade, da possibilidade de ocuparem cargos públicos e do acesso à educação superior, as mulheres do século XIX estavam, majoritariamente, circunscritas ao espaço privado (TELLES, 1997, p. 408). Além disso, estavam constritas por enredos de arte e ficção masculinas que reforçavam a idealização das mulheres em seus papéis familiares, como mães amorosas, esposas virtuosas e filhas dedicadas. Contudo, também foram muitas as mulheres que conquistaram o território da escrita, superando a “tirania do alfabeto, tendo primeiro que aprendê-lo para depois deslindar os mecanismos de dominação nele contidos” (TELLES, 1997, p. 410).

O livro de Constância Lima Duarte conduz o leitor pelo cenário multifacetado da imprensa destinada ao público feminino no Brasil do século XIX, no qual emergiram tanto discursos legitimadores do status quo patriarcal, quanto posicionamentos incisivos em prol da ampliação de direitos. Fruto de um extenso trabalho de pesquisa, a obra reúne 143 títulos de revistas e jornais que circularam ao longo daquele século, independentemente de terem sido escritos e dirigidos por homens ou mulheres e se identificarem ou não com o ideário feminista. A proposta da autora proporciona um olhar abrangente acerca da condição da mulher, de sua formação intelectual e da construção cultural e discursiva de sua identidade na sociedade brasileira oitocentista. Leia Mais

Brasil: uma biografia – SCHWARCZ et. al (EH)

SCHWARCZ Lilia diariodocentrodomundo com br Uma biografia

SCHWARCZ L. STARLING H Brasil Uma biografia Uma biografiaSCHWARCZ, Lilia; Starling, Heloisa. Brasil: uma biografia. 2015. Companhia das Letras, São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Resenha de: MAIA, João Marcelo Ehlert. Existe o Brasil? desafios de uma biografia da nação. Estudos Históricos, v.28 n.56 Rio de Janeiro July./Dec. 2015.

Nunca foi fácil contar a História do Brasil. Afinal, esse país vasto, desigual e permeado de trocas culturais violentas e criativas sempre se mostrou insubmisso aos seus melhores intérpretes. Mas, em um momento no qual a intensa especialização universitária combina-se a um processo de democratização política e social que pluralizou a ideia clássica de Nação, a tarefa tornou-se ainda mais complexa. Apenas por esse motivo já seria importante saudar o lançamento de um livro como Brasil: uma biografia, escrito em conjunto por Lilia Schwarcz e Heloisa Starling. O livro, porém, também é muito bom, o que justifica a ingrata missão de resenhar em no máximo 8 mil caracteres (com espaços!) um livro cujo objeto é apenas o país.

Como se sabe, existe um mercado para livros de História não acadêmicos no Brasil, mas ele tem sido ocupado, de forma geral, por obras escritas por jornalistas ou comentaristas políticos, com algumas exceções recentes (Aarão Reis, 2014). Schwarcz e Starling são não apenas duas pesquisadoras de ponta em suas respectivas áreas, mas também intelectuais preocupadas com a dimensão pública do conhecimento. A primeira tem tido papel relevante na editora Companhia das Letras, organizando coleções que procuram apresentar um panorama atualizado e rico das grandes interpretações do Brasil, ao passo que Starling é uma liderança nos projetos sobre história republicana, atuando também na Comissão Nacional da Verdade. Ambas têm suas trajetórias associadas ao GT de Pensamento Social no Brasil da ANPOCS, espaço dos mais tradicionais e criativos da área, que se notabiliza pelo investimento na pesquisa sobre as tradições culturais e intelectuais nacionais. Assim, é natural que tenham pensado esse projeto a partir do entrecruzamento entre experiência acadêmica, liderança intelectual e visibilidade na esfera pública, produzindo como resultado uma obra que se vale da melhor produção acadêmica disponível, apresentada em um texto acessível aos não iniciados e complementado com grande diversidade de fontes primárias (o livro apresenta logo no início a longa lista de arquivos consultados). A aposta foi bem-sucedida, e ainda hoje Brasil: uma biografia figura nas listas dos livros mais vendidos de não ficção.

A obra tem 18 capítulos distribuídos em quase 800 páginas, que cobrem do período da colonização à transição pós-ditadura militar. Há também seções com imagens, sejam elas retratos, pinturas, documentos e fotografias, e as autoras mostram habilidade ao mobilizar essa iconografia de forma não simplesmente ilustrativa. Cada capítulo dialoga intensamente com a historiografia acadêmica, que é apresentada no anexo por meio de notas de fim, embora esse diálogo tenha resultados diferentes em cada seção. Assim, os capítulos sobre o século XIX têm como ponto alto a conversa com a História Intelectual e Conceitual, o que permite ao leitor não especializado um conhecimento maior sobre os significados de termos como “pacto”, “federação” e “Império”. Já o capítulo sobre escravismo bebe significativamente da fonte da História Social da Escravidão, área na qual a historiografia brasileira tem sido extremamente prolífica e competente. Esse capítulo, em especial, tem forte teor analítico, como se as autoras tivessem conscientemente optado por esmiuçar toda a mecânica violenta do racismo à brasileira, fenômeno que muitos ainda insistem em subalternizar no debate público. Já os capítulos sobre o período republicano (do 13 em diante) parecem privilegiar uma abordagem mais próxima da História Política, e é possível que leitores especializados sintam falta de um diálogo com a História Social do Trabalho mais recente, que vem investindo nos cotidianos dos “mundos do trabalho” para além da discussão sobre o trabalhismo consagrada na obra clássica de Angela de Castro Gomes.

A estrutura narrativa reflete a escrita a quatro mãos, e tem oscilações interessantes. Se alguns capítulos têm um tom analítico, próprio da linguagem acadêmica, outros (em especial o capítulo 4, intitulado “É Ouro!” e dedicado à formação do complexo minerador na atual região de Minas Gerais) têm forte sabor narrativo, com a apresentação quase romanesca de personagens reais extraídas das fontes históricas. É possível que alguns leitores mais críticos se incomodem com o desequilíbrio formal, mas penso que a diversidade de formas atende à diversidade de objetivos. Afinal, em um momento em que ainda se discute a sério a existência de racismo no Brasil, é uma tarefa político-pedagógica martelar no leitor desavisado toda a riqueza informativa e interpretativa produzida pela Historiografia.

O saldo da empreitada é muito positivo. Gostaria, porém, de destacar dois grandes desafios colocados para qualquer biografia do Brasil hoje: o primeiro relaciona-se com a própria ideia de uma biografia nacional, e o segundo diz respeito às tensões entre as chamadas “interpretações do Brasil” e a emergência de novas narrativas sobre o “Brasil” construídas a partir de perspectivas historicamente subalternas.

Sabemos que a sociologia e a historiografia discutem há tempos as armadilhas contidas no método biográfico (Bourdieu, 1996). Afinal, ao pensarmos a história de um indivíduo como uma biografia, arriscamo-nos a construir uma narrativa por demais dotada de sentido e de coerência, apagando o que seriam os acasos e as contingências que modelam as trajetórias. Mais recentemente, vem-se enfatizando a dimensão transnacional de processos que se pensava serem facilmente enquadrados num âmbito exclusivamente nacional ou mesmo regional (Subrahmanyam, 1997), o que põe em questão a possibilidade de uma biografia de uma Nação. Aliás, antes que termos como “História Global” virassem moda intelectual, um historiador como Luiz Felipe de Alen castro (2000) já argumentava que é impossível entender o tráfico negreiro moderno sem tomar como unidade analítica o Atlântico Sul, e não o Brasil. Isto é, a escravização de milhares de africanos em terras tidas como brasileiras não poderia ser entendida como decorrência de uma dinâmica histórica nacional, já que os nexos que explicam esse fenômeno articulariam a costa oeste africana a alguns portos e espaços no litoral brasileiro, mas não todo o território que hoje conhecemos por “Brasil”. Assim, uma primeira questão interessante seria: como uma biografia nacional pode dialogar com a necessidade de abordarmos a dimensão transnacional de processos e fenômenos que nos construíram?

O segundo desafio refere-se ao surgimento de novas formas de falar sobre o objeto “Brasil” que questionam o lugar de discurso dos setores letrados e a ideia de identidade que acompanha a formação do Estado-Nação. Essas novas formas podem ser sintetizadas por uma resposta dada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro quando confrontado com a clássica pergunta “O Brasil tem jeito?”, em edição recente da revista Cult.

O Brasil não existe: o que existe é uma multiplicidade de povos, indígenas e não-indígenas, sob o tacão de uma elite, corrupta, brutal e gananciosa, povos unificados à força por um sistema mediático e policial que finge constituir-se em um Estado-Nação territorial. Uma fantasia sinistra. Um lugar que é o paraíso dos ricos e o inferno dos pobres. Mas entre o paraíso e o inferno, existe a terra. E a terra é dos índios. E aqui todo mundo é índio, exceto quem não é (Viveiros de Castro, 2015).

A frase contém certo tom apocalíptico, mas traduz um sentimento disseminado sobre o possível esgotamento da forma nacional e seus avatares, entre os quais as próprias “interpretações do Brasil”, geralmente produtos do olhar de uma camada letrada sobre um Outro desprovido dos meios materiais e simbólicos de representação. Afinal, não se trata de incluir esses grupos na biografia nacional, tarefa brilhantemente feita pelas autoras, mas de inquirir sobre outras possibilidades narrativas construídas à margem das clássicas interpretações do Brasil e pelas mãos e vozes de outros setores.

As autoras, é claro, estão cientes dos dois desafios aqui levantados, e lidam com eles de forma inteligente. Logo na introdução, afirmam explicitamente que “não querem fazer uma história do Brasil, mas fazer do Brasil uma história, dentre outras”. Esta afirmativa sagaz é a bússola de todo o projeto. Cientes da democratização da sociedade e da impossibilidade de qualquer narrativa teleológica, Schwarz e Starling reconhecem a contingência de sua narrativa e as contradições do objeto “Brasil”. Por tabela, essa frase nos convida a pensar com o livro e para além do livroalgumas questões difíceis, mas cruciais, entre as quais eu destacaria duas: se o livro faz do Brasil uma história, como essa história específica, produzida no seio da melhor pesquisa acadêmica nacional, pode se relacionar com outras histórias? Em que medida essas outras histórias ainda encontram um terreno comum com as “intepretações do Brasil” das quais o livro das autoras é claro herdeiro?

Na resposta a essas perguntas, reside um desafio que não é apenas intelectual, mas profundamente político. Afinal, trata-se de encontrar um novo terreno comum em meio aos fragmentos do que é hoje a ideia de Brasil, sacudida por uma maré democratizante de longa duração que felizmente não pode mais ser represada. Brasil: uma biografia será um incontornável livro de viagem nessa busca.

Referências

AARÃO REIS, Daniel. Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos São Paulo: Companhia das Letras, 2014. [ Links ]

ALEN CASTRO, Luís Felipe. O trato dos viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo: Companhia das Letras 2000. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais (org). Usos e abusos da História OralRio de Janeiro: FGV, 1996. [ Links ]

SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected histories: notes towards a reconfiguration of early modern Eurasia. Modem Asia Studies 31(3): 735-762. 1997. [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo. Disponível em Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/07/entrevista-eduardo-viveiros-de-castro-fotografo/. Acessado em 21 de outubro de 2015. [ Links ]

João Marcelo Ehlert Maia – Mestre (2001) e doutor (2006) em Sociologia pela Sociedade Brasileira de Instrução (SBI/ IUPERJ), e professor adjunto do CPDOC/FGV-RJ (joao.maia@fgv.br).

Ruralidades contemporâneas: modos de viver e pensar o rural na sociedade brasileira – CARNEIRO (B-RED)

CARNEIRO, Maria José. Ruralidades contemporâneas: modos de viver e pensar o rural na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X/ FAPERJ, 2012. Resenha de: CORRÊA, Ana Pinto. O mundo rural para além do mundo agrícola. Estudos Históricos, v.28 n.56 Rio de Janeiro July./Dec. 2015.

Oposição campo/cidade. Realidades sociais e espaciais descontínuas, ratificando a dicotomia existente entre elas. O mundo rural como inexoravelmente agrícola. O agricultor como o personagem encarregado de manter o “campo tradicional”. Neste livro coordenado por Maria José Carneiro, esses paradigmas vão sendo quebrados, um a um, por meio da análise, principalmente, das experiências de agricultores e seus filhos, comerciantes, turistas, donos de pousadas ou confecções de localidades rurais (RJ, RS e MG). É pertinente, então, nos remetermos a Thompson (1981), para quem a experiência está no cerne da interpretação do processo histórico, ao tratar os sujeitos sociais como alguém que ajuda a tecer a teia da história e não apenas como seu mero espectador.

Dessa forma, ao longo de seus sete capítulos, os autores nos apresentam um locus rural em que a agricultura deixou de ser a atividade econômica fundamental no sustento familiar, o que não implica, necessariamente, o abandono da terra por seus donos, que se tornam pluriativos, ou seja, se valem de empregos – baixa qualificação e remuneração – em localidades próximas, que os ajudam a complementar sua renda mensal. Dificuldade de comunicação com mercados consumidores em potencial, dificuldade de transporte, ausência de uma política estatal agrícola eficiente e os preços baixos de seus produtos impulsionaram-nos a trabalhos outros. Esses problemas repercutem com mais profundidade nos jovens, que acabam por não se interessar em seguir o “tradicional” trabalho de seus pais. Além da questão econômica, eles tendem a considerar as ocupações não-agrícolas mais valorizadas simbolicamente.

A criação de signos ou a ressignificação dos já existentes, a necessidade de se incorporar o não material na esfera da produção também são destacadas. Nesse contexto, a natureza é o signo por excelência reelaborado e sobre o qual se constrói a nova noção de rural. Ela deixa de indicar um meio de produção e torna-se objeto de contemplação. A natureza assim entendida e visualizada passa a alimentar novas indústrias, quais sejam, a do turismo e a cultural. O foco, então, volta-se para a manutenção e recuperação do patrimônio rural (recursos naturais, bens arquitetônicos, festividades coletivas). Essa nova premissa da natureza, por sua vez, constitui-se em um dos recursos que viabilizam a pluriatividade referida anteriormente. Hotéis, pousadas, restaurantes, lojas, bares, entre outros, é que representam empregabilidade para membros de famílias tradicionalmente agrícolas, cuja sobrevivência é ameaçada pelos parcos recursos que essa atividade proporciona.

Por outro lado, a convivência entre sujeitos sociais e atividades díspares se faz presente no interior de um campo de forças tanto físico quanto simbólico. Para os agricultores, os organismos de proteção ambiental são vistos como autoritários, pois os obrigam a preservar uma área (mata) que poderia ser utilizada para a agricultura. Como agravante, essa situação provoca uma desvalorização da terra como bem de produção. No entanto, para os denominados neorrurais – que chegam por vezes a denunciar agricultores que derrubam a mata -, a natureza deve, de preferência, permanecer intocada, seja por seu senso ecológico, seja pela oportunidade em explorar o ecoturismo.

Cabe ressaltar que os agricultores geralmente se encontram em difícil situação econômica, ao passo que os novos residentes das localidades rurais, provenientes de centros urbanos maiores em busca da tranquilidade do campo quando, principalmente, de sua aposentadoria, são mais providos de capital. Por vezes também, possuem destacada voz ativa nas associações locais. Em algumas das áreas pesquisadas, as prefeituras promoveram melhorias como pavimentação de ruas, somente com a instalação daqueles moradores que, com seus estabelecimentos voltados para os turistas, contribuíram para a entrada de recursos nos cofres públicos.

É possível então vislumbrarmos, conforme defende Williams (1979), que o campo de forças no qual os atores sociais se “enfrentam” é permeado por uma cotidiana luta de classes na disputa por papéis hegemônicos nos espaços compartilhados. Variadas são as estratégias, inclusive simbólicas, utilizadas para se obter a referida hegemonia, uma vez que ela está constantemente se reconstruindo; nunca garantida. Entrevemos os neorresidentes respaldados pelo ethosambientalista, sendo vistos como modernos e responsáveis quando o assunto é a natureza. Eles recebem apoio do poder público local e assumem posições de destaque em associações locais. Já os nativos (agricultores) são vistos como agressores do meio ambiente, atrasados ou até mesmo outsiders nas palavras dos autores, possuindo pouca inserção nas organizações locais. Talvez fosse o caso de nos perguntarmos se o que é tachado como agressão não poderia ser transmutado em resistência. Paradoxalmente, nessa ressignificação rural, em que há o desmonte do campo tradicional, verificamos o anseio pela manutenção da imagem do agricultor como alguém que, inexoravelmente, existe em função da terra e de seus frutos. Mais irônico ainda: essa valorização vem na esteira da constante presença de turistas da “cidade grande”, que ainda se apoiam na figura lúdica do campo e do agricultor. É bem verdade que alguns agricultores, mesmo com as dificuldades apresentadas, preferem se manter exclusivamente no trabalho agrícola.

Tomando como parâmetro o dizer dos autores, que seria mais apropriado substituir o conceito de êxodo rural pelo de êxodo agrícola, bem como o de famílias rurais pelo de famílias agrícolas, as palavras de Todorov (1999) fazem muito sentido, pois para ele toda cultura viva muda, ainda que nem todas as mudanças sejam boas. Um exemplo positivo está no agora ativo papel econômico das mulheres. De um modo geral, atuando por trás dos bastidores nos serviços domésticos e com sua invisibilidade sancionada, elas passam a vivenciar uma atuação direta no ganha-pão da família, mesmo que, incontestavelmente, a imagem de provedor continue apontando para seus maridos. Essa situação torna-se ainda mais perceptível em Laranjeiras – nome fictício de uma das localidades fluminenses pesquisadas -, que ganhou certo vigor a partir da instauração de confecções de lingerie que, em sua maioria, são abertas por mulheres que representam também a própria mão de obra.

Por fim, infere-se que a ruralidade está constantemente em reelaboração, adaptação e incorporação (ou não) às novas experiências vividas por seus atores sociais. Essas novas e imbricadas relações tornam as referências identitárias cada vez mais móveis. É pertinente nos remetermos a Bhabha (1998), para quem a nação é uma construção discursiva e não uma comunidade imaginada, homogênea e horizontal. Ele nos propõe observá-la como uma forma de vida híbrida, que apresenta suas fissuras e tensões. Assim, para os “de fora”, o campo é pensado como uma realidade homogênea, cujos sujeitos são responsáveis por manter um modo de vida “autêntico”, mas as observações feitas pelos autores nos levam a perceber identidades múltiplas entre os próprios agricultores, bem como entre esses e os neorrurais, homens e mulheres, agricultores e turistas, turistas e neorrurais. Portanto, é premente que fiquemos atentos à alteridade, uma vez que ela pode nos proteger da tentação de criarmos uma imagem única e modelar da identidade.

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura Belo Horizonte: UFMG, 1998. [ Links ]

TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado Rio de Janeiro: Record, 1999. [ Links ]

WILLIAMS, Raymond. IMaxismo e literatura Rio de Janeiro: Zahar, 1979. [ Links ]

Recebido: 30 de Junho de 2015; Aceito: 13 de Outubro de 2015

Ana Cláudia Pinto Corrêa – coordenadora de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão e professora dos cursos de Administração e Direito do Unifeg, e coordenadora da Pós-Graduação Lato-Sensu da PUC-Minas (Poços de Caldas) (anaclio@bol.com.br).

La casa de las Locas – PITA (EH)

PITA, Valeria Silvina. La casa de las Locas: una historia social del Hospital de Mujeres Dementes: Buenos Aires, 1852-1890. Rosario: Rehistoria, 2012. Resenha de: ANAHÍ, Guadalupe Pagnoni. Mulheres, beneficência e loucura: uma história social com perspectiva de gênero. Estudos Históricos, v.28 n.55 Rio de Janeiro Jan./June 2015.

A autora explora o surgimento e a constituição do primeiro manicômio de mulheres de Buenos Aires na segunda metade do século XIX. O livro se situa historiograficamente na história social com perspectiva de gênero, com o objetivo de restituir as mulheres à história e refletir sobre como o gênero e as relações entre homens e mulheres uniram perspectivas e práticas no passado. Pita incorpora as leituras da historiografía social latino-americana sobre Michel Foucault e Robert Castel com respeito ao controle social e à incorporação de novos atores sociais, para além dos trabalhadores. E nesta chave ela traz uma contribuição ao examinar o grau de efetividade das políticas de controle social e seu impacto nas vidas dos destinatários.

Em 1854, as damas portenhas integrantes da Sociedad de Beneficencia valeram-se das vicissitudes políticas que a província atravessava para concretizar um acalentado projeto. Ao se encarregarem do Hospital de Mujeres de la Ciudad de Buenos Aires, elas se dispuseram a criar um hospício próprio para as mulheres consideradas dementes. A causa das mulheres dementes foi tomada como estandarte da caridade pública, e com ela as damas da beneficência lograram não só abrir o hospício como convertê-lo numa questão política que deveria ser apoiada pelo governo portenho. A estratégia usada pelas damas para se (re)colocarem no mapa político portenho posterior à Batalha de Caseros (re)posicionou o papel social da beneficência pública perante as novas autoridades.

Por esses motivos, Pita não compartilha a visão historiográfica que considera a Sociedad de Damas de Beneficencia como uma instituição privada à margem da organização governamental, que apenas recebia apoio financeiro do Estado. A autora (re)define o papel social da associação como uma agência estatal composta por mulheres da elite portenha que se refugiou na órbita política provincial para logo passar à estatal. Ela mostra como as sucessivas gerações de damas da beneficência, com base na sua função de administradoras do Hospício, construíram um espaço de participação na conformação da estrutura do Estado. Da mesma forma, seu papel público sob o amparo de uma administração do Estado lhes permitiu tomar decisões de ordem coletiva, bem como controlar recursos. Numa sociedade em que os postos políticos eram de domínio masculino, a atuação ativa das “damas” no mundo associativo complexifica nossa visão da construção da mulher como sujeito da participação política.

Por outro lado, a batalha das damas se travou não só na vida pública, como no interior do manicômio. A tarefa de organização do hospício não foi simples; exigiu que se acomodassem as opiniões contrárias das participantes, seus conflitos, e que se chegasse a um acordo quanto à base do programa assistencial. As práticas e intervenções dessas mulheres poderosas com suas distintas iniciativas na vida social determinavam quem seria incluído e excluído delas, qual era a forma de ajuda aos pobres e como elas viam a sua ação na beneficência pública. Seu pertencimento à elite portenha nos mostra de que maneira essa classe social voltou a dar sentido aos parâmetros da exclusão social. Os acordos, negociações e contendas que as envolvem lançam luz sobre como o Estado ensaiava respostas diante da marginalidade, da doença e da pobreza.

Pita transita pelos pavilhões do hospício para indagar quem e em que condições era confinada ali. Essas perguntas expõem diante dos nossos olhos o cotidiano do lugar, um espaço de experiências onde, entre o consenso e a disputa, se manifesta um conjunto de práticas próprias do confinamento. Os fragmentos da vida em reclusão das doentes são pacientemente alinhavados com a ajuda de uma variedade de fontes pouco utilizadas em outros estudos institucionais (artigos médicos na imprensa, publicações científicas, rastros das pacientes, fichas de ingresso, diagnósticos de loucura etc.). Esses indícios configuram a rede de que fazem parte as “dementes” e seus responsáveis, tanto as damas da beneficência quanto suas cuidadoras, médicos e diferentes membros do Estado.

A loucura foi utilizada para difundir um discurso e uma intervenção médica que a ligou à periculosidade social. A partir de 1860 o conjunto de excluídas adquiriu novas dimensões, quando os juízes aprovaram o cumprimento de condenações penais na instituição. Um novo grupo de mulheres, as rés, veio aumentar o número internas. A presença das presas na instituição desencadeou a disputa entre as damas da beneficência e os juízes provinciais para determinar que tipo de mulheres deveria se internar. Invisíveis do lado de fora, heterogêneas do lado de dentro, cada paciente era uma história de como esconder, atrás dos muros, a pobreza. As damas e o Estado, através do confinamento, trataram de reprimir um amplo grupo de mulheres marginais, influindo na correção de suas condutas e ao mesmo tempo dando uma resposta à pobreza urbana. Pita dialoga com as notícias historiográficas de controle social para esquadrinhar o grau de efetividade das políticas do Estado e como as pessoas às quais elas se destinaram reelaboraram ou parcializaram sua influência sobre suas vidas.

No final do século XIX, as relações no interior do hospício se reconfiguraram novamente; um novo grupo de médicos havia se formado na Faculdade de Medicina e, guiado pelo alienalismo, batalhou para impor os preceitos científicos nas medidas tomadas pelo Estado para a assistência pública. A situação para as damas não ficou nada fácil; dentro da associação havia atritos entre as integrantes, a situação política portenha sofria percalços que influíam nas instituições provinciais, e a nova corporação científica lutava para impor seus próprios preceitos na direção da instituição. Sem dúvida, as damas saíram-se bem e fortalecidas, e paulatinamente se incorporou no manicômio o ideário científico sem entrar em contradição com o papel de reclusão da loucura e da pobreza que ele vinha cumprindo.

A profissionalização médica é complexificada pela autora à luz de estudos que não viram nela um campo uniforme e sem fissuras. A velha visão de uma “ordem psiquiátrica” dominante é deixado para trás para se examinar os claro-escuros das ações das elites científicas e estatais, nem sempre unidirecionais. Pita se afasta das visões historiográfícas que postulavam um poder médico consolidado e açambarcador de recursos que impôs seus projetos de reforma e modernização. Em seu lugar, enriquece a compreensão da prática médica como um contínuo trabalho desses profissionais em diferentes locais – cátedras, Assistência Pública, periódicos etc. – para lograr um consenso capaz de dar valor à sua posição.

Por volta de 1890, momento de conclusão do livro, a velha Convalecencia se tinha transformado numa instituição nacional. O Manicômio Nacional, com a ampliação de funções, funcionários e pacientes, gerou uma série de tensões entre suas antigas encarregadas, os médicos e os representantes do poder nacional. Numa assistência pública programada com aspirações nacionais se pôs em dúvida como seus diferentes protagonistas entendiam seus sentidos, tensões, expectativas e incertezas. A Casa de las Locas complexifica e permite visualizar uma história que todos conhecemos mas que sempre tinha sido enfocada a partir de um único ponto. O hospício, em sua relação com uma sociedade em contínua transformação, influiu na construção de um Estado insipiente que requeria um arcabouço assistencial. Em seu papel de agente estatal, o manicômio marcou quem e porque era apta a fazer parte da nova cidadania política. Para nos encontrarmos com as damas e as loucas, devemos apenas transpor os muros…

Guadalupe Pagnoni Anahí – Anahí Guadalupe Pagnoni é professora de História da Facultad de Humanidades y Arte – Universidad Nacional de Rosario (anahipagnoni@hotmail.com).

CLARK, K. Moscow – the fourth Rome (EH)

CLARK, Katerina. Moscow, the fourth Rome: stalinism, cosmopolitanism, and the evolution of Soviet culture, 1931-1941. Cambridge: Harvard University Press, 2011. 420 p.p. Resenha de: GOMIDE, Bruno B. Novos estudos sobre a cultura soviética. Estudos Históricos, v.28 n.55 Rio de Janeiro Jan./June 2015.

Katerina Clark possui uma rica trajetória como professora de eslavística na Universidade de Yale. Seus livros são textos incontornáveis nos estudos russos. Entre eles, destaquemos The Soviet novel: history as ritual (1981), releitura inovadora do realismo socialista, e Petersburg: crucible of cultural revolution (1995), que apresentou a dinâmica complexa da vida intelectual na ex-capital do Império Russo. O novo livro da autora mostra que ela segue na linha de frente do que talvez seja o veio mais forte dos estudos de história cultural russa nas últimas décadas: as relações entre Estado e cultura.

Moscow, the fourth Rome é uma pesquisa brilhante sobre a cultura internacionalista gerada na capital soviética entre os anos 1930 e 1940. O título da obra necessita de elucidação para o leitor não especializado: remete à passagem de uma epístola escrita pelo monge Filoféi, de Pskóv, no começo do século XVI, na qual se anunciava um novo papel especial destinado a Moscou após a queda de Constantinopla. A cidade russa, após o período de domínio mongol, emergia como o principal centro cultural, religioso, político e militar. O verdadeiro cristianismo migrara da “segunda” Roma, tomada pelos Otomanos, e encontrara sua residência final na cidade russa, que então seria ressignificada: não mais o centro de uma região específica, mas a sede de uma nova cultura de âmbito mundial, sobre a qual repousariam diversas esperanças messiânicas e apocalípticas. Muitos séculos depois, a Moscou stalinista se apresentaria como um novo centro produtor de expectativas internacionalistas, um farol a atrair as atenções de intelectuais, artistas e viajantes.

O termo “internacionalismo” pode gerar estranheza aos que estão acostumados à ideia, corrente nos estudos gerados na Guerra Fria, do fechamento da sociedade soviética especialmente durante o período stalinista. Mas a noção de um monolito inexpugnável é precisamente o ponto que Clark quer discutir, substituindo-o por uma sociedade dinâmica (embora altamente repressiva) em suas relações internas e externas. A obra se insere em uma leva recente de estudos sobre as conexões internacionais de intelectuais e instituições soviéticas, entre as quais se destaca o livro de Michael David-Fox Showcasing the great experiment: cultural diplomacy and Western visitors to the Soviet Union, 1921-1941 (Oxford University Press, 2012), que traça a história da VOKS, a sociedade soviética para as relações culturais com o exterior. Os estudos de Clark e Fox se beneficiaram da abertura de arquivos russos ocorrida após o fim da União Soviética, quando os materiais de diversas instituições (além de arquivos de indivíduos particulares) se tornaram disponíveis.

Embora a riqueza da documentação seja certamente um ponto forte desses estudos, a virada fundamental, principalmente no livro de Clark, reside na radical reformulação teórica do modo como o “alto stalinismo” tem sido interpretado. A leitura tradicional, desenhada já no começo da década de 1930, ganhou força depois da Segunda Guerra, com o encorpar das teorias sobre o totalitarismo, que acabaram por se transformar no paradigma interpretativo. A sociedade e os indivíduos soviéticos (inclusive e especialmente a intelligentsia) ali apareciam esmagados pelo Estado, paralisados e desumanizados por uma terrível máquina repressiva, com a qual pouca ou nenhuma relação teriam (salvo na figura dos “colaboradores”). Essa vertente da historiografia, hegemônica no campo dos estudos soviéticos e ainda hoje campeã de presença em livrarias e páginas de jornal, teve o mérito inegável de apontar as incontáveis brutalidades do regime e de reconstituir minuciosamente os mecanismos do vasto aparato autoritário montado no país a partir de 1917. Sofreu, contudo, um abalo sonoro a partir de fins da década de 1970, sobretudo com as pesquisas da historiadora Sheila Fitzpatrick, que colocaram em relevo a participação social e a intensa mobilidade social que subjazia ao processo. Os trabalhos de Clark e outros pesquisadores, especialmente do mundo anglófono, constituem um passo a mais na desmontagem do paradigma totalitário. O foco dos trabalhos mais recentes é procurar relações mais complexas entre os anos “vinte” e “trinta”, a atividade das vanguardas e o realismo socialista (e a ideia simplista, segundo Clark, de sua “imposição” pura e simples), intelectuais e Partido, abertura internacional e fechamento xenófobo, matizando o corte muito brusco que de hábito se faz entre esses termos.

É nessa linha que Clark irá estudar a nova capital soviética: “Alegar que a cultura soviética dos anos trinta originou-se com Stalin é personalizar excessivamente as forças que a impulsionaram (…). Stalin e o aparato partidário eram inegavelmente muito poderosos, e à medida que a década avançava, passaram cada vez mais a, de fato, encomendar e monitorar os produtos culturais (…) e a implementar seus esquemas preferidos, mas eles não eram figuras extra-sistêmicas, figuras externas ao sistema cultural, e sim colhiam e mediavam, de modo seletivo, algumas das correntes dominantes no pensamento da época” (p. 6-7). A história da cultura soviética não pode ser contada em uma narrativa linear – a substituição do iconoclasmo da vanguarda por um conformismo imposto pelo partido; ela precisa ser entendida na “simultaneidade de correntes e fenômenos díspares”, em que os intelectuais possuíam “certo grau de independência (embora não necessariamente de dissidência”) (p. 29), e eram “mais implicados no sistema (mesmo que em graus variados), produtos de sua época, do que geralmente se reconhece” (p. 29). A sociedade, mesmo em meio aos piores momentos de repressão, possuía certa margem de manobra e capacidade de negociação, e a cultura soviética stalinista dialogava com antigas tradições e linhas de força que, à primeira vista, poderiam lhe parecer completamente estranhas.

Esse conjunto de argumentos é exposto principalmente por meio da trajetória de quatro intermediários, que Clark chama de “patriotas cosmopolitas”: o diretor Serguei Einsenstein; o escritor e jornalista Iliá Ehrenbur; o jornalista e editor Mikhail Koltzóv; e o escritor, fotógrafo e diretor Serguei Tretiakóv. A trajetória deles entrecruza-se com a de Lukács, Brecht, Bakhtin e de personagens importantes das relações culturais entre a União Soviética e o Ocidente, em nove capítulos que apresentam as conexões entre Berlim e Moscou no começo da década de 1930, com uma reavaliação da famosa viagem de Benjamin à capital russa (“The author as producer: cultural revolution in Berlin and Moscou”); o papel fundamental do livro e da literatura na cultura stalinista (“Moscow, the lettered city”, sugerindo, inclusive, um instigante paralelo com ideias de Angel Rama sobre a cidade latino-americana); o papel da arquitetura no remodelamento da capital soviética (“The return of the aesthetic”) e das viagens (“The traveling mode and the horizon of identity”); as noções de “Literatura mundial” e “Cultura mundial” em meados da década (“‘World literature’/‘World culture’ and the era of the Popular Front,”); os elementos teatrais presentes nos julgamentos-espetáculo e na campanha antiformalista (“Face and mask: theatricality and identity in the era of the Show Trials”); o élan específico do envolvimento com a Guerra Civil Espanhola (“Love and death in the time of the Spanish Civil War”); a função do sublime em narrativas características, no cinema e na literatura, da cultura stalinista (“The imperial sublime”); e a intensa discussão, em diversos órgãos literários e instituições, sobre os gêneros épico e lírico e sua adequação à nova cultura (“The battle over the genres”).

A simples indicação dos temas dos capítulos dá uma ideia da extraordinária quantidade de sugestões de pesquisa que o livro contém. De modo geral, a escassa historiografia brasileira sobre a cultura da Rússia soviética ainda desconhece as questões centrais trazidas pela obra de Clark.

Bruno B. Gomide – Bruno B. Gomide é professor de literatura e cultura russa na Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq (bgomide@usp.br).

Brasil em uníssono: e leituras sobre música e modernismo – NAVES (EH)

NAVES, Santuza Cambraia. O Brasil em uníssono: e leituras sobre música e modernismo. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013. Resenha de: MATHIAS, Pérola. O modernismo musical brasileiro revisitado. Estudos Históricos, v.27 n.54 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.

O modernismo musical projetado nas elaborações teóricas e críticas de Mário de Andrade ganha uma interpretação preciosa nos escritos de Santuza Cambraia Naves compilados em O Brasil em uníssono: e leituras sobre música e modernismo. O livro reúne artigos escritos pela antropóloga ao longo de sua rica trajetória acadêmica e compõe a coleção Modernismo +90. Organizada por Eduardo Jardim, professor da PUC-Rio e pesquisador do modernismo e do pensamento estético de Mário de Andrade, a coleção tem como objetivo marcar um período da vida intelectual do Brasil no século XX, o Modernismo, quando se comemoram os mais de 90 anos passados desde a Semana de 1922, seu marco inicial. A coleção traz à tona aspectos pouco discutidos sobre o momento, suas obras e autores, além de aspectos históricos, empreendendo uma ampla revisão crítica do movimento que ainda hoje é utilizado como referência para entender e intervir na arte e na cultura do país, além de ser continuamente discutido em âmbito acadêmico.

Formada pelo Museu Nacional da UFRJ e pelo IUPERJ, e professora da PUC-Rio, Santuza Naves faleceu precocemente enquanto preparava o livro aqui resenhado, deixando uma lacuna irreparável nos estudos musicais na área das Ciências Sociais, da qual ela era um dos principais nomes. Santuza foi defensora e teorizadora da importância da música popular e da equivalência de seu status ao da literatura e dos ensaios sociológicos na cultura brasileira.

Entre os artigos escolhidos para compor O Brasil em uníssono: e leituras sobre o modernismo estão um capítulo de O violão azul, tese de doutorado da autora, de 1998, artigos publicados ao longo dos anos 2000 e o não concluído “O Brasil em uníssono”, de 2012. A tônica principal do livro está neste texto homônimo, que define que o recorte para a análise do modernismo musical brasileiro enfoca o posicionamento de Mário de Andrade enquanto crítico musical e professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

Santuza Naves, considerando a vida de Mário de Andrade como tendo três fases – a busca pela modernização estético-cultural nos primeiros momentos do modernismo em 1922; a priorização da questão da identidade nacional a partir de 1924; e a defesa da atuação política do artista, a partir de 19331 –, levantou para sua análise textos escritos por Mário entre os anos 1926 e 1944. Ela demonstra como ele propôs incessantemente que o formalismo estético fosse superado para que houvesse um diálogo da arte com o âmbito social e cultural, conformando uma experiência musical brasileira total. Dois textos de Mário são de fundamental importância na análise: o “Ensaio sobre a música popular brasileira”, de 1928, e a “Oração de paraninfo”, de 1935.

Nesses quase 20 anos em que atuou como crítico, Mário tentou, primeiro, construir uma identidade nacional e, depois, retomar uma “cultura autêntica”. Em ambos os momentos buscava a superação do individualismo e a integração do indivíduo num todo orgânico, num movimento capaz de produzir uma “arte interessada” e uma “música artística” que colocariam a arte brasileira para competir no cenário das nações modernas e desenvolvidas – ponto central do Modernismo brasileiro.

Eduardo Jardim diz na introdução que escreve para o livro que “O Brasil em uníssono” foi o primeiro artigo no qual Santuza Naves dedicou toda a sua atenção à Mário de Andrade, analisando sua crítica musical de forma unívoca: através da busca do próprio Mário por uma unidade entre a dimensão estética e a dimensão social na arte. Santuza aponta, contudo, que o “uníssono” da crítica andradiana divergia da carreira multifacetada que ele tivera como poeta, romancista, músico, crítico, pesquisador, folclorista, professor e diretor do Departamento de Cultura de São Paulo.

O artigo “O Brasil em uníssono” nos dá uma visão transversalizada tanto da obra de Santuza Naves quanto do modernismo musical de Mário de Andrade. Ali ela conseguiu sintetizar muitas das análises que empreendera nos demais artigos que compõem o livro, complementando e dando coerência a seu pensamento. Esses outros artigos são “Um tropical amor do mundo”, “Bachianas brasileiras nº7: de Heitor Villa-Lobos para Gustavo Capanema”, “Os regentes do Brasil no período Vargas” e “A canção popular entre Mário e Oswald – releituras do modernismo na década de 1960”.

Foi ao se aprofundar no Modernismo nos três primeiros artigos que Santuza Naves encontrou a chave para entender como a música popular brasileira da década de 1960 e seus compositores haviam alcançado equivalência de status com os intelectuais e suas formulações na construção de um “retrato do Brasil”. Em “Um tropical amor do mundo”, ela mostra como a estética promovida pelo modernismo não se comprometeu totalmente com os ideais de civilização. O modernismo propôs que fossem rejeitadas as contribuições da tradição clássica que excluía as manifestações populares, mas assumiu que essas mesmas manifestações representavam a “alma nacional”, devendo ser reelaboradas num processo musical erudito. O modernismo brasileiro fez uma mediação para que fossem diluídas as barreiras na composição da música que separavam os limites entre o popular e o erudito, a tradição e a inovação, o estético e o social.

Santuza demonstra em “O Brasil em uníssono” e “Bachianas brasileiras nº7” que Mário de Andrade cunhou uma concepção de cultura que distinguia alta e baixa cultura, assemelhando-se à crítica idealista de cultura autêntica/espúria de Edward Sapir, formulada no mesmo período da década de 1920 nos Estados Unidos por influência de Franz Boas. Na prática, essa concepção se traduzia num programa artístico ao mesmo tempo estético e social que recuperava o esvaziamento provocado pela modernização na organização social.

“Os regentes do Brasil no período Vargas” expande a análise do modernismo musical para além do período seguinte à década de 1920, apontando confluências entre o panorama político da centralizadora e populista ditadura Vargas nos anos 1930 e 1940, as teses unanimistas de Mário e as fases de composição de Heitor Villa-Lobos. Villa-Lobos foi o músico que mais se aproximou da realização do projeto musical andradiano.

Mesmo assinalando que as ideias de Mário de Andrade são constantemente retomadas para compreender as concepções artísticas que sucederam ao Modernismo, Santuza busca particularizar o fenômeno de formação de uma estética musical nacionalista. Não podemos saber onde Santuza chegaria no inédito “O Brasil em uníssono”, mas sua escrita clara, de frases curtas e sintetizadoras de muitas ideias, nos leva a ter uma compreensão ampla sobre as transformações essenciais ocorridas ao longo de todo o período considerado modernista, sem que o tema abordado seja simplificado.

Baseando-se na filosofia nietzscheana das “Considerações intempestivas”, Santuza concebe o tempo e a história de forma não linear. Explora uma mesma base teórica por múltiplos lados e questiona incessantemente suas próprias formulações. Essencialmente, a imbricação no entendimento entre arte e vida a move em sua análise.

Encontro nesses artigos uma incessante sequência de hipóteses sendo postas à prova, formuladas, reformuladas e confirmadas. É nesse sentido que “O Brasil em uníssono” condensa de forma complexa aquilo que já vinha sendo discutido por ela nos outros artigos.

“Sobre Santuza: uma sensibilidade solar” fecha o livro e sela a importância da professora nas palavras de seus alunos Juliana Jabour, Tatiana Bacal e Fred Coelho. Eles ratificam ali a sensibilidade de Santuza na compreensão de nossa cultura através da música e da “canção crítica”.

Nota

1. MORAES, E. J. de. A constituição da ideia de modernidade no modernismo brasileira.Tese (doutorado em Filosofia). Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, 1983.

Pérola Mathias – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ (perolavcm@gmail.com).

Homo historicus: réflexions sur l’histoire les historiens et les sciences sociales – CHARLES (EH)

CHARLE, Christophe. Homo historicus: réflexions sur l’histoire, les historiens et les sciences sociales. Paris: Armand Colin, 2013. 319 pp. BORGIGNON, Rodrigo da Rosa. A história como objeto de reflexão. Estudos Históricos, v.27 n.54 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.

Derivado de um conjunto de reflexões que estão diretamente conectadas à trajetória do autor e às suas pesquisas sobre temas bastante diversos, o livro de Christophe Charle representa um convite à reflexão sobre as condições e as possibilidades de produção de pesquisas em história e em ciências sociais. Entre outras coisas, as proposições retraçam também a inserção do autor no grupo de colaboradores de Pierre Bourdieu e inclusive se aproximam bastante de algumas das reflexões deste acerca das relações entre a sociologia e a história.

A introdução geral demarca posição frente às obras que buscam elaborar um quadro de reflexão sobre os historiadores e a historiografia. Estas tenderiam a uma separação artificial entre, de um lado, as discussões sobre o métier do historiador e as relações da disciplina com as outras ciências sociais, e, de outro, os esforços em termos de genealogias teóricas com vistas a demonstrar (ou criar) os fundamentos das “questões historiográficas do momento” (p. 15). Em contraposição a isso, a proposta do livro é relacionar “reflexão teórica e modalidades práticas de sua utilização no trabalho histórico concreto” (p. 17).

Assim, o homo historicus aparece como resultante da relação complexa e contraditória do historiador com o mundo social, com a herança disciplinar, com o passado e com a memória. Segundo o autor, atualmente as dificuldades de colocar em questão o universo social ao qual se está vinculado por todo tipo de interesse e constrangimento são aumentadas

pelo conjunto das reformas universitárias em curso e pela adoção de padrões de trabalho imitados das ciências experimentais. Longe de combaterem antigos problemas da prática científica, estes contribuem para uma estandardização das pesquisas e para uma “economia da reflexividade” (p. 20).

O livro está dividido em três partes. A primeira apresenta um quadro bastante significativo das divisões e escolhas temáticas associadas ao exercício da profissão de historiador na França, indicando pistas interessantes para o tratamento dessas questões em outros contextos históricos e sociais. Ao mesmo tempo em que elabora um panorama sobre o processo de especialização e suas consequências para o debate teórico e metodológico na disciplina, o autor pontua as dificuldades de autonomização da história frente às demandas do Estado e do grande público.

A partir desse mapeamento inicial, a proposta se encaminha no sentido de uma reflexão sobre as possibilidades de objetivação e historicização das práticas científicas e das lutas de classificação travadas entre especialistas de diversos domínios e disciplinas. Pontuadas por exemplos concretos de pesquisa, o autor reivindica a combinação e complementaridade entre o método histórico e a análise sociológica, o que permitiria uma apreensão dinâmica e relacional da realidade social e uma vigilância cruzada entre ambos os domínios de conhecimento (p. 61-65). De modo bastante geral, os pontos mais altos dessa primeira parte estão na retomada de seus trabalhos iniciais sobre o campo literário e intelectual francês, e na discussão da perspectiva elaborada por Pierre Bourdieu para a apreensão do campo universitário e dos intelectuais.

A segunda parte do livro é dedicada à discussão de algumas questões metodológicas. Como o autor reitera diversas vezes, as propostas de utilização combinada de diferentes perspectivas analíticas e disciplinares estão diretamente relacionadas aos trabalhos desenvolvidos por ele e às suas preocupações atuais e temas de interesse. Assim, são retomadas discussões sobre o uso da prosopografia, sobre o método literário, sobre a circulação internacional de bens culturais, e sobre os desafios e ganhos na adoção de perspectivas comparativas e transnacionais.

Ao mesmo tempo em que pontua a relativa simplicidade do princípio básico do método prosopográfico, Christophe Charle chama a atenção para a necessidade de elaboração de um questionário exaustivo e que cubra as diferentes dimensões da vida social da população analisada. A não reflexão sobre as escolhas em termos de critérios de classificação e de recorte tende a encaminhar a análise para uma visão parcial e unidimensional da realidade social (p. 97). Portanto, a noção de construção do objeto e de historicização das categorias de classificação torna-se um recurso central para escapar de possíveis anacronismos e para apreender a dinâmica e a multidimensionalidade das relações sociais.

Uma das propostas centrais está no encaminhamento das pesquisas para uma prosopografia comparada, seja ela tanto entre grupos sociais distintos quanto entre países. O objetivo é escapar dos perigos da universalização de determinadas particularidades históricas e sociais e, ao mesmo tempo, apreender os invariantes estruturais que organizam as principais oposições em diferentes campos. A dificuldade no avanço em direção à comparação está nas distintas perspectivas que balizam as pesquisas nos diferentes países e os critérios de classificação que orientam as análises (p. 99).

Na esteira dessas discussões metodológicas, o autor propõe alguns diálogos entre a história e a literatura no sentido de utilizações cruzadas entre o “método histórico” e o “método literário”. Embora de um modo bastante esquemático, Christophe Charle reivindica a fecundidade dos escritos literários para a pesquisa em história e em ciências sociais. No entanto, para que sua utilização seja fecunda, é preciso operar uma verdadeira história e uma sociologia histórica das obras, de seus autores e de seus contextos de produção, emergência e recepção. Assim, a proposta se direciona para a construção de um modelo de análise “sociocultural multivariado” (p. 134) no qual sejam considerados os processos sociais mais gerais em que as produções culturais estão imersas (público, mercado cultural, vida associativa, relações com a política, diferenciações centro/periferia) e, ao mesmo tempo, os graus e condições de objetivação do campo cultural em geral e de seus subcampos em particular.

Essas proposições e cruzamentos metodológicos vão se desdobrar nas discussões sobre circulação internacional de bens simbólicos. Neste ponto, o autor marca posição contra a formulação segundo a qual a abertura das fronteiras amplia proporcionalmente a circulação de bens simbólicos e culturais. Segundo ele, falta colocar a relação entre essa proposição e os diferentes bens em circulação nos mercados culturais e simbólicos, seus contextos de recepção e as condições de mediação. Isso porque, como as várias pesquisas mobilizadas por Charle têm indicado, na medida em que se vai do polo mais lucrativo ao menos lucrativo – em termos econômicos – do campo cultural, mais a circulação internacional de bens culturais está sujeita a fatores propriamente simbólicos (p. 152). Ao fim dessa segunda parte o autor chama a atenção para o fato de que os inúmeros debates e guerras de etiqueta travadas entre especialistas de diferentes domínios e disciplinas podem ser resolvidos na prática concreta de pesquisa, retomando assim suas proposições iniciais.

Na terceira parte do livro, Christophe Charle põe em movimento o conjunto de propostas e discussões teórico-metodológicas que atravessam toda a obra. A partir de análises de trajetórias específicas, o autor faz funcionar os esquemas de interpretação e de análises cruzadas entre a história, a sociologia e o método literário, mostrando uma série de quadros bastante fecundos que podem servir muito bem como exemplos de pesquisa e de modos de fazer. Na “conclusão em forma de diálogo” (p. 243), o autor reivindica uma história social que cruze diferentes níveis de interpretação e escalas de análise, retomando distintas perspectivas e influências teóricas em nome de uma visão multidimensional do mundo social.

Rodrigo da Rosa Bordignon – Doutorando em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atualmente em estágio no Institut d’Histoire Moderne et Contemporaine – École Normale Supérieure, em Paris, como bolsista CAPES (rrbordignon@hotmail.com).

Justiça do Trabalho – BULLA. A Justiça do Trabalho e sua história – GOMES; SILVA (EH)

BULLA, Beatriz; NUNES, Fabiana Barreto; GHIRELLO, Mariana; MAIA, William. Justiça do Trabalho: 70 Anos de Direitos. São Paulo: Alameda, 2011. 262 pp. GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da. A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. 528 pp. Resenha de : SANTOS JÚNIOR, José Pacheco dos. Justiça do Trabalho: história, domínios e sujeitos. Estudos Históricos, v.27 n.54 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.

Exibindo sete décadas de existência, o Judiciário Trabalhista brasileiro entra no século XXI com o vigor de uma instituição que, pela importância e impacto que exerceu e exerce na regulamentação das relações trabalhistas no país, não escapa aos olhares atentos da comunidade intra e extra-acadêmica. PJustiça do trabalhoossibilitadas pelas renovações conceituais e metodológicas vislumbradas pela historiografia nas últimas quatro décadas, e matizadas pela potencialidade que emana da documentação (escrita e oral) da Justiça do Trabalho, duas obras coletivas vêm, num intervalo de dois anos, explorar a história dessa instituição instalada por Vargas à época do Estado Novo e inicialmente vinculada ao Poder Executivo: Justiça do Trabalho: 70 anos de direitos, e A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil, objetos de discussão da presente resenha.

O primeiro livro, gestado sob os auspícios celebrantes dos exatos 70 anos da instalação da Justiça do Trabalho no país, é produção de quatro jornalistas especializados na área jurídica. Em Justiça do Trabalho: 70 anos de direitos, salta aos olhos a bela proposta de articular uma obra que transite pelas sete décadas de atuação do Judiciário Trabalhista e pelas experiências de alguns de seus agentes, como juízes e advogados. Estruturado em três partes e detentor de uma última seção denominada “caderno de imagens”, o conjunto de reportagens se apresenta ao público leitor como uma obra que persegue o objetivo de “rememorar fatos e acontecimentos históricos que conferiram à Justiça do Trabalho o título de ‘Justiça Social do Brasil’” (p.13). Para isso, a primeira parte, assinada por Mariana Ghirello (com reportagens de Daniella Dolme), expõe as principais marcas do cenário político-econômico brasileiro, desde a criação do Judiciário Trabalhista, na década de 1940, até os anos 2000. Na sequência, o cotidiano da Justiça do Trabalho é colocado em debate por William Maia (com reportagens de Thassio Borges). Nesta parte, ganham terreno tópicos como demandas, julgamento e execução dos processos, a informatização na Justiça do Trabalho, além das várias faces do cotidiano da advocacia trabalhista.

O ponto alto da obra se evidencia na reunião de entrevistas organizadas por Beatriz Bulla em parceria com o site Última Instância. Enfatizando as diversas trajetórias e concepções que alguns operadores do direito atribuem à Justiça do Trabalho, nesta terceira seção encontra-se uma importante entrevista com Arnaldo Süssekind, ministro do Tribunal Superior do Trabalho no período da ditadura militar, falecido um ano após a publicação da obra. Por outro lado, apesar dos belos insights expressados, o que deixa a desejar na publicação é a total ausência de referências bibliográficas e notas explicativas, além da rasa exploração do “caderno de imagens”: seção que exibe inúmeras fotografias que, em sua maioria, estão desprovidas de fontes e autores, apenas munidas de breves legendas. Sopesando a ousada proposta aventada, com toda a licença que uma obra jornalística exige, o livro em questão se configura apenas como uma introdução básica, de caráter informativo, aos estudos sobre a história da Justiça do Trabalho.

Sob a coordenação de Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva, historiadores que de longa data vêm se dedicando à História Social do Trabalho e em particular à Justiça do Trabalho, a segunda coletânea opera uma cuidadosa análise, materializada em 11 textos que evidenciam os múltiplos traços da relação dos trabalhadores brasileiros com essa Justiça especial e com o mundo jurídico. Debruçado em histórias individuais e coletivas dos trabalhadores de diversos rincões do país, A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil reúne contribuições de pesquisadores de norte a sul do Brasil e de um canadense, todos querendo decifrar sujeitos, reclamações, cotidiano e as diversas estratégias de luta e negociação fomentadas na arena da Justiça do Trabalho.

Ao depositar suas expectativas e reclamações na Justiça do Trabalho, os trabalhadores legaram à posteridade registros que sinalizam uma cultura jurídica (e de classe) que extrapola as fronteiras do “legal institucionalizado” e contempla um delicado campo que compreende costumes e tradições na interpretação das leis, na definição de regras jurídicas, como também na afirmação de mecanismos legais para a resolução de conflitos. Visando interpretar essa seara, as contribuições desta obra distribuem-se em cinco eixos temáticos articulados através de seus propósitos em comum. Primeiramente, Clarice Speranza e Rinaldo José Varussa esmiúçam condições de trabalho e políticas de conciliação de classe no Sul do país em dois momentos distintos da história brasileira. Em um segundo momento, Antonio Luigi Negro e Edinaldo Souza, assim como Benito B. Schmidt, abordam as facetas do poder disciplinar, na Bahia (no caso dos dois primeiros autores) e no Rio Grande do Sul, recorte espacial de Schmidt. Em um denso e cuidadoso trabalho analítico, Fernando Teixeira da Silva explora a natureza do poder normativo nos domínios do TRT de São Paulo no “longo ano de 1963, que termina com o golpe civil-militar de 1964” (p.203), ao passo em que Larissa Rosa Corrêa examina a questão da Justiça do Trabalho e da política salarial entre 1964 e 1968.

Para além dos estudos que focam no eixo Rio/São Paulo e na força de trabalho industrial, ainda predominantes na historiografia brasileira sobre o labor, os capítulos de Antonio Montenegro e do canadense Frank Luce elegem como objeto de investigação as tramas dos trabalhadores rurais e magistrados do Nordeste brasileiro com o Judiciário Trabalhista, tratando de Pernambuco e da zona cacaueira da Bahia. Descortinando temas e privilegiando metodologias ainda pouco usuais nas análises acerca da Justiça do Trabalho, a quinta e última parte da coletânea convida o leitor a refletir sobre temas que compreendem, entre tantos outros discutidos, a regulamentação das relações de trabalho em Franca (SP), a terceirização e o trabalho análogo ao de escravo no Brasil contemporâneo, pontos e categorias dissecados respectivamente por Vinícius de Rezende, Magda Barros Biavashi e Ângela de Castro Gomes.

Indispensável para a compreensão das lutas dos trabalhadores brasileiros na busca por direitos, e, num plano mais amplo, da própria edificação da cidadania no Brasil, A Justiça do Trabalho e sua história revela-se uma contribuição fulcral, ainda que seja uma pequena amostra dos estudos que hoje se dedicam à relação dos trabalhadores com esse ramo do Judiciário – estudos estes que, possibilitados pelo recente contato com os acervos dos tribunais trabalhistas, apresentam a dinâmica das tensões e experiências que até então estavam reservadas ao domínio da esfera privada do mundo do trabalho.

Se alguns dos grandes nomes do mundo jurídicoganham ênfase e voz na obra de Bulla et alii, na segunda coletânea, coordenada por Gomes e Silva, os trabalhadores (com suas disputas, acordos e conquistas) se veem historicizados num canal privilegiado. Todavia, numa época em que o Judiciário se encobre nas brumas do esquecimento, ao manter a política de descarte dos autos findos a partir de cinco anos de arquivamento,1 coletâneas como estas, aqui ligeiramente discutidas em face da limitada dimensão de uma resenha, têm todo o direito de se arvorar em obras-manifesto, mesmo que sem se enunciar enquanto tais.

1. BRASIL. Lei nº 7.627, de 10 de novembro de 1987. Dispõe sobre a eliminação de autos findos nos órgãos da Justiça do Trabalho, e dá outras providências.

José Pacheco dos Santos Júnior – Mestrando em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Laboratório de História Social do Trabalho (LHIST/UESB) (josepsjunior@usp.br).

A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins – FONSECA (EH)

FONSECA, André Azevedo da. A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins. São Paulo: Editora da Unesp. 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Michel. O avesso de um mito: uma análise da ascensão pública de Mário Palmério. Estudos Históricos, v.27 n.54 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.

Alguns mitos são de carne, osso e ideologia. Essa é uma das muitas premissas que se pode depreender da leitura de A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins, livro lançado em novembro de 2012 pela Editora Unesp. A obra de 306 páginas, distribuída nas versões impressa e digital, é resultado da pesquisa de doutorado do pesquisador e professor André Azevedo da Fonseca.

O autor, jornalista, doutor em História e pós-doutor em Estudos Culturais, apresenta uma obra que reflete essa trajetória acadêmica. O livro imbrica diversas facetas: do relato documental à análise da ascensão mítica de Mário Palmério através de um recorte baseado na História Cultural. Fonseca iniciou a pesquisa que resultou no livro durante a monografia de sua especialização em História, em 2004, e a finalizou em 2010, quando defendeu a tese de doutorado. Durante esse período, analisou diversos documentos relacionados a Palmério, como fotografias, recortes de jornais e até boletins escolares. O material coletado durante a pesquisa foi reunido no Memorial Mário Palmério, fundado pelo autor na Universidade de Uberaba (Uniube).

A narrativa tem início com uma apresentação do cenário: Uberaba, no Triângulo Mineiro. A cidade, cuja economia se baseava na pecuária, viveu tempos de progresso nas primeiras décadas do século XX devido ao terminal ferroviário ali instalado. A expansão da linha férrea para cidades vizinhas descentralizou a distribuição de produtos e a circulação de pessoas. Gradativamente, Uberaba foi perdendo o prestígio e entrou num processo de estagnação econômico-cultural.

Na década de 1940, a elite local decidiu investir na modernização do centro do município, a fim de dar um novo ânimo à população e avivar o brio dos ricos criadores de gado. O pesquisador deixa claro como as relações de poder eram motivadas por adulações. A própria imprensa local era responsável por açular o ego dos pecuaristas e de outras figuras de destaque da sociedade. Segundo o autor, uma cultura em que a elite encenava um verdadeiro “teatro social”. Foi nesse contexto que Mário Palmério construiu seu legado, aproveitando-se dessa conjuntura social para consolidar uma imagem mítica.

Essa teatralização fica clara desde o sumário da obra, dividido em duas partes principais, chamadas pelo autor de atos. Essa escolha não foi aleatória, e já mostra ao leitor que a trajetória de vida de Mário Palmério será apresentada como um espetáculo que deve ser acompanhado num crescente narrativo: da infância até a consolidação profissional e política.

O primeiro ato, intitulado “Mário Palmério na escalada do reconhecimento social”, é dividido em quatro cenas principais. Na primeira delas, “O prestígio familiar”, o autor faz uma apresentação do contexto: Palmério era o filho caçula do engenheiro e advogado Francisco Palmério e de Maria da Glória Palmério, casal notório da sociedade uberabense. Ao longo dessa primeira parte, o autor explicita como o personagem sempre trabalhou na construção de uma imagem pessoal forte, na tentativa de alcançar a importância do pai e dos irmãos.

A cena seguinte, “A socialização de Mário Palmério”, relata o retorno do personagem a Uberaba, depois de uma temporada de estudos em São Paulo. Para o autor, essa volta marcou a “emancipação simbólica” do personagem e deu início à terceira cena: “A ascensão profissional”, que mostra o começo da carreira docente de Palmério, com a criação do Liceu Triângulo Mineiro, passando pela Escola do Comércio do Triângulo Mineiro até o apogeu com a abertura da Faculdade de Odontologia.

O primeiro ato tem como desfecho “A consagração pública”, etapa na qual Palmério se consolida enquanto figura de prestígio da elite e do povo. Mesmo que no íntimo fosse avesso à teatralização social, o personagem participou do jogo de encenação para alcançar seus objetivos pessoais. Nesse ponto, há um avanço na narrativa que culmina no segundo ato, denominado “A consagração do mito”, dividida em três cenas principais.

A segunda fase da história é introduzida com o pensamento de Schwartzenberg, além de Balandier e Girardet, que analisam o poder político a partir do arquétipo mítico do herói como um enviado capaz de conduzir o povo à terra prometida. Esse prólogo delineia um novo rumo na narrativa, que tem início na cena “O tempo da espera”, na qual o autor relata o conturbado momento político do pós-guerra num Brasil marcado pela consolidação do Estado Novo.

A cena seguinte, “Crises”, apresenta uma série de perturbações de diversas ordens, social, econômica, política e identitária, que afetaram Uberaba e o Triângulo Mineiro entre as décadas de 1940 e 1950, crises essas que culminaram numa proposta de separação da região do Triângulo do território de Minas Gerais. Foi esse contexto que serviu de pano de fundo para a cena seguinte: “O anúncio do herói”. Nessa fase, Palmério já era figura de bastante destaque na cidade, sempre à frente de projetos educacionais e assistencialistas. O anúncio de sua candidatura a deputado federal, em 1950, foi quase que uma consequência de sua ascensão apoteótica.

Depois de um pleito bastante agitado, o professor saiu vitorioso. Para o autor, essa sagração só foi possível graças à maneira como Palmério gerenciou a própria imagem. Depois de alguns mandatos e cargos públicos, o último deles como embaixador do Brasil no Paraguai, Palmério desiludiu-se com a política e passou a se dedicar à literatura, período em que escreveu seu segundo romance: Chapadão do Bugre (1965). Em 1970, ele concorreu novamente à prefeitura de Uberaba mas foi derrotado, encerrando sua carreira pública sem grande prestígio.

A proposta apresentada pelo autor, de analisar a biografia de Mário Palmério através de um recorte da História Cultural, mostrou-se bastante válida, pois não se debruçou apenas na narrativa de vida, apresentando o contexto e as relações sociais e de poder como elementos constitutivos de uma teia mais ampla. Esse viés, muitas vezes deixado de lado nas biografias, faz com que o leitor possa compreender os fatos e ir além do que está narrado.

A obra traz ainda o diferencial de apresentar a ascensão de Palmério como consequência de uma construção mítica de sua imagem, dando aplicabilidade às teorias dos autores estudados durante a pesquisa. Dessa forma, o leitor pode compreender a História como um contexto em que fatos e ideologias se fundem na construção daquilo que tomamos como realidade.

O livro se destaca também por apresentar elementos visuais e gráficos, como fotografias, recortes de jornais e tabelas comparativas, que servem não apenas para ilustrar, mas para contextualizar o enredo e os cenários. Esses elementos se somam à narrativa ampliando as esferas de compreensão. Decerto, a proposta apresentada por André Azevedo pode ser replicada na reconstrução de outras biografias e fatos históricos ou até mesmo de contextos sociais.

Michel Oliveira – Mestrando em Comunicação e aluno de Especialização em Fotografia: Práxis e Discurso Fotográfico na Universidade Estadual de Londrina (UEL) (michel.os@hotmail.com.br).

A Era Vargas – BASTOS; FONSECA (EH)

BASTOS, Pedro; FONSECA, Cezar Dutra (orgs.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: UNESP, 2012. 476p. Resenha de: CARVALHO, Marina Helena Meira. A construção de uma era: Vargas e a formulação do desenvolvimentismo. Estudos Históricos, v.27 n.53 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

Pedro Zahluth BastosCezar Dutra Fonseca organizaram uma coletânea para analisar o desenvolvimentismo, que se teria iniciado na Era Vargas. Na apresentação eles se posicionam contra o liberalismo econômico e acreditam ser o conhecimento histórico importante ferramenta na busca de modelos de maior desenvolvimento econômico e justiça social. O livro elogia a prática intervencionista do Estado varguista para superar as crises econômicas e transformar o perfil do Brasil, de uma economia agrário-exportadora, em uma economia industrializada. A inovação está na interpretação de que o governo Vargas adotou, ao mesmo tempo, medidas ortodoxas e heterodoxas.

Além de a apresentação justificar a relevância do livro para o momento em que foi publicado, 2012, outros artigos também o fazem. Luiz Carlos Bresser-Pereira cita a pesquisa realizada pela Folha de São Paulo (2007) que elegeu Vargas o maior brasileiro de todos os tempos. Francisco Luiz Corsi afirma que o modelo econômico varguista, que vigorou até hoje, se teria esgotado, mostrando incertezas quanto aos rumos da economia. Diante da crise mundial de 2009 e das dúvidas sobre suas consequências para o Brasil, o livro ganha novo significado. Analisar as estratégias de Vargas diante do crash de 1929 torna-se relevante, 70 anos depois, pois a possibilidade de crise assombra novamente a economia brasileira.

A coletânea faz prevalecerem as análises dos organizadores, uma vez que os dois são autores da metade dos artigos que ela abriga. Apesar desse discurso hegemônico, ela abre espaço para abordagens diversas: econômicas, políticas, sociais, históricas, simbólicas. A análise do desenvolvimentismo une as múltiplas vozes. As interpretações contêm alguns pontos de divergência, como o uso ou não do termo “populismo”, o que as enriquece com um debate interno.

Apenas quatro textos da coletânea são inéditos. Os demais constituem versões modificadas de artigos publicados. A organização de textos antes dispersos muda-lhes o sentido, pois eles ganham uma coerência e uma unidade antes não existentes, evidenciadas, por exemplo, nas recorrentes citações de artigos anteriores do próprio livro.

Os dois capítulos iniciais, de Fonseca, dissertam sobre a genealogia do desenvolvimentismo e sua primeira experiência: o governo de Vargas no Rio Grande do Sul, em 1928. Fonseca conclui que quatro elementos antes experimentados separadamente no Brasil, o nacionalismo, a industrialização, o papelismo e o positivismo, ao se fundirem, mas se superarem individualmente, geraram o desenvolvimentismo.

Ângela de Castro Gomes e Bresser-Pereira, logo a seguir, lançam um olhar sobre a figura de Vargas e o autoritarismo pós-30. Se Gomes analisa como o personalismo foi uma modernização da cultura política brasileira paternalista, Bresser-Pereira identifica Vargas como estadista, homem que tinha a “visão antecipada do momento histórico que seu país ou sua nação está vivendo” (p. 94). Gomes mostra como o discurso de pensadores autoritários (Oliveira Vianna, Francisco Campos e Azevedo Amaral) foi incorporado para criar um Estado corporativo, forte e centralizado, em que a democracia passou a ser social. Para Bresser-Pereira, entretanto, a democracia só seria possível no país após um regime autoritário que realizasse a revolução nacional brasileira, ou seja, transformasse o povo em nação e completasse a transição econômica para o capitalismo. Apesar das divergências entre os dois autores, há uma confluência quanto à importância do mito do líder diante de um Estado autoritário. A narrativa de Bresser-Pereira deve, contudo, ser tomada com cuidado, uma vez que realizações políticas aparecem como justificativas para a censura e as violações de direitos (p. 115).

Após avaliar as mudanças políticas, principalmente na concepção de sociedade, a coletânea se concentra nas mudanças econômicas. Perpassa os capítulos de Wilson Cano, Fonseca, Bastos e Corsi a ideia de que o projeto econômico estava em construção. Os autores negam a tese de Celso Furtado da inconsciência do governo diante da reorientação da economia, segundo a qual a industrialização do Brasil seria resultado de choques externos e de políticas de proteção do café, heterodoxas. Negam também as análises de Peláez, para quem Vargas teria optado pelo caminho ortodoxo para superar a crise.

Ressalta-se, na coletânea, que a agricultura não foi abandonada em detrimento da indústria. A proteção do café foi perdendo espaço gradativamente para a policultura, voltada para o mercado interno (p. 204). A industrialização como prioridade governamental visou à superação da condição de agrário-exportador, à substituição de importações e à manutenção da soberania política e econômica. A falta de recursos internos para seu financiamento foi um empecilho. Assim, o governo adotou uma política conciliatória, munindo-se de heterodoxia econômica no plano interno, através do incentivo agrário, e de ortodoxia no plano externo, pois necessitava do capital estrangeiro para financiar as indústrias. A Era Vargas não poderia, portanto, ser considerada xenófoba ou entreguista.

Os últimos capítulos analisam as crises do projeto Vargas e o apoio/oposição de determinados segmentos. Jorge Ferreira problematiza os conceitos de trabalhismopopulismo e nacional-estatismo e as intencionalidades do ato da nomeação. Lígia Osório, por sua vez, mostra a oposição surgida no pós-guerra no âmago do Exército, a qual teria gerado o golpe de 1945. Bastos se concentrará no segundo governo Vargas, momento em que as conjunturas políticas eram diversas, o que não permitia o uso dos mesmos instrumentos de barganha empregados no primeiro governo. Esse núcleo como um todo desenha a perda de apoio interno e a falência da estratégia de financiamento externo do programa de desenvolvimento, entravada pelo governo Eisenhower, culminando no suicídio de Vargas.

O legado varguista, entretanto, permaneceria. Seja nas instituições criadas ou modificadas por ele, na CLT, na Justiça Trabalhista, seja na ideia de que o liberalismo não resolve a desigualdade social, mas a aprofunda em épocas de crise. Seja também graças ao continuísmo, ainda que reformulado, do desenvolvimentismo nos governos JK, Jânio e Jango, e até mesmo durante a ditadura militar. A repressão às formas autônomas de organização de trabalhadores, o autoritarismo político e a organização econômica estariam superadas atualmente.

Apesar do uso do termo revolução por alguns dos autores, a relação ruptura/continuidade torna-se um fio condutor do livro, evidenciando as constantes escolhas do governo Vargas, de um lado, e as rupturas e as continuidades dos governos seguintes em relação ao seu projeto, de outro.

Essa abordagem econômica do Estado Novo, que interpreta a concomitância das práticas ortodoxas e heterodoxas, e vê a industrialização como decorrência de escolhas internas incentivadas pela conjuntura externa, entra em embate com estudos clássicos, como os de Furtado e Peláez, que influenciaram toda uma geração.

Nos últimos 30 anos muitos são os autores que se têm dedicado à Era Vargas, usando abordagens culturais e políticas. Este livro realiza importante discussão na perspectiva da História Econômica e faz, ainda, ponte com outras áreas, como Culturas Políticas, História Militar, das Instituições e Cultural.

A coletânea se concentra num estudo de caso brasileiro entre as décadas de 1930 e 1950, mas suas análises ultrapassam os marcos espaciais e cronológicos. Os autores estabelecem conexões com o contexto mundial e especificamente da América Latina e também recuam e avançam no tempo para mostrar as rupturas e continuidades de uma era, revelando-se importante referência não só para os que estudam o varguismo. Deve-se, entretanto, ter cautela com a abordagem militante de alguns capítulos, os quais mobilizam fatos históricos para defender práticas antiliberais e autoritárias e deixam a desejar quanto à historicização do tema. A retomada dessa valoração ganha sentido em um contexto de crise mundial, em que vários governos repensam suas práticas político-econômicas.

Marina Helena Meira Carvalho – Mestranda em História e Culturas Políticas na UFMG (marinahmc@yahoo.com.br).

Os inimigos íntimos da democracia – TODOROV (EH)

TODOROV, Tzevetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 215p. Resenha de: LA QUADRA, Fernando M. Os riscos da democracia no mundo contemporâneo. Estudos Históricos, v.27 n.53 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

No seu breve e incisivo ensaio, o filólogo, historiador das ideias e intelectual búlgaro radicado na França expõe com proverbial claridade os principais riscos que as democracias enfrentam no mundo contemporâneo, a saber, o messianismo, o ultraliberalismo e o populismo.

O mais assustador desse perigo é que ele nasce da própria esfera democrática, quando os valores e mecanismos mutuamente compartilhados adquirem um “descomedimento” (húbris), ou seja, quando ocorre um uso excessivo e distorcido de tais valores. Isso acontece quando os ideais da vida democrática como progresso, liberdade ou povo são absolutizados a tal ponto que se transformam em elementos de coerção das comunidades e dos indivíduos. Nas palavras de Todorov, “o povo, a liberdade, o progresso são elementos constitutivos da democracia; mas se um deles se emancipa de suas relações com os outros, escapando assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em único e absoluto, eles transformam-se em ameaças: populismo, ultraliberalismo, messianismo, enfim, esses inimigos íntimos da democracia” (Todorov, op. cit.: 18).

No início do livro, Todorov tenta demonstrar que, ao contrário do que é difundido permanentemente pelos políticos, pelos experts e pela mídia em geral, o islamismo integrista e os grupos terroristas jihadistas (como a Al-Qaeda) não representam uma ameaça significativa para as democracias ocidentais se comparados com aquelas formas totalitárias ocorridas durante o século XX, como o comunismo ou o nazifascismo. A ideia de tal ameaça é uma perspectiva errada, construída intencionalmente para ocultar os verdadeiros riscos que enfrentamos atualmente: o perigo realmente imperante está nas forças deletérias internas que a própria democracia produz, e combatê-las e neutralizá-las é tanto mais difícil, pois elas invocam o espírito democrático quando na realidade estão corroendo seus pilares. Como dizia Blaise Pascal, “nunca se faz tão perfeitamente o mal como quando se faz de boa vontade”. É o Mal surgindo do Bem.

Na história humana, a procura do Bem frequentemente se ergueu a partir do convencimento de que os outros precisam de ajuda e “salvação”, razão pela qual me transformo na encarnação da missão de construir a redenção universal. Esse messianismo se expressou em diversos momentos históricos – nas guerras revolucionárias e coloniais, bem como no projeto comunista -, mas na forma contemporânea ele se veste com as roupagens dos valores democráticos universais, quando são simplesmente desejos de poder e riqueza travestidos de humanismo.

De fato, o conceito de “guerra humanitária” representa uma contradição flagrante, dado que dificilmente se pode pensar que as ações decorrentes de uma guerra possam trazer algo de humanidade no seu seio. No entanto, o que é passível de apreciar através de todos esses conceitos é que a grande maioria das intervenções tem sido motivada por razões de orgulho e de poder e que sua justificação aduzindo pretextos humanitários representa um tipo de messianismo interessado que provoca mais danos que benefícios para os povos que se pretende proteger. Efetivamente, o resultado desses empreendimentos somente conduziu a um aumento dos desastres da guerra com sua enorme sequela de vítimas inocentes.

A outra forma que a democracia possui de converter-se em sua própria inimiga diz respeito à perda do equilíbrio que deveria existir entre o poder consagrado ao povo e a liberdade dos indivíduos. Portanto, o vínculo que se estabelece entre a soberania do povo e a autonomia da pessoa – nos adverte Todorov – precisa ter uma limitação mútua, em que “o indivíduo não deve impor sua vontade à comunidade, e esta não deve interferir nos assuntos privados de seus cidadãos” (Todorov, op. cit.: 16).

A oposição entre populismo e ultraliberalismo convoca-nos então a pensar nos limites que é indispensável estabelecer para que as duas dimensões se mantenham em equilíbrio, ainda que, parafraseando Norbert Elias, isto se dê através de um “equilíbrio móvel de tensões”. Sempre existe o perigo de que a consagração do popular possa se tornar a encarnação do bem coletivo e, consequentemente, alimentar a ideia de que certos valores como a pátria, a raça ou a comunidade devem ser compartilhados pela totalidade dos seres humanos. Na verdade, se o equilíbrio é instável, isso implica que se pode transitar facilmente para expressões de autoritarismo, xenofobia, racismo e intolerância à diversidade, quando o diferente é rejeitado por constituir ameaça à essência de determinado povo.

Dessa maneira, o populismo hipertrofiado impede que se reconheça a humanidade dos outros e dissemina a intolerância em relação àquilo que é diferente. Por isso a democracia corre um grave risco quando é substituída pelo populismo, “que ignora a diversidade interior da sociedade e a exigência de visar, para além das satisfações imediatas, as necessidades do país em longo prazo” (Todorov, op. cit.: 195).

Contrariamente, no conflito com o populismo e suas formas autoritárias, a hipervalorização dos indivíduos pode acarretar o desprezo por tudo aquilo que visa ao coletivo. Sendo assim, a liberdade individual e a vontade do indivíduo se superpõem a qualquer intento de construir o bem-estar geral; as pessoas são movidas por um repertório de preferências individuais, especialmente econômicas, veem-se isoladas umas das outras e rejeitam a tessitura social. Sabemos por toda a tradição sociológica que a sociedade não se resume à mera soma dos indivíduos que fazem parte dela: diferentemente disso, ela é um produto das interações precedentes e constantes que se estabelecem entre seus membros.

Sendo a liberdade individual um aspecto fundamental da democracia, ela pode também constituir-se numa ameaça quando se cinde do todo social, quando consagra a vontade dos indivíduos acima da coletividade, quando adquire um poder ilimitado acima da vontade geral. No intento de libertar as pessoas das ataduras e da subordinação do Estado, o ultraliberalismo deixa os indivíduos à mercê do mercado e das empresas. Opondo-se a toda medida de regulação por parte dos poderes públicos, o ultraliberalismo deixa a humanidade órfã de proteção, entregue ao livre jogo da oferta e da procura, dos mercadores, dos financistas e dos poderosos.

Estamos finalmente na presença de uma tríade (messianismo, populismo, ultraliberalismo) que vai corroendo os fundamentos da própria promessa democrática, de sorte que os princípios essenciais do discurso democrático se transformam em ameaças concretas: “a liberdade torna-se tirania, o povo se transforma em massa manipulável, o desejo de promover o progresso se converte em espírito de cruzada. A economia, o Estado e o direito deixam de ser meios destinados ao florescimento de todos e participam agora de um processo de desumanização” (Todorov, op. cit.: 197).

Que podemos fazer para superar esse cenário aparentemente irreversível? Quiçá uma resposta possa ser procurada nas palavras finais do autor, quando ele assinala que um remédio para os nossos males contemporâneos deveria consistir numa evolução das mentalidades que permitisse “recuperar o entusiasmo do projeto democrático” e tentar construir um melhor equilíbrio entre seus princípios fundamentais, progresso, povo e liberdade.

Nelson Mandela costumava dizer que, assim como a escravidão e o apartheid, a pobreza não é um acidente. É uma criação do homem e pode ser eliminada com ações dos seres humanos. Talvez as aspirações e esperanças de Todorov passem longe dos desafios que temos pela frente, mas seu diagnóstico das sociedades modernas e seu apelo incontestável à força da vontade humana são um primeiro intento válido de avançar no esforço coletivo para fazer do mundo um espaço de convivência mais plural, afetuosa e fraterna.

Fernando Marcelo de La Cuadra – Sociólogo formado pela Universidade do Chile e doutor em Ciências Sociais pela UFRRJ. È pesquisador da Rede Universitária de Pesquisadores sobre a América Latina (RUPAL) e do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO) (fmdelacuadra@gmail.com).

Économie politique du racisme au Brésil – CHADEREVIAN (EH)

CHADEREVIAN, Pedro. Économie politique du racisme au Brésil: de l’aboliton de l’esclavage à l’adoption des politiques d’action affirmative. Saarbrücken: Éditions Universitaires Européennes, 2011. Resenha de: LANA, Rita de Cássia. Economia da discriminação. Estudos Históricos, v.26 n.52 Rio de Janeiro July/Dec. 2013.

As políticas públicas dirigidas à diminuição da desigualdade social pela via da educação superior, seja sob a forma de quotas ou de outros mecanismos correlatos que surgem nas discussões atuais da sociedade brasileira, já de algum tempo vêm ocupando as reflexões de acadêmicos, políticos, membros de movimentos sociais e outros atores que enunciam discursos sobre o tema. O preconceito racial, a segregação, a distribuição desigual da riqueza penalizando os mais carentes têm raízes históricas que explicam o percurso de exploração que caracteriza até hoje a vida cotidiana da maior parte da população brasileira.

Já em 2002 a revista Estudos Históricos publicava o artigo “Para que serve a história econômica? Notas sobre a história da exclusão social no Brasil”, do Prof. Dr. João Fragoso, no qual se encontrava a seguinte afirmação: “São poucos os trabalhos, ainda, que procuram estudar temas como o chamado pequeno comércio e seus agentes; a mobilidade social dos pardos e forros; os mecanismos de exclusão social, e as elites e suas estratégias de acumulação (políticas de casamento, negócios etc.). Um dos traços da atual pesquisa é que a sociedade brasileira dita escravista teve uma história […], fato que contribui decisivamente para o entendimento da historicidade dos mecanismos de exclusão social”. Ora, eis algo que avulta na obra do Prof. Dr. Pedro C. Chadarevian, publicada dez anos depois: precisamente o cuidado em esmiuçar tanto quantitativa quanto qualitativamente as dimensões raciais da exclusão econômica, bem como algumas de suas faces sociais e ideológicas. Sob essa perspectiva, portanto, Chadarevian corresponde às inquietações que Fragoso havia formulado sobre o destino da pesquisa em história econômica, visto que seu livro tanto oferece ao leitor abundância de dados, gráficos e tabelas ao expor o resultado de suas pesquisas sobre a exclusão racial no Brasil, quanto expõe claramente seu horizonte teórico e seu comprometimento político com o seu tempo.

Fruto de tese de doutoramento defendida em 2006, a obra se debruça sobre a economia e suas relações com a questão racial em perspectiva histórica e em seus desdobramentos no presente da sociedade brasileira. Assim, a partir de um viés de análise estatística e de estudos recentes sobre as razões da desigualdade social, o autor constata que mecanismos de discriminação presentes no mercado de trabalho atuam no sentido de reforçar uma “etnicização” da mão de obra no Brasil. A economia, portanto, se configura como um dos eixos centrais da produção e reprodução – até mesmo em nível ideológico e cultural/discursivo – das desigualdades raciais no país; raça e classe se articulam, pois, para a manutenção da mão de obra segregada, à disposição das necessidades dos ciclos de acumulação.

Partindo da hipótese que remete ao discurso econômico das elites como instrumento de relevância ao longo da história na reprodução de um quadro de hierarquização racial da mão de obra no Brasil, o autor nos apresenta a trajetória da desigualdade desde o marco da abolição no final do século XIX até o cenário mais recente de estratégias excludentes que perduram no país; um exemplo atual está no contexto do pensamento econômico neoclássico predominante, no qual se encontra o discurso de que para o mercado ideal apenas poderiam subsistir diferenças de caráter meritocrático, o que justificaria um certo enfoque nas políticas públicas endereçadas ao setor da educação.

A obra se divide em duas partes. A primeira se volta para o retrospecto histórico das ligações entre ideias econômicas e a questão da raça, passando pelas teorias científicas que sustentavam o racismo no século XX e expondo os temas da raça, classe e revolução no contexto do pensamento marxista até 1964; encerrando esta parte e já sinalizando o que seguirá, empreende-se uma crítica à teoria neoclássica da discriminação. A segunda parte destina-se a oferecer ao leitor um panorama do pensamento econômico brasileiro atual, reforçando a crítica do modelo neoclássico pela exposição das suas fragilidades e incoerências, desmontando a argumentação de que o mero desenvolvimento do livre mercado seria suficiente para extinguir a desigualdade ao longo do tempo.

Ao expor dados estatísticos e estudos demográficos referentes à pirâmide social brasileira, ao quadro da segmentação entre trabalhadores brancos e negros no mercado, discutindo diversas abordagens das categorias de classe social e raça articuladas no processo de manutenção da desigualdade, Chadarevian proporciona ao leitor a possibilidade de vislumbrar as sutilezas da realidade racial no país tanto em seus aspectos concretos como nas traduções dessa hierarquização racial em termos de discussão sobre os pressupostos ideológicos e teóricos embutidos em índices e coeficientes, ou de descrição de mecanismos de exclusão adotados no mercado de trabalho que impactam negros e mestiços, algo que fornece a dimensão do que se poderia denominar “barbárie racial” no mercado de trabalho.

Ao final desse tour de force analítico, encontra-se a proposição de um método de cálculo de um índice para aferir a desigualdade racial nas relações produtivas segundo a racialização da exploração da mão de obra: trata-se do IHR (índice de hierarquização racial). O IHR apresenta-se, pois, como o corolário de toda a discussão teórica e do percurso histórico expostos sobre a desigualdade social em conexão com o problema racial, na medida em que intenta conferir mensurabilidade às particularidades observadas e fornecer um viés de avaliação para políticas de ações afirmativas que se desprenda da lógica de acumulação do capital e das insuficiências das teorias econômicas ortodoxas.

Na conclusão da obra, Chadarevian aponta ainda as tarefas e desafios que se apresentam para o aperfeiçoamento das análises interessadas em conduzir ao entendimento mais amplo da economia política do racismo, reconhecendo a necessidade de aprofundar teoricamente os fundamentos que emergem da realidade econômico-social observada.

Ficam os votos de que não se alongue a espera pela versão em português desta obra excepcional para as questões raciais contemporâneas que afloram no Brasil e no mundo.

Rita de Cássia Lana – Doutoranda em História Social na USP e professora de História da Universidade Federal de São Carlos, campus de Sorocaba, São Paulo, Brasil (lanarcassia@yahoo.com.br).

O “mundo negro”: relações raciais e a constituição do Movimento Negro contemporâneo no Brasil –  PEREIRA (EH)

PEREIRA, Amilcar Araujo. O “mundo negro”: relações raciais e a constituição do Movimento Negro contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas/Faperj, 2013. 344 p. Resenha de: TRAPP, Rafael Petry. Espectros raciais: uma história do Movimento Negro contemporâneo no Brasil. Estudos Históricos, v.26 n.52 Rio de Janeiro July/Dec. 2013.

Nas duas últimas décadas uma grande discussão pública sobre o racismo tomou corpo no Brasil. Da aprovação da Lei 10.639, de Ensino de História e Cultura Afro-brasileira, em 2003, aos debates (e embates) em torno no Estatuto da Igualdade Racial, de 2010, passando pelos inúmeros e polêmicos programas de ação afirmativa, as questões em torno da etnicidade são parte da agenda nacional. Essa inédita conjuntura histórica não pode ser pensada sem se considerar como fundamental a atuação do Movimento Negro brasileiro, que logrou, desde o final dos anos 1970, a desconstrução do mito da democracia racial e a construção de diálogos com o Estado que possibilitaram que o antirracismo se institucionalizasse através de políticas públicas.

O livro de Amilcar Araujo Pereira, originalmente tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), traz à tona novos olhares sobre a difícil e conturbada história do Movimento Negro contemporâneo no Brasil. Trata-se, talvez, da primeira grande tentativa de síntese da história desse movimento social na história republicana brasileira. Fazendo uso de um expressivo cabedal documental, que vai de jornais da Imprensa Negra à história oral, o autor se debruça sobre a história do racismo/antirracismo no século XX.

O objetivo do livro, segundo o autor, é “examinar aspectos da história do movimento negro no Brasil e das trajetórias de algumas de suas principais lideranças” (p. 40). Identificando na questão racial o diferencial desse movimento, o autor parte, no primeiro capítulo, para uma sucinta revisão bibliográfica sobre a construção da ideia de “raça” na modernidade ocidental e alguns de seus reflexos no Brasil. A compreensão desse processo mostra como a ideia de “raça” é datada historicamente e assumiu diferentes significados ao sabor das conjunturas. Essa empresa é fundamental, pois, para além da importância da “questão racial” na história brasileira, “raça” é a categoria em torno da qual o Movimento Negro vai constituir suas perspectivas de solidariedade política e identidade étnica nos anos 1970.

O capítulo seguinte discute a conceituação de Movimento Negro e seus contextos de emergência durante o século XX. Após um breve relato sobre as primeiras organizações negras, como a Frente Negra Brasileira (FNB), da década de 1930, o autor procura estabelecer certas especificidades do Movimento Negro “contemporâneo” em relação aos que o antecederam. Ao contrário da FNB, cujo teor político recaía no assimilacionismo cultural, o movimento contemporâneo se diferenciaria por sua oposição ao mito da “democracia racial” e pela construção de uma identidade política negra. O principal marco nesse sentido é o Movimento Negro Unificado (MNU), surgido em São Paulo, em 1978. O MNU advogava uma revisão do papel do negro na história do Brasil e se opunha frontalmente aos cânones da identidade nacional da mestiçagem e da “harmonia racial”.

Na terceira parte, Pereira busca “refletir sobre as relações entre o movimento negro contemporâneo no Brasil e as influências externas” (p. 144) no eixo Brasil-Estados Unidos-África, analisando essa relação a partir da circulação de referenciais no âmbito do Atlântico Negro. É, possivelmente, o ponto mais importante e original do livro. O olhar retorna à primeira metade do século XX, e nesse momento é analisada uma série de matérias sobre a situação racial brasileira em dois dos mais importantes jornais da Imprensa Negra estadunidense, o The Baltimore Afro-American, de 1896, e o Chicago Defender, de 1905.

O autor mostra, com propriedade, o intenso trânsito de ideias que se constituiu entre ativistas da questão negra dos Estados Unidos e do Brasil, já nos anos 1920, através, por exemplo, das trocas de informações e referenciais entre os jornais O Clarim d’Alvorada Chicago Defender. Além de indicar como a imagem “racial” do Brasil constituía elemento contrastante importante para os negros norte-americanos, percebemos aí as modificações dessa mesma imagem ao longo das décadas nesses jornais nos Estados Unidos. Pereira demonstra que o próprio Movimento Negro norte-americano tinha como elementos importantes a pluralidade e a diversidade de concepções de afirmação cultural e luta política, constituindo-se também a partir de influências externas.

Essa discussão responde, primordialmente, ao já extenso debate sobre a “americanização” do Movimento Negro brasileiro, que se insere, por sua vez, na tradição comparativa de estudos sobre as “relações raciais” no Brasil e nos Estados Unidos. Investindo sobre a assertiva de que o Movimento Negro brasileiro dos anos 1970 não seria mais do que uma “cópia” do norte-americano, e de que teria importado “ideias fora do lugar”, Pereira conclui que “o movimento negro nunca foi apenas receptor”, mas serviu até mesmo como “referencial para outros negros em suas lutas na diáspora” (p. 164). Esse aspecto do Movimento Negro brasileiro enfatiza uma escolha teórica bastante acertada da obra em questão, qual seja, a de pensar as lutas negras sob o signo da transnacionalidade, para além das demarcações materiais, simbólicas e epistêmicas das fronteiras nacionais.

Embora indique por alto com quem está dialogando, o autor traz elementos empíricos novos e dá mais nós no novelo da discussão da “questão racial”, construindo um espaço na historiografia sobre racismo/antirracismo no Brasil. Sob muitos aspectos, o livro é um avanço em relação a outras tentativas de interpretação do Movimento Negro brasileiro, como, por exemplo, a empreendida por Michael Hanchard em seu marcante Orfeu e o poder, de 1994. Em que pese a profundidade da tese de Hanchard, ao contrário deste, Pereira desloca o olhar para o Brasil como um todo e vai além dos apriorismos analíticos de Orfeu e o poder.

Ao demonstrar a complexidade da formação do Movimento Negro contemporâneo, as redes de relações entre os militantes entre si e com o Estado, as múltiplas influências e a criação e usos de uma memória de luta antirracista, o autor consegue, pelo desnudamento da historicidade do Movimento Negro, se resguardar de um espectro analítico subsumido a projetos políticos e engajamentos mais passionais. Esse tipo de abordagem constitui, malgrado sua importância política, grande parte dos trabalhos sobre a questão negra e do racismo/antirracismo no Brasil.

A despeito dos acertos, alguns pontos importantes poderiam ter sido mais bem trabalhados. A interlocução teórica com o conceito de Atlântico Negro, tal como concebido por Paul Gilroy, carece de aprofundamento. Aceita-se a existência desse espaço teórico-metafórico como algo dado, como se as especificidades da experiência negra e antirracista no Brasil não concorressem para tensionar a própria ideia de Atlântico Negro, posto que no livro de Gilroy a história escravista e negra brasileira é praticamente ignorada.

Por outro lado, uma análise de história intelectual da questão racial poderia ter sido incluída para enriquecer o debate. Autores fundamentais como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, entre outros, são parcamente analisados em sua relação com a construção do Movimento Negro contemporâneo. Além disso, um olhar mais atento ao tempo presente ensejaria ao autor inserir-se de maneira mais enfática em debates candentes da contemporaneidade, como a questão da “racialização”, capitaneada pelo Movimento Negro, e seus impactos nas políticas públicas antirracistas.

Rafael Petry Trapp – Mestrando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e bolsista do CNPq (rafaelpetrytrapp@hotmail.com).

História, teoria e variações – NEVES (EH)

NEVES, Guilherme Pereira das. História, teoria e variações. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011. 328 p. Resenha de: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Sobre hermenêutica e perspectivas historiográficas. Estudos Históricos, v.25 n.50 Rio de Janeiro July/Dec. 2012.

Ao olhar a capa de História, teoria e variações, pensei: é bem a cara do autor do livro. Alguns dias depois, lendo um dos textos da coletânea, minha “abdução peirceana” mostrou-se correta. Minha hipotética afirmação foi confirmada com a leitura do capítulo intitulado “História e método”. Nele, o autor, Guilherme Pereira das Neves, explica sua predileção pela pintura Gilles, de Jean-Antoine Watteau – a imagem da capa do livro -, contrapondo-a ao desenho de Paul Klee, Angelus Novus, que Walter Benjamin escolheu para ilustrar sua conhecida tese de número nove “sobre o conceito da História”. Após referir-se ao “respeito que a trajetória e a obra de Benjamin merecem” – com o que concordamos -, Guilherme Pereira das Neves confessa a sua “dificuldade para enxergar” o que Benjamin vê no desenho de Klee para, em seguida, afirmar que, “num certo sentido, a perspectiva que [Benjamin] expõe sobre a história encontra-se na contramão daquela a favor da qual gostaria de aqui argumentar” (p. 104).

Ainda que viéssemos acompanhando a perspectiva “sobre a história” adotada pelo autor de História, teoria e variações, ele declara estar em busca da compreensão de “nossa consciência histórica” (grifos no original), por intermédio da qual nós nos esforçamos para “encontrar um significado para as vidas que levamos no mundo desencantado que é o nosso” (p. 123). Guilherme Pereira das Neves deixa, assim, explícito seu interesse pela proposta hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, com a qual concilia a história das linguagens políticas e a história dos conceitos.

Contudo, é conveniente olharmos para a estrutura do livro, dividido em duas partes e com 12 capítulos que nos permitem acompanhar sua trajetória intelectual e nos convidam ao exercício de uma necessária reflexão sobre a prática da história e o papel do historiador. A primeira parte do livro tem um viés mais teórico e recebeu o nome de “O caminho da reflexão”. A divisão, contudo, não é rigorosa, e a segunda parte – “O caminho da aplicação” – traz um conjunto de textos que “procuram girar não só em torno de um certo tipo de história que o autor tem aprendido a praticar, como das dificuldades que encontrou para fazê-lo” (p. 12); quer dizer, a todo o momento, a prática e a reflexão sobre a prática se entrelaçam: o livro é um exercício de teoria e de historiografia.

A trajetória intelectual do autor – expressa na sequência dos capítulos, que seguem uma relativa ordem cronológica – permite perceber como ele fez suas escolhas historiográficas. Nesse percurso, ele mostra – e nós podemos acompanhar – os momentos de crise e de perplexidade que viveu com a disciplina, suas insatisfações e, principalmente, os esforços do pesquisador comprometido em “dominar a teoria e a metodologia da história”, que ensina em sua atividade de professor do Departamento de História da UFF desde 1977 (p. 13).

Como mencionado, História, teoria e variações é um convite para refletirmos sobre a prática historiográfica; ao mesmo tempo, apresenta bons textos sobre o Antigo Regime português, sobre a Ilustração luso-brasileira, sobre a constituição do Império e a formação da nação brasileira. São textos que abordam a “cultura e a política no mundo luso-brasileiro”, a trajetória de “letrados”, o funcionamento de instituições políticas e também discussões sobre “processos educacionais” inseridos entre a segunda metade do século XVIII e as décadas iniciais do século XIX. Todos esses temas são discutidos, como indicamos, a partir de algumas abordagens recentes que, infelizmente, são pouco (e/ou mal) exercitadas entre nós: a história das linguagens políticas e a história dos conceitos. Ressalte-se não ser este o caso aqui, pelo contrário.

Também é preciso dizer que os textos desta coletânea, que cobrem um período que vai da década de 1980 aos dias de hoje, não são todos inéditos. Apenas dois deles ainda não haviam sido dados a público. A providência de agrupar essa produção antes dispersa permite dirigir uma visada sobre parcela importante de um trabalho historiográfico que merece ser melhor conhecido e debatido. Além de uma bem cuidada revisão dos textos, o autor buscou dar ao conjunto a necessária unidade, que está evidenciada, por exemplo, na complementaridade entre o primeiro e o quinto trabalhos: “História: a polissemia de uma palavra”, dos anos iniciais da década de 1980, traz uma discussão sobre o confronto entre uma “história-narrativa” pré-Annales e a “história-problema”; “Aquém da história: os Annales aos 80 anos”, de produção recente, desenvolve o contexto historiográfico surgido com a “história-problema”, avançando sua análise até as novas gerações, quando se buscou introduzir “novamente o estudo da singularidade dos eventos e das personagens, em oposição à presença exclusiva das vastas forças anônimas e impessoais” (p. 100).

Ultrapassada a primeira parte do livro, tem-se contato, de modo mais sistemático, com a prática historiográfica do autor. Especificamente no que diz respeito à aplicação de sua perspectiva sobre a história, exposta em maior detalhe no capítulo sexto – “História e método” -, deve-se destacar que, se entendermos que os argumentos teóricos apresentados poderiam mostrar-se áridos, os textos da segunda parte do livro demonstram, com rara felicidade, as possibilidades de uma abordagem que concilia a hermenêutica de Gadamer com as linguagens políticas e a história dos conceitos.

Para avaliarmos em que medida a hermenêutica constituiu-se nessa atitude metodológica tão valorizada por Guilherme Pereira Neves, precisamos considerar que ela, ao mesmo tempo em que nos concede acesso ao outro, oferece a possibilidade de construirmos nossa própria consciência histórica, ou seja, dá-nos a capacidade de perceber a historicidade dos outros e de nós mesmos. Nesse aspecto, todos os seis últimos textos, fruto dessa atitude, merecem leitura atenta, como a “reflexão” que os precede. Podemos, contudo, destacar os capítulos 11 e 12. Em “O Rio de Janeiro de 1794 no Tribunal das Luzes de Reinhart Koselleck”, o autor deixa mais explícito o recurso “à concepção de linguagens políticas, […] como também ao que se conhece como história dos conceitos” (p. 256). A hermenêutica de Gadamer também está presente nesse estudo que discute a “irradiação das Luzes” e busca uma “compreensão dos universos mentais em que estavam inseridos naturais do Brasil e de Portugal” (idem). Em “Independência e liberdade sem liberalismo: Brasil, c.1777-1870” (texto inédito, escrito em parceria com Lúcia Bastos Pereira das Neves), encontramos outro bem acabado exercício de aplicação da Begriffsgeschichte de R. Koselleck, ou melhor, da construção e do uso de uma dada terminologia nos debates em torno da formação ideológica do Império brasileiro. Aliás, não obstante os intensos debates sobre os sentidos de liberdade e de independência, conclui-se que “a experiência dos brasileiros continuava ainda a carecer, quase ao final do século XIX, daqueles processos de politizaçãoideologizaçãodemocratização e temporalização que viabilizaram para outras regiões o ingresso no mundo moderno” (p. 311, grifos no original).

Voltemos a Gilles, a imagem que está na capa do livro e que serve para ilustrar a perspectiva histórica com que Guilherme Pereira das Neves se identifica. Para ele, “o uso do passado já não serve para projetar um futuro para todos”; ao contrário, importa a possibilidade de construirmos a “consciência histórica” de um mundo (revelado pela pintura) que, produto de nossas vidas, é representado por “meio dos eventos e desencontros à nossa volta”. Assim, com o exercício consciente da “reflexão histórica”, poderemos compreender que, “mesmo no mundo fragmentado que é o nosso, é mais comum a compreensão do que a incompreensão” (p. 122-123).

Antonio Cesar de Almeida Santos – Antonio Cesar de Almeida Santos é professor do Departamento de História da UFPR (acsantos@ufpr.br)

Planos para o Império – SOUZA NETO (EH)

SOUZA NETO, Manoel Fernandes de. Planos para o Império: os planos de viação do Segundo Reinado (1869-1889). São Paulo: Alameda, 2012. Resenha de: IORIO, Gustavo Soares. Os planos para o Império e a história da geografia no Brasil. Estudos Históricos, v.26 n.51 Rio de Janeiro Jan./June 2013.

A história da geografia no Brasil é ainda uma temática que não dispõe de vasta bibliografia, mas esse quadro vem mudando. Um verdadeiro campo de estudos está em formação. Artigos, teses e livros têm surgido estabelecendo um diálogo mais próximo com a historiografia, trazendo debates teórico-metodológicos, levantando questões pertinentes à compreensão não só da geografia disciplinar, mas de todo um universo de representações e práticas sociais. Esse avanço é muito positivo para a geografia e para as ciências sociais como um todo, na medida em que a abordagem se volta para a construção e os usos históricos de conceitos e categorias; as formas de consagração das maneiras de ver e classificar o mundo, de qualificar lugares, identificar regiões, ordenar territórios.

O trabalho de Manoel Fernandes, originalmente tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade de São Paulo, é certamente uma das melhores expressões desse processo. Sua obra aborda os planos de viação elaborados no Segundo Reinado, entre os últimos anos da Guerra do Paraguai e a Proclamação da Republica (1869-1889). O autor analisa os planos de viação como interpretações sobre o território, ou melhor, interpretações sobre o território diante dos projetos de nação. Em suas palavras:

Diante desse quadro o que se nos colocou foi: como as elites liam o território a partir dos planos de viação? Como viam a nação a construir, já que propunham banhar os bárbaros do sertão com as águas civilizadoras do Atlântico? Quais problemas identificavam como sendo os mais urgentes do ponto de vista estratégico, comercial ou político para o Estado? Quais as dissensões políticas entre os engenheiros passíveis de serem percebidas nas soluções técnicas apresentadas por eles? Como o discurso técnico em torno das vias de comunicação a construir ganha importância política nas últimas duas décadas do Segundo Reinado? (p. 26)

Num contexto de fé no “progresso” e na “civilização”, expansão mundial do capitalismo em seu estágio imperialista e modernização através de Estados nacionais soberanos e territorialmente delimitados, o Brasil vivia a contradição entre suas heranças coloniais e o imperativo moderno. O ímpeto de se modernizar esbarrava em instituições arraigadas como a monarquia e o escravismo, em problemas estruturais como a dispersão territorial, a debilidade das vias de circulação e o arcaísmo evidenciado com a Guerra do Paraguai. Fazia-se necessário modernizar o Estado e para isso era preciso modernizar o território. É nesse contexto que surgem os planos viários.

Os autores desses planos são os sujeitos sociais da análise. Manoel Fernandes analisa esses sujeitos por três esferas que ele distingue em termos metodológicos (mas que se confundem na vivência objetiva): personagens, instituições e saberes. Ele trafega pela biografia de seus sujeitos,1 identifica os percursos de formação e os exercícios da profissão para caracterizá-los. Todos são homens, engenheiros, estudados em escolas militares (Academia Imperial Militar) e de engenharia civil (Escola Central, que depois veio a ser Escola Politécnica), na maioria das vezes com passagens pela Europa. Todos frequentavam lugares em comum, participavam de associações como a Sociedade Auxiliadora da Indústria (SAIN), o Instituto Politécnico e o Clube de Engenharia. Nesses meios de convivência teciam uma forte rede de socialização, e mesmo um espírito corporativo de uma profissão em ascensão. Projetavam-se como detentores de um saber técnico muito bem delimitado pela fronteira da matemática. Esse era o saber moderno, legitimamente capaz de planejar um sistema de transportes dinâmico, apto a integrar o território nacional para fins militares, políticos e comerciais.

Manoel Fernandes observa com astúcia a inserção social desses engenheiros. Bastante ativos por meio das associações e de seus trabalhos, eles se acomodavam – com algumas tensões – como arautos do progresso no seio da sociedade oligarca, bacharelesca, agrário-exportadora, escravocrata e monarquista no Brasil do Segundo Reinado (o Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Públicas era o maior contratante desses profissionais). Este é o ponto forte do livro: a composição de uma trama de sujeitos organizados em uma verdadeira corporação profissional que se põem como portadores de uma “novidade” (o saber técnico, moderno) e únicos na capacidade de concretizá-las. Oriundos das classes médias, misturados entre as elites tradicionais através das associações e atuações profissionais, os engenheiros difundiam as ideias progressistas da modernização, vindas fundamentalmente da Europa, e assumiam para si a competência técnica para conduzi-la. A engenharia se projetava como um saber necessário, e os engenheiros enquanto a personificação das “soluções técnicas”.

Os planos de viação são uma dessas soluções, e também a materialização das ideias e dos ideais que os autores portam no contexto discursivo no qual estão inseridos. Neles as divergências técnicas revelam dissensões políticas, como a opção por qual modal de transporte (ferroviário ou aquaviário) ou tamanho da bitola, no caso das ferrovias. De caráter estritamente técnico à primeira vista, esses debates remetem ao problema de como lidar com os fundos territoriais. Todas as soluções propostas nos cinco planos descritos convergem para a perspectiva de modernização territorial/estatal através de vias de comunicação a proporcionar uma efetiva ocupação do território em pequenas propriedades por colonos imigrantes ou escravos libertos. Como essas ideias contrariavam os interesses da oligarquia instalada, esses planos nunca foram postos em prática, o que de maneira alguma os deslegitima enquanto documentos do debate de um tempo histórico.

Manoel Fernandes se vale de uma base de documentos rica. Além dos cinco planos analisados diretamente, recorre a outros planos para regiões específicas, relatórios do Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, revistas e periódicos de instituições como a SAIN, o Instituto Politécnico, o Clube de Engenharia e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). São dignos de nota os mapas anexados ao livro, tanto os que ilustram os planos quanto outros encontrados no acervo do Arquivo Nacional.

Em suma, neste livro Manoel Fernandes de Souza Neto dá visibilidade a aspectos importantes da sociabilidade nos derradeiros anos do Brasil Império. Particularmente para os geógrafos – sobretudo aqueles envolvidos com o tema da história da geografia – há aqui um significativo avanço qualitativo em termos teórico-metodológicos. Efetivamente, o ponto central é o entendimento que ele nos traz de uma historiografia das ideias sobre o território, com suas respectivas inserções e significados políticos, identificando-as a sujeitos sociais concretos. Certamente uma boa leitura.

1 Os autores analisados, com as respectivas datas de seus planos, são: Eduardo José de Moraes (1869), João Ramos de Queiroz (1874), André Rebouças (1874), Honório Bicalho (1882) e Antônio Bulhões (1882). Foram esses os engenheiros que, no período recortado, publicaram planos que abrangiam todo o território nacional.

Gustavo Soares Iorio – Doutorando do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e bolsista do CNPq (gustavosoaresiorio@yahoo.com.br).

Hollywood cinema and the real Los Angeles – SHIEL (EH)

SHIEL, Mark. Hollywood cinema and the real Los Angeles. Sn.: Reaktion Books, 2012. 336 p. Resenha de: VAZ DA COSTA, Maria Helena Braga. Em busca da realidade urbana: a construção hollywoodiana de Los Angeles. Estudos Históricos, v.26 n.51 Rio de Janeiro Jan./June 2013.

Nem o cinema hollywoodiano nem a cidade de Los Angeles podem ser entendidos separadamente, pois existe uma relação simbiótica no que diz respeito à grande influência da cidade na produção dos filmes em Hollywood e, ao mesmo tempo, à enorme participação dos filmes produzidos em Hollywood na formação e no desenvolvimento urbano de Los Angeles. Esta é a principal premissa do mais recente livro de Mark Shiel, Hollywood cinema and the real Los Angeles.

A premissa é confirmada à medida que o autor investiga, considera e traça as interações da Los Angeles vivenciada na realidade concreta, a cidade real, com as organizações e empresas responsáveis pelo famoso “movie business“, isto é, a relação entre a “cidade dos anjos” e os processos de produção, distribuição e exibição dos filmes ali produzidos, focando no período crucial da construção dos primeiros estúdios, ainda nos anos 1910, até o período do declínio do sistema de estúdios, 50 anos depois.

A premissa, apesar de dogmática e possivelmente discutível, não é arduamente defendida pelo autor. Contudo, Shiel defende o argumento de que Los Angeles foi sim determinante para o desenvolvimento da “fábrica de sonhos” hollywoodiana principalmente durante a primeira metade do século XX. Para tanto, ele traça a evolução do cinema de Hollywood em quatro capítulos que empregam o que ele chama de “uma forma espacial” (a spatial motif) para vincular determinados gêneros fílmicos dominantes em determinando período ao que estaria simultaneamente acontecendo na cidade de Los Angeles no contexto do seu desenvolvimento urbano e arquitetônico.

Acompanhando o crescimento e o desenvolvimento urbano de Los Angeles – que acabaria por se tornar uma das dez maiores (em território) cidades no contexto mundial –, e relacionando-os às inúmeras fases pelas quais passou a indústria cinematográfica em Hollywood, Shiel pretende demonstrar como esta última contribuiu largamente tanto para o crescimento de Los Angeles como para as diversas crises no plano econômico, social, político e cultural que atingiram a cidade.

Tendo produtores e diretores pertencido e se engajado no contexto citadino em seu trabalho de produzir e dirigir filmes, seja no interior dos estúdios, seja em locações, a cidade de Los Angeles é um espaço permanentemente presente e por isso é percebida, entendida e discutida por Shiel como essencial para o “formato” dos filmes ali produzidos, que, distribuídos e assistidos em larga escala nacional e internacionalmente, acabaram por influenciar a maneira de ver e imaginar Los Angeles em todo o mundo.

O livro confere atenção ao cinema americano da primeira metade do século XX, mais particularmente às comédias (slapsticks) e sua forma de produção e ao filme noir, gênero essencialmente americano. Cada gênero é então explorado e comentado em suas especificidades enfatizando as peculiaridades da sua representação do espaço urbano e arquitetônico de Los Angeles bem como o estilo e a técnica empregados na filmagem e na produção em geral. Hollywood cinema and the real Los Angeles inclui muitas fotografias e novas evidências históricas proporcionando ao leitor uma experiência de visualização da “cidade dos anjos” a meu ver nunca vista anteriormente.

Mark Shiel apresenta ao leitor uma discussão e explicação realista sobre a maneira como a indústria cinematográfica em Hollywood ofereceu aos espectadores, em diversas partes do mundo, maneiras de ver e principalmente imaginar o espaço geográfico natural e construído de Los Angeles. Inovadoras são as formas pelas quais Shiel integra a discussão sobre os filmes e seu modo de produção aos modos, atitudes e entendimentos sobre como a indústria hollywoodiana “re-construiu” a cidade.

Los Angeles é uma cidade que condensa e articula diferentes ordens de paisagens: geográfica, geológica, cultural, econômica e política. É um lugar presente no mapa e na grande tela do cinema. Focando em um século de interações e divisões entre a cidade e o cinema que se desenvolveu no seu espaço geográfico, Mark Shiel introduz um novo tipo de ecologia urbana dos filmes, em que a paisagem e o ambiente construído ressoam aos brados na conjuntura do insistente sonho americano relacionado ao espaço e ao lugar, à vida, ao prazer e divertimento e ao local que permite que tudo atue em conjunto.

O argumento popular sobre Hollywood ter sido fundada para que os filmmakers pudessem escapar do agressivo reforço ao tipo de câmera produzido por Edison no lado leste dos EUA, que se considerou por muito tempo ser verdadeiro, parece ser no mínimo um exagero. Contudo, Shiel argumenta que há algumas evidências de verdade nessa história. Mas os produtores/diretores também se transferiram para Los Angeles por causa da qualidade do clima, que beneficiava seu trabalho oferecendo muitas horas de luz solar, e por causa da variedade oferecida pela paisagem – da costa do Pacífico às montanhas e ao deserto e às Missões Espanholas. Por volta de 1922, Los Angeles era responsável por 84% de toda a produção cinematográfica nos EUA, e poucos anos mais tarde foi descrita como “a harlot city – gaudy, flamboyant, richly scented, sensuous, noisy, jazzy“, como um “three-ring circus“.

À medida que Los Angeles começa a se tornar uma cidade, Mark Shiel explica, sua “forma” começa a afetar os filmes que ali eram produzidos e locados. Existe, contudo, um estranho lapso. Shiel relata o “mito” de Raymond Chandler “ter trazido” para o sul da California algo da estratificação por classe dos estilos arquitetônicos tão comuns em sua terra natal, a Inglaterra. Chandler, contudo, nasceu em Chicago e viveu em Nebraska até os 12 anos, e só então mudou-se para a Inglaterra. Retornou aos EUA aos 24 anos de idade e morou em Los Angeles até o fim da vida. Esse seria um pequeno erro se não presumisse que a Inglaterra “monopolizou” a visão de Chandler sobre a arquitetura como produtora de status em termos de classe social. De fato, Chandler poderia ter facilmente aprendido essa lição em Chicago, ou em casa, lendo livros como The great Gatsby. Em outras palavras, Shiel exagera de forma um tanto tendenciosa na tentativa de localizar o significado de Los Angeles em sua particularidade. O capítulo sobre o filme noir em Los Angeles faz um pouco mais do que apenas listar os filmes e reconhecer suas locações no espaço urbano: a Murder, my sweet, referenciado muitas vezes na Introdução, são dedicadas apenas poucas páginas no livro; a Sunset Boulevard, duas frases; clássicos noirs locados em Los Angeles como Out of the pastMildred Pierce e Chinatown não são nem mencionados.

O primeiro capítulo se concentra nos “traços” que podem ser visualizados por meio das imagens da memória, da história, e do aparecimento e sobrevivência da produção cinematográfica no local no período de 1900-1920. O segundo capítulo faz um tipo de “navigation” pelas comédias slapstick dos anos 1920 aos 1930 e mostra a importância da cidade como locação para esse gênero fílmico. O terceiro sugere que o “simulacrum” nos ajuda a ler os filmes sobre os filmes dos anos 1930 em seu contexto na cidade e na sua representação da cidade. Finalmente, o livro termina com o seu mais longo capítulo, sobre os pontos de pressão geopolítica (geopolitical pressure points) nos filmes noirs dos anos 1940 e 1950, aliando-os ao anticomunismo, à caça às bruxas que imperava em Hollywood e aos levantes e revoltas da classe trabalhadora em Los Angeles.

É preciso que se diga que o livro em alguns momentos força determinados entendimentos de forma esquemática. Não fica claro, por exemplo, de que maneiras “traço” e “simulacro” são necessariamente “spatial motifs“. Não tenho muita certeza sobre o que Shiel pretende quando afirma que os filmes noirs representam Los Angeles como um “ponto de pressão geopolítico”. Também não tenho certeza se isso tem muita importância, mesmo no contexto do que pretende o livro. Contudo, postos em evidência em grande parte do capítulo, os spatial motifs são “usados” por Shiel para interpretar as correlações entre o filme, seu processo de produção e o desenvolvimento urbano. Eles são assim um traço da “navegação”, um conceito organizacional latente mais do que uma ativa ferramenta heurística.

É necessário destacar a força e a importância do livro de Mark Shiel, a meu ver consequência do seu profundo conhecimento sobre os filmes que representam Los Angeles e o contexto histórico e cultural da cidade. Tal característica torna este um trabalho de pesquisa acadêmico e interdisciplinar que deve ser inserido não apenas no contexto da área da história do cinema, mas também na dos estudos sociológicos sobre o desenvolvimento urbano no contexto de uma concepção ampla sobre a história americana.

A história do cinema americano, seus gêneros fílmicos e sua relação com a representação da cidade de Los Angeles nunca antes foram tão profundamente analisados como um fenômeno integrado no caso de Hollywood e Los Angeles. O livro de Mark Shiel é finalmente um excelente trabalho de pesquisa e uma importante contribuição para os estudos urbanos e a história cultural do cinema. É, portanto, indispensável aos estudiosos, principalmente da história cinematográfica americana e suas representações de Los Angeles.

Maria Helena Braga e Vaz da Costa – Pós-doutora em Cinema pelo International Institute, University of California at Los Angeles (UCLA), com apoio financeiro da CAPES, e coordenadora do Grupo de Pesquisa Linguagens da Cena: Imagem, Cultura e Representação. É bolsista CNPq (mhcosta@pq.cnpq.br).

Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política – RIDENTI (EH)

RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política.  São Paulo: Editora Unesp, 2010. Resenha de: RODRIGUES, Lidiane Soares. Revolução e mercado. Estudos Históricos, v.24 n.48 Rio de Janeiro July/Dec. 2011.

“Fracasso político e sucesso profissional”: eis o subtítulo que um resenhista atrevido talvez sugerisse para Brasilidade revolucionária, que vem a lume pela Editora da Unesp, em 2010, sem a mais remota intenção de descredibilizar o subtítulo escolhido pelo próprio autor, “um século de cultura e política”. No entanto, é notável a tensão mantida em suspenso em seus trabalhos anteriores e que o autor ousa dar trato enfático nesse livro. O sociólogo Marcelo Ridenti empenha esforços, atiçado pelas dúvidas, estímulo de trabalho insubstituível, da geração dos nossos anos 1960. A reconstituição do “seu” século ambiciona responder, salvo equívoco de nossa leitura, a seguinte interrogação: como foi possível obras, artistas, livros, convicta e sinceramente anticapitalistas, alçarem tanto sucesso nos mercados correspondentes a suas atividades?

O livro compõe-se de cinco capítulos, abarcando o período que vai da Primeira República aos anos 1980. Em cada um dos contextos sociopolíticos tratados, é eleito um autor, grupo ou instituição, estratégicos para surpreender os elementos da “brasilidade revolucionária” como “estrutura de sentimento” – noção emprestada de Raymond Williams. A “brasilidade revolucionária” consiste “numa vertente específica de construção da brasilidade, aquela identificada com ideias, partidos e movimentos de esquerda – e presente também de modo expressivo em obras e movimentos artísticos” (p. 10). Já “estrutura de sentimento” refere-se ao conjunto mais representativo de agentes, práticas e produções culturais que deram conteúdo àquela “brasilidade revolucionária”, espécie de “sentimento pensado”/”pensamento sentido”. Essas noções não são os únicos suportes conceituais do livro, mas são centrais, perpassando todos os capítulos. Entre eles, o encadeamento se estabelece cronológica e significativamente; afinal, da Primeira República aos anos 1980, há uma espécie de emergência, auge e decadência da “brasilidade revolucionária” na “estrutura de sentimento”, processo apreendido em materiais expressivos os mais diversos, produzidos por agentes e instituições escolhidos para cada capítulo/período tratado.

Desse modo, o primeiro capítulo é dedicado à reconstituição e ao exame do percurso de Everardo Dias, uma biografia estratégica para o interessado nas lutas políticas do início do século XX no Brasil, bem como nos limites de abertura social do período, dada sua origem imigrante, seu zigue-zague entre prisão e liberdade, o trânsito em organizações de esquerda e na “sociedade dos bacharéis”. Nesse capítulo inicial, a sensibilidade historiográfica parece dar o tom que marca todo o livro. A escolha dessa biografia permite ao autor ligar o primeiro ao último capítulo do livro, a emergência ao ocaso da brasilidade revolucionária, por meio do auge dela.

Ao tomar como mote a segunda edição de História das lutas sociais no Brasil, de 1977, livro mais conhecido de Everardo, e anunciar que “a reedição expressava o elo que se buscava não apenas com as lutas do início do século ali retratadas, mas também com os embates do pré-1964, data de sua publicação original”, o autor parece dar uma piscadela de olho para o leitor, como que adiantando, mas não muito, projetos e derrotas de que tratará adiante. Não bastasse isso, o cruzamento de fontes de natureza distinta contribui para um bom rendimento interpretativo: memórias, edições de livros, cartas, dedicatórias. Se a leitura for correta, vale o adendo, o sentido dos três tempos – República Velha, retomada nos 1970, mediada pela derrota de 1964 – e o manejo da documentação são de fazer inveja a historiadores.

Dada a proposta de enquadramento das relações entre intelectuais e artistas e Partido Comunista, que se encontra no segundo capítulo, vale dizer, o autor vem abrir uma lacuna. Se já foi escrita uma biblioteca a respeito do tema da cooptação dos primeiros pelo segundo, há muito para ser pesquisado a respeito do outro lado da moeda: qual rendimento tal vinculação ofereceu para os produtores simbólicos, num momento em que a indústria cultural era incipiente e o espaço de atuação profissional universitário ainda em consolidação? Casos paradigmáticos, como o de Jorge Amado e o de Nelson Pereira dos Santos, são salutares para que se indague a respeito das “contrapartidas que mantinham intelectuais e artistas na órbita partidária, apesar de tudo” (p. 61), casos que não foram os únicos para os quais a militância no interior do partido foi uma “garantia de atuação profissional” (p. 65). No final das contas, a instância de organização da produção simbólica que hegemonizou o espaço profissional gabaritado, na ausência de um campo autônomo – com instituição especializada na formação dos agentes, mercado de trabalho correspondente e segmentação do consumo de bens culturais – foi o “Partidão”, tese implícita à análise.

Daí que a seguir – nos capítulos “Brasilidade revolucionária como estrutura de sentimento: os anos rebeldes e sua herança” e “Questão da terra no cinema e na canção. Dualismo e brasilidade revolucionária” – o autor atente à produção de agentes desligados do partido. Assim, pode aquilatar a centralidade de que gozou na cena cultural, e a perda dela mesma, pari passu o ocaso político, decorrente não apenas, mas fortemente, da fragmentação da esquerda e de sua autocrítica desencadeada pelo regime civil-militar. Desse modo, “especialmente depois de 1964, com a consolidação da indústria cultural no Brasil, surgiu um segmento de mercado ávido por produtos culturais de contestação à ditadura: livros, canções, peças de teatro, revistas, jornais, filmes etc. de modo que a brasilidade revolucionária, antimercantil e questionadora da reificação, encontrava contraditoriamente grande aceitação no mercado” (p. 98).

Toda a ambiguidade do quadro fica indicada pela reconstituição da repercussão do livro Tudo que é sólido desmancha no ar de Marshall Berman, publicado em 1986. Nota-se, novamente, a escolha bem pensada do material para o tratamento do problema que move o trabalho, pois com ele, acessa a “porta de entrada para pensar o entrelaçamento entre o campo intelectual e a indústria cultural no Brasil, bem como a relação entre mercado e pensamento de esquerda” (p. 145). Para dizer tudo num jargão familiar aos leitores: forma mercantil com conteúdo do campo “revolucionário” – é contraditório, mas, oferece síntese? Se sim, qual; se não, que fazer? No plano das trajetórias, o dilema se manifesta, genericamente, na figura do “intelectual atormentado com sua condição relativamente privilegiada, de portador de projetos de vanguarda numa sociedade subdesenvolvida e desigual”, mas “crescentemente seduzido pelo acesso individual ao desenvolvimento de um mundo globalizado, embora seu discurso por vezes mantenha tons esquerdistas” (p. 169).

Se nos fosse permitido, elaboraríamos a questão do seguinte modo. Assinala-se o ocaso do partido como instância fundamental da organização da produção afinada com o repertório cultural de esquerda, após 1964. Porém, a empreitada da modernização encampada após essa derrota requeria mão de obra qualificada. Tudo se passa como se a estrutura produtiva avançasse mais rapidamente do que as condições sociais correspondentes a ela, levando a deslocamentos de capital e mão de obra. O ritmo galopante do crescimento não comportava “esperar” a formação desta mão de obra, e se apropriou, nesse ritmo, da disponibilidade profissional – e não política – de tal qualificação. A consolidação da indústria cultural no Brasil é indissociável disso. Muito já foi dito a respeito das contradições da indústria cultural, mantendo-se rente aos conteúdos desse “cultural”. É tempo de se atinar para a “indústria”. A rotação das atenções para ela, parece-nos, segundo modesta leitura, consistir numa das contribuições salutares do presente trabalho, que tanto gostamos de ler.

Lidiane Soares Rodrigues – Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil (bailadoraandaluza@yahoo.com.br).

Crianças dos países de língua portuguesa – MULLER (EH)

O que há de comum na experiência de crianças e adolescentes que viveram em países lusófonos situados em quatro continentes do globo nas últimas décadas do século XX? De comum, segundo a educadora Verônica Regina Müller, o fato de utilizarem o português como primeira ou segunda língua na vida cotidiana, as condições de pobreza que uma parcela significativa dessa população enfrenta ou, eventualmente, o acesso à educação escolar, mesmo que de forma precária. A obra, intitulada Crianças dos países de língua portuguesa: histórias, culturas e direitos, demonstra ainda, ao longo de seis capítulos, que há outro denominador comum. Desde a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1989, Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique, Portugal e Timor Leste têm buscado, de diferentes maneiras e entre avanços e reveses, implementar a noção de direitos – sociais, civis e políticos – em favor de sua população infanto-juvenil. Essa tarefa exigiu (e continua a exigir) um esforço hercúleo do Estado, da sociedade civil, das famílias e dos indivíduos, uma vez que o processo de instituição da concepção de direitos humanos para os infantes de ambos os sexos implica grandes mudanças na esfera sociocultural, especialmente nas sociedades do continente africano.

As narrativas dessa faceta da história de crianças e adolescentes, com exceção do caso brasileiro, procuram dar conta, sobretudo, dos fenômenos ocorridos nos últimos trinta anos do século XX em cada sociedade em particular. Apesar de todos os textos se reportarem à história política dos Estados nacionais (processo de descolonização, independências e ditaduras/processos de democratização), os marcos temporais balizadores das análises são as legislações e/ou as políticas sociais instituídas, com ênfase nas relativas ao universo escolar. As narrativas são construídas a partir de dados obtidos através da análise do discurso de documentos de caráter oficial (em particular as legislações), etnografias, entrevistas e memórias. O ideário de infância e direitos humanos como discursos oriundos da sociedade ocidental e um olhar relativista em relação às noções de classe social, etnicidade e relações de gênero norteiam, do ponto de vista teórico, a escrita dos capítulos.

Além da História da Infância sob a ótica do nacional, os capítulos, em seu conjunto, descrevem um processo histórico transnacional, seja do ponto de vista dos usos do idioma português, seja do ponto de vista da transformação das crianças em sujeitos de direito.1 A junção dessas duas perspectivas no campo da história constitui, sem dúvida, o ponto forte do livro.

O capítulo sobre Angola, escrito por Eugênio Alves da Silva, é o único da obra que trata de crianças e adolescentes do meio rural. O autor justifica essa escolha porque, no período estudado, 42% da população do país habitavam no campo. Nessas localidades, meninos e meninas constituíam uma parcela importante da mão de obra familiar. A alfabetização através do idioma português na escola colocava em risco a “Educação Tradicional Africana” (ETA) (p. 47), especialmente a das meninas (p. 55). Para o autor, a resistência dos adultos das comunidades rurais à alfabetização no idioma português não está associada somente ao fato de ser a língua do antigo colonizador, mas a rupturas significativas, reproduzidas sobretudo no âmbito das relações de trabalho e das relações de gênero.

No capítulo sobre o Brasil, Verônica Regina Müller, Miryam Mage e Ailton José Morelli procuram fornecer aos leitores e leitoras um panorama da introdução dos direitos da criança e do adolescente no país durante todo o século XX. Nessa narrativa histórica, a ênfase recai sobre os avanços obtidos no período pós-Estatuto da Criança e do Adolescente. A partir de 1990, as políticas sociais, sobretudo as de cunho compensatório (bolsa família), possibilitaram que muitas crianças e adolescentes que habitavam nas cidades e no campo não se evadissem dos bancos escolares e tivessem um maior domínio do idioma português (p. 96). Para os autores, porém, ainda há muito a fazer no campo dos direitos. Entre as demandas, as mais difíceis de vencer são as de caráter adultocêntrico, presentes na sociedade brasileira (p. 93).

Os capítulos sobre Cabo Verde, produzido por Lorenzo I. Bordonaro e Redy Wilson Lima, e sobre Moçambique, por Elena Colona e Eugénio José Brás, discutem fenômenos da mesma natureza: os embates existentes entre os discursos relativos aos diferentes modos de ser criança e adolescente no mundo urbano daqueles países nos últimos trinta anos do século XX. Enquanto a noção de infância afirma que o “espaço esperado” para a criança e o adolescente é a escola e/ou o ambiente doméstico, as famílias pobres das cidades de Praia e Maputo mantiveram a prática de deixar seus filhos e filhas brincando/trabalhando pelas ruas das cidades. Lorenzo I. Bordonaro e Redy Wilson Lima entendem que há uma grande diferença entre “crianças de rua e crianças na rua”, na zona urbana de Cabo Verde (p. 127). Afirmam, de forma crítica, que conceitos aplicados por técnicos das agências internacionais, operadores do direito e jornalistas não dizem respeito às realidades africanas, mas se limitam às latino-americanas. Os autores não concordam com a transformação do modo de ser criança “tradicional” em um problema social, especialmente pela mídia. Já para Elena Colona e Eugénio José Brás, o deslocamento dos menores pelas ruas da cidade de Maputo está de longa data associado a estratégias de sobrevivência das famílias empobrecidas (p. 171).

Para Catarina Tomás, Natalia Fernandes e Manuel Jacinto Sarmento, a história dos direitos da criança em Portugal, desde o processo de redemocratização do país, em 1974, tem como marca os paradoxos. Se, por um lado, o país atingiu excelentes índices no campo da saúde infantil e expandiu a proteção aos menores de idade através da justiça, por outro, a violência doméstica ainda continuou presente entre as famílias; além disso, a taxa de natalidade decresceu bastante, e crescimento populacional, se houve, foi por conta da imigração. Os autores mencionam mais dois problemas relativos ao universo infantil que emergiram no período: a obesidade e o stress (p. 219).

O último capítulo procura historiar a introdução dos direitos da criança na “fraturada” sociedade do Timor Leste. Afonso Maia, Benvinda L. da R. Oliveira, Márcia Valdineide Cavalcante e Silvestre de Oliveira descrevem as diferenças em relação a esse processo em três períodos distintos da história daquela sociedade durante o século XX: o período da dominação colonial portuguesa (1515-1975), a época da “invasão” indonésia (1975-1999) e o pós-independência do país, em 2002. Os autores e autoras consideram fundamental, nos três períodos, o direito à vida, à educação e à saúde. Ressaltam, também, que o domínio dos idiomas português e, depois, indonésio, pelas crianças e adolescentes, tinha o poder de produzir a inclusão ou a exclusão social naquela sociedade (p. 246).

Esses processos históricos nos países lusófonos poderão, certamente, ser interpretados de muitas outras maneiras. Esta, todavia, cativa os leitores e leitoras pelo seu ineditismo no campo da História da Infância e da História Transnacional e por fornecer pistas para outras investigações. Estudos desta natureza devem ser feitos para que, além de produzir conhecimento, possamos constatar que outros “mundos” podem ser construídos.

1 Sobre a História Transnacional, ver Bayly, C. A.; Beckert, Sven; Connelly, Matthew; Hofmeyr, Isabel; Kozol, Wendy; Seed, Patricia. AHR conversation: on Tansnational History, The American Historical Review, 1 dec. 2006, vol. 111, no 5, p. 1441-1464.

Silvia Maria Favero Arend – doutora em História pela Universidade Fed eral do Rio Grande do Sul e professora do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (smfarend@gmail.com).


MULLER, Verônica Regina (org.). Crianças dos países de língua portuguesa: histórias, culturas e direitos. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2011. 275 p. Resenha de: AREND, Silvia Maria Favero. Uma história dos direitos da criança nos países lusófonos. Estudos Históricos, v.25 n.50 Rio de Janeiro July/Dec. 2012.

Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil – CORDEIRO (EH)

CORDEIRO, Janaína Martins. Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. Resenha de: PAULA, Christiane Jalles de. Memória, história e mulheres de direita na ditadura no Brasil. Estudos Históricos, v.25 n.49 Rio de Janeiro Jan./June 2012.

Há uma corrente na historiografia brasileira que propõe a revisão das interpretações sobre o regime militar, e especialmente a da memória construída da resistência da sociedade brasileira à ditadura. Esse movimento tem trazido novos ângulos, fontes e objetos para a compreensão do Brasil no período de 1964 a 1985. O trabalho de Janaína Martins Cordeiro, originalmente dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), alia-se a essa corrente. Como bem realçou Denise Rollemberg no prefácio, um dos seus méritos é que avança ao propor uma interpretação original sobre a atuação de um grupo manifestamente a favor do regime instaurado em 1964: a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde). Por isso mesmo, não surpreende que o trabalho tenha sido agraciado com o Prêmio Pronex/UFF em 2009, que subsidiou sua publicação.

O livro Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil assume dois objetivos. O primeiro é a recuperação da memória das mulheres da Camde, buscando, ao fazê-lo, desmistificar a memória da resistência da sociedade brasileira, uma vez que é inegável a ressonância que os discursos anticomunistas dos grupos de mulheres tiveram em 1964. O outro é entender como esses grupos apoiaram e legitimaram o golpe e a ditadura. Este é o ponto que considero mais instigante e original, uma vez que compartilho da ideia de que só podemos entender um determinado período se nos debruçarmos sobre o jogo social, político e cultural jogado pelos segmentos sociais. O livro nos permite entrever o dinamismo do jogo do qual participaram as mulheres da Camde, embora, é preciso reconhecer, nem sempre as ambiguidades tenham sido sublinhadas, e se tenha tentado, antes, encontrar as coerências do grupo. De toda forma, o livro nos leva a entender, como diz Rosanvallon (2010: 76), “o modo por que os indivíduos e os grupos elaboraram a compreensão de suas situações; os rechaços e as adesões a partir dos quais eles formularam seus objetivos; a maneira pela qual suas visões de mundo limitaram e organizaram o campo de suas ações”.

Organizado em três capítulos, além da introdução e das considerações finais, o livro traz a história da Camde, os valores que forjaram a militância da entidade e, finalmente, a memória elaborada pelas militantes do grupo.

O primeiro capítulo retrata a história da Camde. Nele, a narrativa cronológica é subsumida ao tema da cultura política, o que enriquece a argumentação. Por isso mesmo, o capítulo trata das formas de organização política e das ações empreendidas pelo grupo. Há uma dupla intenção no estudo desses aspectos: compreender a ditadura e o universo simbólico do grupo. A autora nos persuade de que o grupo compartilhava uma cultura política caracteristicamente elitista, udenista, assistencialista e católica.

No capítulo 2 são apresentados os valores que nortearam a organização e a atuação da Camde. Chamando a atenção para como as mulheres do grupo fizeram uso das categorias da esfera privada (mães, esposas e donas de casa) na construção de seus discursos públicos, a autora nos traz um retrato das relações de gênero no Brasil, que mostram ser um elemento fundamental para a compreensão da participação do grupo na cena pública brasileira entre 1962 e 1974.

No capítulo 3 são analisadas as memórias elaboradas pelas militantes da Camde. Seus silêncios, suas recusas e as dificuldades para conseguir entrevistá-las – de 17 mulheres que foram encontradas e contactadas, só quatro se dispuseram a prestar depoimento à autora – expõem a força da construção da memória do silêncio. Partindo da elaboração de Pierre Laborie, para quem o silêncio sobre determinado evento pode estar relacionado à incompreensão no presente de um comportamento do passado, a autora, ao tratar os depoimentos, constrói a teia de adesões e rechaços que marcam a memória e a história de militância das mulheres que estiveram ligadas à Camde.

O trabalho de Janaína Martins Cordeiro suscita muitas questões. Nesta resenha quero chamar atenção para três em especial.

Primeira: como tratar de um grupo de militantes católicos sem considerar a centralidade do catolicismo como “visão de mundo” (Karl Mannheim, 1982), ou seja, entender que o catolicismo estrutura uma série de vivências ou de experiências que, por sua vez, constitui-se como base comum das experiências que perpassam a vida de múltiplos indivíduos. No trabalho, embora inúmeras vezes o catolicismo seja mencionado, acabou sendo pouco explorado enquanto base comum das vivências e experiências das mulheres da Camde.

Segunda: a democracia é um conceito polissêmico. Então, não seria preciso explicitar o conceito de democracia usado pela Camde? Vale lembrar que o catolicismo, já no século XIX, adotara politicamente a si mesmo como terceira via à democracia liberal e ao socialismo, que, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, passou a ser chamada de “democracia cristã”. Além disso, a “democracia” no catolicismo tem significado diverso daquele difundido pela democracia liberal-representativa. Não é por acaso que tanto o anticomunismo como o antiliberalismo são bases importantes do pensamento político católico.

Terceira: em vários momentos do trabalho o grupo é caracterizado como conservador. Por que não matizar este qualificativo, mostrando que, em algumas conjunturas, o grupo assumiu feição tradicionalista e, em outras, reacionária? Um investimento maior nas diferenças destes conceitos poderia nos dar indícios mais robustos dos porquês de algumas das escolhas e, principalmente, poderia realçar ainda mais as ambiguidades das mulheres da Camde.

Gostaria de finalizar ressaltando que estas considerações só reforçam a qualidade e a originalidade da interpretação. Trata-se de um livro que muito contribui para o atual debate sobre a ditadura no Brasil e que merece leitura atenta.

Referências

MANNHEIM, Karl. Structures of thinking. Collected Works Volume Ten. London: Routledge + Kegan Paul, 1982.         [ Links ]

ROSANVALLON, P. Por uma história conceitual do político. In: Por uma história do político. Tradução de Christian Edward Cyrill Lynch. São Paulo: Alameda, 2010.

Christiane Jalles de Paula – Doutora em ciência política pelo IUPERJ, professora e pesquisadora do CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil (christiane.jalles@fgv.br).

João Goulart – uma biografia – FERREIRA (EH)

FERREIRA, Jorge. João Goulart – uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 713 p. Resenha de: NAPOLITANO, Marcos. João Goulart: um personagem em busca de uma história. Estudos Históricos, v.25 n.49 Rio de Janeiro Jan./June 2012.

João Goulart é um dos personagens mais polêmicos e menos estudados da história do Brasil. Dizer isso soa como um clichê, mas é inevitável. Mais que um interesse meramente biográfico, o estudo de sua vida e trajetória política é, necessariamente, um exercício de análise da história do Brasil. Qualquer estudo biográfico sobre o personagem é um convite à polêmica e exige do analista um jogo de aproximação e de distanciamento a um só tempo.

O livro do historiador Jorge Ferreira consegue construir o perfil de um líder com qualidades e defeitos, faturas e fracassos, que ao longo de sua curta trajetória na política brasileira – de pouco mais de 14 anos – mexeu profundamente com nossa modorrenta e conservadora vida política. Para tanto, Jorge Ferreira explicita de saída sua estratégia: analisar Jango para além dos dois dias finais de seu governo, aqueles que se plasmaram para sempre na história do biografado.

O livro resgata aspectos da vida privada e pública de Jango, traçando um perfil coerente de uma personalidade política que ajudou a formular um projeto para o Brasil, designado como trabalhismo reformista de corte nacional-popular (p. 137-140). Jango tornou-se, na memória e na história, o personagem síntese deste projeto fracassado, tragado por uma bem-sucedida conspiração direitista. Personagem que acabou visto como um arremedo de Vargas e Perón, sem a grandeza trágica ou a coragem política dos dois.

A biografia ganha especial importância, reposicionando criticamente algumas questões e matizando as visões negativas e moralistas sobre Jango, sua época – a “República de 46” – e seu governo. O distanciamento do autor, cioso do seu oficio de historiador, não se traduz em uma visão pretensamente neutra. O biografado Jango que se desenha nas 690 páginas de texto é um líder lúcido, ponderado, coerente. Mas também manipulador, contraditório e, em muitos (e fatais) momentos, hesitante. Nem vilão, nem herói, Jango é reconhecido como um político importante que esboçou um projeto e uma agenda de reformas profundas.

O texto é marcado pelo equilíbrio entre a biografia e o ensaio acadêmico de história política. Cabe aqui destacar o importante trabalho que Jorge Ferreira vem desenvolvendo há algum tempo na recuperação historiográfica da “República de 46”, apontando para a necessidade de outras pautas de pesquisa que deem conta do período, para além das categorias clássicas “populismo” e  “desenvolvimentismo”.

Há uma impressionante quantidade de fontes primárias e secundárias, muito bem articuladas pelo autor: livros de memórias, crônicas, documentos oficiais, cartas, manifestos políticos, matérias de imprensa partidária e comercial. Mas não deixa de ser curioso que o biografado, nos momentos em que esteve no poder – como deputado, presidente do PTB, ministro do trabalho, vice-presidente ou presidente da República – pouco fale de si através das inúmeras fontes primárias citadas. Ao contrário, as fontes em primeira pessoa escritas por Jango surgem apenas no contexto do exílio, dando o tom dos dois últimos capítulos da biografia escrita por Jorge Ferreira. Nestas fontes, entretanto, predominam o gosto amargo da derrota e os balanços negativos de sua trajetória e legado, impedindo qualquer tipo de monumentalização histórica, sempre muito comum em biografias. Jango, em certo sentido, mergulhou no esquecimento ou no ostracismo, apesar do esforço de alguns poucos correligionários e historiadores em dar-lhe uma sentença mais justa no tribunal do tempo.

Nesta linha, Jorge Ferreira resgata um aspecto ainda pouco estudado da trajetória política de Jango: sua passagem pelo Ministério do Trabalho do segundo governo Vargas (capítulo 3). O detalhamento desta fase da vida política do futuro presidente é uma das grandes contribuições historiográficas do livro. No comando da pasta, Goulart mudou completamente o papel do Estado na negociação entre patrões e trabalhadores (urbanos) e, mesmo inclinando-se para o lado destes últimos, nunca abriu mão da estratégia de mediação e negociação de conflitos. As bases sociais e políticas ali constituídas deram-lhe força para esboçar um projeto reformista que, na verdade, foi muito mais uma agenda do que um projeto, abortada pelo golpe de 1964.

Ferreira recusa duas explicações clássicas sobre o golpe: a tese da “grande conspiração da direita”, bem como a tese do “colapso do populismo”. Ambas trabalham com a idéia de inexorabilidade do processo histórico. A primeira minimiza os erros políticos da esquerda ao destacar a sagacidade da direita, e a segunda vê o governo Jango apenas como um soluço final no grande terremoto estrutural que moveu a história, porque a lógica de acumulação do capital assim o quis. Há no livro uma percepção detalhada sobre as “marchas e contramarchas” do tempo histórico na direção do golpe de estado, evitando a inexorabilidade do evento que selou o destino do personagem e do seu tempo. Mas ao recusar estes paradigmas para explicar o golpe militar de 1964, Ferreira se aproximou de outro, que, a meu ver, mereceria mais exame crítico. Aqui me refiro à maneira como Jorge Ferreira utilizou o livro de Argelina Figueiredo, Democracia ou reformas (publicado no início dos anos 1990), e incorporou, em certo sentido, o paradigma do colapso da democracia como obra do radicalismo dos atores de esquerda e direita (p. 429). Fruto de uma excelente e acurada pesquisa empírica e dotado de coerência teórico-metodológica e plausibilidade argumentativa, o livro de Argelina consolidou a retomada da história política para compreender a crise política que desaguou no golpe militar de 1964. Entretanto, sua perspectiva de análise funcionalista parte do princípio de que as instituições políticas devem absorver e neutralizar os “interesses” e “conflitos” protagonizados pelos atores.

Mesmo se pautando pela tese do radicalismo generalizado, Jorge Ferreira deixa bem claro que o golpe foi da direita, evitando diluir as responsabilidades pelo conjunto de atores. Mas defende a tese de que o ambiente político criado pela radicalização das esquerdas (leia-se, a esquerda brizolista, sobretudo) inviabilizou a liderança janguista na condução de um projeto negociado de reformas e acabou fazendo com que o centro político fosse para a direita (p. 412, 429). Jorge Ferreira demonstra que a habilidade de negociador de João Goulart encontrou seu limite neste ponto. Mas como negociar reformas em um ambiente político e institucional conservador que transformou o lugar da negociação – o Congresso Nacional – em um bunker do antirreformismo?

Neste ponto, seria oportuno revisar o conteúdo histórico do pretenso “radicalismo” das esquerdas que teriam ajudado a construir o golpe da direita. Olhando mais de perto, a grande radicalização das esquerdas entre 1962 e 1964, bravatas retóricas à parte, era propor uma reforma agrária contra o latifúndio improdutivo, disciplinar a remessa de lucros para o exterior e apostar em um novo poder constituinte.

Ainda que mantenha certas perspectivas sobre a crise final do governo e sobre o golpe que poderiam ser mais problematizadas, Jorge Ferreira deu uma grande contribuição no sentido de reposicionar Jango criticamente na tessitura do tempo histórico sem tomá-lo como farsante ou herói mal compreendido. Esta é uma das grandes qualidades da obra, que, inclusive, valoriza a erudição na qual se apoia. João Goulart – uma biografia sem dúvida entrará para a galeria das biografias clássicas da história do Brasil. A partir dele, Jango deixa o território da memória (ou melhor, do esquecimento) para retornar à história.

Marcos Napolitano – Marcos Napolitano é doutor em História Social e livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde leciona História do Brasil desde 2004 (napoli@usp.br)

República, desporto e imprensa – PINHEIRO; COELHO (EH)

PINHEIRO, Francisco; COELHO, Nuno. República, desporto e imprensa: o desporto na I República em 100 primeiras páginas (1910-1926). Lisboa: Edições Afrontamentos, 2012. 231 p. Resenha de: GOELLNER, Silvana Violdre. A história do esporte e do jornalismo esportivo durante a Primeira República portuguesa. Estudos Históricos, v.25 n.50 Rio de Janeiro July/Dec. 2012.

O reconhecimento do esporte como um elemento integrante da identidade nacional pode ser identificado em discursos e práticas de diferentes regimes políticos do passado e do presente. Representado como um espaço no qual se expressam valores edificantes tais como coragem, determinação e abnegação, o esporte teve na construção dessa narrativa um elemento fundamental para sua popularização e afirmação em Portugal e em seus espaços insulares e coloniais.

Tal afirmação se faz notória nas 231 páginas que integram República, desporto e imprensa: o desporto na I República em 100 primeiras páginas (1910-1926). Sua publicação resulta de um extenso trabalho de pesquisa desenvolvido em arquivos e bibliotecas onde os autores mapearam todos os jornais esportivos publicados no período, que somam mais de uma centena. Cumprida essa etapa, os autores escolheram cem primeiras páginas para reproduzir no livro, entendendo-as como “a base para conhecermos a forma como a imprensa desportiva evoluiu e deu conta da evolução do desporto ao longo dos 15 anos e 8 meses que durou a I República” (p. 11).

Seu projeto gráfico é primoroso ao exibir essas páginas como foram publicadas, permitindo assim que cada pessoa faça uma leitura particular e, ao mesmo tempo, ligeiramente influenciada pela narrativa que os autores constroem sobre o esporte e a imprensa esportiva no período analisado. Para além das imagens, a obra é composta de pequenos comentários explicativos sobre cada primeira página publicada, destacando as razões pelas quais foi escolhida entre tantas outras possíveis de ali serem expostas. Apresenta, também, quatro textos introdutórios cujas análises são demarcadas a partir de recortes temporais.

No primeiro texto, intitulado 1910-1913: tempo de esperança e heróis, os autores enfatizam o papel que o jornalismo esportivo teve na divulgação do esporte na I República. Ressaltam o quanto essa prática cultural foi importante para a construção de um novo homem, robusto, enérgico e trabalhador, representação personificada na figura do sportsman, cuja valorização buscava afastar os indivíduos da preguiça, da taberna e dos vícios. Sob o discurso da melhoria da raça, o Estado instituído criava estratégias para a diversificação da prática esportiva, visto que até então dominavam os exercícios de caráter militar e algumas competições restritas à nobreza, tais como as provas de armas (esgrima e tiro), a equitação e a vela. Simpático aos ideais republicanos, o periodismo esportivo promoveu a divulgação de várias modalidades esportivas, entre elas o futebol, um esporte ainda em ascensão no período inaugural da República. Os autores também destacam o registro dos jornais esportivos sobre a digressão de uma equipe portuguesa ao Rio de Janeiro em 1913, fato que marcou o início das disputas futebolísticas entre os dois países.

O segundo recorte temporal é delimitado pelo cenário da Primeira Guerra Mundial, cujas repercussões no contexto esportivo foram evidentes. Com a iminência de Portugal aderir ao conflito, os autores destacam a contribuição dos jornais na divulgação de duas campanhas de caráter nacional: uma delas promovida pela Federação Portuguesa dos Sports e associações esportivas, que, em apoio ao Ministério da Guerra, manifestavam disponibilidade para atuar na preparação física de jovens portugueses, e outra direcionada para o envio de materiais esportivos aos portugueses aprisionados nos campos alemães, para que pudessem “manter de pé as qualidades físicas e se distraírem depois de horas de trabalho” (p. 92).

Já em 1919-1923: reajustamentos e mudanças, a centralidade das análises empreendidas recai no pós-guerra, quando a discursividade dos jornais focalizou a valorização dos soldados, a glorificação dos heróis esportivos e sobretudo o futebol, que, a partir de então, dominou sua pauta. Destacam-se, ainda, o surgimento dos dois primeiros jornais esportivos no espaço colonial português, ambos lançados em 1922: o Sporting, publicado em Angola com o objetivo de nortear o esporte, mesmo que em Luanda não se pudesse “contar mais de meia dúzia de adeptos” (p. 143), e a Semana Desportiva, de Moçambique, representado como “o paladino da cultura física, preenchendo uma lacuna que a progressiva actividade desportiva de Lourenço Marques vinha tornado cada vez mais visível” (p.152). O jornalismo esportivo português alastra-se à África do mesmo modo que já registrara iniciativas nas ilhas da Madeira (1918) e dos Açores (1917).

O quarto foco analítico proposto recai nos últimos anos da República (1924-1926), identificados pelos autores como os Anos Dourados, nos quais o esporte (sobretudo o futebol) e o jornalismo esportivo viveram um período ímpar de expansão e consolidação. Exemplar dessa afirmação é o aparecimento de 122 novos periódicos esportivos em apenas dois anos, o que por si só evidencia o quanto a adesão ao esporte tornou-se recorrente em todo o país. Esse cenário é alterado no dia 28 de maio de 1926, quando se dá o Golpe Militar que modificaria a história e os caminhos percorridos pelo ambiente republicano, demarcando, inclusive, um novo tom para o jornalismo esportivo nacional. Nas palavras dos autores, “ao contrário do que sucedeu em 1910, em que o novo regime, o republicano, foi acarinhado, agora o momento era de expectativa e hesitação, mostrando um meio desportivo português receoso face à possibilidade de um maior intervencionismo da política no desporto, seguindo o exemplo de outros regimes totalitários europeus” (p. 180).

A relação entre imprensa e esporte é o tema central de República, desporto e imprensa e indica o lugar do qual falam seus autores, cujas publicações anteriores analisam a história tanto da imprensa esportiva quanto do futebol em Portugal. Não é sem razão, portanto, que as análises empreendidas recaem mais sobre o surgimento e desaparecimento dos jornais, e os temas e marcos que estes privilegiaram ao longo da I República, do que propriamente sobre o esporte, suas diferentes conotações, funções e significados no contexto português.

Esta observação não desmerece o trabalho realizado, inclusive porque a obra não se propõe uma análise histórica e sociológica. No entanto, é impossível desconsiderar essa ausência quando temos diante de nós a riqueza das fontes primárias compiladas, no caso específico, as cem primeiras páginas dos jornais esportivos. Nelas se pode ler o que está escrito e o que foi silenciado: as perspectivas doutrinárias a orientar os usos do esporte; os preceitos científicos sustentados pela eugenia e pela higiene; o liberalismo a indicar a popularização das práticas corporais e esportivas e, na contramão dessa afirmação, a não garantia de que todos pudessem delas participar; as diferenciações entre o esporte praticado por homens e por mulheres; as disputas de poder no âmbito das instituições esportivas e jornalísticas; as rivalidades clubísticas; a fabricação dos ídolos; a valorização de determinados grupos étnicos; a relação entre Portugal e as colônias africanas; o ufanismo e o nacionalismo, entre tantos outros temas.

Se, por um lado, o livro reafirma uma representação positivada do esporte ao valorizá-lo como fundamental na modernização de Portugal e de seu espaço insular e colonial, por outro, permite desestabilizar tal compreensão na medida em que fornece ao leitor suas fontes de pesquisa permitindo-lhe que faça suas próprias interpretações. Essa possibilidade confere à obra um caráter inovador e plural. Afinal, o que cada pessoa vai ler e ver neste livro está marcado também por aquilo que sua biografia pessoal e o contexto social no qual vive lhe permitem pensar e ver.

Silvia Maria Favero Arend – Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (smfarend@gmail.com).

Estatísticas nas Américas – SENRA (EH)

SENRA, Nelson de Castro; RIO, Alexandre de Paiva (orgs.). Estatísticas nas Américas: por uma agenda de estudos históricos comparados. Rio de Janeiro: IBGE, Centro de Documentação e Disseminação de Informações, 2010, 428 p. Resenha de: CARRARA, Angelo Alves. Por uma história comparada das estatísticas nas Américas. Estudos Históricos, v.23 n.46 Rio de Janeiro July/Dec. 2010.

Estatísticas nas Américas é livro que já pelo subtítulo vale uma boa acolhida pelos leitores. Uma agenda de estudos históricos sob uma perspectiva comparada é, sem dúvida alguma, algo de que necessitamos intensamente. Por isso, para além do próprio conteúdo da obra, a explicitação desse propósito já na capa atua como chamamento à atenção dos pesquisadores. Trata-se de um conjunto de textos sobre a pesquisa histórica das estatísticas, resultantes, uma parte, de uma das sessões da Latin American Studies Association – LASA 2009, no Rio de Janeiro, e outra parte, de sessão celebrada no próprio IBGE em torno do tema. Como assinalam seus organizadores na introdução, o debate então suscitado nas sessões mencionadas “realçou o estado atual das pesquisas históricas da atividade estatística, sejam as feitas nas instituições estatísticas, sejam as feitas em ambiente acadêmico”.

Outra virtude, que nunca é demais encarecer, é que todos os autores tiveram acesso prévio às contribuições de cada um, o que aumenta a coerência interna da obra. Os resultados alcançados permitem extrair algumas conclusões importantes. Em primeiro lugar, no âmbito das diferenças entre os países. No Brasil, por exemplo, as pesquisas sobre as estatísticas históricas encontraram no IBGE a instituição privilegiada, sendo muito menos importante a contribuição acadêmica. O inverso ocorre nos outros países: é da academia que provêm as maiores contribuições. Nesse sentido, concordo plenamente com os organizadores quando afirmam ser o “IBGE o depositário da memória estatística brasileira, desde os tempos do Império, de cuja tradição é herdeiro legítimo, e não ter, ainda, conseguido publicizá-la amplamente”.

Para todos quantos trabalhamos com dados seriais e quantitativos, as estatísticas assumem uma importância capital. O fato de nos últimos anos virem se tornando um objeto de estudo reforça a ideia do seu papel para os diversos campos do saber. A sofisticação dos procedimentos de coleta de dados e a submissão dos dados coletados ao escrutínio de metodologias variadas são apenas alguns elementos que permitem aferir suas possibilidades e limites. Ao lado da coerência interna das contribuições, o volume e a diversidade de temas da coletânea requerem que nesta resenha se faça uma síntese do conteúdo de cada capítulo, na qual buscar-se-á desviar-se minimamente dos resumos apresentados pelos próprios autores.

Os capítulos são distribuídos por cinco partes. Abre o conjunto de seis capítulos da primeira parte o texto de Jean-Pierre Beaud e Jean-Guy Prévost, “L’histoire de la statistique canadienne dans une perspective internationale et panaméricaine”, no qual os autores analisam cerca de dois séculos de práticas estatísticas no Canadá, enfatizando particularmente os paralelos possíveis com outras experiências nas Américas. Os autores apoiam-se no conceito de “regime estatístico”, entendido como o complexo formado, num dado período, pelas estruturas, normas e práticas estatísticas. A partir dele, os autores distinguem quatro regimes: o primeiro, denominado de pré e proto-estatística, caracteriza a época anterior aos meados do século XIX; o segundo, marcado pelo fenômeno da nacionalização estatística, abrange o período de meados do século XIX ao primeiro terço do século XX; o terceiro, estruturado em torno da ideia de macro-management estatística, situa-se no coração do século XX; e, por fim, o quarto, a partir dos anos 1980, no contexto de globalização neoliberal.

Os três textos seguintes têm por objeto a prática estatística na Argentina. O primeiro, de Hernán Otero, intitulado “La historia de la estadística en las universidades y en los institutos nacionales de estadística; el caso argentino”, propõe uma periodização da historiografia estatística argentina a partir da diferenciação entre as produções acadêmicas e as derivadas dos órgãos oficiais de estatística, as quais tiveram dinâmicas próprias, mas igualmente convergências. “La elite estadística y el Estado argentino (1869-1947)” é o título do capítulo assinado por Hernán González Bollo, que tem por objeto a formação, consolidação e expansão da elite estatística na administração pública ao longo do processo de realização dos quatro primeiros censos argentinos. González Bollo mostra como essa elite ampliou sua liderança burocrática no processo de expansão do Estado, e que, ao desenvolver sofisticados planos de modernização nacional, tornaram-se verdadeiros tecnocratas antes do tempo. Em “Las estadísticas argentinas como objeto de estudio. Ejercicio de formalización de una experiencia de investigación histórica”, Claudia Daniel discute os modos pelos quais a sociedade argentina foi representada por meio das cifras durante o período do Estado oligárquico. Nesse sentido, a autora apresenta abordagens historiográficas que vinculam a produção da estatística enquanto saber especializado ao exercício de formas de dominação, que vão do uso político dos censos às tomadas de decisão do Estado, e enfoca o problema do tratamento das fontes e as dificuldades que os pesquisadores enfrentam no seu uso.

Os dois capítulos seguintes têm a experiência produzida no âmbito do IBGE como objeto. Em “Informação estatística como forma de saber e fonte de poder, moldura teórica do ‘Projeto História: 1822-2002’ no IBGE”, Nelson de Castro Senra trata as estatísticas como como forma de saber e como fonte de poder. O autor parte do lento processo de construção das estatísticas como objeto de estudo e caminha na direção de um movimento de crescente questionamento sobre o estatuto científico das pesquisas quantitativas, que culmina nos anos 1970 e 1980, considerados como inflexão epistemológica. O capítulo enfatiza duas grandes frentes de investigação renovadas pela incorporação analítica das estatísticas: a construção dos Estados nacionais através de sua administração pública e as representações coletivas como espaço de disputas sociais. Encerra a primeira parte o capítulo assinado por Alexandre de Paiva Rio Camargo intitulado “Historiografia de um objeto multifacetado”, em que apresenta um panorama sobre o lugar ocupado pela estatística no discurso historiográfico. Um ponto alto do texto é a reflexão do autor sobre as possibilidades e limitações da pesquisa histórica realizada em um instituto de estatística sólido e eficiente, como o IBGE, valendo-se para isso de sua experiência como pesquisador na coleção História das Estatísticas Brasileiras. Voltarei a este tema ao final.

A segunda parte, intitulada “Narrativas sócio-históricas: Estado e instituições”, compõe-se de cinco textos cujo objeto é a relação das estatísticas com os Estados e instituições sociais, tais como a universidade, comunidades profissionais, associações de classe e a imprensa. Em “Las estadísticas oficiales en la prensa escrita porteña (Argentina, 1890-1930)”, Hernán González Bollo e Claudia Daniel interrogam-se sobre o espaço intangível entre a produção da elite estatística e a divulgação dos números oficiais nas páginas da imprensa escrita. Mais propriamente, analisam as reações públicas que, entre 1890 e 1930, foram recolhidas das tarefas rotineiras da burocracia estatística argentina e que se manifestaram en artigos de jornais, resenhas e informes oficiais e editoriais. González Bollo e Daniel mostram como a fiscalização da imprensa contribuiu decisivamente para consagrar a linguagem estatística (com seus traços de impessoalidade, distanciamento e neutralidade) no seio da opinião pública da Argentina.

Em seguida, Alexandre de Paiva Rio Camargo apresenta um rápido relatório de uma sessão ocorrida no seminário internacional que originou o livro, e que contou com a participação do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, do historiador Tarcísio Rodrigues Botelho e do demógrafo Luiz Antonio Pinto de Oliveira.

O capítulo seguinte, “Síntese da ‘História das Estatísticas Brasileiras: 1822-2002’ feita no IBGE, com sugestões de pesquisa”, discute os critérios que resultaram num esforço de periodização utilizada nessa coleção. Seu autor, Nelson de Senra, destaca quatro grandes períodos: o das “estatísticas desejadas” (1822-1889), o das “estatísticas legalizadas” (1889-1936), o das “estatísticas organizadas” (1936-1972) e o das “estatísticas formalizadas” (1972-2002). Senra destaca ainda os personagens e temas mais fecundos aos estudos históricos correspondentes a cada período, e apresenta outras obras de história produzidas no âmbito do IBGE.

Em “Classificações raciais e formação do campo estatístico no Brasil (1872-1940)”, Alexandre de Paiva Rio Camargo investiga os sentidos assumidos pela classificação racial nos primeiros censos brasileiros, tanto em função de sua inclusão (em 1872, 1890 e 1940) quanto de sua omissão (em 1920). O autor discute o papel do argumento racial e das exigências técnicas na tomada de posição dos estatísticos em três momentos distintos: o Império (1822-1889), a Primeira República (1889-1930) e a Era Vargas (1930-1945). Devo ressaltar que a ênfase deste capítulo é a análise da progressiva liberação da ideologia estatística dos mecanismos da propaganda política em torno da cor e, nesse sentido, assume especial importância a análise dos significados da presença ou ausência da classificação racial nos censos brasileiros de 1872, 1890, 1920 e 1940. Segundo Camargo, os três períodos destacados configuram três modos diferentes de encarar tanto as estatísticas quanto o Estado e a sociedade por meio das estatísticas no Brasil. O autor destaca a especificidade desta relação no sistema estatístico brasileiro, e conclui que a criação do IBGE, bem como a realização do censo de 1940 representaram uma virada na organização do campo, por acentuar o conflito estrutural entre a função prioritariamente política até então reservada às estatísticas e a consagração da competência técnica de seus produtores.

No último capítulo da segunda parte, intitulado “Censos nacionais brasileiros: da estatística à demografia”, Tarcísio Rodrigues Botelho investiga a evolução dos censos vista a partir da consolidação da demografia como disciplina científica. Seu argumento é que os censos demográficos anteriores a 1940 foram apenas versões um pouco mais sofisticadas dos antigos levantamentos populacionais, estando interessados sobretudo em fornecer dados sobre o poderio do Estado nacional, e de que apenas com a consolidação da demografia como disciplina acadêmica é que começaram a ser introduzidas inovações que foram conferindo aos censos brasileiros não apenas instrumentos para medir a nação (e o Estado), mas também condições para responder a questões colocadas pelos estudos populacionais. Botelho considera que isto teria ocorrido no Brasil a partir do censo de 1940, consolidando-se nos censos seguintes. Aqui já aparecem as concordâncias com as periodizações anteriormente vistas. O autor analisa, ainda, os processos técnicos e a cobertura temática dos censos, inclusive os projetos daqueles que não se realizaram, como o de 1852, para destacar uma transformação de paradigma, localizada a partir do censo de 1940: de instrumento de mensuração do Estado nacional, sua força e seus recursos. A partir de então, os censos brasileiros tornaram-se instrumentos de investigação social, orientados pela pauta das pesquisas demográficas.

Na terceira parte – “Narrativas sócio-históricas: ciência e técnica” –, dois capítulos são integralmente dedicados à experiência mexicana. O primeiro, “Los censos en el siglo XVIII. El caso del censo novohispano de 1790: discusiones sobre inferencia estadística”, assinado por Leticia Mayer, parte de uma formulação básica: os censos podem ser considerados tanto alternativas políticas, como formas de conhecimento em dois níveis: o do saber científico da estatística e o da compreensão da realidade da população num dado espaço. A partir deste duplo significado, a autora se debruça sobre uma polêmica entre o vicerrei da Nova Espanha, o segundo conde de Revillagigedo, e o padre José Antonio de Alzate y Ramírez. O texto de Mayer revela a alternativa metodológica apresentada pelo padre Alzate, por meio da qual os números oficiais eram desmentidos, tornando a Cidade do México maior que Madri. Para além do debate metodológico, este texto deve interessar a todos quantos se interessam pelo debate sobre as relações colônia-metrópole de fins do século XVIII.

O segundo capítulo da terceira parte, de Laura Cházaro, leva o título “La vida y su valor a discusión: juicios médicos y cálculos de probabilidades entre médicos mexicanos del siglo XIX”, parte de uma indagação interessantíssima: “¿Cómo fue que la vida se convirtió en materia de aseguramiento, por lo tanto objeto de medición estadística y probable, sujeto de inversión, traspaso y venta?” A partir desta questão, a autora explora as diferentes noções de probabilidade, risco e vida que estiveram em discussão entre os fins do século XIX e princípios do século XX, do ponto de vista dos médicos, os quais, nessa época aceitavam que sua prática implicava probabilidades e julgamentos que, ainda que calcados em perícia, podiam estar errados. Procurando solidificar estas fraquezas do conhecimento médico, os higienistas optaram por sistematizar estatísticas médicas, mas sem o recurso ao cálculo das probabilidades, geralmente identificado com as apostas e jogos de azar. Logo os médicos se integraram às companhias de seguros, abrindo-se às tabelas de mortalidade e cálculos de probabilidade.

A quarta parte do livro, intitulada “Como seguir adiante?”, é dedicada principalmente à proposição de caminhos para uma sistematização dos estudos históricos comparados, em escala regional. É notável o mérito desta sessão, pois ultrapassa o balanço historiográfico e parte para algo verdadeiramente imprescindível em reuniões científicas como as que originou o presente livro: apontar os passos futuros. No seu “Sociologia, sínteses teóricas e a conformação de uma agenda de pesquisas sobre estatísticas públicas no Brasil”, Renato Sérgio de Lima reflete sobre a necessidade de institucionalização de uma agenda e de um programa de pesquisas sobre produção e uso de estatísticas públicas no Brasil e nos demais países da América Latina, que tenha por referência uma perspectiva histórica e comparada. Após uma rápida contextualização de como a sociologia aborda a perspectiva histórica e de que modo esse movimento tem ligação com o processo de desenvolvimento da própria disciplina, a atenção do autor se volta para a discussão da necessidade de se formular sínteses teóricas capazes de superar a falsa antinomia entre o quantitativo e o qualitativo no nível epistemológico.

No capítulo seguinte, “O futuro da pesquisa histórica no IBGE (e no Brasil)”, Nelson de Castro Senra analisa a pesquisa histórica realizada no IBGE, e pensa seu futuro próximo. Descreve a recepção do Projeto História das Estatísticas Brasileiras na comunidade de historiadores, bem assim os eventos e iniciativas por ele estimulados. A seguir, passa em revista o grau de institucionalidade alcançado pela pesquisa histórica no IBGE, apontando para suas tendências futuras. Por fim, chama a atenção para a necessidade de o IBGE, ao lado de sua agenda particular de pesquisa histórica, conquistar o envolvimento da comunidade acadêmica. As ponderações de Senra são indispensáveis, mas o movimento inverso, da parte dos historiadores, também deve ser enfatizado.

Em “As estatísticas brasileiras e a demografia histórica”, Tarcísio Botelho assinala que, não obstante as contribuições inovadoras que trouxe para a abordagem do passado, a demografia histórica está pouco desenvolvida entre os historiadores brasileiros. Tarcísio se dedica então a apresentar a disciplina, bem como suas perspectivas específicas no âmbito da produção historiográfica brasileira. De início, trata da constituição da demografia propriamente dita e do surgimento da demografia histórica em geral para, em seguida, apontar suas possibilidades de estudo no Brasil, tanto em função da trajetória da disciplina na historiografia brasileira quanto em relação às fontes de dados disponíveis. No que respeita ao caráter propositivo dessa quarta parte, Tarcísio Botelho chama a atenção para a necessidade de tratamento dos acervos documentais, sobretudo os do interior do país, de preservação precária e distante do poder público, posição da qual comungo plenamente.

O capítulo “Reflexiones sobre algunos estudios en historia de las probabilidades y las estadísticas en México”, de Letícia Mayer, contém uma série de reflexões sobre os principais problemas enfrentados no México para o desenvolvimento da história das probabilidades e das estatísticas. Segundo a autora, esta problemática compreende o interesse e o motivo das pesquisas, o contexto institucional, as abordagens do campo de estudo e as línhas de pesquisa. Leticia Mayer apresenta diversas estratégias que permitem abordar a estatística em sua especificidade constitutiva, reunindo os métodos das ciências mais duras e os problemas políticos e sociais implicados em toda tecnologia de controle.

Por fim, “Puntos de llegada que son puntos de partida. El estudio de las estadísticas en Latinoamérica y la proyección de un horizonte comparativo”, por Claudia Daniel. De imediato reconheça-se a propriedade das palavras dos organizadores na introdução, a respeito deste capítulo, ao afirmar que não podem chamar de conclusão esta última contribuição: “seu título não deixa margens à dúvida: realiza um aguçado esforço de síntese, fornecendo os primeiros aportes para uma agenda de estudos históricos comparados”. Repito aqui as palavras da autora, que tomarei adiante para discussão: “la tarea comparativa nos pone ante nuevos desafíos y uno, no poco importante, es el de traducir los códigos o vocabularios diferentes empleados por los investigadores de cada lugar. La articulación entre investigadores podría, sin embrago, contribuir a saldar otro de los desafíos que presenta para un investigador singular un trabajo comparativo: el de dominar con similar nivel de profundidad los casos que investiga.”

Encerram a obra duas entrevistas reveladoras das trajetórias intelectuais de Jean-Pierre Beaud e Hernán Otero.

Como o leitor pode avaliar, estão plenamente justificadas as duas primeiras frases desta resenha. A presente obra pode ser inscrita numa antiga tradição cultivada desde os fins do século XIX no Brasil, que se fortaleceu nas décadas de 1930 a 1960 para perder um pouco do vigor desde então: a do diálogo entre a geografia e a história. Poder-se-ia aqui lembrar que a primeira instituição que nesses dois campos do conhecimento desempenhava o papel de centro de investigação denominava-se Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), mas os melhores frutos desse diálogo são bem posteriores à data de sua fundação.

A obra magistral de Philipp von Luetzelburg [1880-1948], Estudo botânico do Nordeste, em três volumes, publicada entre 1925 e 1926, foi o resultado da expedição que o autor fez entre 1911 e 1912 por 3.500 km de caminhos coloniais do nordeste a ele informados por Capistrano de Abreu. Este diálogo, ainda pouco conhecido entre nós, parece ter frutificado anos mais tarde nas páginas da Revista Brasileira de Geografia, publicada a partir de 1939, e em cujas páginas podíamos encontrar estudos valiosos, por exemplo, de história demográfica ou econômica. É curioso que o ano de seu primeiro número coincidisse com o centenário da fundação de outra revista, que cumpriu papel semelhante um século antes, a do mencionado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. De certa forma, o centenário do IHGB marca um refluxo para a historiografia no Brasil, em oposição ao extremo vigor experimentado pela Geografia.

Se a necessidade de diálogo interdisciplinar é algo absolutamente inescapável, o mesmo tem de ser dito com relação à adoção de uma perspectiva comparada. E nesse sentido, a presente obra oferece, mais do que um simples convite a quantos se interessem pela matéria, um desafio, pelo que retomo aqui a proposta de Claudia Daniel no capítulo final do livro. Antes de mais nada, temos de estabelecer uma nomenclatura comum que nos permita identificar com clareza o que se está comparando, o que só é possível, por seu turno, a partir do conhecimento abrangente das realidades históricas nacionais. Estatísticas nas Américas é o primeiro passo nesse sentido

Angelo Alves Carrara – Professor de História Contemporânea e História de Minas Gerais da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil (angelo.carrara@ufjf.edu.br).

Desarquivando a ditadura. Memória e justiça no Brasil – SANTOS et al. (EH)

SANTOS, Cecília Macdowel; TELLES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (org). Desarquivando a ditadura. Memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009. Resenha de: FREIRE, Américo. Ditadura, democracia e estado de exceção. Estudos Históricos, v.24 n.47 Rio de Janeiro Jan./June 2011.

Nas duas últimas décadas, os estudos históricos voltados para o exame da natureza do regime civil-militar brasileiro experimentaram um enorme impulso. Por certo, não faltam razões para explicar esse verdadeiro boom que, evidentemente, não é um fenômeno que diz respeito apenas ao Brasil. Basta consultar a programação dos inúmeros congressos internacionais que tratam de temáticas contemporâneas para se verificar a ampla presença de trabalhos voltados para a análise de experiências dramáticas vividas por indivíduos e grupos de diferentes sociedades sob o jugo de regimes ditatoriais.

No caso da produção recente sobre a ditadura brasileira, há duas vertentes de trabalho que têm despertado interesse e aberto caminho para novas incursões analíticas.

Uma delas está relacionada ao estudo de um fenômeno que, à falta de melhor denominação, pode ser chamado de institucionalização autoritária, o qual se associa aos processos pelos quais os governos militares levaram adiante o propósito de demarcar-se das demais ditaduras por meio de aplicação de medidas assentadas em textos político-legais, fosse a carta constitucional, fosse a própria legislação autoritária. Tais iniciativas expressaram-se também no estabelecimento de relações ambíguas com diferentes instituições do Estado brasileiro, em particular com os poderes Judiciário e Legislativo, já que foram assegurados, para ambos, determinados espaços de atuação político-institucional.

Outro campo que tem sido privilegiado é o que examina, sob diferentes perspectivas, a transição política brasileira e suas implicações para o estabelecimento de uma nova ordem política democrática no país. Vários autores, com base no pressuposto de que se deve conceber a dinâmica da transição brasileira como uma via de mão dupla entre o Estado e amplas parcelas político-sociais, têm buscado estabelecer linhas de continuidade entre o processo gradualista e acordado de retirada dos militares do centro do poder, no qual a Lei de Anistia cumpriu papel decisivo, e as “estratégias de esquecimento” que foram e têm sido acionadas pelos governos civis da chamada “Nova República”.

Lançado em 2009, em meio aos debates políticos e acadêmicos acerca da revisão da Lei de Anistia no Brasil, Desarquivando a ditadura nos propicia um excelente roteiro para o exame de algumas das questões historiográficas acima levantadas, além de muitas outras.

A obra é composta por dois volumes, ambos organizados em torno dos eixos “memória política” e “justiça”. O primeiro volume, dirigido para o estudo dos anos de repressão política, é dividido em duas partes: um conjunto de artigos relativos às memórias e às histórias de diferentes atores que resistiram ao arbítrio; e um outro conjunto, dirigido ao estudo da ideologia militar e das instituições do Estado.

Três dos capítulos que compõem a primeira parte do livro abordam temas ainda muito pouco explorados na literatura sobre o regime. Antônio Luigi Negro brinda-nos com um interessante texto sobre as expectativas e angústias de mulheres revolucionárias que se envolveram na experiência de se integrar à produção como operárias. Valendo-se de um rico conjunto documental produzido à época pelas organizações que apostaram naquela prática, o autor traz nova abordagem ao tema, quando se propõe a lidar não apenas “com o que as militantes queriam fazer com as operárias, mas também o que as operárias fizeram com as militantes”.

Já Flamarion Maués acompanha a publicação e distribuição do livro Tortura: a história da repressão política no Brasil, de autoria do jornalista Antônio Carlos Fon e publicado pela Editora Global, em 1979. Em seu estudo, o autor examina, em primeiro lugar, a rede de relações que se estabeleceu entre setores da grande imprensa e o governo Geisel no contexto da aplicação do projeto de distensão política. Em seguida, coloca-nos a par da dinâmica própria do campo das pequenas editoras de oposição do país, do qual a Global foi um dos exemplos mais expressivos.

Na sequência, Tatiana Paiva apresenta em texto um extrato de sua original pesquisa acerca de um lado ainda obscuro do exílio: o do impacto daquela experiência nos filhos dos que se viram obrigados a sair do país por motivos políticos.

O texto de Janaína Teles a respeito da luta dos familiares de mortos e desaparecidos fecha a primeira parte do livro. Nele, a autora discorre sobre as estratégias acionadas pelos governos militares no sentido de promover o desaparecimento de militantes assassinados pelo regime, sem deixar de chamar atenção para o fato de que foi no período do “moderado” Geisel que se deu a intensificação dessa prática.

Na segunda parte do livro, três textos lidam com questões que dizem respeito diretamente ao tema da justiça, sendo que dois deles, o de Anthony Pereira e o de Kathia Martin-Chenut, se associam a um duplo movimento que tem dado bons frutos para a história política brasileira, a saber, o uso do método comparativo e a crescente aproximação de saberes entre a História, as Ciências Sociais e o Direito.

Anthony Pereira toma como objeto a maneira pela qual os regimes ditatoriais do Brasil, do Chile e da Argentina se relacionaram com seus sistemas judiciais para processar seus opositores. Para o autor, uma variável a se levar em conta nesse caso diz respeito às relações que historicamente foram sendo construídas entre as elites judicial e militar. Em outras palavras, quanto maior for o nível de integração entre esses dois atores,  como no caso brasileiro, mais possível se a torna institucionalização da aplicação da justiça. Já Kathia Martin-Chenut examina a estruturação do Estado de exceção brasileiro à luz da legislação internacional sobre direitos humanos. Segundo a autora, estabeleceu-se no país um Estado de exceção complexo ou anômalo, dado que fundado em um sistema jurídico de alta complexidade, o qual foi expressão do “esforço de racionalização jurídica por parte dos detentores do poder, esforço que distingue o regime autoritário brasileiro de outros instaurados na América Latina”.

O segundo volume da obra dirige-se para o estudo da transição política e para o estabelecimento da ordem democrática no país. Dos capítulos que compõem a primeira parte, três discutem a Lei de Anistia brasileira sob diferentes perspectivas. O primeiro deles, de Samuel Soares e Larissa Prado, concentra o foco de análise no controle que os militares exerceram sobre o processo de anistia, assim como na análise das razões pelas quais a hierarquia militar utiliza-se do seu poder de veto para barrar quaisquer iniciativas que representem mudanças substantivas no espírito da norma aprovada em 1979. Já Glenda Mezarobba oferece-nos um quadro mais dinâmico da questão, quando acompanha em detalhes as políticas que têm sido adotadas pelos governos democráticos no sentido de dar respostas, ainda que parciais, às demandas dos que sofreram arbitrariedades durante o regime civil-militar. Por fim, Lucia Elena Bastos apresenta um painel bastante amplo das Leis de Anistia na América Latina, examinando-as à luz do direito internacional.

Os capítulos da seção final do livro são voltados para questões relativas à construção democrática no Brasil. Heloísa Greco, em “Anistia anamnese VS. Anistia amnésia: dimensão trágica da luta pela anistia”, além de registrar a pouca importância dada pela historiografia ao estudo do caráter instituinte da luta pela anistia, analisa os fundamentos das estratégias de esquecimento que têm sido acionadas por diferentes governos, contando para tal com apoio da mídia e de amplos setores da sociedade brasileira. Edson Teles fecha o livro passando em revista os principais temas e questões abordados nos dois volumes: os limites do consenso da transição pactuada; a política de silêncio em torno dos desaparecidos; os problemas em torno do acesso aos arquivos do regime.

Concluída a leitura dos dois volumes, há muito a se discutir a respeito do duro diagnóstico de boa parte dos autores acerca da maneira pela qual a democracia brasileira tem lidado com os inúmeros problemas do passado. O que importa aqui, no entanto, é registrar, uma vez mais, a relevância da obra para a historiografia e para a cidadania brasileiras.

Américo Freire – Professor associado do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV), Rio de Janeiro, Brasil (americo.freire@fgv.br).

Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo – BICUDO (EH)

BICUDO, Virgínia Leone. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Introdução e edição de Marcos Chor Maio. São Paulo: Editora Sociologia e Política, 2010. Resenha de: DIÉGUEZ, Carla Regina Mota Alonso. “Negro é negro”: a contribuição da obra de Virginia Leone Bicudo aos estudos de relações raciais. Estudos Históricos, v.24 n.47 Rio de Janeiro Jan./June 2011.

A questão racial é tema de pesquisa das Ciências Sociais brasileiras desde sua institucionalização. Na década de 1940, um grupo de pesquisadores, orientados pelo Prof. Dr. Donald Pierson, empreendeu pesquisas sobre o tema e desenvolveu teses de mestrado e doutorado na recém-criada Divisão de Estudos Pós-Graduados da Escola Livre de Sociologia e Política. Entre eles estava Virgínia Leone Bicudo.

Mas, quem foi e o que fez Virgínia Leone Bicudo? Esta resposta está no livro Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Publicado pela Editora Sociologia e Política em 2010, ano em que Virgínia completaria 100 anos, e organizado por Marcos Chor Maio, o livro apresenta a figura ímpar de Virgínia Leone Bicudo e sua tese de mestrado defendida em 1945 na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP).

O prefácio, escrito por Élide Rugai Bastos, localiza a tese de Virgínia no contexto teórico e metodológico da época, permitindo-nos conhecer mais sobre a influência norte-americana nos estudos da nascente Ciência Social brasileira, especialmente o interacionismo simbólico, que já apontava na obra de Virgínia e apareceu, de forma mais contundente, nos trabalhos de Oracy Nogueira (1998, 2009), companheiro de Virginia na primeira turma de mestrado da ELSP. Como é sabido, a ELSP, em seus anos de formação, contou com a presença de professores norte-americanos, com destaque para Horace Davis, Samuel Lowrie e Donald Pierson, este último o responsável pela criação da Divisão de Estudos Pós-Graduados da ELSP e pelo desenvolvimento das pesquisas conhecidas por estudos de comunidade.

Ao usar Ciência Social, evidenciamos a intersecção entre a Antropologia, a Sociologia e a Psicologia Social, presente nas pesquisas realizadas na ELSP, explícita na tese de Virgínia e ressaltada por Maio na introdução do livro. Esta era a forma que Pierson concebia a ciência desenvolvida e praticada na ELSP, que extrapolava as divisões disciplinares e buscava a comunhão entre teoria e empiria

É esta, também, a impressão que o leitor possui ao mergulhar na obra de Virginia. A autora mostra que não é preciso desfiar teorias para realizar um trabalho expressivo, reflexivo e crítico, mas sim saber usá-las. Baseada nos trabalhos de Donald Pierson, Negroes in Brazil, e de Everett Stonequist, The Marginal Man, ela busca construir hipóteses sobre as atitudes sociais de pretos1 e mulatos quanto às questões raciais. Entretanto, mais do que hipóteses, consideramos que Virgínia chega a conclusões sobre como pretos e mulatos veem as relações raciais.

Virgínia realizou sua pesquisa entre os anos de 1941 e 1944, ao longo dos quais entrevistou 31 pessoas, divididas segundo os fenótipos (termo utilizado pela autora) de pretos e mulatos e a classe social, inferiores e intermediárias. Ela buscava, dessa forma, estabelecer uma relação entre seu trabalho e o de seu orientador, Donald Pierson, o qual anunciou a existência de um preconceito de classe que se sobrepunha ao preconceito de cor (Pierson, 1945). Virgínia, porém, acabou distanciando-se da análise de Pierson, dado que suas hipóteses caminharam para a afirmação da existência de um preconceito de cor, autônomo do preconceito de classe. Nesse caminho também seguiu Oracy Nogueira, que viria a cunhar, posteriormente, um termo para este tipo de preconceito, o de preconceito de marca (Nogueira, 1998).

Virgínia também entrevistou membros da Associação de Negros Brasileiros, nome fictício dado por ela para a Frente Negra Brasileira (FNB), e utilizou passagens do jornal mensal da FNB, Voz da Raça, chamado na tese de “Os Descendentes de Palmares”.

Com base nesses dados, ela expõe os casos, as opiniões e atitudes dos entrevistados. Ela os apresenta conforme a divisão metodológica – pretos de classe inferior, pretos de classe intermediária, mulatos de classe inferior e mulatos de classe intermediária. Após a exposição de cada parte, são feitas reflexões sobre as atitudes apresentadas, depreendendo algumas hipóteses, as quais são reunidas na conclusão do trabalho.

Alguns depoentes têm suas entrevistas transcritas quase integralmente. O que poderia ser maçante torna o trabalho riquíssimo, demonstrando a importância dada por Virginia ao discurso do nativo, no sentido de compreender os aspectos objetivos e subjetivos que o levam a determinadas atitudes raciais. Também transforma a obra em excelente fonte documental, possibilitando a outros pesquisadores, nos dias atuais, fazerem uso desse material e compreenderem, a partir de dados primários, como as relações raciais desenvolviam-se na década de 1940.

Os dados sobre a FNB também são de extrema importância, pois mostram como essa associação procurou agremiar pretos e mulatos no sentido de transpor as barreiras da cor e construir uma sociedade mais justa e igualitária no que concerne às relações raciais. Tanto as entrevistas com membros da FNB quanto as passagens extraídas do mensário e expostas no trabalho apresentam essa preocupação.

Ao final da tese, Virgínia elenca sete hipóteses. No que concerne à relação entre raça e classe, afirma que a ascensão do preto ou do mulato é feita pela ocupação e a educação, mas que isso não diminui a distância social em termos de cor. Os mulatos integram-se mais facilmente ao grupo dominante, talvez, como aponta a autora, pela sua condição de híbrido, o que a leva a hipótese final. Para Virgínia, trata-se “de discriminação baseada na cor, visto perder significação desde que o indivíduo apresente características do grupo dominante e na medida em que sua pele vai ‘branqueando’, não sendo, portanto, levada em conta sua origem” (Bicudo, 2010: 163)

Com orelha assinada por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e depoimentos na quarta capa de Antonio Sergio Alfredo Guimarães, Peter Fry, Mariza Correa, Joel Rufino dos Santos, Maria Angela Moretzsohn e Maria Helena Teperman, a tese de Virginia Leone Bicudo – visitadora sanitária, socióloga e psicanalista, publicada pela primeira vez na íntegra –2 é uma excelente fonte para compreendermos não só o desenvolvimento das Ciências Sociais no Brasil, mas principalmente, para entendermos as relações raciais na primeira metade do século XX.

Referências

BICUDO, Virgínia Leone. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Sociologia, São Paulo, Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, v.9, n.3, p. 196-219, 1947.         [ Links ]

______. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Introdução e edição de Marcos Chor Maior. São Paulo: Editora Sociologia e Política, 2010.         [ Links ]

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca. As relações raciais em Itapetininga. Apresentação e edição de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. São Paulo, Edusp, 1998.         [ Links ]

______. Vozes de Campos de Jordão: experiências sociais e psíquicas de turbeculoso pulmonar no estado de São Paulo. 2. ed. organizada por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.         [ Links ]

PIERSON, Donald. Brancos e Pretos na Bahia: estudo de contato racial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1945        [ Links ]

Notas

1 Usarei aqui os termos utilizados pela autora.

2 Parte da tese foi publicada em artigo pela revista Sociologia (Bicudo, 1947).

Carla Regina Mota Alonso Diéguez – Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e professora e pesquisadora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, Brasil (carlaregina@fespsp.org.br).

artido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (1965-1979) – GRINBERG (EH)

GRINBERG, Lucia. Partido político ou bode expiatório:
um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (1965-1979). Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. Resenha de: NEGRO, Antonio L. A Arena não é a filha da UDN que caiu na zona. Estudos Históricos, v.23 n.46 Rio de Janeiro July/Dec. 2010.

Um partido político que, de fato, se tornou um bode expiatório. Esta assertiva mal resume o excelente livro de Lucia Grinberg. Longe dos embates políticos e da memória construída nos anos 1980, é dada ao leitor uma visão detalhada e mais complexa sobre a formação e funcionamento da Arena, bem como do sistema partidário brasileiro, tanto o do pré-64 quanto o do pós-64 (até 1979). Grinberg ressalva que ridicularizar a Arena silencia um aspecto acentuado da História da sociedade brasileira após o golpe de 64: o envolvimento dos civis no apoio à ditadura e mesmo na sua gestão. Com seus milhares de eleitores, adeptos, cabos eleitorais, chefes locais e lideranças, a Arena foi um partido inicialmente integrado por uma tarimbada geração de políticos que se encarregou, inclusive, de formar novos dirigentes. Esses quadros não só atuaram nos anos 1970, como também marcaram presença no Brasil democrático da Constituição de 1988.

Ao contornar um quadro historiográfico quase saturado de pesquisas sobre a esquerda, a autora empreendeu uma investigação compreensiva, sensível e com bom humor, abordando tema grave e trombudo: um partido de direita, esteio de um regime ditatorial e sanguinário (mas que não dispensou, totalmente, a existência de eleições, partidos – situação e oposição – e, por conseguinte, do Poder Legislativo). Logo, o que Lucia Grinberg dá ao leitor é um livro que alia pesquisa rigorosa a uma observação que percebe a incerteza, a diversidade, o jogo de forças, e a heterogeneidade do processo histórico.

Elegendo para epígrafe do capítulo 1 “a Arena é a filha da udn que caiu na zona”, a autora foi feliz em indicar que seu livro incide sobre um período estendido entre o pré-64 – note-se a menção à União Democrática Nacional – e os anos 1980, quando a Arena é elaborada, na memória e nas páginas do humor político, como uma mulher maldita, alvo de apedrejamentos, motivados, em sua maior parte, é lógico, pela raiva contra a ditadura. Como Grinberg argumenta que, “enquanto os militares e o governo não podiam ser atacados de frente, a Arena podia” (p. 284), cabe, assim, seguir sua percepção: de um lado, uma mulher ridicularizada (a própria Arena); de outro, gorilas viris e brutamontes (os militares).

Entre os seus mais interessantes resultados, o livro mostra a importância do Partido Social Democrático (psd) no funcionamento da Arena e de como esse partido getulista era visto pelos arenistas como “o modelo por excelência de partido governista e majoritário”, cuja sigla caberia à Arena recuperar em caso de eventual dissolução. Em 1979, isso era, com certeza, uma “alternativa inesperada”, em particular quando “contrastada com a memória construída sobre a Arena como a grande herdeira da udn” (p. 221). Se a associação entre Arena e psd foi mais recorrente do que o esperado, isso corrobora que o trabalhismo foi a parte mais indigesta da controversa herança de Vargas. No final, valeu foi o realismo, pois reeditar a sigla do psd poderia ofender convicções udenistas – antigetulistas – sobreviventes na Arena. Nota a autora que a sigla PDS, de Partido Democrático Social, escolhida para suceder a Arena, era parecida com a do psd. Um trecho da autobiografia Memórias de um stalinista, de Hércules Correa, parece combinar com isso: “Meu jovem”, disse-lhe o senador Amaral Peixoto, do psd, “as boas idéias o PCB formula, o PTB agita e o psd realiza”. Em alguma medida, em plena Arena, isso talvez tenha valido para suas alas radicais, as concentrações udenistas e o realismo pessedista.

Afora o fantasma da turbulência social e do facciosismo extremado, o temor ao retorno das siglas do sistema partidário do pré-64, proscrito no ai-2 de 1965, é usado pela autora para remeter ao peso do mulitpartidarismo dos anos 1945-1964, que permaneceu como “referência identitária durante o bipartidarismo”, frisando “a importância da sigla, do vocabulário, enfim, da história de um partido” (p. 223, 222). É também quando dialoga com as teses da artificialidade da Arena – que a censuram “pelo que ela não é, não tem, não faz” (p. 31) – que Grinberg afirma que a Arena era uma novidade em posse de lideranças experimentadas. Embora inventada pelo novo regime, seus aderentes possuíam “longa prática na política partidária”. Muitos haviam exercido “mandatos sucessivos para diversos cargos eletivos, razão pela qual não se pode deixar de reconhecer sua visibilidade e representatividade junto à população” (p. 32).

Essa é, a propósito, uma proveitosa consideração para a Bahia, que pode ter ficado de fora da conspiração, conforme se presume, mas que certamente sustentou com base social o golpe que derrubou Jango. Antes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que aconteceu depois da queda do presidente, a Bahia era um estado que, por décadas a fio, políticos udenistas (Juracy Magalhães), mas também pessedistas (Pedro Calmon), afirmavam ser um lugar avesso a conflitos de classe, ao mesmo tempo em que rezavam um catolicismo conservador e assumiam posições anticomunistas. Tudo isso sem negar seus princípios liberais. Como alerta Grinberg, é preciso notar homens como Luiz Viana Filho (udn) e Antônio Carlos Magalhães (psd) foram eleitos e reeleitos antes do golpe e, depois do golpe, foram feitos governadores, convertendo-se em lideranças nacionais.

Nesta, como em outras passagens de seu livro, a autora é certeira em sua original análise. No lugar de responsabilizarmos apenas os militares pelo autoritarismo, é preciso enxergar a proeminência social desses civis que receberam a Arena das mãos do novo regime. Um detalhe positivo de Grinberg, a propósito, é ter documentado o apoio do ex-deputado federal da udn Gilberto Freyre à ditadura. Considerando a democracia um estrangeirismo nas terras do Brasil (p. 169), desqualifica também o liberalismo. Nisso, Freyre ladeia o ex-integralista Miguel Reale, afora outros reacionários.

A presença dos estados é outro ponto alto do livro, pois as origens diversas dos arenistas são relevantes para o enfrentamento do “tempo de crise” (1964-1975), quando tiveram de ceder espaço à “atuação ostensiva do militares” (p. 46). É a partir daí que Grinberg evidencia, sistematiza e analisa a heterogeneidade vigente na Arena, na sua relação com o Executivo, nos debates sobre sua identidade, suas alas e chefes em disputa, seus dilemas e impasses. Resumidamente, ela explica: “nem todos os militares e políticos que apoiaram o movimento de 1964 desejavam o mesmo modelo de partido. Em segundo lugar, nem todos os governos militares procuraram fortalecer o seu partido” (p. 42).

Esse tempo de crise foi, também para a Arena, uma experiência difícil e angustiante, dividida em quatro fases: 1964-1966 (conspiração e dúvidas), 1966-1968 (incerteza e cisões), 1969-1973 (silêncio e reorganização) e 1974-1979 (abertura política). Como ocorre de suceder nas revoluções, enquanto uns queriam fazer tabula rasa do passado, outros faziam a defesa, às vezes migalhas, dos variados interesses da representação política parlamentar do pré-64, o que indica que Arena e governo “não formavam um bloco monolítico” (p. 48). Em acréscimo ao ai-5 e a episódios de absoluto controle do poder (cassações, nomeações, os recessos do Congresso em 1966, 1968 e 1977), o impedimento da posse do vice-presidente do marechal Costa e Silva Pedro Aleixo na presidência do país, em 1969, marcou o auge do conflito entre governistas, cindidos entre militares e arenistas. Fica assim patente que os militares não eram patriotas idealistas, ludibriados por raposas civis. As decisões centrais do regime, apesar da participação dos civis, foi, muitas vezes, exclusividade dos militares, em particular no que toca à questão institucional, independentemente das disputas internas na Arena, que sempre existiram.

Cumpre-me tecer paralelo entre a agonia da Arena com outras dilacerações. Foi a defesa da autenticidade da representação parlamentar perante o trabalhismo e o comunismo que levou o Congresso a abjurar princípios democráticos em favor do poder militar. Sistemas de inspiração diversa (o Parlamento liberal e o sindicalismo corporativista) passaram por experiências similares. Em nome de sua autenticidade, forças direitistas do pré-64 ganharam dos militares cenários varridos de seus rivais, mas foram depois encurraladas por esses mesmos militares, sendo marginalizadas e fragilizadas, demonstrando pouca competitividade perante seus adversários, quando estes conseguiam se reorganizar. Contudo, de 1978 em diante, se o sindicalismo pró-ditadura saiu abatido, a disputa no sistema partidário teve outro resultado. Não só uma série de casuísmos protegia e promovia a Arena, como também os arenistas lograram acordar de sua depressão, exibindo consigo aquela costumeira astúcia de quem tem prática, recursos e influência.

Partido Político ou Bode Expiatório, de Lucia Grinberg, é um livro poderoso. Encontra seu posto na História do Brasil, além de mudar, qualitativamente, nosso entendimento sobre seu objeto. Dada sua análise habilidosa, abre pontes para sabermos mais da Anistia, dos novos do pós-79, das Diretas Já, e da política no Brasil, tanto ontem como hoje.

Antonio L. Negro – Professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil (negro@ufba.br).

Ditadura militar na Bahia – ZACHARIADHES (EH)

ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro (org.). Ditadura militar na Bahia: Novos olhares, novos objetos, novos horizontes. Salvador: UFBA, 2009. Resenha de: FERREIRA, Jorge. A ditadura militar na Bahia. Estudos Históricos, v.23 n.46 Rio de Janeiro July/Dec. 2010.

Em 1985, a ditadura instaurada no Brasil com o golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart chegou ao fim. Trata-se, em termos históricos, de evento bastante próximo. Superando o preconceito de que não poderiam estudar acontecimentos muito recentes, diversos historiadores dedicaram-se a estudar o regime militar imposto em 1964. A ditadura tornou-se objeto de pesquisa dos historiadores brasileiros com resultados muito instigantes.

É nesse contexto que vem a público o livro organizado por Grimaldo Carneiro Zachariadhes, intitulado Ditadura militar na Bahia. Novos olhares, novos objetos, novos horizontes (UFBA, 2009). O livro, resultado de pesquisas originais desenvolvidas por pesquisadores que integram o Núcleo de Estudos sobre o Regime Militar (NERM), aborda diversos temas relativos ao regime militar no estado. Não é difícil perceber, nos vários capítulos da obra, como os historiadores brasileiros, sem abrir mão do rigor metodológico e do trabalho de pesquisa documental, têm apresentado resultados de grande qualidade voltados para o público interessado em conhecer seu próprio passado.

Inicialmente, um problema apresentado à sociedade brasileira e que muitos ainda têm resistências em admitir: o apoio encontrado pela ditadura em diversos segmentos da sociedade brasileira. Ediana Lopes de Santana, por exemplo, abre o livro apontando para o processo de radicalização entre os movimentos que lutavam pelas Reformas de Base durante o governo Jango e os conservadores que resistiam em abrir mão de seus privilégios. Muitos movimentos de mulheres, segundo a autora, surgiram na época, mobilizados contra o governo Goulart. A mais conhecida dessas organizações foi a Campanha da Mulher pela Democracia. Embora defenda que por detrás dessas manifestações femininas estivessem os homens do IPES e do IBAD, especificamente na Bahia isso não ocorreu. No estado, existiam diversas organizações femininas, mas não houve movimentos organizados de mulheres de oposição ao governo Goulart. Foi somente após a consolidação do golpe, em 6 de abril de 1964, que as mulheres baianas de classe média se organizaram e foram às ruas apoiar o novo regime.

Outro setor a apoiar a ditadura foi o protestantismo histórico. Elizete da Silva, em instigante pesquisa, demonstra o apoio de lideranças batistas e presbiterianas ao regime militar. Assustados com o crescimento das esquerdas durante o governo Goulart, os religiosos, com medo do comunismo, apoiaram o golpe e produziram discursos legitimadores do governo autoritário. Alguns, inclusive, colaboraram com as forças de repressão delatando seus próprios irmãos de fé. A proximidade entre os protestantes com a ditadura culminou com a nomeação de um político batista para a prefeitura de Salvador. Por esse motivo que, com razão, muitos qualificam o regime de “ditadura civil-militar”. Afinal, é muito difícil os militares se afirmarem no poder sem o apoio dos civis.

Mas não foram apenas mulheres e religiosos de classe média que legitimaram a ditadura. Segundo pesquisa de Alex de Souza Ivo, sindicalistas também o fizeram. Durante o golpe militar, as unidades da Petrobrás na Bahia, em particular a refinaria de Mataripe, sofreram fortíssima repressão, com prisões e demissões. As lideranças dos sindicatos petroleiros haviam se engajado no movimento pelas reformas de base e tiveram importante atuação no Comando Geral dos Trabalhadores. Os golpistas civis e militares os conheciam, daí a repressão que, rapidamente, desarticulou qualquer resistência. Mas a intervenção do Ministério do Trabalho nos sindicatos dos petroleiros chamou a atenção de dois dirigentes sindicais que haviam sido afastados do Sindipetro/Refino, em janeiro de 1963. Em carta aos diretores da refinaria de Mataripe, eles apresentaram-se como participantes da “Revolução” e atacaram, segundo suas próprias palavras, os colegas integrantes do “comuno-peleguismo”. Eles também formularam sugestões para o regime conseguir o apoio dos operários. Enquanto muitos sindicalistas eram presos e operários perseguidos abandonavam os empregos, alguns procuravam tirar proveito da situação.

Embora tenha sido, desde o início, um regime conhecido pelas práticas repressivas e autoritárias, a ditadura encontrou apoio social. José Alves Dias apresenta os resultados de sua pesquisa sobre a repressão na cidade de Vitória da Conquista, demonstrando que os estudos locais podem oferecer novas e diferentes percepções de um mesmo processo ocorrido nos grandes centros. Antonio Mauricio Freitas Brito, por sua vez, preocupa-se com o movimento estudantil em Salvador no ano de 1968. Tratou-se de um movimento bastante mobilizado. Milhares de estudantes foram às ruas protestar pela falta de vagas nas Universidades. Também realizaram greves de protesto pelo assassinato do estudante Edson Luís no Rio de Janeiro, contra o corte de verbas para o ensino superior e o acordo MEC-USAID. Conflitos com a polícia, passeatas, panfletagens e pichações foram ações muitos comuns. Com o AI-5, diversos estudantes foram obrigados a abandonar a universidade, e a recorrer ao exílio político ou à clandestinidade.

As organizações armadas revolucionárias também fizeram parte das preocupações dos pesquisadores que participam do livro. Sandra Regina Barbosa da Silva Souza realizou importante pesquisa sobre a atuação da Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares, do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário e do Movimento Revolucionário Oito de Outubro. Recorrendo aos métodos da História Oral, a autora demonstra a interiorização dessas organizações e sua atuação em diversos municípios da Bahia. A pesquisa questiona as teses que consideram a Bahia como um estado em que não teria havido oposição armada ao regime, sendo Salvador apenas uma “área de recuo”. Cristiane Soares de Santana, também recorrendo à História Oral, preocupou-se especificamente com outra importante organização revolucionária que também atuou na Bahia, a Ação Popular. No texto, conhecemos as vivências e experiências dos revolucionários apistas no estado, particularmente durante o processo conhecido por “inserção na produção”, quando muitos deles trabalharam em fábricas e nas plantações de cacau e mamona.

Ao lado da oposição armada à ditadura, encontramos no livro a atuação de setores moderados. A pesquisa do organizador da coletânea, Grimaldo Zachariadhes, resgata o papel do cardeal Dom Avelar Brandão Vilela na arquidiocese de Salvador. Ele tinha no diálogo sua maior arma. Seja com políticos de esquerda, com militares de direita, com membros do clero conservador ou dos adeptos da Teologia da Libertação, Dom Avelar marcou presença na política da Bahia durante a ditadura. Sua moderação política e sua insistência no diálogo permitiram que ele protegesse religiosos das perseguições militares e intercedesse a favor dos presos políticos. Margarete Pereira da Silva também se preocupa com a atuação da Igreja Católica, mas com os adeptos da Teologia da Libertação na cidade de Juazeiro. Esse setor do clero, insatisfeito com a penetração predatória do capitalismo no campo e a miséria daí resultante, publicou, em 1973, importante documento intitulado Eu ouvi os clamores do meu povo, com contundentes denúncias sobre os baixíssimos índices sociais no Nordeste brasileiro. O texto provocou grande mal-estar nas relações entre Igreja e governo militar. A autora nos leva a conhecer as atividades do clero católico diante da construção da barragem de Sobradinho, particularmente da diocese de Juazeiro e da Comissão Pastoral da Terra na defesa das populações que deveriam ser retirada das áreas alagadas pela barragem. Mesmo sob grande pressão dos militares, o bispo de Juazeiro, Dom José Rodrigues de Souza, não recuou na luta em defesa dos pobres que perderiam o pouco que tinham com o lago que se formaria.

No engajamento político contra a ditadura, outras opções surgiram à luta armada. Maria Victoria Espiñeira revela a participação de muitas pessoas que atuaram na cidade de Salvador em duas frentes contra o regime militar. Uma delas, composta majoritariamente por militantes do Partido Comunista Brasileiro, formou a Ala Jovem do Movimento Democrático Brasileiro, único partido de oposição. A outra atuou no chamado Trabalho Conjunto da Cidade de Salvador, agrupando associações profissionais, políticos, estudantes e representantes de associações de bairros. Muitos eram católicos adeptos da Teologia da Libertação. A Igreja progressista e o PC do B controlavam a direção da organização. A Ala Jovem e o Trabalho Conjunto atuaram diante de grandes adversidades. Os jovens comunistas que atuavam dentro do MDB, por exemplo, participaram de um partido político que, embora formalmente de oposição, era dirigido por “adesistas” à ditadura. Mais tarde, sofreram perseguição dos militares. Ora aliados, ora adversários, a Ala Jovem e o Trabalho Conjunto criaram formas de luta contra o autoritarismo do regime.

Outros três trabalhos igualmente contribuem para compreender os tempos difíceis da ditadura e os personagens que se engajaram na luta contra o poder civil-militar na Bahia. Sílvio César Oliveira Benevides reconstitui a greve de secundaristas no Colégio Estadual da Bahia, conhecido como Central, em 1966 e Izabel de Fátima Cruz Melo apresenta as Jornadas de Cinema na Bahia entre 1972 e 1978. O livro se encerra com o trabalho de Joviniano de Carvalho Neto, analisando o II Congresso da Anistia ocorrido em Salvador em novembro de 1979. Trata-se de trabalho que mostra as diversas propostas de anistia e a que foi implementada pela ditadura. O artigo é instigante, sobretudo quando a “anistia recíproca”, aquela que beneficiou os torturadores, retorna ao debate público. O artigo de Joviniano contribui, sobretudo, para a preservação da memória da luta pela anistia no Brasil durante a ditadura militar.

Ditadura militar na Bahia: novos olhares, novos objetos e novos horizontes é resultado de esforço coletivo de historiadores interessados no estudo de um período especialmente difícil no Brasil: a ditadura civil-militar. Atualmente, em diversas universidades, o tema da ditadura tem atraído a atenção de muitos historiadores.

São vários os motivos que instigam a curiosidade sobre uma época tão retrógrada na vida política do país. Quero chamar a atenção para dois deles. O primeiro é o interesse do historiador por personagens e atores sociais que atuaram naqueles tempos de autoritarismo. No caso do livro, encontramos sindicalistas e cineastas, estudantes universitárias e secundaristas; bispos progressistas e católicos marxistas; jovens que optaram por pegar em armas e outros que preferiram a luta institucional, todos vivendo em um tempo muito diferente do nosso. Conhecer tais vivências e experiências, saber como homens e mulheres inventaram a participação política em um regime autoritário, é um bom motivo para voltar-se para a época da ditadura militar.

O segundo estímulo provém do fato de que estudar a ditadura é conhecer um período em que não havia as prerrogativas do regime democrático, período em que os direitos civis foram suspensos, os direitos políticos cerceados e as reivindicações por direitos sociais consideradas “subversivas”. Quando estudamos a ditadura, no mesmo movimento, valorizamos a democracia. Ressaltamos a importância dos direitos de cidadania dentro do regime democrático. Mostramos, para as novas gerações, como é ruim viver sem o direito de expressar livremente o pensamento, de ser preso sem processo formado, de ter a casa invadida sem ordem judicial, de não ter o direito de eleger os governantes, de ser vigiado em sala de aula e de correr o risco de morrer devido a bárbaras torturas, para citar algumas situações do passado.

A leitura de Ditadura militar na Bahia: novos olhares, novos objetos e novos horizontes nos leva a esse salutar e instigante “estranhamento” do nosso tempo com o tempo da ditadura. Os estudos sobre a ditadura militar, inevitavelmente, nos levam a valorizar o regime democrático.

Jorge Ferreira – Professor titular de História do Brasil do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil (jorge-fer@uol.com.br).

Geografia histórica do Brasil – MORAES (EH)

MORAES, Antônio Carlos Robert. Geografia histórica do Brasil: cinco ensaios, uma proposta e uma crítica. São Paulo: Annablume, 2009. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Entre o global e o local: por uma nova geografia dos “espaços nacionais”. Estudos Históricos, v.23 n.46 Rio de Janeiro July/Dec. 2010.

A densidade geográfica de nossa formação e de nossa atualidade impõe um forte conteúdo de particularidades nacionais a serem levantadas e interpretadas pelos geógrafos, cuja explicação adequada aparece como condição para se propor um projeto viável de nação para o Brasil. Explicitar posicionamentos metodológicos, adestrar o instrumental analítico com que se opera, clarificar os conceitos e teorias utilizadas, são fundamentos prévios ao propósito de gerar uma geografia que oriente a instalação da modernidade que queremos para o país. Para tanto temos que abandonar o ideal de buscar de imediato uma utopia celeste (o céu na Terra) e superar a desesperança do inferno presente. É o que anima o caminho na trilha do purgatório… (MORAES, 2009, p. 150).

Com o impacto dos processos de conexão das economias nacionais – chamados convencionalmente de “globalização”, por terem difusão simultânea, entre diferentes lugares, em função da revolução dos meios e técnicas de comunicação em massa na segunda metade do século XX –, os estudos geográficos acabaram por se centralizar ora no “global”, ora no “local”. Para Antônio Carlos Robert Moraes, a consequência disso para a pesquisa e para o conhecimento geográfico é que a questão “nacional” ficou em segundo plano. Uma vez que se dá atenção aos “processos globais”, ou às suas “consequências locais”, outras escalas de análise, como o “espaço nacional”, são deixadas de lado, ou são, no mínimo, pouco estudadas. Pensar uma geografia histórica para o Brasil requer, portanto, que nos voltemos para as questões nacionais, de modo a inquiri-las tanto no passado quanto no presente.

Nessa perspectiva, o subtítulo deste novo livro de Moraes é mais significativo do que o título, porque demarca sua proposta, desenvolvida ao longo de cinco ensaios (para se pesquisar a questão nacional no país), concluindo com a exposição de uma crítica, até certo ponto severa, à centralização dos estudos geográficos no global ou no local, sem dar a atenção devida a outras escalas de análise. Para o autor, tal opção constitui uma despolitização do trabalho, da função e da pesquisa do geógrafo, ao mesmo tempo em que impõe uma miscelânea de opções teóricas e metodológicas, selecionadas mais em função de modas e ondas, do que pela sua maior ou menor operacionalidade na análise de determinados temas, fontes e objetos.

De início, parte da constatação de que discutir “a história da geografia no Brasil, nos marcos metodológicos dos estudos pós-coloniais, revela-se um exercício bastante interessante, em virtude da particularidade da formação do país e da construção da idéia de nacionalidade nesse processo” (p. 11). Ao fazer essa escolha, ele deixa de lado os pressupostos dos estudos dos séculos XIX e XX, nos quais historiar a formação da nação, de seu território e de seu Estado, dependia de uma inevitável homogeneização do espaço, de sua cultura, de seus grupos étnicos, de sua língua, história e tradições.

Por essa razão, Moraes considera Edward Said “um autor fundamental para guiar tal equacionamento”, visto que estabelece “uma relação direta entre as ciências ocidentais e a administração colonial”. Afinal, foi “o contato hierarquizado com sociedades bastante diversas, dotadas de características díspares, que permitiu ao pensamento europeu elaborar teorias gerais da história e desenvolver abordagens totalizantes acerca da vida social, cunhando conceitos que por meio de um aparato planetário de socialização e ensino tornaram-se de fato universais” (p. 15). Desse modo, durante muito tempo deu-se atenção aos processos de formação do Estado-nação, tendo em vista apenas o papel desempenhado pelos colonizadores (europeus), não sendo averiguada a contribuição dos colonizados (povos nativos). Tendo por base a obra de Said, Moraes vê justamente nesta tensão entre colonizadores e colonizados, entre metrópoles e colônias, o início da formação de um novo território, de uma nova nação e de um novo espaço de sociabilidade, que formariam, a partir do século XIX, os novos Estados-nacionais da América Latina.

Seguindo esse itinerário de pesquisa é possível, para o autor, destrinchar melhor a geopolítica da instalação dos portugueses no Brasil, pormenorizando as diferentes formas de tomada do espaço, de organização do território habitado e de disputas e negociações entre os colonizadores e os povos nativos. “Isso porque a colonização é – em essência – um processo de expansão territorial, constituindo uma modalidade particular de relação sociedade-espaço, marcada pela conquista, domínio e exploração de novas terras” (p. 59). Cabe assinalar, porém,

[…] que é a subordinação a um domínio político externo e a inserção subordinada nos circuitos imperiais que qualificam tais espaços como “coloniais”. As regiões coloniais são, antes de tudo, partes de um império. Mas, são também partes de territórios coloniais diferenciados (p. 63).

[…] Nesse sentido, a geografia joga um importante papel na interpretação da particularidade histórica dos países latino-americanos (p. 59).

Essa particularidade é adensada ao se averiguar os processos de independência destes diferentes espaços, até virem a ser tornar Estados nacionais. Nessa perspectiva, o autor entende a “Geografia Histórica como caminho de reconstituição (em várias escalas) do processo de formação dos atuais territórios, postura que – inapelavelmente – repõe uma ótica de história nacional (mesmo no âmbito de uma perspectiva crítica)” (p. 61). Por esse motivo, seja dando destaque à organização da territorialidade estatal, seja demonstrando a importância do sertão e de suas peculiaridades, seja ainda primando pela análise da formação dos diferentes espaços habitados (e não-habitados) no país, a geografia histórica tem um importante papel a cumprir, ao pesquisar e expor esses diferentes roteiros. Para Moraes,

No tocante à produção simbólica do espaço, as décadas de 1930 e 1940 conheceram uma grande revisão teórica do pensamento sobre o país, tendo sido publicadas nesse período as principais obras que iriam marcar as interpretações do país até a atualidade […]. Cabe salientar também no universo cultural, a fundação das primeiras instituições universitárias brasileiras no ano de 1934, com a instalação de cursos de geografia [e história] nas universidades de São Paulo e do Distrito Federal (Rio de Janeiro), os quais tinham no reconhecimento empírico do país e de sua dinâmica territorial o objetivo maior de pesquisa do campo disciplinar (p. 127).

Essa modalidade de investigação se desenvolveria nas décadas seguintes, com o aumento do número de profissionais, pesquisas e instituições. Desse modo, a inversão de propósitos, no campo dos estudos geográficos, ao priorizarem o global e o local, a partir dos anos 1990, não deixa de ser também um processo de despolitização nas pesquisas e do pesquisador, ao se desconsiderar a importância da questão nacional.

Assim, dando continuidade aos seus livros Bases da formação territorial no Brasil (2000) e Território e história no Brasil (2002), o autor demonstra a importância da questão nacional, num momento em que se avolumam os estudos sobre o espaço global e as dimensões do local, repondo na agenda de pesquisas a necessidade de se entender outras escalas de análise. A esse problema estariam ligadas as escolhas teóricas e metodológicas, as predisposições políticas e a ação social do pesquisador. Embora as dimensões dos espaços nacionais tenham sido suplantadas pelos processos de globalização, que homogeneizariam territórios, economias e culturas, não estaria apenas no estudo dos espaços locais a demonstração de uma rede de tensões e de contradições no interior desse processo. E essa rede demarcaria as singularidades territoriais, econômicas e culturais, porque é justamente quando se dá atenção a todas as escalas de análise que elas aflorariam de forma mais nítida.

Diogo da Silva Roiz – Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, campus de Amambaí, e doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil (diogosr@yahoo.com.br).

Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil – FREIRE (EH)

FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2009, 264 p. il. Resenha: COSTA, Suely. O paradoxo da diferença: “verdadeiro, falso e fictício”. Estudos Históricos, v.23 n.45 Rio de Janeiro Jan./June 2010.

Originalmente tese de doutorado, premiada em 2008, Mulheres, mães e médicosdiscurso maternalista no Brasil, ao tratar do ideário da “maternidade científica” nas duas primeiras décadas do século XX, traz importantes contribuições para se pensar os movimentos de mulheres no país.

Duas revistas femininas ilustradas, consultadas ao longo dos anos 20 – Revista Feminina , que circulou entre 1914 e 1936, e Vida doméstica , entre 1920 e 1963 – e outras três publicações constituem suas fontes principais de pesquisa. A autora tem como objetivo central “analisar como se conformou a afinidade eletiva entre mulheres das classes média e alta urbanas e os médicos dedicados à higiene infantil, em torno da valorização da maternidade”. Para ela, teria resultado daí uma “relação de aliança e parceria de consequencias transformadoras para ambos”. Isso e muito mais expõe o projeto de modernidade da Primeira República. Ilustrações, bibliografia de apoio e encadeamento de tópicos compõem um envolvente estilo narrativo.

Inicio a leitura valendo-me da última frase de Angela de Castro Gomes, autora do Prefácio: “(…) é bom dizer que uma mulher, mãe e médica não poderia ter se saído melhor dessa empreitada desafiadora”. Ao dedicar o livro aos filhos e filhas e, em especial, à neta, a autora remete-me à saga feminina “da dor e da doçura de ser mãe” associada, no caso, ao seu ofício de cuidados de crianças e mulheres. Sua trajetória pessoal e acadêmica leva-a a transitar pela matéria política de que se ocupa: examina o passado no futuro da uma experiência por ela vivido no presente. Nada mais importante para o conhecimento histórico que produz!

Transporto-me para a “semântica dos tempos históricos”, no sentido empregado por Koselleck.1 Lembro-me, ainda, de Carlo Ginzburg, ao advertir seus leitores para aquilo que une os capítulos de um de seus textos e que constrói “a relação entre o fio – o fio do relato que ajuda a nos orientarmos no labirinto da realidade – e os rastros”, no desafio de distinguir o que pode ser “verdadeiro, falso e fictício”.2 Maria Martha situa dilemas cruciais do fazer historiográfico, dispensando usuais alongamentos de debates sobre eles; nada disso lhe faz falta. As práticas e representações que examina, próprias a esse maternalismo, entre tantos, estão entre nós e na vida da autora, atualizadas sob circunstâncias próprias à história contemporânea das mulheres e da medicina, algo que ela conhece por dentro e que expressa com notável sensibilidade.

À “moda “koselleckiana”, ocupa-se da história de conceitos, daqueles que pensa como expressões dos feminismos desse tempo. Faz isso num momento de aquecidas polêmicas conceituais sobre a história das mulheres. Daí a oportuna recomendação de leitura na “orelha” do livro, expressa por Luiz Otávio Ferreira para “os que se interessam em entender o significado moderno da maternidade e sua importância na configuração atual das relações de gênero”. Em conjunto, o livro emite um instigante chamado para crítica e atualizações conceituais da história das mulheres no Brasil, presentes em linhas de pesquisa que, desde o início dos anos 90, entre muitas, dedicam-se à tarefa de distinguir, com liberdade, o verdadeiro, o falso e o fictício nessa história. Aquelas sobre maternalismos, como a de Maria Martha, sob preciso foco, são partes dessa tarefa.

Lido seu primeiro tópico, “As múltiplas faces da mulher moderna”avalio o quanto há de fictício nas referências analíticas que, mesmo hoje, conceituam essa conjuntura como parte de uma “república velha”. Depois, outra contribuição preciosa decorre da busca da produção de sentidos dos discursos que examina. Sintetiza-os em dois conceitos associados entre si, lidos nas fontes selecionadas: um, o de “feminismo liberal”, referido às práticas sociais, e outro, o de “maternalismo científico”, que remete às representações sobre ser mulher e mãe, nessa experiência política partilhada por mulheres e médicos. Não perde de vista, porém, variações e contradições entre esses sujeitos. Recorta a matéria e a situa no campo político, numa fértil aproximação com a história dos/das intelectuais. O clima em que essas práticas e esse discurso se propagam e se efetivam ilumina a dimensão política de um candente problema a solucionar: o de conciliar atividades das mulheres fora de casa “sem ameaçar sua mais ‘nobre’ missão – a maternidade”, quando os chamados para o exercício de funções associadas a um projeto de modernidade da república se intensificam. Trata-se de uma regularidade de longa duração da história das mulheres.

No discurso maternalista em foco, a autora distingue duas mensagens principais, largamente disseminadas pelos periódicos femininos e publicações médicas: as que afirmam a oposição entre o antigo e o novo e entre o tradicional e o moderno, sem deixar de reforçar, por essa via, uma “tradição de família, de infância e de mãe ‘moderna'”, elemento fundamental para “a construção de um ideal de nação orientada pelos princípios políticos do ‘progresso'” na Primeira República. Maria Martha chega a uma síntese sobre a produção de sentidos dessas mensagens, associadas ao projeto de modernidade em causa: eles são construídos na oposição do antigo/ novo e na de tradição/modernidade. Isso permite imaginar sentimentos (e ressentimentos) contraditórios na formação da energia destinada a processar rupturas de vínculos com o passado e a impulsionar prescrições e ações desse maternalismo científico em direção ao futuro.3 Angela de Castro Gomes vê esse movimento como a projeção de um dado “horizonte de expectativas”, como diria Koselleck. De fato, o projeto republicano de modernidade é pensado como modo de superação do “quadro sombrio” do mundo pós-escravista, de muitas precariedades a eliminar e de olho no futuro. Volta-se, enfaticamente para os cuidados da criança, ali onde a mortalidade infantil, ontem, como hoje, persiste como indicador de ameaça às expectativas de modernidade.

“Maternidade: aliança entre mulheres e médicos”, segundo tópico do livro, examina o processo de aprendizado que a aliança de mulheres e médicos produz. Formas de intervenção social, em conjunto, podem ser percebidas como mais uma pedagogia feminista, entre tantas, também verificáveis em feminismos de outras conjunturas.4 Nessa, modos de aproximação e de domínio de técnicas propagadas e ensinadas tornam, agora, o “ser mãe” uma “profissão sanitária”. No exame da aliança de mulheres e médicos, em sintonia com o desejado projeto de modernidade da Primeira República, uma vez mais, Maria Martha converge para a crítica de análises assentadas na resistente matriz de dominação/subordinação de mulheres por homens. Cita a historiadora Rima Aple, no estudo sobre maternidade científica nos Estados Unidos para destacar aquilo a observar no exame dessa experiência: “a complexa interação entre ciência, medicina, economia e política” e, ainda, o questionamento de “uma corrente de pesquisas históricas que magnificam o potencial normatizador das instituições médicas e do Estado e reduzem as mulheres à posição passiva e/ou submissa(…)”. O livro se alinha a essa perspectiva.

Os dois tópicos seguintes aprofundam a análise da produção de sentidos de diferentes práticas de cuidados que organizam a maternidade científica, nessa aliança de mulheres, mães e médicos. Em “Higienizando corpos, mentes e lares”, analisa as prescrições que se estendem dos corpos para as mentes das crianças, essas nunca antes registradas. Em “Robustos e sadios: a alimentação dos filhos”, examina os discursos dos puericultores, que também experimentavam, então, uma valorização crescente. Versam eles sobre muitas coisas referidas aos cuidados e fazem prescrições de certo e errado, seja na “arte e técnica da amamentação”, seja no uso de diversos produtos industriais, centrais para as mudanças de hábitos de longa duração histórica. Estabelecem, ainda, novas referências de controle da saúde, como as de valorização do peso, tornado um indicador confiável de saúde, e as da escolha de alimentos associados ao crescimento. Incidem sobre práticas de cuidados de mulheres e crianças e valorizam a maternidade nessas formas de intervenção social. Prescrições, muitas prescrições ganham um papel central no modo de pensar rumos civilizadores do projeto modernizador em tela. Como conclusão, o tópico “Do instinto maternal à maternidade cientifica” assinala que os princípios científicos da puericultura ressignificam os cuidados com corpos e mentes, por artes das mulheres em aliança com os médicos e, assim, tornam-se parte da modernidade em construção: a maternidade assume aí sua função social e política.

A leitura que fiz do livro privilegia preocupações teóricas sobre a história das mulheres às quais também me associo. Por isso mesmo, situo as contribuições da autora ao lado de tantas outras que se inclinam em direção às culturas políticas e extraem daí referências novas, num esforço de revisão de muitas coisas ditas e escritas sobre as mulheres e que tornam falsa a dura oposição masculino X feminino, quando engendra a inexorável posição de passividade das mulheres. Ouso, assim, situar em muitas notas, contrariando o estilo apropriado a uma resenha, a relevância do livro num conjunto de idéias-chaves a que se associa. O conceito de “feminismo liberal” confirma, por exemplo, entre nós, o de “paradoxo da diferença”, estudado por Joan W. Scott. No livro – original e simbolicamente intitulado Only Paradoxes to Offer: French feminists and the rights of man, e traduzido, entre nós, como A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem –, Scott, com a visão alargada por pesquisas de muitas experiências feministas, sublinha: as mulheres têm “apenas paradoxos para oferecer”, uma vez que a “necessidade de a um só tempo aceitar e recusar a ‘diferença sexual’ permeou o feminismo como movimento político por toda a sua longa história”.5

Essa regularidade histórica está nos maternalismos, em muitas evidências. O maternalismo científico, chave para abrir significados ocultos de vários feminismos do passado e em marcha, engendra para as mulheres, sob muitas contradições, ganhos políticos (e também perdas). Quando emerge, nos “efervescentes anos de 1920, mulheres das classes médias e alta urbanas estavam sendo convocadas para assumir múltiplos e diversificados papéis” e respondem ao chamado, afirmando-se como mães, cunhadas com essa marca, de muitos significados políticos. Isso redefine, mostra a autora, a inexorável matriz de dominação/subordinação de mulheres aos homens. As mulheres, sob intensa valorização dos médicos, movem-se, afirmam-se como mulheres e mães e, asseguram-se, por ideais e ações com eles compartilhados, de incessantes deslocamentos para funções públicas, até então por elas pouco frequentadas. Sensibilidades femininas serão tocadas por essa valorização e, por isso, as mulheres são estimuladas a agir e agem. As fontes selecionadas por Maria Martha são mais que generosas em expor o paradoxo da diferença. Sem perder a condição de mães, mulheres chegam a novos lugares e, neles, permanecem, ainda que instadas a conservar “a fina graça feminina da carícia, a brandura do consolo e o gesto sagrado da maternidade”, segundo registro do texto “Eva de hoje” (Revista Feminina, n.166, mar 1928).

Embora vivida desigualmente por mulheres muito diferentes entre si, a maternidade científica assegura ganhos no âmbito político quando transforma práticas da esfera privada numa questão pública, valorizadas como necessárias ao projeto de modernidade desses tempos. O paradoxo da diferença reside nesse feminismo que afirma o “instinto maternal” como algo “natural” e, ao mesmo tempo, confere à maternidade valor político, se exercido cientificamente; entenda-se isso, como sinônimo de moderno, sublinha a autora. A noção de patriarcado, aqui e ali, se imiscui em alguns registros do texto, mas seu emprego, nem prejudica, nem oculta nada do que interessa à história em foco. Isso porque, quando empregada, é sinônimo de “sociedade tradicional”. Esse paradigma, hoje, sob muitas críticas, tem servido, em geral, a uma renitente afirmação de noções que generalizam a predestinação e a prevalência da “dominação masculina” na história de mulheres.6 A despeito desse uso conceitual, a autora, de olho nas fontes examinadas e com base em sua própria experiência, inova ao distinguir essas mulheres como partícipes de tarefas políticas de seu tempo. Portanto, elas não são, nunca, passivas, e isso as define como sujeitos da história. Como tal, agem e não apenas reagem, lembrando-me algumas referências de Sideny Chalhoub sobre os escravos brasileiros.

O paradoxo da diferença, entre os séculos XIX e XX, estará na ideologia das esferas separadas e formulará políticas diferencialistas, “próprias” às mulheres, esmaecendo as de cunho universalista e, portanto, igualitário. Nesse mesmo tempo, são muitos os sinais da marcha que sublinha o ideal da equidade em geral e dos gêneros, em especial, essa última, hoje, mais viva que nunca entre nós.7 Nem sempre, porém, isso afeta as tradições, como no caso da usual transferência de encargos da maternidade por parte de mulheres das camadas médias e altas para outras, da família e de grupos de convívio e de mesma posição social, ou para mulheres pobres, criadas e/ou empregadas, um legado do escravismo.8 Sob as referências do feminismo liberal, é de se admitir, todavia, que mesmo essas antigas práticas sociais ganhem novos sentidos, considerando, sobretudo, o recrudescimento e mudanças de práticas filantrópicas, operadas sob condução de mulheres dessas mesmas camadas sociais médias e altas, como expressão, diria eu, de novos processos de tomada consciência. Assim, sob o paradoxo da diferença, há muito por conhecer das relações sociais presentes na montagem das democracias liberais contemporâneas, considerando o crescente “peso político” das mulheres na esfera política e na formulação de discursos e práticas associados a concepções de cidadania.

As observações de Maria Martha confirmam, aqui, o conceito de Michelle Perrot sobre o processo de tomada da “consciência de gênero”, gestado nas “saídas” das mulheres para o espaço público.9 “Profissões femininas” em geral, pensadas como meras extensões da maternidade, já nessa conjuntura, estarão envolvidas com iniciativas de sinal político. Educadoras sanitárias, filantropas, professoras e enfermeiras e, depois, assistentes sociais, nutricionistas e tantas mais marcam sua presença nos espaços públicos e, aí, processam mais e muitas transições. É de se destacar a fina observação da autora sobre os novos significados da filantropia. Muitas análises, quando despem as práticas filantrópicas de seus sinais políticos, os reduzem a ações mitigatórias de sofrimentos humanos de pouco alcance, daí sua representação de “tradicionais” e/ou “conservadoras”, outra ficção. Mostra, a autora, porém, que essas ações produzem, em larga escala, muitos trânsitos de experiências (e consciência) que, logo à frente, estarão imersas em lutas voltadas para o alcance de direitos de cidadania. Para isso, as contribuições de Laqueur sobre as tradições do discurso humanitário do século XVIII – cabe associá-lo aos da filantropia – extraídas de textos literários e outros da medicina legal e da pesquisa social, as releva como parte da experiência humana que “desnaturaliza” os sofrimentos humanos e prescreve todo um conjunto de ações cujos sentidos são os de atenuar e mesmo de eliminar esses sofrimentos.10 Elas estão nas leis de proteção social no Brasil, sobretudo ao trabalho, antes e já nos anos 30.

Mais circunstâncias favorecem os deslocamentos femininos para os espaços públicos, como consumidoras em potencial de novos bens e serviços, em decorrência da marcha do processo urbano-industrial. A entrada de bens industriais no mundo doméstico e a criação e proliferação de serviços mudam ritmos e sequências de tradicionais programações do tempo feminino.11 Longas e exaustivas práticas diárias são simplificadas, gerando economias de tempo. Com isso, permitem às mulheres o exercício de atividades na esfera pública, algo próprio ao desenvolvimento das sociedades industriais. Os benefícios daí decorrentes, a autora reconhece, são desigualmente partilhados e estão em conexão com a tardia montagem dos sistemas de proteção social de iniciativa pública: do espaço privado dependem muitas ações protecionistas de crianças, velhos doentes que, mais à frente seriam reconhecidas como públicas. Também as muitas e variadas “artes de fazer” para o “bem viver” não são incorporadas de pronto, mesmo porque a monetização do meio em que circulam tantos artigos é restrita a algumas camadas sociais, observa Maria Martha.

Penso, ainda, nas transgressões à ordem médica e familiar, essas nem sempre evidentes. Chegam-me à memória as interferências da minha avó paterna, com seus muitos chás, substitutos das orientações médicas de meu pai, sempre impaciente para com elas, ainda nos anos 60 do século XX. Lembro-me, também, de resistências femininas à tecnologia e a prescrições cientificas no âmbito dos cuidados e dos fazeres femininos, lugares de sedução por reconhecimentos de prendas domésticas no século XIX, sentimentos que se estendem ao século XX. De todo o modo, o maternalismo científico segue seu curso e se transforma, descortinando mais e novas tarefas políticas, como parte da consciência possível de cada tempo, diria Goldmann.12

O livro, em seu conjunto, desmonta muito do falso e do fictício que ainda impregnam uma certa história das mulheres e contribui para que se veja “com novos olhos velhos problemas”, como diria E. P. Thompson.13 A tese fala, enfim, de cultura e de política, ou na acepção de Foucault, da biopolítica, essa que se tece no cotidiano, em processos sociais, quase sempre, imperceptíveis.14

Notas

1 Refiro-me a KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006.

2 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastrosverdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d’ Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras , 2007, p. 7.

3 Sobre sentimentos, ver PESAVENTO, Sandra. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades, Colóquio Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, n. 4 – 2004, mis en ligne le 4 février 2005,référence du 8 février 2008, disponible sur: http://nuevomundo.revues.org/document229.html Ver ainda, BRESCIANI, Stella e NAXARA, Márcia. (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campina: Unicamp, 2004, p. 9-13.

4 COSTA, Suely Gomes. Culturas políticas e sensibilidades: pedagogias feministas. Rio de Janeiro, anos 1970-80. In: SOIHET, Rachel et al. Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 351-372.

5 SCOTT, Joan W. Only Paradoxes to Offer. French feminists and the rights of man. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1996; _____. A cidadã paradoxal. As feministas francesas e os direitos do homem. Tradução de Élvio A. Funk. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2002, p. 26-27.

6 Ver a respeito: COSTA, Suely Gomes, Movimentos feministas, feminismos, Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004, vol. 12, n. especial, p. 23-36; RAGO, Margareth. Feminismo e subjetividade em tempos pós-modernos. In: COSTA, Claudia de L. & SCHMIDT, Simone P. Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Mulheres, 2004, p. 31-42; PISCITELLI, Adriana, Reflexões em torno do feminismo, ____ Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Mulheres, 2004, p. 43-65.

7 SCOTT, Joan W. A mulher trabalhadora. In: FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente. O século XIX. Tradução de Maria Helena da C. Coelho, Irene M. Vaquinhas, Leontina Ventura e Guilhermina Mota. Porto: Afrontamento/ São Paulo: EBRADIL, 1994, vol. 4, p. 443-475; ______ . Parité! L’universel et la différence des sexes. Traduit de l’anglais par Claude Rivière. Paris: Albin Michel, 2005.

8 COSTA, Suely Gomes. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, vol. 10, n. 2/2002, p. 301-324.

9 PERROT, Michelle. Sair. In: FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle. História das mulheres no OcidenteO século XIX. Trad. de Maria Helena da C. Coelho, Irene M. Vaquinhas, Leontina Ventura e Guilhermina Mota. Porto: Afrontamento; São Paulo: EBRADIL, 1994, vol. 4, p. 502-539.

10 LAQUEUR, Thomas Walter. Corpos, detalhes e narrativa humanitária. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 239-277.

11 COSTA, Suely Gomes. Metáforas do tempo e do espaço doméstico. Rio de Janeiro, século XIX. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1996.

12 GOLDMANN, Lucien. Importância do conceito de consciência possível para a informação. In: Colóquios filosóficos de Royamont. O conceito de informação na ciência contemporânea. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

13 Cf. DESAN, Suzanne. Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e Natalie Davis. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo Martins Fontes, 1992, p. 27.

14 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Curso dado no Collège de France (1978-1979). Edição estabelecida por Michel Senellar, sob direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Eduardo Brandão; Revisão de tradução de Claúdia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Suely Gomes Costa – Professora dos Programas de Pós-Graduação em Política Social e em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil (suelygom@oi.com.br).

Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantoso e maravilhoso: estudo de um relato de viagem Bagdali – FARAH (EH)

FARAH, Paulo Daniel (org). Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantoso e maravilhoso: estudo de um relato de viagem de Al-Baghdádi. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional; Argel: Bibliothèque Nationale d’Algérie; e Caracas: Biblioteca Nacional de Caracas, 2009. 476p. Resenha de: PINHEIRO, Cláudio Costa. Periferias históricas revisitadas. As leituras árabes-islâmicas de Al Baghdádi sobre o Brasil do século XIX. Estudos Históricos, v.23 n.45 Rio de Janeiro Jan./June 2010.

Impossível não se impressionar pela edição de Deleite do estrangeiro, publicado pela Bibliaspa (Biblioteca América do Sul & Países Árabes), apoiado pela parceria de três importantes bibliotecas nacionais, com a chancela dos Estados nacionais brasileiro, venezuelano e argelino, e graças à indústria do Dr. Paulo Daniel Farah. São quase quinhentas páginas centradas ao redor de um manuscrito, até então inédito, no qual o imã (autoridade religiosa muçulmana) iraquiano Al-Baghdádi narra sua viagem, acontecida na segunda metade do século XIX, desde sua partida de Istambul, em um navio do Império Otomano, até o regresso a Damasco, passando por sua chegada e estada durante quase três anos no Brasil.

O livro apresenta o fac-símile do manuscrito original em árabe do século XIX, com a bela caligrafia do imã, acompanhada de uma versão do mesmo em árabe modernizado, outra em português, e mais outra em espanhol.

A publicação inicia-se com textos dos chanceleres do Brasil, Venezuela e Argélia, dos diretores-presidentes das bibliotecas Nacional do Rio de Janeiro, de Ayacucho, Nacional da Argélia e do então ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil. Tal rubrica indica uma alvissareira disposição pelo fomento a iniciativas que construam pontes culturais concretas entre contextos que a vulgata insiste em mostrar como distantes, antagônicos e desconectados.1

O primor da edição é visível na qualidade de sua proposta gráfica, mas também no cuidado refinado em situar seus leitores em relação ao universo do manuscrito. Nesse intuito o livro traz uma apresentação que inclui um prefácio de Paulo Farah, um texto de João José Reis – um dos primeiros historiadores brasileiros a investigar o culto islâmico entre escravos brasileiros e seu papel na criação de identidades locais e na organização de revoltas urbanas na Bahia – e um outro texto de Farah, no qual ele destrincha e comenta pormenorizadamente o manuscrito de Al-Baghdádi.

Esta apresentação à obra realiza um duplo esforço: o de situar o leitor sul-americano em relação a referências culturais e discursivas do mundo árabe e muçulmano do qual o imã é originário, bem como o de localizar o leitor da língua árabe às referências que Al-Baghdádi faz do que viu e ouviu no Brasil do século XIX. Nesse duplo movimento, Farah respeita a estrutura discursiva proposta pelo texto de Al-Baghdádi, sempre oscilando entre comparação, tradução e transliteração cultural dos conteúdos observados. A edição do manuscrito acompanha-se de 170 notas explicativas nas versões em português e espanhol, e 29 notas na versão em árabe moderno. Inclui, outrossim, um caderno de imagens (aquarelas, bicos-de-pena e fotografias – estas, aliás, entre as primeiras feitas no Brasil) que apresentam a paisagem natural e cultural com a qual imã se deparou no Novo Mundo.

Esta publicação precisa ser observada desde ângulos diversos, já que sua contribuição e valor para o campo da historiografia, ciências sociais e estudos culturais no Brasil podem ser consideradas dentro de chaves distintas.

A escrita da história do Brasil nos séculos XVIII e, sobretudo, XIX é bastante marcada pelo recurso às crônicas de viajantes estrangeiros como fontes documentais para-etnográficas da sociedade da época. Cientistas, artistas, botânicos ou exploradores europeus são figuras freqüentes na paisagem literária, histórica e historiográfica do Brasil dos Oitocentos (J. B. Debret, J. M. Rugendas, J. B. von Spix, Thomas Ewbank, entre tantos outros). Várias de suas narrativas foram publicadas à época e são incessantemente reeditadas até hoje. Relatos como o do imã iraquiano em línguas não-europeias sobre o Brasil colônia e império, são, entretanto, muito incomuns.2

Até onde se sabe, Al-Baghdádi foi o primeiro imã árabe a chegar ao Brasil, produziu o único registro do olhar árabe sobre o Novo Mundo no século XIX e marca a primeira chegada de um navio originário do Império Turco-Otomano em terras brasileiras, em 1866. A narrativa de sua viagem é, em si, interessante e complexa. Sua estada entre Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco durou cerca de três anos (1866-1869). Seu relato registra as impressões a partir de um estilo narrativo bastante rico e caracteristicamente árabe e muçulmano, a Rihla. Este gênero combina narrativa histórica, geográfica, etnográfica, sociológica e literária, misturando o fantástico e o verossímil e ajudando a mapear conexões complexas entre viagem, conhecimento e teoria. De fato, a associação entre viagem, experiência e conhecimento não é estranha ao contexto protestante anglo-saxão ou germânico, de onde se origina boa parte dos viajantes estrangeiros que circularam pelo Brasil do século XIX.3

Entretanto, a Rihla realiza esta perspectiva a partir de uma linguagem elaborada pela combinação de prosa e rima na observação do trópico escravocrata a partir da fé islâmica. O gênero da Rihla não deixa dúvidas de que Al-Baghdádi compreende esse mundo a partir de uma missão civilizadora (proselitista) e de um tom messiânico – que reforça o topos que associa o conhecimento do mundo, e do outro, ao auto-conhecimento, a partir da compreensão do não-familiar. Sua chegada, permanência e circulação entre diferentes cidades aconteceram por atenção ao chamado: dos homens e de Deus.

Al-Baghdádi descreve como chegou a terra; como conheceu a comunidade de muçulmanos do Rio de Janeiro; a paisagem natural (fauna e flora) do lugar; os tipos humanos (dedicando-se especialmente aos índios e escravos africanos); a religião católica tal como praticada ali; as dificuldades de comunicação e seus esforços por aprender o português e ensinar o árabe a comunidades muçulmanas locais; os acontecimentos que ele classificou como fantásticos; as saudades de sua terra e o périplo de regresso a Damasco. Seu texto traz ainda referências ao mundo onírico como instrumento de revelação divina, tão caro a culturas islâmicas.

Tendo convivido tanto tempo com comunidades de africanos (escravos e livres) muçulmanos na qualidade de líder espiritual, é natural que essa experiência tenha marcado intensamente a narrativa do imã. Seu texto presta-se, ademais, a uma memória dessas comunidades na segunda metade dos Oitocentos. Em um contexto em que a historiografia brasileira da escravidão negra tem se dedicado tão fortemente ao estudo de regras de sociabilidade construídas a partir de redes de convívio, ulteriormente organizadas desde as práticas religiosas (entre irmandades católicas ou religiões afro-brasileiras), o relato de Al-Baghdádi pode oferecer miradas diferentes sobre a organização de grupos politicamente minoritários do Brasil pós-colonial. Al-Baghdádi descreve, e participa ativamente, de disputas por autoridade e liderança dentro dessas comunidades e, ao mesmo tempo, esclarece suas estratégias pessoais de filiação política e deslinda os conflitos entre as práticas do Islã negro africano e as do Oriente Médio.

A disposição de Al-Baghdádi para compreender esse estranho mundo com o qual se depara sugere uma disponibilidade que a maioria dos viajantes europeus daquele período dificilmente conseguia ou preocupava-se em considerar: o aprendizado pleno das línguas locais. O relato desse viajante iraquiano é todo escrito em alfabeto árabe, entretanto povoado de palavras e trechos transliterados desde o turco otomano, grego, francês, tupi e português, além do próprio árabe. Ele investiu no estudo da língua portuguesa, foneticamente transliterada ao árabe da Síria, e permitiu-se desenvolver instrumentos lexicográficos e para-lexicográficos (gramáticas e vocabulários) que serviriam para compreendê-la e para ensinar o árabe. Afinal, como ressalta Farah – e como João Reis (1987) já havia discutido para o caso da Salvador da primeira metade dos Oitocentos –, a socialização dos convertidos na comunidade muçulmana se dava pelo aprendizado do idioma árabe. Sua obsessão era livrar-se de presença de um intérprete, percebido por ele como uma ameaça a uma compreensão correta (política e semântica) do diálogo com seus interlocutores, revela outra rica chave de leitura do livro do imã de Bagdá. De fato, Al-Baghdádi está inscrito em uma longa tradição árabe-islâmica de composição de narrativas que remontam ao teólogo e historiador tunisino Ibn Khaldhun (1332-1406).

A narrativa de Al-Baghdádi oferece a chance de matizar a perspectiva eurocêntrica que caracteriza o estudo da formação da identidade brasileira, como lembra Farah, ao mesmo tempo em que introduz um olhar não ocidental sobre a formação da sociedade brasileira. Importante lembrar, a título de comparação, que um dos textos mais paradigmáticos dos Oitocentos – Como se deve escrever a História do Brasil, publicado em 18454 – foi produzido exatamente por um viajante naturalista, o alemão Karl P. Von Martius, por ocasião da premiação oferecida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para ensaios sobre a escrita da história do Brasil. É bem verdade que, à diferença das crônicas produzidas por viajantes europeus do período, o texto de Martius atende a outros cânones discursivos e à necessidade de imaginar os contornos de algo que foi chamado de História do Brasil, percebida como um meio de “forjar a nacionalidade”.5 O texto de Martius ordena alguns dos temas que passam a compor a agenda da intelectualidade brasileira desde o século XIX até o presente.

A memória intelectual nacional guarda em lugar de destaque o texto de Von Martius, publicado 20 anos antes da chegada de Al-Baghdádi ao Brasil. Recuperar a relevância de figuras como a do imã iraquiano de Bagdá na escrita da história do Brasil do século XIX implica, novamente, em uma postura político-intelectual.

Desde o ponto de vista das políticas acadêmicas internacionais de circulação de conhecimento, há que se considerar que vários editoriais, fundações e universidades possuem linhas especificas de incentivo à edição de manuscritos, como forma de democratização do acesso a informação. É provável que boa parte da pesquisa sobre Antiguidade greco-romana e Idade Média européia talvez nem existisse, não fossem empresas desta natureza. Contudo, não podemos desconsiderar que esses incentivos estejam igualmente remetidos à manutenção de clivagens e hegemonias intelectuais na produção de conhecimento. É o que se assiste, por exemplo, no fomento à tradução e à edição de manuscritos indonésios para o holandês, árabes para o francês, turcos para o alemão, latinos para o inglês etc., facilitando o acesso de pesquisadores de centros hegemônicos a fontes de contextos pós-coloniais, sem a necessidade do aprendizado das línguas locais.

A publicação do Deleite do estrangeiro é uma empreitada distinta, já que cria transitividade entre o árabe, o português e o espanhol – línguas periféricas nos quadros internacionais de produção e circulação de conhecimento – e direcionam o livro ao contexto latino-americano e do mundo árabe falante. Tal postura “contribui para ampliar o diálogo entre regiões [que estão] mais próximas do que se imagina […] e que apresentam características comuns na produção transcultural de conhecimento”, como ressalta o texto do ministro Gil. Tal démarche também colabora, como salienta o prefácio de Farah, para atentar contra leituras monolíticas que opõem Islã e ocidente, já que sugere fronteiras permeáveis e menos sólidas e definidas do que se pretende imaginar.

Em um livro já clássico, o historiador indiano Dipesh Chakrabarty – Provincializing Europe, 2000 – chama a atenção para o processo a partir do qual práticas transculturais europeias terminaram transformando-se em categorias sociológicas. Essa é a mesma démarche ressaltada por Howard Becker (2007: 8) quando destaca que as ciências sociais produzem conhecimento invariavelmente provincializado, mesmo que a crença da disciplina não nos deixe ver isso.6

Essa perspectiva é bastante ressaltada por autores que lidam com o pensamento pós-colonial, preocupando-se tanto em analisar as agendas de pesquisa, como as políticas fomento, tradução e publicação nas ciências sociais, como parte de uma divisão internacional da produção intelectual (Alatas, S. F., 2003). A própria definição de genealogias míticas da disciplina remete-se a esta perspectiva. Howard Becker (1996: 177) lembra que em sua formação como estudante de antropologia da Universidade de Chicago, lia entre os próceres da disciplina Maquiavel e o Ibn Khaldhun.

Recuperar a figura e o texto de Al-Baghdádi na hagiografia das narrativas históricas do Brasil resulta em um movimento análogo ao que leituras pós-coloniais de sociologia vêm realizando ao reinscrever as formas narrativas desenvolvidas por Ibn Khaldhun dentro da história global da disciplina (Alatas, 2006 e Eriksen & Nielsen, 2007).

Surpreende que, em apenas seis anos de existência, a Bibliaspa tenha realizado tantos feitos. Nesse período organizou diversos seminários acadêmicos, editou, junto com o Deleite do estrangeiro, cerca de dez volumes (entre eles textos de Machado de Assis e Guimarães Rosa, traduzidos para o árabe), lançou a Revista Fikr de Estudos Árabes, Africanos e Sul-Americanos (que é tri-língue e encontra-se em seu terceiro número). Em março de 2010 inaugurou sua nova sede e coordenou a semana de cultura árabe da cidade de São Paulo.

Notas

1 A própria criação da Bibliaspa é outra testemunha desta aspiração.

2 Importante lembrar o entusiasmo com que a Revista Brasileira de História (v. 8, n. 16) publicava, em março de 1988, um pequeno artigo que informava a edição da Biografia de Mahommah G. Baquaqua, um africano trazido escravo para o Brasil na primeira metade do século XIX e que narrava sua vida desde a experiência de ser escravizado e seu esforço de alcançar a alforria.

3 De fato, a associação entre viagem, experiência e teoria também não eram estranhas ao mundo ibérico desde os séculos XV e XVI, cf. Pinheiro, 2008.

4 “Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil, país que tanto promete, jamais deverá perder de vista quais os elementos que aí concorreram para o desenvolvimento do homem. São, porém, estes elementos de natureza muito diversa, tendo para a formação do homem convergido de um modo particular três raças, a saber: a de cor de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Do encontro dessas três raças, formou-se a atual população cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular.” (Martius, 1845: 381-382)

5 “Uma vez implantado o Estado Nacional, impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a “Nação brasileira”, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo das “Nações”, de acordo com os novos princípios organizadores da vida social do século XIX.” (Guimarães, 1988: 6). O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro operou como marco na formação da intelectualidade local, associada à própria formação de um Estado nacional brasileiro e caracterizou-se como a instituição por excelência ocupada em desvendar os postulados da nação e destinada a pensar uma História nacional, percebendo a História como um meio de “forjar a nacionalidade brasileira”.

6 “Talvez nossos conceitos sejam ainda mais provincianos que isso e estejam amarrados também a determinada classe social, a tal grupo profissional, tal grupo de gênero.”

Referências

ALATAS, Syed Farid. 2003. Academic Dependency and the Global Division of Labour in the Social Sciences. Current Sociology 2003; 51; 599        [ Links ]

_________. A Khaldunian Exemplar for a Historical Sociology for the South. In: Current Sociology 2006; 54; 397-411. 2006.         [ Links ]

BECKER, Howard. Conferência: A escola de Chicago. In: MANA 2(2):177-188, 1996.         [ Links ]

________. Segredos e truques de pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.         [ Links ]

ERIKSEN, Thomas Hylland & NIELSEN, Finn Sivert. História da antropologia. Petrópolis: Vozes, 2007.         [ Links ]

LARA, Sílvia Hunold. Biografia de Mahommah G. Baquaqua. Revista Brasileira de História, v. 8, n.16, 269-284.1988        [ Links ]

PINHEIRO, Cláudio Costa. Língua e conquista. Formação de intérpretes e políticas imperiais portuguesas de comunicação em Ásia nos alvores da modernidade. In: Stolze Lima, Ivana & Carmo, Laura do (orgs.). História Social da Língua Nacional. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2008, p. 29-64.         [ Links ]

Von Martius, Carl Friedich Philipe. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 6 (24), p. 381-403. 1845        [ Links ]

Cláudio Costa Pinheiro – Faz estágio pós-doutoral no CPDOC e é professor da Escola Superior de Ciências Sociais e História da FGV (Claudio.Pinheiro@fgv.br).

Os arquitetos da memória. Sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). – CHUVA (EH)

CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória. Sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. Resenha de: DAHER, Andrea. Práticas patrimonializantes e objetos patrimonializados. Estudos Históricos, v.23 n.45 Rio de Janeiro Jan./June 2010.

É certo que se pode falar, hoje, de “patrimônio” como uma área de estudos ou como um tipo de administração voltada para a promoção de tradições, memórias e lugares, e mobilizada tanto para a produção de saberes quanto para as comemorações cívicas e o comércio de produtos, como os turísticos. Em todas essas práticas inscreve- se a necessidade de preservação, inegavelmente ligada à busca de uma autenticidade de uma herança coletiva.

Ao deixar de ser definido como uma coleção de obras canônicas, “patrimônio”, nesta acepção contemporânea, remete à diversidade cultural das práticas sociais. No entanto, essa concepção, por mais que constatável em escala ocidental, não pode responder às indagações sobre as próprias representações que a noção veicula, sobretudo nos discursos voltados para a preservação, nem tampouco das práticas que as ensejaram. Daí a necessidade de uma perspectiva que dê conta da lógica específica de práticas e discursos em torno de “patrimônio”, no interior de diferentes regimes de representação em que foram operados, evidenciando o seu caráter tanto imaginário quanto institucional e, assim, os seus diversos sentidos históricos.

São esses os pressupostos legíveis no livro Os arquitetos da memória, de Márcia Chuva, que pensa a constituição de um patrimônio cultural no Brasil, não naturalmente nacional, mas como escolha localizável e historicamente explicável das instituições autorizadas, no consenso sociocultural e sociopolítico dos anos 1930-1940.

A inteligência do livro de Chuva está, antes de mais nada, na sua afirmação de que “patrimônio” é um locus em que convergem práticas e representações correspondentes aos mais variados programas políticos estatais. As lutas de representação, em diversos âmbitos, que marcaram a história do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, desde os seus primórdios, tiveram como frutos, no mínimo, a invenção dos seus próprios objetos, das suas ferramentas e, até mesmo, da sua competência.

Nesse sentido, a tese de Chuva foi construída a partir de duas diferenças – melhor dizendo, indiferenças – fundamentais. Em primeiro lugar, ao conceber “patrimônio” como um locus de lutas de representação, define as práticas patrimoniais, a despeito da insistência generalizada do uso da categoria facilitadora de “lugar de memória”, quase automaticamente colada à de “patrimônio” no conjunto dos estudos culturais. Em segundo lugar, recusa, por assim dizer, todo o caráter comemorativo e pedagogizante assumido, nas últimas décadas, em discursos – produzidos e consumidos dentro e fora da universidade – em torno de “patrimônio”, inclusive da instituição patrimonial em suas implicações mercadológicas.

Sem dúvida, as práticas comemorativas dos patrimônios nacionais foram fundamentais para o triunfo do Museu e do Patrimônio, nas últimas décadas, em escala mundial. A consolidação de uma noção de patrimônio – ao lado da fixação de uma concepção unívoca de memória como consciência patrimonial – fez com que se multiplicassem os empreendimentos editoriais, das teses doutorais aos guias de turismo. É assim que, das festas comemorativas aos textos, se estende uma variedade de práticas e de objetos como manifestações irrecusáveis de uma “razão patrimonial”. 1 Mas, como mostra Chuva, o fenômeno é resultado de um verdadeiro esforço de agentes do Estado, atuantes no bojo de políticas culturais patrimonializantes e da invenção de objetos patrimonializáveis.

A escolha da perspectiva sociogenética que torna visível tais emergências é totalmente justificável, como se pode perceber, nessas duas diferenças instauradas pelo trabalho de Chuva. Longe, em suma, de toda trivialidade conceitual e das evidências de uma pedagogia do genuinamente “nosso”, o exercício desnaturalizante de Chuva se concentra acertadamente na definição do “serviço” do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

A perspectiva antropológica surge, de saída, na atenção voltada, no livro, para os gestos constituintes da rotinização do serviço. Segundo Chuva, a rotinização das práticas de preservação, no Brasil, resultou na institucionalização da profissão de arquiteto como responsável pela temática do patrimônio histórico e artístico nacional. A centralidade quase exclusiva da profissão de arquiteto nas práticas de preservação pode ser explicada, em grande parte, pelas relações existentes entre esses profissionais que se estabeleceram na diretoria e em cargos centrais do IPHAN. A importância da figura do arquiteto acabou por privilegiar a preservação de bens materiais que remetessem às supostas origens da profissão de arquiteto no Brasil, como prática genuinamente brasileira.

A patrimonialização massiva através da prática do tombamento de bens materiais, apoiada na atribuição de valor estético-arquitetônico – mais até do que histórico –, é a evidência histórica do papel exercido, desde sempre, pelos arquitetos como agentes por excelência dos serviços de tombamento e preservação, não exclusivo ao caso brasileiro.

Muito além da pesquisa notável e do recurso a fontes significativas para a reflexão sociogenética, é evidente, no trabalho de Chuva, a veia taxonômica ou inventarial necessária a uma arqueologia dos objetos historicamente eleitos em meio às lutas de representação em torno do patrimônio nacional. Pensados relacionalmente, esses inventários – de bens imóveis, de categorias, de lugares, de agentes – revelam racionalidades inauditas, configuradas na história do Estado brasileiro dos anos 1930-1940. Assim, a riqueza de informações dos cinco anexos que traz o livro não equivale somente à confirmação do trabalho obsessivo de coleta feito pela historiadora, mas, antes, da eficácia das ações ensejadas no SPHAN (depois IPHAN), em um momento crucial de sua história que foi o Estado Novo.

Chuva foi, ela mesma, funcionária, anos a fio, do IPHAN. Porém, não há neste livro qualquer traço de endogenia, senão o uso do pertencimento para a compreensão do valor heurístico do jogo de relações intra-institucional. Assim, o pertencimento, ao contrário, favoreceu a análise, fazendo com que a autora usufruísse do privilégio do ponto de vista, tido como vista a partir de um ponto, como sugere uma (boa) sociologia das práticas culturais em que ela se mostra treinada.

Já se pode supor que a tarefa dessa tese tardiamente tornada livro será, provavelmente, a de reconfigurar o campo dos estudos de patrimônio, e em mais larga escala da história das práticas culturais, ou mesmo da historiografia, ainda mergulhadas na reificação de aporias em torno da nacionalidade brasileira.

O exercício crítico feito aqui como resenha deve ser lido em parelelo à apresentação do livro – aliás, excelente – de Antônio Carlos de Souza Lima, com que tem total adesão, e, não menos, em paralelo com os usos proporcionados, desde 1998, pelo trabalho de Chuva. Deles são testemunhos teses, dissertações e artigos, os mais diversos. O livro já nasce assim com tributo prestado, firmando a certeza de que, segundo uma imagem cara a Chuva, o caminho será longo e crivado de atalhos.

Notas

1 Cf. POULOT, Dominique. Une histoire du patrimoine en Occident. Paris: PUF, 2006.

Andréia Daher – Professora de Teoria e Metodologia da História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil (andreadaher@gmail.com).

European Union and MERCOSUR – VASCONCELOS S (EH)

VASCONCELOS, Álvaro. European Union and MERCOSUR. In: TELÒ, Mario (ed.). European Union and New Regionalism: Regional Actors in a Post-Hegemonic Era. Aldershot: Ashgate, 2007, p. 165-185. Resenha de: LAZAROU, Elena. A União Europeia e a América Latina: um panorama da cooperação interregional. Estudos Históricos, v.22 n.44 Rio de Janeiro July/Dec. 2009.

Nos últimos anos, o interesse renovado da Europa em estreitar laços políticos e econômicos com a América Latina resultou na intensificação das relações interregionais (UE-MERCOSUL) e bilaterais (UE-Brasil). Infelizmente – o que talvez seja um paradoxo – não se pode dizer o mesmo em relação à produção e publicação acadêmica sobre o assunto. Apesar de não haver dúvidas de que a “outra relação transatlântica” da UE adquire hoje um novo significado, principalmente tendo em vista seus esforços em fortalecer e definir um papel como ator internacional, até agora poucos estudos acadêmicos no Ocidente mencionaram o fato ou seguiram a evolução da relação Europa-América Latina de forma descritiva, analítica e prescritiva. Por isso, ainda hoje, é bastante provável que uma busca exaustiva por referências ou fontes relacionadas ao assunto encontre poucos resultados, sobretudo em língua inglesa.1 Isso acaba por perpetuar o círculo vicioso dos limitados conhecimentos e pesquisas sobre o estado presente e futuro das relações entre as duas regiões.

Não obstante, não se pode ignorar os poucos mas esclarecedores trabalhos existentes, particularmente os que têm o olhar voltado para os laços entre as duas regiões dentro do contexto maior da nova governança global. Tais abordagens analisam de forma conjugada o papel internacional da UE e da AL e as formas emergentes de multilateralismo e/ou novo regionalismo. Nesses termos, o livro organizado por Mario Telò em 2007, European Union and New Regionalism (A União Europeia e o Novo Regionalismo), toma o regionalismo e a globalização do ponto de vista da UE, concentrando-se na comparação com outras organizações regionais e nas relações dessas últimas com a UE. O objetivo é duplo: por um lado, oferecer suporte teórico para esse novo regionalismo, tendo em mente a experiência europeia; por outro, examinar as características da UE como ator internacional, auxiliando o entendimento de suas relações com outras organizações regionais. Telò também propõe que o estudo do regionalismo e interregionalismo – e, consequentemente, da relação da UE com outras organizações regionais – não se limite a uma mera análise econômica, mas dê atenção também às suas dimensões política e cultural. Desse ponto de vista, uma abordagem institucionalista e construtivista é indispensável ao estudo da dinâmica interregional e global.

A primeira parte do livro é voltada para as abordagens teóricas citadas acima. Andrew Gamble discute o papel dos blocos regionais dentro da nova ordem mundial e os insights que o “novo medievalismo” pode oferecer para o entendimento da governança global. Pier Calro Padoan aborda a economia política do novo regionalismo no contexto do surgimento de novas potências econômicas. Argumenta que o papel das instituições globais internacionais continua sendo crucial nesse novo contexto, já que elas aparecem como uma espécie de fórum onde os atores regionais conseguem acordos. O capítulo de Thomas Meyer agrega o fator cultural e os conceitos de cidadania global à discussão sobre as novas formas de regionalismo e governança global, enquanto o de Richard Higgot faz uma reflexão sobre os limites da cooperação regional e o lugar ocupado, dentro desses limites, pelas instituições multilaterais. Por fim, Bjorn Hettne amplia o debate sobre o “novo regionalismo” – conceito amplamente utilizado para descrever as relações da UE com as outras regiões dentro de abordagens bidirecionais (group-to-group) -, projetando a própria experiência europeia de construção da região como modelo preferencial de ordem mundial, e diferenciando, dessa forma, suas relações internacionais daquelas mantidas por potências tradicionais – nomeadamente, os Estados Unidos.

Com base nessas observações, a segunda parte do volume faz uma análise comparativa da cooperação regional da África, da Ásia e da América Latina, concentrada nas respectivas relações interregionais com a UE. O capítulo sobre a América Latina, escrito por Álvaro Vasconcelos, traz um resumo das relações entre a UE e o MERCOSUL, não só retraçando sua evolução histórica, mas tocando em questões determinantes para o futuro e o presente dos laços entre as duas regiões. Entre essas questões estão o comércio, a segurança, a formação de instituições e o papel dos Estados Unidos e de suas relações com os países membros do MERCOSUL, assim como com a região como um todo. No entanto, a hipótese central do texto de Vasconcelos é de que o MERCOSUL poderia ser visto como um parceiro estratégico para a UE e sua visão de ordem global multilateral. O argumento baseia-se em quatro pontos principais:

a) Tomando como pressuposto a existência de três tipos de regionalismo – regionalismo aberto, integração profunda e cooperação subregional -, a UE e o MERCOSUL são os maiores exemplos do segundo tipo. Sem limitar-se aos acordos de livre comércio, esse segundo tipo de regionalismo é direcionado ao estabelecimento de posições comuns e instituições supranacionais, bem como à propagação de valores, como democracia política, diversidade cultural, participação dos cidadãos e soberania compartilhada.

b) Ambos, a UE e o MERCOSUL, encaram o livre comércio e a globalização de forma distinta dos Estados Unidos, já que os consideram como uma forma de desenvolvimento que não deveria colocar em risco a coesão econômica e social gerada pelos respectivos projetos de integração regional. Apesar de isso resultar num impasse quanto a um acordo de livre comércio entre a UE e o MERCOSUL, acaba por sugerir a existência de uma visão compartilhada sobre a globalização, visão esta que leva em consideração o fator regional.

c) Ambos possuem os mesmos pontos de vista em relação à ordem internacional e à governança global. Dedicam-se à construção de um sistema multilateral mais equilibrado e regulado por normas internacionais que cubram todas as áreas – incluindo comércio, segurança, direitos humanos e meio-ambiente.

d) Ambos são defensores do “soft power“, não só para atrair os países vizinhos, mas para demonstrar sua clara preferência pela diplomacia nos assuntos internacionais.

Ao refletir sobre o futuro da relação Europa-América Latina, Vasconcelos enfatiza a necessidade de a UE promover maior e mais profunda integração com o MERCOSUL. O “novo multilateralismo” da UE baseia-se no conceito de interregionalismo – isto é, de criação de diversos polos regionais interdependentes e não-antagônicos, que trabalhem juntos para atingir objetivos em comum. Consequentemente, é essencial para a UE que o MERCOSUL não se torne uma mera área de livre comércio, mas evolua para um projeto de integração supranacional, baseado no modelo da UE. Por outro lado, o MERCOSUL também pode se beneficiar da experiência europeia, como inspiração e auxílio,2 para a superação de obstáculos como a carência institucional, as divisões internas, assim como a falta de instrumentos e mecanismos de reforço à sociedade civil para assegurar uma política externa comum. Segundo Vasconcelos, uma agenda futura para a cooperação interregional deverá incluir, entre outros compromissos, a promoção de uma agenda multilateral pró-ativa com o objetivo de dar suporte à ONU; o fortalecimento da sociedade civil no gerenciamento de crises e reabilitação pós-conflitos, e a promoção do diálogo entre as regiões. Ele conclui que, se as duas partes conseguirem vencer suas crises individuais internas, juntas, a UE e o MERCOSUL poderão promover sua visão de ordem mundial multilateral com base no regionalismo e, com isso, contribuir de forma significativa para a reestruturação do sistema internacional, marcado pelo fracasso da agenda unilateral.

De acordo com a ideia original de Telò, no sentido de que as novas formas de regionalismo e de uma ordem mundial multilateral funcional podem ser mais complementares do que mutuamente excludentes, as observações de Vasconcelos sugerem que a UE e o MERCOSUL são capazes de atuar como líderes na criação de um “multilateralismo multicamadas”, que reuniria as regiões em prol de uma governança global mais efetiva. Ao elaborar essa concepção, embora também apontando os riscos e obstáculos de forma pragmática, Telò e Vasconcelos dão uma contribuição significativa ao estudo das relações da UE com a AL, área que tende a estar no centro das discussões sobre relações internacionais nos próximos anos.

Notas

1. É importante ressaltar a existência de um maior número de trabalhos em espanhol, português e francês.

2. Por exemplo, o programa (2007-2013) da estratégia regional para o MERCOSUL da UE fornece 50 milhões de euros para o fortalecimento regional, para fomentar a participação da sociedade civil e para preparar para o acordo de Associação.

Elena Lazarou – Pesquisadora associada do Centre of International Studies da Universidade de Cambridge, Cambridge, Inglaterra, e pesquisadora visitante do European Institute da London School of Economics, Londres, Inglaterra (el237@cam.ac.uk ).

A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos – FERES JR (EH)

FERES JÚNIOR, João. A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos. Bauru: Edusc-Anpocs, 2005, 317p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. “Latin America”: entre o politicamente correto e o conceitualmente inadequado. Estudos Históricos, v.22 n.44 Rio de Janeiro July/Dec. 2009.

Apenas recentemente a história conceitual começou a ser um campo de investigação promissor na pesquisa histórica brasileira. Prova disso, mesmo que parcial, é que apenas em 2001 se fez a tradução do livro Crítica e crise de Reinhart Koselleck, a famosa tese do autor publicada originalmente em 1959, e em 2006, de seu grande livro Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, originalmente um conjunto de ensaios reunidos em livro em 1979, com os quais o autor se tornou uma referência internacional nos estudos sobre a história conceitual. Tudo indica que o momento tem sido fértil para que ocorram as primeiras apropriações deste importante autor nos estudos históricos desenvolvidos no Brasil neste campo de pesquisa.

Muito embora João Feres Jr. tenha defendido seu PhD nos Estados Unidos (pesquisa equivalente ao doutoramento no Brasil), a partir de sua estadia de oito anos em Nova York, após defender sua dissertação de mestrado em filosofia política na Unicamp, seu trabalho foi um exemplo de uso bem-sucedido da obra de Reinhart Koselleck para fazer uma história conceitual do termo Latin America.

Desde 2003 Feres Jr. é professor de ciência política no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), e em 2004 sua tese recebeu o prêmio de melhores teses do ano no concurso da Edusc-Anpocs, na área de Ciência Política, cuja função é tornar públicas as pesquisas com o financiamento integral de sua publicação. No Brasil, é um dos coordenadores do projeto de História Conceitual Comparada do Mundo Ibérico, que inclui quatro outros países (Espanha, Argentina, Colômbia e México), e há cinco anos coordena, com Marcelo Jasmin, o grupo de História das Ideias e Conceitos Políticos, que tem promovido encontros regulares para a discussão de aspectos metodológicos e de questões cruciais da história conceitual.

Por essa e por outras razões, seu texto é um bem-sucedido exemplo de uso crítico da obra de Reinhart Koselleck para elaborar uma história conceitual de Latin America. Diz ele, para justificar tal estudo, que:

Os termos usados para identificar povos, culturas e regiões do mundo têm sido, nos últimos tempos, sujeitos à revisão crítica. Isso é particularmente verdadeiro na sociedade americana, em que os temas do multiculturalismo e do respeito à diferença se tornaram candentes (…). É interessante notar, contudo, que algumas denominações étnicas escapam dessa onda revisionista. Provavelmente isso se deu porque elas não são explicitamente insultantes. Esse é o caso de Latin America, um termo amplamente usado no inglês contemporâneo e que, portanto, parece ter passado no teste do politicamente correto da sociedade americana. Entretanto, acredito que o conceito de Latin America tem sido de fato um instrumento de representação distorcida daqueles que os americanos percebem como Latin Americans e, consequentemente, um meio que contribui para o tratamento assaz desigual historicamente dispensado a essa gente, tanto àqueles que vivem no sul do Rio Grande quanto àqueles que vivem nos EUA como imigrantes “latinos”. (p. 9-10)

Nesse sentido, sua pesquisa procurou circunscrever o que quer dizer Latin America e quais seus usos no inglês americano. Com base na análise dos principais significados atribuídos ao termo, tanto na linguagem comum quanto “nos textos produzidos por especialistas das ciências sociais”, definiu a seguinte tese para a sua proposta de investigação:

(…) de que Latin America tem sido definida no inglês americano, tanto na linguagem comum quanto nos textos especializados, como o oposto de uma autoimagem glorificada da America (…) demonstrarei essa tese através de um experimento semântico parcimonioso que requer apenas um mínimo de informação histórica (…) tratarei de mostrar que, no inglês usado hoje em dia, há uma assimetria fundamental entre a percepção do Eu coletivo americano e do Outro Latino Americano. (p. 10)

Para demonstrar adequadamente sua tese, Feres Jr. preocupou-se inicialmente “com a procura de um termo semanticamente assimétrico ao conceito de Latin America em inglês”. Como ele explica, nem North America, que possui um caráter mais geográfico, nem Anglo-Saxon America, com maior ligação linguística, formavam correspondentes assimétricos adequados à comparação com Latin America, o que foi averiguado com o termo Germanic America, ou Teutonic America. Mesmo que de uso corrente no século XIX, após as guerras mundiais das primeiras décadas do século XX este termo entrou em desuso. No entanto, ele é um termo assimétrico mais pertinente que Anglo-Saxon America (que é de uso mais corrente na língua norte-americana hoje) por trazer “conotações racistas claras”. “Mas se essa intuição está correta, se Latin America também é um termo chave de um discurso racista, esse discurso deve ter uma natureza diferente do pangermanismo ou do anglo-saxonismo, pois não aparece de maneira explícita”. De modo que uma “tese auxiliar desse trabalho é a de que o discurso das ciências sociais contribui para esse ocultamento” (p. 13).

A forma clara e direta com que o autor faz a exposição de sua tese na pesquisa talvez oculte, num primeiro olhar, o trabalho árduo e cansativo que sua comprovação acarretou, ainda que a maneira com que ele demonstra seus argumentos possa parecer “óbvia”. Tal como ele indica:

O leitor atento já deve ter corretamente adivinhado que muitos dos significados pejorativos identificados na análise dos verbetes do OED e nos textos de Martin e Smith serão revelados pela análise do significado do conceito, seja na linguagem comum, seja nos discursos sociocientíficos (…). Contudo, mais interessante e revelador não é saber que eles lá estão, mas compreender em que momento histórico eles aparecem ou são deixados de lado, entender as conexões entre uma determinada definição histórica de Latin America e as ações dos homens que dela se serviram, verificar quais significados resistiram ao passar do tempo e através de qual retórica, e saber quais as implicações do uso do termo no passado e nos dias de hoje. São esses conhecimentos que o percurso do trabalho presente pretende revelar (p. 27).

O que o leitor tem, assim, “em suas mãos” é um livro sério e criterioso, muito bem pensado e formulado. Não há como negar, desde já, que a sua contribuição é dupla e evidente: contribui diretamente, de um lado, para o avanço dos estudos sobre a história conceitual produzidos no Brasil, e, de outro, para que possamos constatar que a aparente conotação politicamente correta atribuída pelos norte-americanos a Latin America e a Latin Americans, na verdade, camufla e condiciona a uma suavização as concepções racistas inerentes, que os termos inicialmente ocultam na linguagem comum e nos estudos especializados, e que servem de base para os textos usados nas universidades norte-americanas ensinarem a história da América Latina a seus alunos. De acordo com ele:

Esse não é, contudo, simplesmente um livro de história. A história conceitual praticada aqui está intimamente imbricada com um projeto crítico de desvendamento do mundo presente com vistas a transformá-lo. Portanto, a questão do significado moral da definição do Outro como mera negação da autoimagem de um Eu coletivo deve preceder a própria análise histórica do caso em questão. A teoria do reconhecimento me parece ser um bom ponto de partida para a discussão das implicações morais do problema em questão, uma vez que seu tema é a constituição reflexiva da identidade através da análise fenomenológica do encontro entre Eu e Outro (p. 23-4).

Num trabalho de ciência política dividido em sete capítulos muito bem articulados e escritos, não é de se estranhar que o autor comece por estudar e por definir, no primeiro capítulo, uma tipologia das formas de desrespeito do “Eu coletivo norte-americano” para com o “Outro latino americano”. E isso é feito a partir de uma reformulação e ampliação crítica da história conceitual preconizada por Reinhart Koselleck em seu livro Futuro passado (1979), no qual este discutiu a noção de contraconceito assimétrico, e de uma síntese crítica da teoria do reconhecimento de Axel Honneth, apresentada em sua obra The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts (1995).

Essa tipologia se caracteriza, desse modo, por analisar: a) a oposição assimétrica cultural; b) a oposição assimétrica temporal; c) e a oposição assimétrica racial. Para Feres Jr., a “oposição assimétrica é uma das formas semânticas que o desrespeito pode assumir quando articulado através da linguagem, e uma das mais radicais, pois o Eu vê no Outro somente reflexões invertidas de sua própria autoimagem. Portanto, essa tipologia de formas de oposição assimétrica é também uma tipologia de formas de desrespeito”, com as quais, seja no senso comum, seja nos estudos especializados, avaliam, mesmo que implicitamente, os latino-americanos como inferiores aos norte-americanos.

Para comprovar essa dedução, no capítulo seguinte, o autor evidencia como surgiram tais conceitos na história dos Estados Unidos, promovendo um estudo do senso comum, para demonstrar quais usos de Latin America Latin Americans foram e ainda são feitos. Com base em sua tipologia, ressalta como as oposições assimétricas cultural, temporal e racial se desenvolveram e, às vezes, coexistiram no decorrer dos séculos XIX e XX, expressando formas de desrespeito ora explícitas, ora implícitas, à Latin America e aos Latin Americans. Nesse aspecto, não se limita às expressões linguísticas e aos seus significados, mas também analisa a iconografia que foi produzida no período. Pode-se argumentar aqui que, embora o autor não tenha verificado como os EUA, nas primeiras décadas do século XX, já impunham esses discursos e imagens aos países latino-americanos, muitas pesquisas produzidas no Brasil (e em outros países) têm se preocupado em demonstrar que tipos de discurso, artigos e imagens eram projetados em jornais e revistas, pelos norte-americanos (enquanto civilização racional, protestante, desenvolvida e imperialista), sobre os latino-americanos (na maioria das vezes identificados como uma civilização irracional, católica, ibérica e subdesenvolvida).

Para o autor, o “estudo dessa modalidade discursiva, tão importante para as sociedades de hoje, não tem merecido grande atenção por parte da história conceitual”, mas “a comparação entre a semântica do conceito no discurso das ciências sociais e na linguagem comum constitui uma oportunidade ímpar de análise e crítica” (p. 77-8). Não foi, então, por acaso que nos quatro capítulos seguintes Feres Jr. passou em revista a semântica do conceito de Latin America e os seus diferentes usos nas ciências sociais, percorrendo o imperativo da modernização, as discussões sobre a estabilização política, os estudos sobre dependência (mesmo considerando que neste caso houve uma apropriação, principalmente, das obras de Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faleto e André Gunder Frank pelos estudiosos norte-americanos) e os estudos do corporativismo (com atenção especial para a obra de Howard Wiarda). Da mesma forma, usou sua tipologia, constatando formas semelhantes de desrespeito, antes já expressos na linguagem comum e agora visualizados também na modalidade discursiva sociocientífica. Destaca que houve uma explosão desses estudos, após a Revolução Cubana de 1959, que, despertando os norte-americanos para o “perigo do comunismo” na América Latina, permitiu a formação de grupos de pesquisa e centros especializados nesses estudos nos EUA. De acordo com seu apêndice número 1 (apresentado à página 287), enquanto entre 1951 e 1960 houve 91 publicações no gênero, na década seguinte, entre 1961 e1970, o número passou para 328, e entre 1991 e 2000, para 502.

No último capítulo do livro, Feres Jr. se preocupou em saber quais eram os livros-texto mais lidos e usados nas disciplinas sobre a história da América Latina oferecidas nos cursos de graduação das universidades norte-americanas. Ele observa, principalmente, as obras que figuravam na bibliografia básica das disciplinas, dando ênfase aos mais citados. O capítulo é verdadeiramente primoroso, pois além de fazer um recenseamento exaustivo, ocupa-se também dos principais usos atribuídos por esses livros-texto aos termos Latin America e Latin Americans. Desse modo, a “história do conceito de Latin America no inglês americano revela a presença persistente de oposições assimétricas estruturando seu campo semântico”, tendo sido definida “implícita ou explicitamente, em oposição a uma imagem idealizada da America (Estados Unidos)”. E, ainda “que o foco central do livro tenha sido o discurso sociocientífico, o campo semântico do conceito na linguagem comum foi estabelecido, entre outras finalidades, para servir-lhe de parâmetro de comparação”, até porque, ao “passo que as oposições assimétricas temporal e cultural foram mantidas ou até mesmo amplificadas, a oposição assimétrica racial foi, no mais das vezes, silenciada” (p. 280-1). Por fim:

(…) temos a longa história das relações políticas dos EUA com seus vizinhos do sul (…). O problema mais sério e profundo do discurso dos Latin American Studies está na própria semântica do conceito, estruturado pelas oposições assimétricas que definem Latin Americans como seres destituídos de agência e de razão, como coisas (…). Assim percebemos que a negação do reconhecimento denotada pela semântica do conceito vai muito além do mero uso de uma linguagem insultosa, ela traduz-se em ações das mais concretas de negação da autonomia desse outro da America na América. Essa negação do reconhecimento só é amplificada pelo raciocínio sinedóquico que consistentemente ignora a maneira como as pessoas experimentam suas vidas como membros de uma comunidade política, de uma sociedade (p. 286).

Esse livro oferece, consequentemente, uma interpretação consistente e articulada da maneira como a América Latina e os latino-americanos foram historicamente analisados pela linguagem comum e pelos estudos norte-americanos especializados. Mostra como uma terminologia, ainda que considerada politicamente correta pela sociedade que a utiliza, pode ser conceitualmente inadequada, por guiar um conjunto de formas de desrespeito (cultural e racial) inerentes às suas acepções semânticas. Pode-se até questionar a amostra selecionada, por não cobrir todas as ciências sociais ou todos os textos das áreas selecionadas e analisadas na pesquisa, assim como se pode alegar que sua interpretação do senso comum não revela a totalidade do processo, nem todos os seus diferentes significados. Mas não há como negar que este é um livro pioneiro sobre o tema, sendo ao mesmo tempo sugestivo e instigante. Sem dúvida alguma, ele será uma referência, por rever um conhecimento herdado e permitir ao leitor (também) transformá-lo.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil, bolsista do CNPq e professor dos cursos de História e de Ciências Sociais na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai, em afastamento integral para estudos (diogosr@yahoo.com.br).

Um Nordeste em São Paulo: Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966) FONTES (EH)

FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo. Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966). Rio de Janeiro: FGV, 2008, 346 p. Resenha de: LOPES, José Sérgio. São Miguel apresenta os Nordestinos a São Paulo. Estudos Históricos, v.22 n.43 Rio de Janeiro Jan./June 2009.

Um Nordeste em São Paulo traz contribuições originais ao estudo dos processos migratórios no país, o maior dos quais tendo se dirigido no pós-guerra para a cidade de São Paulo, que se tornaria a maior área metropolitana do país. A partir de estudos anteriores relativos à imigração internacional no período pós-escravista (em particular a imigração italiana), nos quais a relação com a industrialização nas primeiras décadas do século XX é analisada, Paulo Fontes pôde estender essa linha de investigação (em que Michael Hall, seu orientador, é um dos autores mais importantes) ao caso da grande migração interna do pós-guerra, a migração rural-urbana concentrada no eixo Nordeste-São Paulo.1

Uma das grandes forças deste livro é a de conseguir iluminar processos sociais de amplitude nacional através do uso da escala local, prática em que o autor já tem um conhecimento acumulado desde a sua pesquisa para a dissertação de mestrado, que se tornou seu livro de estreia.A possibilidade de desvendar esse processo macrossocial em um distrito inicialmente pouco povoado da cidade de São Paulo – onde a forte ação do foco de recrutamento de mão de obra inicial, que é a Fábrica Nitro Química, ali instalada no final dos anos 1930, e que de certa forma exerce um domínio sobre o distrito como governo local de fato ostensivo ou nos bastidores até meados dos anos 1960 – é fruto dessa escolha de objeto e de um procedimento histórico-etnográfico, dando ao leitor do livro uma narrativa de densa dramaticidade. Nas décadas seguintes a localidade torna-se (e é vista como) um lugar de forte concentração de trabalhadores nordestinos.3

O fato de ser uma grande fábrica privada, de forte capital político junto ao governo federal,4 que veio a ser um dos fatores iniciais da imigração nordestina para São Paulo, e mais ainda na localidade – fábrica esta que tem uma influência preponderante na economia e na vida social do bairro – dá à observação micro, focalizada em tal distrito, um poder explicativo heurístico para a compreensão daquela grande migração dirigida à capital paulista.5

O paralelismo entre a naturalidade civil do principal proprietário da Nitro, José Ermírio de Moraes, e a origem nordestina de maior parte da mão de obra selecionada pela empresa não escapa nem aos trabalhadores e moradores locais nem ao autor. Pode-se em todo caso aprofundar, em pesquisas futuras, a presença nacional precoce de empresários nordestinos na indústria do Rio de Janeiro e de São Paulo,6 entre os quais o grupo Ermírio de Moraes ocupa um lugar singular. Ao invés de uma acumulação prévia em estabelecimento industrial e/ou comercial inicial em sua área de origem, como é o caso de outros empresários do Norte (como se dizia na época), José Ermírio entrou de forma precoce e direta num grande grupo industrial têxtil de São Paulo, a Votorantim, em Sorocaba, do industrial português Pereira Inácio, e assim passou a pertencer, desde muito jovem, à burguesia industrial que veio a ser, anos depois, o centro mesmo do poder econômico do país.7

No capítulo 2 (p. 101-102), Paulo Fontes menciona a prática, durante a década de 1940, do agenciamento direto de trabalhadores pela Nitro Química, transportados de caminhão de Minas Gerais e do Nordeste (onde o grupo Votorantim tinha implantação com fábricas de cimento, como a Fábrica Poty, em Paulista, PE, assim como usinas de açúcar).8 Nos anos 1950 o fluxo migratório se dava de forma não diretamente produzida pela fábrica, mas já era fruto seja da articulação das famílias de trabalhadores da Nitro com seus parentes provenientes de suas áreas de origem, seja da procura por parte de famílias recém-imigradas por áreas de moradia, nos loteamentos a baixos preços oferecidos a trabalhadores naquele distrito.9 Aquilo que antes se fazia em escala intrarregional (por exemplo, no interior do Nordeste, o agenciamento de famílias camponesas em estados vizinhos através de agentes pagos por fábricas têxteis por família recrutada, entre os anos 1930 e 40), agora era feito em escala inter-regional de longa distância, Nordeste-Sudeste por via terrestre (agenciamento anteriormente feito de forma internacional por via marítima de longa distância entre Europa e Sul-Sudeste do país).

O livro segue uma ordem cronológica, mas que também tem a lógica de um plano temático de exposição: começa pela análise do processo de migração Nordeste/São Paulo (condições de saída, condições de chegada) em sua dimensão geral, dando conta do mote do título principal; e passa pelas redes de chegada e estabelecimento na cidade (e em particular no bairro) de uma perspectiva étnico-regional, mostrando como pouco a pouco o que é procura por trabalho passa a ter uma dimensão étnica (um novo grupo migrante na cidade, que chega numeroso, passa a ser percebido como tal pelos próprios nordestinos em seus locais de residência, assim como pelos estabelecidos de São Paulo e a sua mídia). Assim, na passagem do primeiro para o segundo capítulo, a perspectiva maior sobre São Paulo passa a focalizar-se em São Miguel, sem, no entanto, perder a precisão na passagem do geral para o particular (no capítulo1), assim como na passagem ao geral em pontos específicos da narrativa localizada que predomina nos demais capítulos. Por outro lado, a análise do termo genérico e estigmatizante de “baiano”,10 que passa a caracterizar a interação entre os estabelecidos e os novos chegados, se localiza no fechamento do capítulo inicial “Mala de papelão e matuá nas costas”, enquanto que o seguinte, “Terra de nordestinos”, é fortemente correlacionado ao domínio do trabalho e, portanto, da presença da fábrica no bairro, que parece dar um matiz especial à localidade. Assim, o terceiro capítulo, que trata da vida cotidiana no bairro, mostrando a construção de diversidades e identidades – através do acesso às residências (da pensão ao mutirão da casa própria), da vida social do bairro no tempo livre dos trabalhadores (futebol, cinema, bares, clubes sociais e bailes), onde pode se manifestar a diferenciação no bairro entre “a elite” e a “mistura”, das carências urbanas e de transporte de São Miguel Paulista – se dá de forma thompsoniana sob a rubrica sintética de uma “comunidade operária”. Segue-se a parte propriamente política do livro, nos capítulos 4 e 5; o primeiro sobre os partidos e lideranças políticas em São Miguel Paulista, denominado “Direito de fazer política”, direito este que se estende no último capítulo aos movimentos sociais de bairro e de autonomia política municipal.11

No capítulo 4, Paulo Fontes ressalta a importância da atuação do PCB no bairro, que chegou a ter em São Miguel Paulista, nos anos de 1945 a 1947, sua maior organização de base em São Paulo (com mais de mil trabalhadores filiados) sendo então lugar proletário preferencial para aquele partido mostrar sua força (com a admiração de Jorge Amado e as visitas frequentes de Prestes). Tendo tido como ponto de partida de pesquisa o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Química de São Paulo, e, em particular, seu grêmio de aposentados, o autor teve acesso aos relatos e à experiência política daqueles trabalhadores, formados no interior ou no entorno do trabalho sindical daquele partido. Esses depoimentos dão um fio condutor não somente à política no período, mas a informações e representações sobre a vida na fábrica e no bairro. O acesso ao arquivo da polícia política organizado nos anos 1990 no Arquivo Público de São Paulo permite completar e precisar, de forma cruzada, essas informações.

Diferentemente da perspectiva de autores que produziram seus trabalhos no fim dos anos 1970 sobre a classe trabalhadora de São Paulo (como os importantes trabalhos de Francisco Weffort e José Álvaro Moisés), posicionados no interior de um debate histórico polarizado pela nova redemocratização então em curso no país, Paulo Fontes está menos impregnado pelo ímpeto incontrolado do julgamento, e mais pela intenção de compreender, a partir de uma base direta e maior de informações dos próprios trabalhadores do período (assim como do aparelho repressivo do Estado), indisponíveis aos analistas dos anos 1970. Tal perspectiva ultrapassa a capa de princípios e de práticas políticas das direções partidárias, para entender os efeitos menos intencionais que aquela ação política tem sobre a associatividade dos trabalhadores. Isso se estende à compreensão do fenômeno da chamada política “populista” nos bairros de trabalhadores, menos pela etiqueta da anomia ou do desvio político (em relação a uma política transparente de representação de interesses de classe tida implicitamente como norma), mas por uma antropologia da política efetivamente praticada nas relações de reciprocidade (desigual) entre políticos e representados (com as visitas dos políticos e suas esposas à casa dos trabalhadores, com as particularidades dos seus comícios etc.). Também nesse caso, a escolha da análise histórico-etnográfica a partir do caso, um bairro estratégico (e não do fenômeno geral, mais abstrato), tem a sua importância, fazendo o livro contribuir para uma melhor compreensão da dinâmica do ademarismo e do janismo nos bairros de trabalhadores em São Paulo (assim como suas relações com quadros egressos do partido comunista clandestino).

O capítulo final, “Trabalhadores e o bairro” é ao mesmo tempo um capítulo de clímax dos movimentos sociais e um capítulo de síntese de múltiplas determinações, que reincorpora os diversos elementos analisados em capítulos precedentes para dar conta do desfecho na metade dos anos 1960. Aqui o autor analisa o movimento das Sociedades de Amigos do Bairro, assim como três tentativas de autonomização do distrito em novo município, independente de São Paulo. A empresa Nitro aparece novamente, seu poder político sobre o bairro sendo alvo dos movimentos de autonomização (autonomia não só em relação a São Paulo, mas em oposição à Nitro). Isso se completa com a análise do que precede localmente o golpe de 1964, da crise da Nitro Química e das demissões de 1966, abalando definitivamente o caráter monoindustrial do bairro.12

Um Nordeste em São Paulo é assim um livro síntese de um novo padrão de análise, no sentido de que contém em si próprio as contribuições de gerações anteriores apropriadas e transformadas, e ao mesmo tempo o ímpeto das novas gerações de historiadores e cientistas sociais investindo no desvendamento da história social e cultural das classes trabalhadoras ou das relações que entretêm com outras classes e grupos sociais, não só nos grandes eventos, mas também no seu cotidiano.13 O livro traz assim novas contribuições para a história social das classes populares, com o trabalho perspicaz sobre fontes as mais diversas, colocando em novos termos os temas cruciais de décadas passadas sobre os operários de origem rural e sobre a grande migração de nordestinos para São Paulo.

José Sérgio Leite Lopes – Professor associado 2 do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ (jsergiollopes@gmail.com).

Antropologia brasiliana. Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA; SÁ (EH)

LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda de (orgs). Antropologia brasiliana. Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: UFMG, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008, 327p. Resenha de: HOFBAUER, Andreas. Roquette-Pinto: uma vida dedicada ao progresso da nação. Estudos Históricos, v.22 n.44 Rio de Janeiro July/Dec. 2009.

Roquette-Pinto não é uma personagem desconhecida: sobretudo para aqueles que estudam a história da ciência e para quem se interessa pelos primórdios do desenvolvimento do rádio e do cinema no Brasil, Roquette-Pinto era um homem de muitos talentos e de muitos projetos. Executou múltiplas atividades profissionais, muitas vezes paralelamente, e ocupou vários cargos importantes durante a sua vida. Criativo, inventivo, com fortes convicções morais e políticas, envolveu-se nas mais diversas questões que preocupavam a intelectualidade brasileira da primeira metade do século XX: pesquisava, opinava e intervinha. Por toda esta trajetória, não deixa de ser curioso que existam relativamente poucos estudos sobre Roquette-Pinto e nenhuma biografia completa a seu respeito.

Neste sentido, o livro Antropologia brasiliana. Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto, organizado por Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá, veio para suprir uma enorme lacuna. As organizadoras optaram por não seguir uma exposição cronológica das atividades deste grande intelectual, mas escolheram tópicos que julgaram centrais na diversificada produção de Roquette-Pinto e convidaram especialistas para analisar suas contribuições para cada uma das temáticas específicas. Os ensaios foram agrupados em quatro seções, incitando o/a leitor/a a aprofundar o diálogo entre elas: “perfil e trajetória”, “positivismo e nação”, “antropologia e população”, “ciência e ação”. Na primeira parte, foi incluído ainda um texto inédito do próprio Roquette-Pinto (“Ciência e cientistas do Brasil”, 1939), elaborado para uma conferência proferida no Palácio do Itamaraty. Nesse texto, Roquette-Pinto não somente expõe a sua maneira de ver a história da ciência no país, mas também avalia o papel e o lugar que ele próprio atribui a si mesmo neste processo. O manuscrito, que foi encontrado pelas organizadoras durante a sua pesquisa no acervo pessoal do intelectual (que se encontra hoje sob a guarda da Academia Brasileira de Letras), completa o quadro dos textos.

Desta forma, o livro se revela um mosaico de abordagens sobre a vida de Roquette-Pinto: oferece leituras sobre uma mesma personagem partindo da análise de um tema específico. O resultado são reflexões que, inevitavelmente, em diversos momentos, se cruzam com, e até se sobrepõem a, abordagens que têm outra área de atuação de Roquette-Pinto como foco de análise. Este efeito intencionado pelas organizadoras, que procura espelhar a vida multifacetada do cientista, ganha reforço visual na bela capa montada por Jayme Moraes Aranha Filho, que construiu um retrato do homenageado a partir de um arranjo de centenas de imagens coloridas, que apresentam, na sua maioria, aparelhos de época voltados para a comunicação: microfones, máquinas de escrever, vitrolas, rádios etc.

Os vários textos que compõem a coletânea elucidam que não é possível entender a vida de Roquette-Pinto sem levar em consideração o seu espírito nacionalista e a sua forte crença na ciência, além do espírito positivista que compartilhava com tantos outros pensadores da época. “Creio nas leis da Sociologia positiva e por isso creio no advento do Proletariado, conforme foi definido por Augusto Comte…”, afirma o nosso pensador em 1935. Roquette-Pinto era um daqueles intelectuais que apostavam no progresso por meio do aprofundamento do conhecimento científico e de sua disseminação pela educação popular. Ele via nas invenções tecnológicas um potente meio de transformação da sociedade. Acreditava firmemente na força missionária e na função utilitária da ciência, atribuindo-lhe a capacidade de dar respostas para o problema da nação e de preparar o caminho para a modernização. Ao mesmo tempo, o envolvimento pessoal com questões sociais não permitia que Roquette-Pinto se transformasse numa pessoa dogmática. Prevalecia, portanto, um perfil que as organizadoras do livro chamaram de “humanismo científico”.

As distintas contribuições valorosas do livro destacam a importância da participação de Roquette-Pinto na expedição Rondon, em 1912. O contato direto com o sertão levaria o jovem cientista, formado em medicina, a rever a visão do admirado Euclides da Cunha a respeito dos males do sertanejo, que Roquette-Pinto qualificaria, posteriormente (em Seixos rolados, 1927), de ilusória: de acordo com ele, os sertanejos não deveriam ser percebidos como seres inferiores, nem como incapazes, como avaliava Euclides, mas tão-somente como atrasados e ignorantes; nem o isolamento, nem as influências da mestiçagem, e sim muito mais o abandono do poder público explicaria a vida precária nos interiores do Brasil. Ponto alto da viagem foi o encontro com os índios Nambikwara. Fazendo uso do seu talento etnográfico, Roquette-Pinto produziu importantes registros e documentos: confeccionou uma das primeiras imagens cinematográficas dos índios e transcreveu músicas indígenas que inspirariam Villa-Lobos. O seu caderno de campo, que seria publicado sob o título Rondonia: anthropologia – ethnographia (1916), expressa a simpatia que sentia em relação aos indígenas; ao mesmo tempo, não esconde o seu ideário positivista-evolucionista, que fazia com que julgasse, por exemplo, a cerâmica indígena “rudimentar” e “grosseira”, e a sua plumária “insignificante”.

Como diretor do Museu Nacional (1926-1935), preocupava-se em desenvolver estratégias e meios que possibilitassem à população ter acesso ao desenvolvimento científico. Buscava transformar a instituição num museu pedagógico-educativo, numa “universidade do povo”, segundo as suas próprias palavras. Para isto, lá instalou, inclusive, um auditório especial e incentivou escolas a frequentar o local. Com a fundação da Revista Nacional de Educação (1932), voltada para a educação e para a divulgação da ciência, das letras e da arte, e que seria distribuída gratuitamente, Roquette-Pinto realizou um sonho pessoal que, porém, duraria apenas dois anos.

Roquette-Pinto foi fundador da primeira emissora de rádio no Brasil, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro (1923), e também o primeiro diretor da instituição. Seu envolvimento com os “novos meios de comunicação” – rádio e cinema -, que via surgir e ajudava a consolidar, foi impulsionado pelas mesmas preocupações e convicções do cientista. O objetivo principal era criar programas de rádio e produzir filmes que apresentassem, de forma didática, os avanços da pesquisa científica e os progressos tecnológicos. Roquette-Pinto dirigiu alguns filmes e participou da feitura de roteiros de outros. Teve grande influência sobre a produção cinematográfica no período de 1936 a 1947, durante o qual ocupou o cargo de diretor do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Um pouco antes (de 1932 a 1934) tinha atuado como censor. “Cinema não é arte”, asseverava enfaticamente em 1938. O cinema era, para ele, em primeiro lugar, um meio: um meio tecnológico e científico que deveria contribuir para a educação e para a elevação do povo brasileiro. A grande maioria dos filmes do INCE seguia um viés erudito, avalia Sheila Schvarzman em seu texto: procurava dar “aos carentes o conhecimento da cultura letrada oficial” e esperava que os expectadores, humildemente, assimilassem as verdades científicas que os fariam avançar na escala do progresso civilizatório. Assim, ainda de acordo com a análise de Schvarzman, os filmes revelavam uma certa “incapacidade de contato com o real” que proviria do pensamento positivista: um pensamento que possibilita, num plano abstrato, a integração dos mais diversos grupos e indivíduos numa mesma comunidade, mas, ao mesmo tempo, justifica um relacionamento assimétrico com todos aqueles identificados como não-civilizados, já que as diferenças detectadas neles eram entendidas como decorrências de um estágio inferior de desenvolvimento cultural.

O tema científico que mais profunda e longamente atraiu a atenção de Roquette-Pinto foi a questão racial, assunto que marcava também, profundamente, os debates da época sobre a imigração, a saúde pública e, portanto, os rumos futuros da jovem nação. É também nesta temática que se concentra provavelmente o maior impacto sociopolítico do pensamento de Roquette-Pinto: os diferentes ensaios que compõem a coletânea, particularmente os de Ricardo Ventura Santos, Giralda Seyferth, Jair de Souza Ramos e Vanderlei Sebastião de Souza, revelam a complexidade e certas ambiguidades e incoerências que se expressam nas ideias de Roquette-Pinto acerca das noções de raça, miscigenação e eugenia.

Todos os autores sublinham a importância do cientista no combate ao determinismo racial e climático, sem que ele tivesse, porém, aberto mão do conceito de raça. Raça constituía uma das categorias mais importantes e mais disseminadas na época, e era usada por cientistas e pelo senso comum para fazer referência a, e para analisar, diferenças humanas. Refletir sobre o valor das raças e as consequências da mestiçagem significava, no caso do Brasil, pensar o passado e, sobretudo, o futuro da nação. No debate acadêmico, opunham-se duas posições extremas: de um lado, havia aqueles (por exemplo, Nina Rodrigues) que, devido à longa prática da miscigenação no país, mostravam-se céticos e pessimistas a respeito do futuro do Brasil. De outro lado, posicionavam-se aqueles (por exemplo, Lacerda) que acreditavam que um determinado tipo de miscigenação pudesse, sim, contribuir para a construção de uma civilização forte nos trópicos: a chave para este processo, que levaria ao ansiado branqueamento da população brasileira, seria o incentivo estatal à imigração de mão-de-obra europeia. Por trás destas posições, articulavam-se não somente diferentes avaliações a respeito da origem causal das diferenciações raciais e do impacto das raças e do processo de miscigenação sobre as vidas humanas. As diversas análises particulares também eram evidentemente permeadas por convicções de ordem política e ideológica, e marcadas por posturas pessoais frente à ciência e à nação.

Os estudos das raças efetuados por Roquette-Pinto, que incluíam a aplicação de métodos antropométricos (por exemplo, os de 1920, quando elaborou um estudo sobre “tipos antropológicos do Brasil”), tinham um nítido objetivo social e político: propiciavam-lhe um conhecimento ao qual podia recorrer nas suas discussões acerca da imigração (especialmente, no caso dos japoneses) e nas suas atividades junto à Liga Pró-Saneamento do Brasil.

Em 1912, ele elaborou um diagrama que, baseado em dados dos primeiros recenseamentos nacionais, projetava a extinção dos negros para o ano de 2012 e, desta forma, fornecia a Lacerda um importante material para a defesa de seu discurso pró-branqueamento. Pouco depois, no entanto, Roquette-Pinto transformar-se-ia num eminente crítico de tais ideias: incorporando um espírito nacionalista, que ganhava força no país na época da Primeira Guerra Mundial, Roquette-Pinto revelou-se, nestas discussões, um árduo defensor das populações locais. Lutava em duas frentes: contra a “ideologia do branqueamento”, e contra aquele pensamento racial que criava hierarquias fixas entre grupos humanos e condenava os produtos de cruzamento à – supostamente irreversível – degeneração. Assim, fazia críticas irônicas a letrados estrangeiros, como Agassiz e Gobineau, os quais, após rápidas passagens pelo Brasil, disseminaram tais teses que, de acordo com Roquette-Pinto, seriam erroneamente reproduzidas por certos intelectuais brasileiros, como por exemplo Euclides da Cunha. Roquette-Pinto via nestas ideias uma atitude imperialista que buscava justificar a expansão colonial de países europeus. Argumentava que a mestiçagem em si nada tem a ver com as mazelas do país, e, ao mesmo tempo, opunha-se àqueles que viam na imigração europeia um meio adequado para melhorá-lo: “O problema nacional não é transformar os mestiços em gente branca. O problema é a educação dos que aí se acham, claros e escuros”, afirma Roquette-Pinto em 1927; ou ainda em outro contexto: “(…) o homem, no Brasil, precisa ser educado e não substituído”.

Diante de tais posicionamentos, o forte envolvimento de Roquette-Pinto com a eugenia pode causar um certo estranhamento. O instigante ensaio de Vanderlei Sebastião de Souza ajuda-nos a entendê-lo melhor. De acordo com o autor, Roquette-Pinto empregava a eugenia como um instrumento modernizador: como uma ferramenta científica tanto para pensar o processo do aperfeiçoamento da raça quanto para defender o homem brasileiro das condenações implicadas no determinismo biológico. Na abertura do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, Roquette-Pinto deixava claro que “as leis da eugenia” deveriam ser aplicadas com o objetivo de “melhorar o patrimônio biológico” dos brasileiros. Assim, a seleção matrimonial deveria seguir os ensinamentos da ciência eugênica. Dever-se-ia incentivar o casamento entre pessoas com “boa herança”, independentemente do “tipo racial”. Ou seja, a preocupação eugênica do cientista recaía sobre a eliminação de doenças hereditárias localizadas em seres humanos particulares, e não sobre determinadas características raciais ou sobre a “mistura das raças” em si. A mestiçagem é um mal somente “quando realizada ao deus-dará dos infortúnios, sem eira nem beira, sem higiene e sem eugenia, sem educação e sem família”, costumava dizer Roquette-Pinto. Num artigo publicado em 1933, o cientista chegou a sugerir a promoção de um concurso para escolher, entre trabalhadores rurais e operários das indústrias, um casal de jovens que apresentasse “os tipos de herança realmente eugênicas, e qualidades pessoais relevantes”. Os vencedores deveriam ser premiados por fazendeiros e industriais com um pequeno aumento de salário, já que os casamentos eugênicos trariam, em última instância, lucros aos empregadores.

O fato de Roquette-Pinto ter lutado contra o determinismo biológico não significa, porém, que acreditasse numa “completa igualdade de atributos biológicos”, conforme escreve Ventura Santos. E se o “peso do biológico” é, de certo modo, questionado no plano coletivo das raças humanas, Roquette-Pinto insiste, ao mesmo tempo, na necessidade do cuidado para com a “boa herança” no plano dos seres humanos particulares. A maneira como se dava, para ele, a relação entre “boa herança individual” e “boa herança coletiva” não parece bem explicada na argumentação deste pensador. Com o intuito de chamar a atenção dos leitores para as não raras incongruências que se expressavam nas atitudes de muitos daqueles que fervorosamente debatiam o tema da raça, Ventura Santos termina o seu ensaio com uma irônica comparação entre um estudo anatômico promovido pelo “clássico determinista racial” Nina Rodrigues e outro executado pelo combatente do chamado “racismo científico, Roquette-Pinto. Enquanto Nina Rodrigues, na sua análise do crânio de Antonio Conselheiro, não conseguiu detectar nenhuma anormalidade nas características fisiológicas daquele personagem que descrevia como “delirante” e “megalomaníaco”, Roquette-Pinto teria descoberto na “complexidade das circunvoluções” cerebrais do autor de Os sertões evidências de sua genialidade.

Raça é um conceito elástico, ensina-nos Giralda Seyferth. Nunca houve consenso em torno da quantidade de raças existentes e em torno daquilo que define este conceito. As diversas contribuições desta coletânea alertam-nos para não partirmos de uma noção a-histórica de raça ou de eugenia. Para entendermos os usos, ambiguidades e “não-coerências” de tais conceitos e ideias, é preciso estudarmos os contextos, os interesses particulares e as convicções político-ideológicas daqueles que contribuíram para a sua construção e transformação.

Ventura Santos explica que, embora Roquette-Pinto tenha defendido “posições igualitárias, contrárias a noções de fatalismo racial”, não chegou, contudo, “a propor uma completa desvinculação entre orgânico/racial e mental/social, que veio a se tornar a posição predominante na reflexão antropológica algumas décadas depois”. Uma das razões pelas quais o cientista não investiu numa tal separação conceitual pode ter a ver com as suas fortes convicções positivistas e com o seu comprometimento com as causas da nação. Na América do Norte, o antropólogo Franz Boas, frequentemente lembrado pelos autores da coletânea e comparado com o nosso autor, estava, neste mesmo período, preparando o caminho para fazer um corte conceitual rigoroso entre o reino da natureza, de um lado, e o(s) mundo(s) da simbolização, de outro. Começava a se referir à existência de uma pluralidade de culturas – isto é, não mais a um só percurso possível de uma cultura humana única – que Boas valorizaria e analisaria de forma cada vez mais independente das esferas biológicas e geográfico-climáticas. Crítico ao determinismo biológico, tal como Roquette-Pinto, Boas convenceu-se, porém, já muito cedo – diferentemente do nosso autor – de que a diversidade das vivências e experiências humanas não podia ser explicada a partir de leis naturais.

O livro Antropologia brasiliana tem o mérito de situar as ações e ideias de Roquette-Pinto no contexto histórico local e internacional e, sendo assim, traz uma importante contribuição para várias áreas de conhecimento, especialmente para os estudos sobre o chamado pensamento social brasileiro, e será particularmente importante para uma melhor compreensão da tão espinhosa questão racial no Brasil.

Andreas Hofbauer – Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília, Brasil (andreas.hofbauer@uol.com.br).

Estudos Históricos | FGV | 1988

Estudos Historicos3 2 Uma biografia

Estudos Históricos (Rio de Janeiro, 1988-) é um periódico trimestral em que cada publicação trata de um tema específico. Publicada ininterruptamente desde 1988, a revista se destaca por seu perfil interdisciplinar.

Estudos Históricos como objetivo publicar trabalhos inéditos, com perspectiva histórica, de pesquisadores da comunidade acadêmica nacional e internacional nas áreas de História, Ciências Sociais e outros campos relacionados. A revista é classificada como A1 no Qualis CAPES, na história e nas áreas interdisciplinares.

Está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC) do CPDOC / FGV, que possui curso de mestrado, mestrado acadêmico e doutorado.

A revista também tem sido um elo importante na comunicação entre os programas de pós-graduação, principalmente na área de História e Ciências Sociais.

Periodicidade trimestral.

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ISSN 2178-1494 (Online)

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