Memória e História da Mídia/Estudos Históricos/2023

Waly Salomão dizia que “a memória é uma ilha de edição”. Essa frase apresenta a principal característica da memória, que é o fato de ser seletiva. Selecionar, nesse sentido, significa evidenciar determinado fato ou evento em detrimento de outros, pois, obviamente não lembramos de tudo, mas também não esquecemos de nada. E as escolhas do que queremos lembrar ou esquecer derivam do contexto e dos eventos engendrados nos processos históricos. Como em qualquer estudo nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, a construção das narrativas sobre as mídias também se baseia no preceito fundamental de que a memória se alimenta e é alimentada pelos processos históricos. Nesse sentido é lícito afirmar que a memória das mídias será sempre um recorte de uma determinada realidade, em um determinado tempo e espaço. Os estudos e análises apresentadas neste dossiê mostram que o tema da memória está em consonância com as discussões da atualidade na comunicação contemporânea e que urge cada vez mais estudarmos esse fenômeno. Leia Mais

Experiências intelectuais negras: Brasil e diásporas/Estudos Históricos/2022

A experiência intelectual negra é um tema de pesquisa que, nos últimos anos, tem sido sistematicamente debatido por diferentes ramos do conhecimento, em particular na História e nas Ciências Sociais. Ela tem composto um desafio, seja pelas fontes de difícil acesso, pela invisibilidade histórica de sua existência — invisibilidade que todos os artigos deste dossiê problematizam e questionam, cada qual à sua maneira — ou mesmo uma concepção inadequada e excludente do que seria a produção intelectual. A ideia para a construção do dossiê “Experiências intelectuais negras: Brasil e Diásporas” partiu do diálogo dos organizadores, cientistas sociais, em parceria com colegas de História, em diferentes eventos acadêmicos, sobre a aproximação temática dos assuntos de suas pesquisas e a percepção de que esse campo analítico dava sinais inequívocos de consolidação. Leia Mais

Cidades nas ciências sociais no Brasil | Estudos Históricos | 2022

Fortaleza de Sao Jose de Macapa Foto SecomGEA
Fortaleza de São José de Macapá | Foto: Secom/GEA

Em Brancos e pretos na Bahia, publicado em 1942, o norte-americano Donald Pierson descreve da seguinte maneira a dinâmica da “ecologia humana” urbana de Salvador e o modo como questões raciais e de classe influenciam a distribuição da população pelos espaços da cidade:

Ao longo das elevações, acompanhando os acidentes do terreno, encontram-se em geral as ruas principais, com as mais importantes linhas de transporte, isto é, bondes, ônibus e automóveis. […] Não encontrando obstáculos, a refrescante brisa marítima torna estas elevações mais confortáveis, mais saudáveis, e por consequência mais desejáveis, como lugar de moradia. Ali se encontram, em geral, os edifícios mais modernos e mais ricos, as casas das classes “superiores”. […] Os vales, em contraste, oferecem lugares e residências menos confortáveis, menos saudáveis e menos convenientes, por consequência mais baratos. […] Estas áreas em que vivem as classes “baixas” são provavelmente mais saudáveis e em geral mais agradáveis, como lugares de residência, que os “slums” das cidades industriais europeias ou norte-americanas. Embora os casebres sejam construídos de modo muito rudimentar, pobremente mobiliados, são em geral limpos e sempre se erguem num cenário atraente, de folhagem tropical, por onde filtra a luz brilhante do sol, juntamente com o ar puro (Pierson, 1971: 65-67). Leia Mais

Eleições e competição política | Estudos Históricos | 2022

Eleições são a principal força motriz dos regimes representativos. Trata-se de um momento-chave para as elites políticas renegociarem o poder, incumbentes tentarem se reeleger e opositores buscarem inverter o jogo para vencer a disputa nas urnas. Historicamente, os estudos políticos privilegiaram a análise das eleições e da competição política em contextos democráticos por supor que a ampla participação eleitoral e as garantias à alternância de poder consistiam nas condições mínimas necessárias para se considerar um regime político, de fato, representativo (Dahl, 1971; Schumpeter, 1942).

Contudo, a retomada da análise das primeiras experiências de democracia direta nas antigas cidades-Estado revelou o caráter aristocrático das eleições em sua origem (Manin, 1995). Isso somado ao gradativo reconhecimento da complexidade por trás da construção do rito eleitoral nas primeiras experiências de governo representativo (Romanelli, 1998), sobretudo na invenção do cidadão-eleitor (Offerlé, 2005), abriu caminho para o resgate dos estudos eleitorais em contextos liberais mundo afora e que avança na historiografia política brasileira mais recente (Dolhnikoff, 2018; Ricci, 2019; Viscardi, 2012). Leia Mais

História oral | Estudos Históricos | 2021

HISTÓRIA ORAL: DIMENSÕES PÚBLICAS NO TEMPO PRESENTE

Este dossiê contempla estudos sobre história oral com base em pesquisas que assumem os desafios colocados contemporaneamente a essa metodologia de pesquisa e produção de fontes. Metodologia desenvolvida desde fins dos anos 1950 e amplamente utilizada e consolidada ao redor do mundo, a história oral chega ao século XXI catalisada pelas discussões da história pública, assim como pelas novas tecnologias, que colocam em questão novas formas de gravação, interação, preservação e difusão das narrativas orais e audiovisuais. Nesse sentido, este dossiê traz, particularmente, artigos que tencionam essas dimensões, com reflexões sobre suas interações e respostas da história oral às questões do tempo presente: por estudos temáticos, trajetórias de vida ou tradição oral.

Os textos afirmam o dinâmico movimento da história oral e os seus entrecruzamentos com a historiografia. Pela oralidade, é possível observar o trabalho de memória — escolhas narrativas referentes às formas como os sujeitos históricos significam as dimensões do público no tempo presente. Na história oral, dissensos e consensos, presentes nas memórias coletivas, catalisam práticas sociais. Lembranças, silêncios e esquecimentos expressam questões socialmente vivas em estudos que mobilizam múltiplos itinerários dos usos do passado. Ao evidenciarem as narrativas dos sujeitos históricos, os autores desenvolveram análises pela constituição de fontes que desempenham papel fundamental nas reflexões sobre “comunidades de sentido” e suas conexões temporais entre passado, presente e expectativas futuras. Leia Mais

Tempos de Pandemia | Estudos Históricos | 2021 (D)

Bilros 3
Pexels | Imagem: Juliana Vitoria – Reprodução |

Este número da Revista Estudos Históricos é marcado especialmente pela contemporaneidade e interdisciplinaridade de seus artigos. A ideia do dossiê Tempos de pandemia surge pela urgência de debates e análises científicas promovidos em diferentes áreas com o advento da pandemia de COVID-19, decretada mundialmente no dia 11 de março de 2020. Como resultado, temos uma edição robusta, composta de trabalhos com pontos de vista metodológico e temático diversos.

Como linha comum dos artigos, observamos o debate sobre o tempo em diferentes perspectivas. A própria edição deste número pressupõe uma reflexão sobre tempo, na medida em que reunimos nesse conjunto incursões acadêmicas desenvolvidas no auge da pandemia, no seio de seus acontecimentos. Encontramo-nos, ainda, sem respostas concretas e objetivas sobre o curso desse longo processo. Reflexões sobre o tempo histórico e sobre a produção de pesquisas científicas pela ótica dinâmica do momento histórico são fruto de debates e discussões de longa data.

O tempo social, como proposto por Fernand Braudel (1949), pode ser dividido metodologicamente em três momentos: média, curta e longa duração. O exercício de pesquisa deve, sempre, levar em consideração a construção e o recorte temáticos nessas três perspectivas, que caracterizam o tempo múltiplo, compondo as principais características do tempo social.

Em suma, temos a longa duração como o âmbito das estruturas, a média duração como o tempo das conjunturas e a curta duração como a medida da atualidade, da vida do dia a dia. Os artigos que compõem este dossiê sobre a pandemia, acontecimento histórico contemporâneo, assim como as pesquisas e as autorias, pode dar uma primeira impressão equivocada. O distanciamento analítico na área das ciências humanas, há tempos colocado como essencial para o desenvolvimento de pesquisas científicas, caiu por tese há algumas décadas, especialmente com a eclosão do campo da história do tempo presente.

Nesse bojo, temos a proposição do tempo histórico de Reinhart Koselleck (2014), o tempo estratificado, formado por diferentes camadas de tempo, independentes e interdependentes entre si, proporcionando a base reflexiva de continuidades e rupturas de processos históricos. A proposta de Koselleck subsidia as análises do tempo presente com base no entendimento desses processos como constructos sociais inter-relacionados, proporcionando a base analítica da compreensão de eventos contemporâneos por seus cientistas sociais.

O coletivo de reflexões analisa em sua complexidade questões estruturais como as desigualdades sociais da sociedade contemporânea, refletindo diretamente no acesso à educação e à saúde no Brasil e no mundo. Nesse conjunto, encontramos reflexões de longa duração com perspectivas históricas, demonstrando os impactos políticos e sociais da gripe espanhola de 1918 na sociedade, o processo de exclusão digital de setores sociais e seus impactos na educação à distância e a questão da aprendizagem, bem como os muros epidemiológicos construídos ao longo de décadas.

Encontramos também análises estruturais sobre as democracias latino-americanas e sobre os Estados Unidos, o impacto econômico em populações historicamente em situação de vulnerabilidade, apontando as continuidades de um processo histórico estrondosamente desigual. Ainda pensando na perspectiva da longa duração, vemos a construção da memória social ao longo dos anos e os desafios enfrentados pela gestão e recuperação de documentos produzidos em meio digital. Análises sobre a estrutura midiática brasileira e as fronteiras entre o público e o privado, a construção social de contextos afrorreligiosos e suas nuances políticas, a utilização midiática para defesa de pautas específicas e práticas culturais de uma sociedade em isolamento compõem o tempo histórico de longa duração presente neste dossiê.

No contexto de média duração, no tempo das conjunturas, podemos inferir importantes recortes com elementos de continuidades e rupturas subsidiando o estudo do tempo presente. Envolvendo elementos como os citados no contexto de longa duração, observamos o recorte analítico de média duração no que diz respeito à compreensão conjuntural dos temas em questão. Como linha comum aos artigos, observamos a reconstrução de contextos históricos anteriores à pandemia de COVID-19, buscando alinhar as expectativas de análise políticas, econômicas e culturais na camada mais ampla do tempo histórico a fim de reconhecer os aspectos atingidos pelo momento atual. A preocupação com o contexto histórico conjuntural é inerente e presente em todas as análises, independentemente do tema trabalhado. Ainda que pareçam temáticas bastante diferentes, os textos aqui reunidos nos permitem traçar um quadro conjuntural de extrema qualidade para compreender o advento histórico da pandemia, nosso elemento de curta duração.

Nesse ponto, vemos detalhadamente o recorte mais específico dos artigos. Em grande parte, o ano de 2020 atua como medida da atualidade. Seja no debate acerca de questões educacionais como nos artigos “Direito ou privilégio? Desigualdades digitais, pandemia e os desafios de uma escola pública”, de Renata Mourão Macedo, e “Aprendizagem histórica em tempos de pandemia”, de Cristiano Nicolini e Kenia Erica Gusmao Medeiros, cujos recortes dão conta da urgente mudança para o ensino a distância e suas consequências, seja no debate sobre questões culturais e de memória nos textos de Alejandra Josiowicz, “Humanidades digitais e literatura nas redes sociais: ‘um placebo sanador em tempos de COVID-19’”, o artigo de Isabella Vivente Perrotta e Lucia Santa Cruz, “Objetos da quarentena: urgência de memória”, e o texto de Vítor Queiroz, “Quando o ser-humano cria, Iku vem à Terra: as mediações de Exu, a onipresença da morte e a COVID-19 em dois contextos afrorreligiosos”.

Tratando especificamente de questões políticas e econômicas que envolvem a gestão da pandemia em países da América Latina, temos o artigo de Rafael Araujo e Érica Sarmiento, “A América Latina, a COVID-19 e as migrações forçadas: perspectivas em movimentos, muros epidemiológicos e sombrias imagens”, apontando as medidas atuais do tempo histórico e os reflexos na migração forçada de populações vulneráveis, e a contribuição especial de André Pagliarini, “Possible Futures: COVID-19 as Historical Turning Point”, recortando a análise específica sobre a importância desse debate para a historiografia presente.

Analisando especialmente o aspecto midiático da pandemia, temos os artigos de Flavia Pinto Leiroz e Igor Sacramento, “Cronotopias da intimidade catastrófica: testemunhos sobre a COVID- 19 no Jornal Nacional”, mostrando o recorte do maior jornal diário do Brasil e seus impactos sobre a relação entre público e privado em nossa sociedade, e o texto de Luciana Almeida, “Pandemia, ‘agro’ e ‘sofrência’: jornalismo, propaganda e entretenimento no debate público sobre o modelo agrícola”, mostrando a relação instantânea da pandemia na indústria cultural nacional.

Em entrevista concedida por James Green, realizada por mim e por Ronald Canabarro, em que aplicamos a temporalidade múltipla no decorrer das perguntas, buscou-se criar uma narrativa que abarcasse suas opiniões estruturais das sociedades brasileiras e norte-americanas, chegando às análises conjunturais mais recentes de ambos países de maneira que confluísse no momento atual da pandemia, suas consequências políticas, econômicas e culturais da COVID-19 no mundo pela ótica do historiador e militante norte-americano.

Quando falamos em tempos de pandemia, estamos definindo tempo como social, como o tempo composto de diacronias e sincronias, continuidades e rupturas. A urgência evidenciada pelas necessidades informacionais e analíticas, que perpassam diferentes temas, nesse último ano pandêmico pelo qual nossa sociedade passou em todo o globo estão reunidas nesse dossiê interdisciplinar e diverso que montamos. Nosso desejo é o de que possamos reler suas páginas como documentos históricos em alguns anos, proporcionando compreensões fundamentadas e científicas da história presente.

Por fim, e em nome da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC), prestamos nossa solidariedade coletiva às famílias de 3 milhões de pessoas1 em todo mundo vítimas da COVID-19.

Nota

1. Dados coletados em: https://www.worldometers.info/coronavirus/. Acesso em: 12 abr. 2021.

Referências BRAUDEL, F. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: Armand Colin, 1949.

KOSELLECK, R. Estratos de Tempo: estudos sobre a História. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-RJ, 2014.

Martina Spohr – Doutora em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (martina.spohr@fgv.br). Escola de Ciências Sociais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Fundação Getulio Vargas – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.


SPOHR, Martina. Editorial: Tempos de Pandemia. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 34, n.73, p.1-3, p.235-238, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [IF].  Acessar dossiê

Cultura Visual / Estudos Históricos / 2021

Filosofia e Historia da Biologia 25
[Cultura visual] | Foto: Plataforma 9 |

Este dossiê da Revista Estudos Históricos dedica-se ao tema da Cultura Visual.

Para a sua composição optamos por seguir os caminhos que começaram a ser traçados na origem desse campo, adotando uma perspectiva interdisciplinar e marcadamente política. A Cultura Visual enquanto campo de investigação e estudo institucionaliza-se entre as décadas de 1980 e 1990, quando teóricos ligados aos Estudos Culturais, seguindo os passos de Stuart Hall, passam a interrogar dentro de centros universitários as imagens e a visualidade modernas. Se essas duas décadas podem ser entendidas como o marco inicial do campo, vamos assistir nos anos seguintes a uma verdadeira explosão dos estudos das imagens. A Cultura Visual, ou melhor, as questões da visualidade, não são mais — isso podemos afirmar com certeza — domínio exclusivo da História da Arte. Os estudos visuais infiltraram-se e parecem ter criado raízes em áreas como a Antropologia, a História e a Sociologia.

A amplitude do campo foi o grande desafio que este dossiê precisou enfrentar. Como apresentar no reduzido espaço da revista um universo tão vasto? Como contemplar a diversidade de abordagens metodológicas e a heterogeneidade dos objetos estudados? Cabe lembrar que a Cultura Visual se interessa pelas imagens que habitam nosso cotidiano em seus mais variados formatos (fotografia, cinema, publicidade, televisão etc.), sejam elas imagens do passado que assombram o presente ou imagens do presente que conformam valores e identidades.

Na tentativa de enfrentar esse desafio acolhemos artigos que apresentam diferentes pontos de vista sobre objetos variados, mas que partilham um princípio comum: interrogam, sobretudo, a política das imagens. Na origem do campo da Cultura Visual está uma concepção construtivista da noção de representação. Como coloca Stuart Hall no clássico Cultura e representação (2016), no domínio da representação há sempre alguém que ganha e alguém que perde, alguém que ascende e alguém que descende, incluídos e excluídos (Hall, 2016).

Em meio à diversidade do campo da Cultura Visual identificamos um entendimento que permanece: as imagens são historicamente construídas e politicamente comprometidas. Para a composição do dossiê tentamos, na medida do possível, contemplar a multiplicidade do campo sem perder de vista esse princípio comum.

Os artigos que integram este número apresentam estudos de caso originais sobre o domínio do cinema, da fotografia, da história em quadrinhos, da televisão, da arquitetura, e desta nova modalidade de imagens desencarnadas, os memes. O primeiro bloco de artigos volta-se às imagens do passado. Transitando entre a História e os Estudos Visuais, as autoras e autores presentes nesse bloco examinam a origem, a circulação e a sobrevivência das imagens em arquivos físicos e imaginários. Um segundo conjunto de textos coloca questões às imagens do contemporâneo, seus modos de produção e suas vinculações identitárias.

Para encerrar o dossiê realizamos uma entrevista inédita com os pesquisadores Ana Maria Mauad e Maurício Lissovsky, referências nos estudos das imagens. Na entrevista, intitulada “Imagens Selvagens”, os pesquisadores abordam o percurso dos estudos visuais no Brasil, questionam o próprio conceito de Cultura Visual e apresentam-nos uma reflexão, por vezes ácida e provocadora, sobre o papel das imagens enquanto sujeitos da história no Brasil de 2020.

Desejamos a todas e todos uma excelente leitura.

Referências

HALL, S. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.


BLANK, Thais. Cultura visual. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vl 34, n.72, p.1-3, jan./abr. 2021.

Revolução de 30 / Estudos Históricos / 2020

A Revolução de 1930 e o regime instalado a partir de então foram examinados nas décadas de 1960 e 1970 por um conjunto de autores que nos legaram uma valiosa visão abrangente. Pertencentes às primeiras gerações de cientistas sociais profissionalizados no Brasil, esses autores realizaram trabalhos de grande fôlego empírico e densidade teórica. Uma parte significativa dessa produção derivou de doutorados cursados nos pioneiros programas de pós-graduação em Ciências Sociais do país ou em prestigiadas universidades estadunidenses e europeias. Os historiadores chegaram mais tarde a esse campo de estudos, e apenas na passagem para a década de 1980 sua produção tomou volume. Constituída por trabalhos de alto nível acadêmico, a historiografia acerca da Era Vargas empenhou-se pouco em oferecer análises generalizantes. Ainda assim, contribuiu para o conhecimento mais aprofundado de determinados aspectos do período, destacadamente as condições de vida, a organização política e o relacionamento com o Estado dos grupos subalternos urbanos. Não tendo sido capaz de oferecer uma interpretação de conjunto alternativa à literatura proveniente das Ciências Sociais, a historiografia fez alguns reparos pertinentes e matizou determinadas análises. O artigo de Elizabeth Cancelli, publicado nesta edição de Estudos Históricos, faz um inventário dessa produção.

A grade de leitura que recorre ao livro de Barrington Moore (1967) para compreender o significado histórico da Revolução de 1930 e a natureza do regime varguista continua a provar sua grande capacidade heurística. Assim, 1930 constitui um marco decisivo na passagem da sociedade tradicional (agrário-rural) para a sociedade moderna (urbano-industrial). Tratou- -se de incentivar o desenvolvimento do capitalismo brasileiro cuidando para que a ordem social fosse mantida a mais preservada possível. O Estado, que já atuava na Primeira República como agente de amparo à cafeicultura, alçou o seu intervencionismo na economia a outro patamar e passou a dar guarida a um leque mais amplo de interesses. A política econômica de Vargas é estudada no artigo de Antonio Lassance.

Há um bloco de artigos que exploram tensões, impasses e soluções criadas no âmbito da modernização conservadora, premida entre a necessidade de, por um lado, atrair e, por outro, de controlar os trabalhadores das cidades. A postura ambivalente do Estado pós-1930 perante a questão social é explorada tanto no artigo de Marly Vianna quanto no de Marcelo Sevaybricker Moreira e Ronaldo Teodoro dos Santos. Já o artigo de Andrei Koerner e o de Douglas Souza Angeli analisam as elaborações ideológicas que enfrentaram a questão da extensão de direitos aos pobres. Antonio Luigi Negro e Jonas Brito demonstram a capacidade de ação política dos de baixo, que colocava em risco a revolução pelo alto no Brasil. Prosseguindo a apresentação deste número da revista, há um trio de artigos que oferecem uma contribuição importante para a compreensão da reestruturação do poder político a partir de 1930. Jaqueline Porto Zulini e Paolo Ricci vislumbram o Código Eleitoral de 1932 como um recurso de poder a serviço do novo regime, enquanto Eliana Evangelista Batista investiga a incorporação de chefes locais baianos ao compromisso que se formou em torno de Vargas. Finalmente, Carolina Soares Sousa, ao centrar-se na figura de Paulo Duarte, ilumina o movimento de aproximações e distanciamentos de parte da oligarquia paulista em relação ao governo central.

Referências

MOORE, B. Social origins of dictatorship and democracy. Beacon Press: Boston, 1967.

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor Convidado E-mail: marco.vannucchi@fgv.br https: / / orcid.org / 0000-0002-6481-8720


MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.33, n.71, set. / dez.2020. Acessar publicação original [DR]

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Gênero e História / Estudos Históricos / 2020

O presente dossiê temático sobre gênero e história oferece uma cartografia do estado atual do campo dos estudos de gênero e do feminismo ibero-americano. Para tanto, adota uma estratégia multidisciplinar, incorporando as contribuições da história cultural e social das mulheres e das relações de gênero, mas também da sociologia, da antropologia e dos estudos culturais em relação com o gênero, a sexualidade e o feminismo. Além disso, o dossiê tem uma perspectiva transnacional, incorporando pesquisadoras sobre gênero e feminismo baseadas em diversas regiões da Argentina, do Brasil, do Uruguai, dos Estados Unidos e da Espanha, que dão conta da particularidade dos estudos de gênero e da história das mulheres em cada país e região. Esse amplo panorama de pesquisas acadêmicas sobre o gênero e o feminismo na atualidade pretendeu incluir o trabalho tanto de pesquisadoras e professoras pioneiras e fundadoras do campo acadêmico dos estudos de gênero como daquelas gerações mais jovens. Repensar a história social e cultural do gênero e dos feminismos resulta central no momento presente, de profunda crise do capitalismo global, no qual o mundo se divide e se debate entre a mobilização e o caos dado pela falta de políticas públicas para enfrentar uma crise de saúde global sem precedentes. O feminismo, que já vinha enfrentando o retrocesso causado pelo ascenso em nível global de uma direita ultraconservadora, misógina e xenófoba, e suas políticas neoliberais e autoritárias, fazendo uso das ferramentas políticas marcadas pelo ativismo midiático, recrudesce sua luta e mobilização por direitos humanos fundamentais e por igualdade social, saúde, salário mínimo, serviços básicos, como abastecimento de água, informação, trabalho, educação, moradia e meio ambiente em um momento de emergência global.

O crescimento exponencial dos estudos acadêmicos sobre o gênero e o feminismo nas últimas décadas tem apresentado desafios específicos no mundo ibero-americano, com a expansão dos programas de pós-graduação e disciplinas específicas da área. O primeiro deles é a articulação, já presente em décadas passadas, mas que tem adotado modalidades renovadas e uma interpenetração cada vez mais aprofundada, entre teoria e prática feminista, estudos acadêmicos e movimentos sociais, de modo tal que se, por um lado, as pesquisas têm-se dedicado a teorizar de modos inéditos as greves internacionalistas, as mobilizações dos feminismos indígenas, negros e decoloniais na América Latina e no Caribe, por outro os movimentos sociais têm utilizado as análises e teorizações dos feminismos latino-americanos, revelando assim a intensa reflexividade que articula o âmbito acadêmico e os movimentos sociais em nível local, regional e transnacional. Nesse sentido reflexivo deve ser lida a retomada do termo feminismo, eclipsado em anos anteriores pela categoria, mais lábil e fluida, de estudos de gênero e sexualidade, como símbolo da repolitização do campo e da nova centralidade que o ativismo ocupa no estudo acadêmico.

O segundo desafio é a superação de oposições estanques entre políticas de classe e políticas da identidade, de forma tal que revele os nexos entre modalidades do trabalho pago e não pago e categorias como raça, etnicidade, nacionalidade, gênero e sexualidade, como apontaram Nancy Fraser (2003) e Nancy Fraser et al. (2019). Não é possível desconstruir o essencialismo das políticas da identidade sem reconhecer que os diferentes eixos de subordinação se combinam de modos que afetam interesses de classe e categorias como raça, etnicidade, nacionalidade, gênero e sexualidade simultaneamente, gerando marginalização, exclusão e pobreza, simbólica e material.

O terceiro desafio diz respeito ao modo pelo qual, na América Latina e no Caribe, os feminismos indígenas e negros, o feminismo decolonial, assim como os estudos da interseccionalidade, nascidos nos Estados Unidos, têm desconstruído a universalidade da noção de mulher e denunciado o compromisso histórico do feminismo, inclusive aquele feito na América Latina, com o imperialismo, o racismo e o etnocentrismo, articulando raça, etnia, classe, sexualidade e localização geopolítica. No Brasil, o pensamento feminista negro foi pioneiro em assinalar a natureza interconectada de raça, classe e gênero, recuperando a experiência das mulheres negras e indígenas e analisando práticas de opressão baseadas em hierarquias de gênero e raça (Carneiro, 2019). Sueli Carneiro (2019) ressaltou a especificidade de um feminismo negro latino-americano antirracista e a importância de uma perspectiva internacionalista que aponte para as relações entre globalização, neoliberalismo e feminização da pobreza, abrindo a possibilidade de alianças com outros países da América Latina e do Caribe.[1] O pensamento feminista brasileiro também foi pioneiro do chamado feminismo decolonial, por meio da categoria de amefricanidade, de Lélia González (1988), a qual implica a experiência e a particularidade cultural de todos os países com heranças africana e indígena nas Américas (González, 1988). O projeto feminista decolonial vem apontando para a imbricação de dominação geopolítica, sexismo, racismo e capitalismo, pela articulação com os estudos pós-coloniais e decoloniais. Esses propõem um feminismo descentrado, excêntrico, desde as margens, capaz de pensar as mulheres do chamado Terceiro Mundo fora de uma visão etnocêntrica, exótica e reificada, assinalando os limites e as estratégias das políticas da identidade e apontando para a diversidade de experiências e formas de vida (Curiel Pichardo, 2009). Central nesse projeto é a revisão dos pressupostos epistemológicos da produção de conhecimento feminista que atribui um papel hierarquicamente superior às referências de teóricas e de conceitos europeus e norte-americanos, com a premissa de que o pensamento feminista elaborado nas regiões periféricas seria capaz de desconstruir a dependência intelectual da Europa e dos Estados Unidos (Curiel Pichardo, 2009). Voltando ao primeiro ponto, poderíamos dizer que as autoras recentes revelam a articulação não dicotômica entre a participação nos movimentos sociais, como espaços do ativismo, da voz e do reconhecimento, e a produção intelectual, dado que elas são fundadoras e produtoras de conhecimento e discurso, educadoras, pesquisadoras, professoras e estudantes.

Uma reflexão que deve ser feita de modo consciente e cada vez mais urgente nos estudos de gênero e feminismo na academia e nas diversas áreas da educação refere-se aos modos pelos quais, com o gênero como emblema, articulados com a ideologia da suposta meritocracia, sobrevivem práticas de exclusão e precarização de professoras, bolsistas, estagiárias, estudantes, em sua maioria mulheres de menor renda, gays, pessoas trans, mulheres e homens de cor, indígenas, sujeitos migrantes. O feminismo na academia não pode ser indiferente ante as práticas de exclusão e precarização do trabalho material e intelectual no interior das instituições educativas. Ao contrário, deve estar cada vez mais articulado com a luta pelo reconhecimento desses trabalhadores da educação, a valorização de suas produções intelectuais e do conhecimento por eles produzido, toda vez que ele quer contribuir para uma comunidade acadêmica mais democrática e justa.

O dossiê é constituído de três partes principais. A primeira parte apresenta um simpósio ou entrevista coletiva feita a um grupo de figuras centrais, referências teóricas, vozes pioneiras e inovadoras nos estudos de gênero e feminismo na América Latina, provindas do Brasil, da Argentina, do Uruguai e dos Estados Unidos, na qual elas refletem sobre o presente e o futuro do campo.

A segunda parte conta com três colaborações especiais e traz três autoras brasileiras e uma argentina baseada nos Estados Unidos. São elas: Aparecida Fonseca Moraes, professora associada do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), quem analisa as práticas discursivas da ativista Gabriela Leite no marco do processo de construção das prostitutas como sujeitos políticos no Brasil do século XX por meio da perspectiva da sociologia do indivíduo; Mariela Méndez, professora associada no Departamento de Latin American, Latino and Iberian Studies e de Women, Gender and Sexuality Studies da University of Richmond, cujo trabalho reflete sobre o novo ativismo feminista a partir de uma intervenção do movimento social Ni Una Menos na Argentina, utilizando a noção de performance coletiva. Por seu lado, Silvia Fávero Arend, professora do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e Chirley Beatriz da Silva Vieira, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UDESC, escrevem um trabalho que analisa relações de classe e gênero nas ações de assistência social direcionadas às populações infanto-juvenis no Asilo de Órfãs São Vicente de Paulo, em Santa Catarina.

A terceira parte é composta de seis artigos selecionados entre um elevado número de artigos recebidos, após o processo de avaliação cega por pares. Trata-se de professoras, pesquisadoras, pós-doutorandas e doutorandas de universidades e instituições de pesquisa e educação da Argentina, da Espanha e do Brasil. O trabalho em coautoria de Gabriela de Lima Grecco (Departamento de Historia Contemporánea, Universidad Autónoma de Madrid) e Sara Martín Gutiérrez (Programa de Posdoctorado en Ciencias Humanas y Sociales de la Facultad de Filosofía y Letras — FFyL-CONICET) explora a censura literária no regime franquista, assim como as ações de resistência do coletivo de escritoras. Adriana Cristina Lopes Setemy (Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais — PPHPBC — da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas — CPDOC / FGV) parte de uma perspectiva de gênero para refletir sobre a violência de Estado e a violação de direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil. Marina Vieira de Carvalho (Departamento de História da Universidade Federal do Acre — UFAC) analisa a autoria feminina em periódicos pornô-eróticos do Rio de Janeiro do início do século XX como criação de uma sensibilidade erótica moderna. María Soledad González (doutoranda em História pela Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires — UNCPBA / CONICET) faz uso de ferramentas dos estudos de gênero para analisar a trajetória de Victoria Ocampo como gerente artística e cultural que articula o público e o privado na Argentina da década de 1920. Eliza Teixeira Toledo (Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz — COC-Fiocruz) e Allister Teixeira Dias (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ) analisam casos de “crimes passionais” com o objetivo de contribuir para a historicização da violência de gênero no Rio de Janeiro na década de 1930, apontando para a reificação e a naturalização da violência contra as mulheres. Finalmente, Verônica Toste Daflon (Universidade Federal Fluminense — UFF) e Luna Ribeiro Campos (Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca — CEFET-RJ) exploram as contribuições de duas pioneiras da sociologia, Flora Tristan e Harriet Martineau. Vai o agradecimento, a propósito, às dezenas de pareceristas ad hoc que contribuíram voluntariamente com sua expertise para a composição final deste número.

Nota

1. Com foco no feminismo negro estado-unidense, a teoria interseccional afirmou que as diferentes formas de dominação e subordinação de classe, raça, gênero, sexualidade e nação se inter-relacionam, construindo sistemas específicos de poder articulados, matrizes de dominação, estruturas distintivas com múltiplos níveis que funcionam de modos paralelos e interligados (Hill Collins, 1993; Andersen; Hill Collins, 2016). A proposta é transcender as barreiras que separam as diferentes formas de opressão, superando um pensamento dicotômico que hierarquiza os modos da opressão, e assinalar sua justaposição de acordo com padrões estruturais (Hill Collins, 1993; Andersen; Hill Collins, 2016).

Referências

ANDERSEN, M. L.; HILL COLLINS, P. Race, Class & Gender: An Anthology. 9. ed. Boston: Cengage Learning, 2016.

CARNEIRO, S. Enegrecer o feminismo. A situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Org.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. p. 49-58.

CURIEL PICHARDO, R. Y. O. Descolonizando el Feminismo: una perspectiva desde América Latina y el Caribe. In: COLOQUIO LATINOAMERICANO SOBRE PRAXIS Y PENSAMIENTO FEMINISTA, 1., 2009, Buenos Aires. Anais […]. Buenos Aires, 2009.

GONZÁLEZ, L. A categoria político-cultural de Amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92-93, p. 69-82, 1988.

HILL COLLINS, P. Toward a New Vision: Race, Class and Gender as Categories of Analysis and Connection. Race, Sex & Class, v. 1, n. 1, p. 25-45, 1993.

FRASER, N. Social justice in the age of identity politics: Redistribution, recognition and participation. In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or recognition: a political-philosophical exchange. Nova York: Verso, 2003.

FRASER, N.; ARRUZZA, C.; BHATTACHARYA, T. Feminism for the 99 Percent: a manifesto. Nova York: Verso, 2019.

Alejandra Josiowicz – Editora convidada. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV. Pesquisadora do Instituto Interdisciplinario de Estudios de Género, da Facultad de Filosofía y Letras, da Universidade de Buenos Aires (IIEGE- FFyL- UBA), do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) e pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC) da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). E-mail: alejandra.josiowicz@fgv.br https: / / orcid.org / 0000-0002-3525-1833


JOSIOWICZ, Alejandra. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.33, n.70, maio / ago.2020. Acessar publicação original [DR]

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Humanidades Digitais / Estudos Históricos / 2020

Este número de Estudos Históricos tem por tema “Humanidades digitais”. Trata-se de um rótulo recente, abrangente e pouco preciso. Nele, pode-se incluir tudo que signifique a aplicação de computação e de tecnologias digitais ao universo das humanidades. O pano de fundo é a expansão de big data, conjuntos de dados grandes demais para serem analisados por formas tradicionais de pesquisa.

Não há uma visão consensual sobre o que é esse mundo. Para alguns, trata-se de um novo campo de conhecimento; para outros, seria mais uma “comunidade” de práticas de pesquisa. De qualquer forma, podemos afirmar ao menos duas coisas com segurança: primeiro, que se trata de um mundo profundamente multi e interdisciplinar; segundo, que a prática da pesquisa de cientistas sociais e historiadores será, se já não o foi, profundamente alterada. Temos, assim, tanto uma riqueza em termos de potencialidade criativa quanto um desafio em termos de formação profissional. Não se trata de substituir o “artesanato intelectual” de que tratou C. Wright Mills por computadores e inteligência artificial, mas de continuar existindo o que ele chama de “imaginação sociológica” nesse admirável (?) mundo novo.

Os artigos selecionados para este número, bem como a entrevista com o professor Matthew Connelly, permitem-nos, para além de seus objetos específicos, conhecer um repertório variado de possibilidades de pesquisa, bem como alguns caminhos que os pesquisadores têm utilizado. Esperamos que sirvam de inspiração para outras explorações.

Referência

MILLS, C. W. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

Celso Castro – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV) e Editor convidado da Revista Estudos Históricos. E-mail: celso.castro@fgv.br


CASTRO, Celso. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.33, n.69, jan. / abr.2020. Acessar publicação original [DR]

Futebol, História e Política / Estudos Históricos / 2019

Dossiês temáticos têm-se mostrado de grande importância para o desenvolvimento dos estudos sobre esportes e futebol nas Ciências Humanas e Sociais brasileiras. Desde pelo menos o ano de 1994, com o dossiê organizado pela Revista USP (n. 22 – Futebol), assistiu-se a uma série de publicações em periódicos científicos sobre esse tema no país. Com base em números especiais, textos e autores tornaram-se referência e fonte recorrente de citações. Deste modo, contribuíram para a formação de um campo de estudos e possibilitaram um avanço reflexivo — teórico, metodológico e empírico — em torno das práticas esportivas nacionais e internacionais.

A própria revista Estudos Históricos contribuiu nesse sentido em 1999, quando publicou o número 23 — Esporte e Lazer —, conhecido por trazer à tona debates e por ensejar polêmicas acerca dos referenciais mais apropriados para pesquisas na área. A “década esportiva”, como ficou conhecido o período entre 2007 e 2016, com a realização de uma gama de megaeventos esportivos no Brasil, estimulou também um conjunto significativo de dossiês dessa natureza, publicados em congêneres como a Horizontes Antropológicos, a Revista de História (USP) e os Cadernos AEL (Unicamp), entre outros periódicos científicos.

Passados os megaeventos, e multiplicadas as pesquisas sobre modalidades esportivas em programas de pós-graduação no país, novas gerações continuam a se debruçar sobre esse fenômeno típico das sociedades modernas e contemporâneas, capaz de mobilizar identidades coletivas, interesses midiáticos, circulações globais, fluxos financeiros e representações sociais. A motivação para a organização de um número específico dedicado à temática futebolística, cuja importância no século XX permanece atual, relaciona-se também a um cenário de desafios políticos que se colocam para a sociedade brasileira, na esteira das chamadas Jornadas de Junho de 2013 e no conturbado ciclo jurídico-político que se sucede ao Brasil pós-megaeventos.

O presente dossiê propõe, pois, uma articulação entre três dimensões — Futebol, História e Política. Estas inspiram-se, por sua vez, no trabalho desenvolvido pelo saudoso colega Carlos Eduardo Sarmento (2013), pioneiro no CPDOC nos estudos futebolísticos. Em sua investigação sobre a história institucional do futebol, feita com fontes primárias junto aos arquivos da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), Sarmento tratou da constituição da identidade nacional por meio da Seleção Brasileira e propôs intersecções diacrônicas desta com entidades desportivas, com instituições de poder e com estruturas políticas em chave mais ampla.

A tríade que circunscreve o presente número permite igualmente arejar um assunto marcado pelo peso ceticista das Teorias Críticas do Esporte, muito presentes nas Ciências Sociais europeias, norte-americanas e sul-americanas entre os anos 1960 e 1980, a exemplo dos escritos de Jean-Marie Bhrom (2006), Gerhard Vinnai (1973), Bero Rigauer (1981) e Juan José Sebreli (2005).

Se a introdução dos estudos sobre futebol no Brasil precisou contornar tais críticas funcionalistas e frankfurtianas, que preconizavam sua condição seja de dominação instrumental seja de epifenômeno da ideologia capitalista, valeu-se para tanto das postulações da Antropologia Social na afirmação da relevância do objeto no decorrer dos anos 1980. Rito, mito e símbolo das sociedades complexas foram, então, mobilizados para observar processos constitutivos da identidade nacional, em particular o significado, ora metafórico ora metonímico, adquirido pelo selecionado brasileiro nos eventos quadrienais das Copas do Mundo FIFA, com seus sentidos amplificados e conduzidos pelas narrativas da imprensa.

Assim, de tema secundário e por vezes não sério, o futebol pouco a pouco conquistou sua legitimidade e alcançou sua institucionalização na Academia. Nos últimos anos, observa-se também uma diversificação de abordagens, com a capacidade de ir além do âmbito meramente identitário e culturalista. No terreno da historiografia, a história social tem-se apropriado da temática em períodos mais recentes, graças a trabalhos seminais como o de Leonardo Pereira (2000). É o caso de destacar também a história política, cuja renovação nos anos 1980 (Rémond, 2003), se ainda é tímida na oferta de pesquisas concretas sobre o assunto, pavimenta caminhos para um tratamento menos canônico nessa área.

A proposta de renovar olhares acerca da história política do futebol é, portanto, um objetivo que se procurou contemplar com o presente volume. Da mesma maneira que as edições anteriores de Estudos Históricos, a grande demanda recebida e o elevado número de artigos aprovados, acima do que se poderia afinal publicar, foram uma prova do número de pesquisas de qualidade existentes nos dias de hoje, não só no Brasil como na comunidade acadêmica internacional. A difícil tarefa de selecionar ao final os textos por publicar sinaliza para a existência de um alargamento e uma continuidade geracional de pesquisadores que vêm se formando nas últimas décadas.

Sendo assim, o presente dossiê é constituído por três partes principais. A primeira conta com os sete artigos selecionados após o processo de avaliação cega por pares. Trata-se de doutorandos e doutores, vinculados a programas de pós-graduação no Brasil, em sua maioria historiadores, mas também de sociólogos, urbanistas e pesquisadores da área de Educação Física.

A primeira parte é composta por textos de autoria de João Malaia (Dep. História / Universidade Federal de Santa Maria); Marcel Tonini (Dr. História / Universidade de São Paulo) e Sérgio Giglio (Dep. Ed. Física / Universidade Estadual de Campinas); Raphael Rajão (Doutorando em História / FGV CPDOC); Luís Burlamaqui Rocha (Dr. em História / USP); Lívia Magalhães (Instituto de História / Universidade Federal Fluminense); Erick Melo (IPPUR / Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Gabriel Cid (Dr. IESP / Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Salienta-se, ainda na primeira parte, a colaboração de um autor de origem inglesa, Matthew Brown, professor de Letras Modernas na Universidade de Bristol, no Reino Unido. Agradecemos, a propósito, às dezenas de pareceristas ad hoc que contribuíram voluntariamente com sua expertise para a composição final dessa seção.

A segunda parte abarca as colaborações especiais e traz os dois autores internacionais, convidados especialmente pela equipe editorial para publicarem no dossiê. São eles: Courtney Campbell, brasilianista de origem estadunidense, doutora em História pela Universidade de Vanderbilt (EUA) e professora da Universidade de Birmingham; e David Wood, latino-americanista de origem inglesa, responsável por presidir a Society for Latin American Studies (SLAS) no período 2017-2019, e professor da Universidade de Sheffield.

A terceira e última parte do número 68 de Estudos Históricos apresenta uma entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, referência importante nas Ciências Históricas e Sociais, em particular no estudo da obra de Gilberto Freyre, destacando-se como pesquisadora associada há mais de vinte anos do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge.

2019 foi um ano de perdas na área de estudos do futebol, com o falecimento de três pesquisadores referenciais: o sociólogo inglês Eric Dunning, o geógrafo Gilmar Mascarenhas e a antropóloga Simoni Lahud Guedes. À memória desses três estudiosos dedicamos este número.

Por fim, desejamos a todos uma boa leitura.

Referências

BHROM, Jean-Marie; PERELMAN, Marc. Le football, une peste emotionelle. Paris: Gallimard, 2006.

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2003.

RIGAUER, Bero. Sport and work. New York: Columbia University Press, 1981.

SARMENTO, Carlos Eduardo. A construção da nação canarinho: uma história institucional da seleção brasileira de futebol, 1914-1970. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2013.

SEBRELI, Juan José. La era del fútbol. Buenos Aires: Debolsillo, 2005.

VINNAI, Gerhard. Football mania: the players and the fans – the mass psychology of football. London: Orbach & Chambers, 1973.

Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br

João Marcelo Ehlert Maia – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: joao.maia@fgv.br

Thais Continentino Blank – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: thais.blank@fgv.br

Os editores


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MAIA, João Marcelo Ehlert; BLANK, Thais Continentino. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.32, n.68, set. / dez.2019. Acessar publicação original [DR]

História das Ciências Humanas e Sociais / Estudos Históricos / 2019

Ao escolhermos o tema “História das ciências humanas e sociais” para o número 67 da revista Estudos Históricos, sabíamos que receberíamos um volume considerável de boas contribuições, afinal se trata de um tema interdisciplinar e que dialoga com uma quantidade significativa de agendas de pesquisa de longa tradição na historiografia e nas ciências sociais brasileiras. De fato, foi difícil chegar à seleção final de artigos, mas os dez textos aqui publicados dão aos leitores um excelente panorama desse vasto campo.

O número é aberto com uma colaboração original da professora australiana Raewyn Connell sobre a construção do cânone na sociologia e sua vinculação com as dinâmicas históricas do colonialismo e do eurocentrismo. Seu artigo “Canon and colonies: the global trajectory of sociology” é uma excelente porta de entrada para uma discussão global do tema proposto para este número.

A sociologia paulista é, por sua vez, objeto de alentada investigação original de William Santos, Luiz Jackson e Max Gimenes, que destrincham aproximações e tensões entre escolas e discípulos dessa conhecida tradição intelectual brasileira no texto “Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu”.

O questionamento da tradição eurocêntrica na historiografia das ciências humanas é tema para Marcelo Rosa, no seu texto “Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto e ontologias na sociologia contemporânea”, que reconstrói o debate iniciado por Akinsola Akiwowo sobre as indigenous sociologies, a fim de evidenciar sua rentabilidade teórica para a sociologia contemporânea.

A relação entre colonialismo e sociologia também surge no trabalho dos colegas portugueses Frederico Ágoas e Cláudia Castelo, que refletem sobre as iniciativas portuguesas de cooperação científica na África em “Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa na Comissão de Cooperação Técnica na África Subsaariana (CCTA)”.

A revista também selecionou textos que procuram repensar o legado de intérpretes clássicos do pensamento brasileiro. Lorenna Zem El-Dine revisita a fração “verde-amarelo” do modernismo paulista e suas conexões com o ensaísmo clássico brasileiro e latino-americano em “Ensaio e interpretação do Brasil no modernismo verde-amarelo (1926-1927)”, enquanto José Szwaco e Ramon Araújo lançam um olhar cuidadoso sobre a trajetória do conceito de populismo na sociologia paulista e questionam paradigmas explicativos de inspiração bourdieusiana no artigo “Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do ‘populismo’ e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais”.

Por fim, Lidiane Rodrigues evidencia a força da análise sociologizante da vida intelectual em seu estudo a respeito dos modos de apropriação dos intérpretes do Brasil por parte dos acadêmicos marxistas, em artigo que tem por título “Amar um autor: os marxistas nas universidades brasileiras e os intérpretes do Brasil”.

A história da historiografia comparece com os dois textos que fecham o volume. Aryana Costa questiona o apagamento da atuação universitária dos profissionais do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo no seu “Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso de história da Universidade de São Paulo (1934)”, enquanto Victor da Silva, em “History of the human sciences and Wallace’s scientific voyage in the Amazon: notes on historiographical absences”, reflete acerca das tensões entre história da ciência e outros campos historiográficos por meio de uma análise dos trabalhos que se debruçaram sobre a clássica viagem de Alfred R. Wallace pela Amazônia.

Acreditamos que este número da revista Estudos Históricos cumpra fielmente nossa vocação de apresentar conhecimento inovador e interdisciplinar sobre o Brasil e o exterior, apontando para a fertilidade de construirmos diálogos entre a história e as várias ciências sociais. Boa leitura!

Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br

João Marcelo Ehlert Maia – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: joao.maia@fgv.br

Ynaê Lopes dos Santos – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: ynae.santos@fgv.br

Os editores


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MAIA, João Marcelo Ehlert; SANTOS, Ynaê Lopes dos. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.32, n.67, maio / ago. 2019. Acessar publicação original [DR]

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Escravidão e Liberdade nas Américas / Estudos Históricos / 2019

No dia 02 de junho de 1888, duas semanas depois de abolida a escravidão, Angelo Agostini e Luiz de Andrade afirmavam que “Na vida do Brasil, nenhum fato se poderá comparar ao do dia 13 de maio do corrente ano. A própria independência, ao lado da escravidão, era como uma data velada, uma conquista clandestina. Hoje sim, o Brasil é livre e independente”. O entusiasmo dos editores da Revista Illustrada tinha uma razão faustosa: o Brasil finalmente abandonava a pecha de único país das Américas a manter a nefanda instituição, entrando assim para o rol das nações verdadeiramente livres e independentes.

Durante os anos subsequentes, o 13 de Maio foi comemorado como data máxima da liberdade nacional. Mas, assim como a independência parecia ser uma data velada, num país que mantinha a escravidão, a forma como a Primeira República festejou o Treze de Maio camuflou um sem-número de personagens e tramas que estiveram diretamente relacionados com a assinatura da Lei Áurea, bem como silenciou grande parte das violências e exclusões que marcaram os corpos e vidas de homens e mulheres cingidos pela escravidão. Tal silenciamento há muito era pauta de denúncias como a que foi feita em março de 1933 pelos dirigentes do jornal A Voz da Raça, um periódico “que se destinava à publicação de assuntos referentes aos negros”, posto que “as outras folhas, aliás veteranas, por despeitos políticos, tem deixado de o fazer”. Para os editores e jornalistas negros desse periódico, as comemorações da Abolição pareciam ter sentidos diversos daqueles apregoados por muitos abolicionistas que viam na liberdade o fim da escravidão, mas não enxergavam as dimensões do legado do escravismo.

A rememoração crítica dos 130 Anos da Abolição da Escravidão no dia 13 de maio de 2018 serviu como inspiração para o número 66 da Revista Estudos Históricos. No número que se propõe analisar Escravidão e Liberdade nas Américas, entramos em contato com pesquisas que consolidam e renovam a tradição historiográfica brasileira dos estudos sobre escravidão e Pós-Abolição, com destaque para as abordagens transnacionais ou “conectadas” que permitam reposicionar a agenda de investigações à luz de outras experiências no continente americano.

O número começa com o artigo de Ana Carolina Viotti, que, por meio de variado corpus documental, analisou a obrigatoriedade que recaía sobre os senhores no tocante à alimentação dos escravos no período colonial. A reconstituição de redes de compadrio em Minas Gerais na virada do século XVIII para a centúria seguinte é tema do artigo de Mateus Andrade, que por meio de estudos de demografia histórica demonstra a intrínseca relação entre a confirmação cotidiana da liberdade de indivíduos alforriados e o caráter sistêmico da escravidão na formação do Brasil. Outros significados de liberdade em meio ao mundo escravista e fronteiriço da região do Prata foram trabalhados por Hevelly Acruche, no contexto marcado pelas lutas de independência nos primeiros anos do século XIX. Partindo da política do Estado brasileiro, que, em consonância com os interesses da elite cafeicultura, retomou o tráfico transatlântico na ilegalidade após 1831, Walter Luiz Pereira e Thiago Campos Pessoa examinaram sujeitos e lugares do tráfico transatlântico no Sudeste do Brasil, que durante muito tempo foram silenciados pela historiografia. Por meio do exame de uma Ação de Liberdade movida por uma negra livre, vítima da prática ilícita de reduzir pessoas à escravidão, Virgínia Barreto demonstrou como a força da escravidão se fazia sentir, mesmo na vida de homens e mulheres negros que haviam nascido sob o signo da liberdade.

No sexto artigo, Alex Andrade Costa evidenciou, uma vez mais, como a escolha pela escravidão e a reabertura do tráfico transatlântico na ilegalidade (após 1831) envolveu uma série de autoridades públicas brasileiras. Numa proposta macroanalítica que parte da categoria de economia-mundo, Rafael Marquese apresenta como a escolha pela escravidão pode ser observada por meio de um novo regime visual da escravidão negra nas Américas, tomando os casos do Brasil cafeeiro e da Cuba açucareira como objetos de análise. No oitavo artigo, André Boucinhas utiliza corpus documental variado para examinar quais eram as condições de vida dos trabalhadores livres e escravizados da Corte imperial do Brasil na década de 1870. A criação em 1872 do Club Igualdad é o fio condutor por meio do qual Fernanda Oliveira avaliou a intrínseca relação entre a libertação de escravizados e a formação do Estado Republicano do Uruguai. No décimo artigo do dossiê, Juliano Sobrinho problematizou a participação do clero católico e presbiteriano na luta abolicionista nos últimos anos de vigência da escravidão brasileira.

As interfaces do abolicionismo transbordam as fronteiras nacionais no décimo primeiro artigo, no qual Luciana Brito examina a experiência de André Rebouças nos Estados Unidos marcado pelas políticas de segregação racial conhecidas como Jim Crow. No artigo seguinte, a trajetória de um consagrado (porém nem sempre lembrado) homem negro brasileiro – abolicionista, republicano e socialista – é o fio condutor que permite a Ana Flávia Magalhães Pinto revisitar as políticas de memória das pessoas livres do Brasil que viveram os últimos anos da escravidão e os primeiros tempos do Pós-Abolição. Por meio do exame interseccional do universo dos serviços domésticos, os sentidos de liberdade voltam a ser questionados no artigo de Natália Peçanha, que esmiúça os processos de criminalização das servidoras domésticas do Rio de Janeiro entre finais do século XIX e início do século XX. Tão importante quanto pensar e analisar sentidos e significados da escravidão e liberdade é examinar a produção da historiografia sobre tais questões. É exatamente esse o objetivo do décimo quarto artigo do dossiê, no qual Fabiane Popinigis e Paulo Terra examinam como a historiografia da História do Trabalho – mais especificamente o GT Mundos do Trabalho, associado à Associação Nacional de História (Anpuh) – tem dialogado com os estudos sobre escravidão e Pós-Abolição. Por fim, o último artigo da revista, escrito por Moiséis Pereira Silva, permite pensar na longa duração do legado escravista no Brasil, na medida em que se utiliza das denúncias de trabalho escravo na região no Amazonas em plena década de 1970 para conceituar o trabalho escravo contemporâneo.

As abordagens teórico-metodológicas, os usos de fontes e os jogos de escalas presentes nos quinze artigos que compõem este número da Revista Estudos Históricos demonstram que, nas Américas, a multifacetada experiência de escravidão foi aspecto estruturante do continente, ao mesmo tempo em que as lutas pela liberdade revelam os avessos desses mesmos lugares. Fica o convite para a leitura.

Referências

Biblioteca Nacional. Hemeroteca Digital. Revista Illustrada, ano 13, n. 499, p. 2, 1888.

Biblioteca Nacional. Hemeroteca Digital. A Voz da Raça, ano 1, n. 1, p. 1, 1933.

Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br

João Marcelo Ehlert Maia – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: joao.maia@fgv.br

Ynaê Lopes dos Santos – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: ynae.santos@fgv.br

Os editores


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MAIA, João Marcelo Ehlert; SANTOS, Ynaê Lopes dos. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.32, n.66, jan. / abr.2019. Acessar publicação original [DR]

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Associativismo e movimentos sociais / Estudos Históricos / 2018

Nesta edição de número 65, a revista Estudos Históricos traz aos leitores artigos relacionados a um tema caro à tradição interdisciplinar, que é marca constitutiva do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC): associativismo. No campo das Ciências Sociais, tal conceito pode ser rastreado até os trabalhos clássicos de Alexis de Tocqueville sobre as virtudes (e os perigos) da democracia norte-americana, passando por obras seminais da sociologia política mais recente, como “Comunidade e Democracia”, de Robert Putnam. Entre os historiadores, as formas encontradas por homens e mulheres para produzir vida em comum também foi tema crucial de pesquisa, em especial nas vertentes analíticas inspiradas pela obra seminal de E.P. Thompson sobre a formação da classe trabalhadora na Inglaterra. A fertilização mútua entre História e Ciências Sociais tornou quase impossível delimitar com precisão onde começam e terminam suas respectivas jurisdições sobre as artes da associação humana. Thompson, por exemplo, foi fonte recorrente para sociólogos interessados em transformar o “fazer-se” específico estudado pelo autor em instrumento para decifrar processos mais amplos de formação de classes nas sociedades capitalistas. E o conceito de “capital social”, por sua vez, percorreu itinerários complexos nos trabalhos de historiadores interessados em desvendar redes e laços entre grupos, comunidades, irmandades e clãs.

Esses debates e cruzamentos teóricos estão bem representados no dossiê que o leitor tem em mãos. Há artigos que retomam o clássico tema do associativismo dos grupos subalternos, em especial dos trabalhadores, como no caso dos textos de Samuel de Oliveira sobre trabalhadores favelados no Rio e em Belo Horizonte, durante a República de 1946, e de Mário Brum sobre a Pastoral de Favelas e sua conexão com a Teologia da Libertação. Elis Angelo e Maria Izilda de Matos, por sua vez, revisitam as relações entre imigração e formas associativas por meio de estudo sobre a Casa dos Açores de São Paulo. As variáveis étnico-raciais que estruturaram as formas de ação coletiva no Brasil são abordadas no texto de Petrônio Domingues, centrado na história da Frente Negra no Rio de Janeiro, evidenciando novas frentes de investigação sobre a articulação entre raça, classe, cidadania e associativismo.

A cidade, como não poderia deixar de ser, figura com destaque em vários artigos, por se constituir no espaço por excelência para a invenção de novas formas de vida em comum de homens e mulheres. Pode-se aprender sobre esse associativismo urbano no texto de Lia Rocha sobre a história recente da criminalização do associativismo nas favelas cariocas, no artigo de José Bortolucci sobre as redes entre arquitetos e movimentos populares em São Paulo no processo de redemocratização e no trabalho de Jonatha Santos e Wilson de Oliveira sobre o Coletivo Debaixo e suas práticas comunicativas na esteira dos movimentos de 2013 em Aracaju. Finalmente, se o nexo entre democracia e associativismo parece ser tomado como pressuposto em muitos debates, o artigo de Reginaldo Sousa nos permite repensar tal relação ao investigar o associativismo feminino em apoio à ditadura civil-militar no Paraná.

Acreditamos que o conjunto de textos disponível nesta edição irá interessar não apenas aos estudiosos do associativismo, mas a toda a comunidade de historiadores e de cientistas sociais que veem na construção de formas de vida em comum não apenas um tema de pesquisa disciplinar, mas também um credo fundamental para o revigoramento de nossa combalida democracia.

Referências

PUTNAM, Robert D. Comunidade e Democracia – a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: FGV, 2008.

THOMPSON, Edward. P. A Formação da Classe Operária Inglesa: A árvore da liberdade. vol. I, 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br

João Marcelo Ehlert Maia – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: joao.maia@fgv.br

Ynaê Lopes dos Santos – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: ynae.santos@fgv.br

Os editores


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MAIA, João Marcelo Ehlert; SANTOS, Ynaê Lopes dos. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.31, n.65, set. / dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

Corporativismo e neocorporativismo / Estudos Históricos / 2018

Surgido em meio à ampliação da participação dos setores sociais subalternos na política e à consolidação do capitalismo industrial, o corporativismo foi apresentado por seus defensores como uma modalidade de representação de interesses e de organização societal e estatal alternativa tanto à democracia liberal quanto ao socialismo. Propondo-se garantir estabilidade social pela conciliação de classes, o corporativismo irradiou-se da Europa para o restante do mundo (e a América Latina foi-lhe um terreno fértil) nas primeiras décadas do século passado. Tema prestigiado pela historiografia e pela ciência política, tem conhecido, no último decênio, um interesse renovado, que tem gerado livros, artigos e eventos acadêmicos no Brasil e no exterior. Um dos traços marcantes da nova produção sobre o corporativismo é o debate sobre sua relação com regimes autoritários e democráticos. Arriscaríamos a afirmar que a posição dominante, atualmente, entre os estudiosos é de recusa de uma associação necessária entre corporativismo e autoritarismo. Entre os argumentos mobilizados pelos acadêmicos que comungam de tal posição está o exemplo escandinavo, que adotou formas corporativas para implementar, em um ambiente político democrático, Estados de bem-estar social.

O presente número de Estudos Históricos dispõe-se, assim, a contribuir para aprofundar a reflexão em torno das experiências do corporativismo histórico (anterior à Segunda Guerra) e do neocorporativismo (posterior à Segunda Guerra) no Brasil e na Europa. No primeiro artigo da edição, Miguel Ángel Martínez investiga a introdução, por meio da Assembleia Nacional Consultiva, da representação política de inspiração corporativa na Espanha da década de 1920, durante a ditadura de Primo de Rivera. O segundo artigo, de autoria de Valerio Torreggiani, estuda a presença da modalidade corporativa de representação de interesses no repertório político britânico da primeira metade do século XX. Em seguida, Paula Borges dos Santos ilumina o debate em torno de soluções corporativas, nos âmbitos econômico e social, durante a elaboração da Constituição portuguesa de 1933. Álvaro Garrido também trata do corporativismo português, examinando o (frágil) aparato de seguridade social instaurado pela ditadura salazarista. Por sua vez, Irene Stolzi acompanha o corporativismo no ordenamento jurídico italiano, tanto no contexto fascista quanto no democrático dos anos 1980 e 1990.

Na seção Ensaio bibliográfico, Cláudia Viscardi recenseia a produção contemporânea sobre corporativismo, em diálogo com a literatura clássica sobre o tema. Na seção Colaboração especial, Péter Zachar explora a elaboração de um projeto, informado parcialmente pelo ideário corporativo, de reforma social, econômica e política na Hungria do entreguerras. E Miguel Ángel Perfecto traça uma genealogia das propostas corporativas na Espanha, ao mesmo tempo que investiga sua implementação no país a partir da década de 1920.

O número encerra-se com uma entrevista concedida a Estudos Históricos por Renato Boschi, um dos mais importantes estudiosos do corporativismo no Brasil.

Referências

SCHMITTER, Philippe. Still the century of corporatism?. The Review of Politics, v. 36, n. 1, 1974.

Angela Moreira Domingues da Silva – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: angelamoreirads@gmail.com

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: marco.vannucchi@fgv.br

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: paulo.fontes@fgv.br

Os editores.


SILVA, Angela Moreira Domingues da; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.31, n.64, maio / ago.2018. Acessar publicação original [DR]

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História, democracia e instituições / Estudos Históricos / 2018

As atuais discussões a respeito do funcionamento das instituições nacionais e da qualidade da democracia brasileira motivaram a definição do presente tema da Revista Estudos Históricos, que se dedica a reflexões sobre História, democracia e instituições. A abrangência e importância do tema fez com que recebêssemos artigos refletindo sobre os mais variados temas, a partir de perspectivas bem distintas. Assim, neste número, contamos com textos sobre feminismo e participação das mulheres nas instituições, sobre distintas concepções de democracia na primeira metade do século XX, a partir do ponto de vista de juristas, sobre o processo de redemocratização brasileira na década de 1980 e as disputas em torno da noção de democracia, além de texto sobre o funcionamento do sistema de Justiça criminal brasileiro. Dessa forma, publicamos artigos que cobrem diferentes épocas da histórica republicana brasileira.

O artigo que abre este número da Revista trata de uma Uma história social do feminismo: diálogos de um campo político brasileiro (1917-1937), no qual Glaucia Cristina Candian Fraccaro contribui para reflexões sobre o feminismo – campo de disputas internacionais –, a partir da ótica do mundo do trabalho. Ao longo do artigo, Fraccaro enfatiza a luta das mulheres trabalhadoras por direitos e sua pouca representatividade nas instituições governamentais. O segundo artigo, A democracia em debate: juristas baianos e a resistência ao regime varguista (1930-1945), de Diego Rafael Ambrosini, busca analisar diferentes noções em circulação a respeito da ideia de democracia nas décadas de 1930 e 1940, especialmente a partir da perspectiva da produção intelectual de juristas que atuavam no Instituto dos Advogados da Bahia.

O texto que segue, de Daniel Barbosa Andrade de Faria, analisa o incidente acontecido logo após a manifestação contra o Plano Cruzado II, conhecido como “badernaço”, refletindo sobre as disputas em torno da noção de democracia, fundamentado na documentação do acervo da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Pesquisando sobre a mesma época, Fernando Roque Fernandes analisa o debate parlamentar em torno da Constituição de 1988, no que concerne à pauta da cidadania indígena, quando democracia, cidadania e direitos humanos estavam na agenda de discussões para pensar a “nova democracia” brasileira. Por fim, o artigo de Flávia Cristina Soares e Ludmila Ribeiro que oferece um balanço bibliográfico sobre o funcionamento do sistema criminal brasileiro, registrando o descompasso entre os ideais da democracia e o pragmatismo do funcionamento das instituições de Justiça.

Fechando o dossiê, o número apresenta a entrevista realizada com o cientista político João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), sobre a história e a atuação política das Forças Armadas brasileiras. Além de narrar sua trajetória acadêmica, com início na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Martins Filho registra o percurso de suas pesquisas sobre a instituição militar, tendo início na atuação política do Exército durante o período ditatorial brasileiro.

Este número é dedicado a Dulce Pandolfi, Luciana Heymann, Monica Kornis e Verena Alberti, acadêmicas fundamentais na história do CPDOC e da Revista Estudos Históricos.

Angela Moreira Domingues da Silva – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos.

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos.

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos.

Os editores.


SILVA, Angela Moreira Domingues da; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.31, n.63, jan. / abr. 2018. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura / Estudos Históricos / 2017

História e Literatura Afinidades eletivas? A literatura nos pródromos da História

A escolha de um dossiê para a revista Estudos Históricos costuma levar em consideração ao menos três aspectos: o ineditismo de determinado tema, sua relevância na historiografia contemporânea e a aderência às linhas de pesquisa do CPDOC. A introdução de um assunto inédito pode causar certa surpresa aos próprios editores, sobretudo quando se deparam com esta ou aquela lacuna temática em um periódico que já conta com quase 30 anos de existência. Ausências em áreas centrais de atuação da “casa” tendem a chamar mais atenção, como ocorreu com “Patrimônio” (n. 57, 2016), dossiê que tardou a ser contemplado num conjunto de mais de 60 números publicados.

Algo semelhante parece ter-se passado com “História e Literatura”. Escritores e suas obras, movimentos literários e suas revistas, redes de sociabilidade e sua circulação de ideias estiveram presentes na agenda da instituição desde antes da criação da revista, em 1988. Em parte, o interesse pela literatura derivou do próprio material que compõe o acervo original do CPDOC. Arquivos inicialmente voltados para as elites e para a história política traziam consigo a visão de bacharéis, jornalistas, ensaístas e polígrafos, entre os quais se encontravam, não raro, romancistas, poetas e toda sorte de homens de letras.

Fontes primárias do arquivo privado de Gustavo Capanema, por exemplo, são pródigas em informações sobre a atuação pública de Carlos Drummond de Andrade na chefia de gabinete do Ministério da Educação e Saúde (MES) entre 1934 e 1945. Com base neste e em outros arquivos, mobilizaram-se diversos investimentos de pesquisa, que resultaram em livros como Guardiães da razão: modernistas mineiros, de Helena Bomeny, Essa gente do Rio: modernismo e nacionalismo e História e historiadores: a política cultural do Estado Novo, os dois últimos de autoria de Ângela de Castro Gomes.

Enquanto Helena Bomeny se deteve nas especificidades e nas raízes da geração mineira que tomou parte no modernismo dos anos 1920 e 1930, Ângela de Castro Gomes, professora emérita do CPDOC, dedicou-se em História e historiadores à análise dos escritos de Graciliano Ramos para o periódico estadonovista Cultura e Política. Já em Essa gente do Rio, a autora estudou revistas, prosadores e poetas do movimento simbolista no Rio de Janeiro, grupo literário ligado tanto à linhagem espiritualista mais conservadora da intelectualidade católica radicada na capital da República quanto ao efervescente projeto estético modernista, em contraponto aos próceres mais conhecidos do modernismo de São Paulo.

Para ficar apenas com esses exemplos, trata-se de documentos e de produções relevantes, porquanto contribuíram para iluminar questões centrais da vida republicana brasileira. Durante mais de quatro décadas, pesquisadores do CPDOC envidaram esforços coletivos para analisar a dinâmica do pensamento social no Brasil da primeira metade do século XX, dentro da qual se inscrevia uma galeria de literatos envolvidos com a vida intelectual e com a esfera pública do país.

Apesar disso, um olhar retrospectivo pelas edições anteriores da revista não identifica um dossiê consagrado à literatura. Chega-se, quando muito, a lograr aproximações, mediante interesses afins ou mais amplos, como foram os números dedicados a “Viagem e narrativa” (n. 7, 1991), a “Intelectuais” (n. 32, 2003) ou a “Arte e História” (n. 30, 2003). Neste último, entretanto, a literatura sequer comparece, com textos em sua maioria voltados para a arquitetura, a pintura e a música, entre outras expressões, linguagens e manifestações artísticas.

Uma visada mais benevolente seria, no entanto, capaz de reconhecer que, embora lhe falte uma edição exclusiva, o interesse literário reponta aqui e ali no corpo da revista, disperso ao longo de suas dezenas de números e de suas centenas de artigos. Sem a preocupação de um levantamento exaustivo, é possível compulsar pouco mais de 20 artigos acerca do tópico. Machado de Assis, Oliveira Lima, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, Paulo Prado e Murilo Mendes, entre outros, pontificaram na revista no decorrer de 60 números.

Temas “clássicos” da vida literária foram abordados, tais como o modernismo, a identidade nacional e a sociabilidade urbana. Assuntos menos centrais também se fizeram presentes e deram a conhecer a literatura regional no Rio Grande do Sul, o movimento modernista na Amazônia, o novo romance histórico no Brasil, o gênero autobiográfico e memorialístico, a questão do sujeito na narrativa, a correspondência epistolar, os concursos literários, os projetos enciclopédicos, a presença de literatos na diplomacia, o neorrealismo em Portugal e a sociologia da literatura.

Mas o ineditismo no histórico da revista e a aderência às áreas de concentração da instituição que a publica não bastam para justificar a decisão em favor de um dossiê. A relevância da questão na contemporaneidade é fundamental para sua escolha como tema. Neste sentido, é sabido que as gerações de historiadores formadas no último quartel do século XX e nos primeiros anos do século XXI vêm enfrentando o problema epistêmico da escrita da história. Esta questão vem de par com a polêmica em torno das fronteiras da narrativa historiográfica em face da literatura e, mais precisamente, da ficção.

Desde a chamada “virada linguística” nos idos de 1970, como se sabe, revolve-se a antiga querela que opõe o mito à ciência e avança-se nos questionamentos filosóficos de um Michel Foucault ou de um Paul Ricoeur acerca das maneiras de narrar dos historiadores profissionais. Em paralelo, a teoria literária estadunidense, com Hayden White e Dominick LaCapra à frente, aprofundou ainda mais a crítica aos fundamentos epistemológicos da narração na história e postulou o protagonismo da linguagem figurada e da imaginação no processo de reconstituição do passado histórico. Em razão disto, assestaram-se as baterias contra estatutos canônicos da ciência e buscou-se desconstruir a técnica tradicional de composição de textos científicos.

De sua parte, longe de apenas rebater ou esquivar-se defensivamente das críticas, a História procurou nos últimos decênios ser também propositiva e ampliar seus domínios. Para tanto, em meio à decantação da interdisciplinaridade e à própria renovação da historiografia em países centrais como Estados Unidos, França, Inglaterra e mesmo Itália, os historiadores penetraram na seara antes exclusiva dos Departamentos de Letras.

Com efeito, munidos de pressupostos teóricos da Sociologia para fustigar a redoma estetizante das belas-letras – evoquem-se tão-somente o Flaubert de Pierre Bourdieu e o Kafka de Pascale Casanova –, os historiadores apropriaram-se a seu modo da literatura como objeto de estudo. Desde então, interpelam as formas materiais e simbólicas de fruição do livro, examinam as práticas e representações da leitura, preconizam o polo da recepção na compreensão mais plena do sistema literário, emulam o desenvolvimento de subáreas como a história literária, a história social e a história cultural.

A falta de consenso gera ruídos de comunicação de ambas as partes. Grosso modo, para a crítica literária de extração acadêmica, o imbróglio diz respeito à utilização documental, por assim dizer, que o historiador pode fazer da ficção. O fato de um romance, um poema ou um conto ser considerado fonte, documento ou testemunho para escrutínio da História tende a ser visto como reducionista por críticos e teóricos do métier.

A comunidade de historiadores, por sua vez, rechaça de maneira taxativa a redução das suas atividades à produção de enredos mais ou menos arbitrários, mais ou menos fictícios. Embora o britânico R. G. Collingwood entrevisse, no livro A ideia de história, de princípios do século XX, as afinidades eletivas entre o romancista e o historiador, para os profissionais da História as categorias temporais não são artefatos ou construtos mentais a serviço da verossimilhança ou da trama romanesca. Cumpre, segundo eles, refutar o argumento de que o tempo constitui uma variável neutra na narrativa, mero adorno ou pano de fundo a emoldurar a ação dramática, destituído de dinamicidade e de significado social mais amplo.

A recusa à condição fática de registro do real, por meio do material ficcional, leva, pois, a infindáveis controvérsias acerca dos condicionantes do imaginário de um escritor, que se acredita idealmente autônomo, coerente e indiviso. Tais discordâncias acionam tensões, quase sempre regidas sob a égide de uma razão dualista. Esta tanto une quanto separa vida e obra, texto e contexto, reflexo e autonomia, imanência e transcendência, matéria e espírito, real e imaginário, documento e monumento, numa palavra lukácsiana: forma literária e processo social.

Uma exceção nessa cena é Antonio Candido, cujo método dialético, amadurecido entre os anos 1950 e 1970, procurou superar o binarismo estruturalista e, com ele, a suposição apriorística de um “dentro” versus um “fora” do texto. Ao propor um terceiro eixo sintético, Candido tinha como premissa a necessidade de um esquema analítico ternário, pois tencionava dar conta do sistema literário triangular: autor – obra – público. Nesta esteira, perseguiu, nos ensaios antológicos que se sucederam a Formação da literatura brasileira, uma síntese capaz de fundir os pares antitéticos invocados por “internalistas”, de um lado, e “externalistas”, de outro.

A despeito das tentativas conciliatórias, o peso dos referentes internos versus externos compele historiadores e teóricos literários a debater não apenas os contornos como também os nervos da criação de uma obra de arte. A fatura literária continua a ser apreciada ora em função da intencionalidade do autor e da lógica interna que conforma a mimesis, ora em virtude dos nexos sociológicos que demandam a realidade, o cotidiano, a memória, o verossímil, a experiência vivida, narrada e transfigurada.

O presente dossiê almeja ser uma ocasião para a atualização de um debate cujas implicações teóricas e conceituais permanecem a desafiar a historiografia e a epistemologia nos de dias de hoje. A impossibilidade de esgotá-lo ou de superá-lo em suas discussões mais controversas não impede de reconhecer os rendimentos analíticos, bem como os avanços das várias frentes de pesquisa nesse âmbito.

Se as Ciências Humanas e Sociais lidam com o assunto desde a segunda metade do século XX, informadas por vertentes críticas que vão do marxismo ao estruturalismo, do funcionalismo ao culturalismo, da fenomenologia à semiótica, da filologia ao existencialismo, da estética da recepção ao círculo hermenêutico, dos cultural studies aos estudos pós-coloniais, a historiografia nacional principiou a se debruçar sobre a temática somente a partir dos anos 1980.

A proposição de um ponto de partida é sempre um risco, com eventuais omissões ou injustiças, mas seria o caso de arriscar aqui apontando a publicação de Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (1983). A tese de doutoramento de Nicolau Sevcenko, defendida em 1981 na USP, configura uma espécie de momento fundante de uma perspectiva intelectual-cultural calcada na literatura.

De início o impacto do livro foi diminuto no interior da comunidade científica, mas a repercussão mostrou-se significativa fora da universidade, junto ao público leitor não acadêmico e aos meios editoriais. Estava-se diante de uma primorosa reconstituição da trajetória intempestiva de dois literatos-missionários, Euclides da Cunha e Lima Barreto, a contrastar, cada um a seu modo, o teor de suas “ideias em movimento” com os ideais reacionários dos conservadores de seu tempo.

De forma mais orgânica e institucionalizada, o estudo acadêmico da literatura se consolidou no cenário universitário durante os anos 1990 e 2000. No âmbito da pós-graduação em História, merece destaque a atuação de um grupo de pesquisadores reunidos na Unicamp. A convergência entre as linhas de pesquisa da História Social do Trabalho e da História Social da Cultura permitiu que investigadores de ponta da área renovassem interpretações consagradas. Estas evidenciaram uma capacidade de formular questões e fontes próprias do ofício do historiador, para lançar luzes menos reverentes sobre ícones da literatura, a exemplo de Machado de Assis ou de Coelho Neto.

Dissertações e teses defendidas na Unicamp, muitas delas publicadas em livro, vêm contribuindo para um conhecimento sólido, produzido coletivamente nesse centro universitário. Seus egressos têm dado continuidade ao debate, mediante, por exemplo, a organização de sucessivos Simpósios Temáticos nos encontros da ANPUH, “Literatura, História e Sociedade”, estimulando a formação de jovens discentes em nível de mestrado e doutorado e ensejando a sua renovação geracional.

Longe de ser um polo único e exclusivo, via de regra adstrito ao eixo Rio – São Paulo, outros programas pós-graduação em História têm-se notabilizado por linhas de pesquisa com esse foco. Bastaria lembrar universidades federais e estaduais de cidades como Belém, Florianópolis, Goiânia, Ouro Preto, Porto Alegre, Recife, Salvador, Teresina e Uberlândia, entre outras, para aferir uma realidade que é hoje plural e multifacetada.

O presente dossiê pretende ser também uma amostra de tal diversidade. Enfeixa-se a seguir um total de dez textos, publicados após um notável número de submissões recebidas e avaliadas por quase duas centenas de pareceristas. A marca interdisciplinar, cultivada pela revista, faz-se igualmente perceptível neste número, com a abertura para abordagens que não se restringem a esta ou aquela escola de pensamento, a esta ou aquela filiação departamental, a este ou aquele recorte histórico.

Num arco temporal que vai do século XVI à contemporaneidade, e num horizonte espacial que não se limita à fronteira nacional, a díade história-literatura encontra aqui um apanhado do estado da arte do universo literário, tal como vem sendo estudado em determinados programas de pós-graduação do país. Fornecem-se elementos para entender como os estudiosos das gerações atuais têm respondido, por meio de estudos de caso e de trabalhos empíricos – valendo-se de obras, cartas, arquivos, manuscritos, jornais, biografias, memórias, escritas de si, correntes estéticas, traduções, edições e reedições –, ao conjunto de questões sumariamente esboçadas acima.

Além dos textos submetidos e aprovados na seção “Artigos”, este dossiê dá espaço para a série “Colaboração Especial”, com o artigo assinado pelo professor Roger Chartier, do Collège de France. Trata-se de versão apresentada pelo historiador francês em palestra proferida no CPDOC em 2013, quando da comemoração dos 40 anos da instituição, na abertura da quarta edição do Ateliê do Pensamento Social, evento promovido pelo Laboratório de Pensamento Social (LAPES).

Na ocasião, conforme consta do texto aqui publicado ineditamente em língua inglesa, Chartier revisitou o cerne de suas inquietações intelectuais ao perquirir as formas de comunicação facultadas pelas correspondências epistolares no alvorecer da Idade Moderna europeia e ao indagar a tensão das formas literárias com a cadeia comunicacional emissor / mediador / receptor, na esteira do advento da tipografia e da imprensa, nos séculos XV e XVI. Chartier analisa ainda a irrupção da figura autônoma do Autor na chamada República das Letras francesa, entre os séculos XVII e XIX. Considera, para tanto, seus corolários imediatos, quais sejam, a consagração da ideia de indivíduo e a conversão da noção de autoridade em autoria intelectual personalizada na Era Moderna.

Por último, mas não menos importante, a seção “Entrevista” traz o depoimento transcrito e editado de Heloísa Starling, professora titular do Departamento de História da UFMG, concedido a mim e ao professor Marcelino Rodrigues da Silva (Dep. Letras / UFMG) em fevereiro de 2017, na cidade de Belo Horizonte. Em seu percurso acadêmico, sempre sensível à sonoridade e à poética das criações artísticas, as reflexões da entrevistada vêm ao encontro do presente volume, ao rememorar a experiência de realização de sua tese de doutorado, que versa sobre a obra magna de João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br

Editor convidado.


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.30, n.62, set. / dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

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Revoluções e Revoltas / Estudos Históricos / 2017

As celebrações do centenário da Revolução Russa inspiram Estudos Históricos a lançar este número intitulado Revoluções e revoltas. O assalto ao céu, as esperanças utópicas, as desilusões revolucionárias, bem como as múltiplas reações globais à tomada do poder pelos bolcheviques marcaram fundamentalmente a história do século XX e redefiniram o próprio conceito de revolução e o significado das revoltas sociais. O número inspira-se na Revolução Russa, mas não se resume a ela ou à sua influência. As análises percorrem um longo caminho de estudos sobre rebeliões, revoltas e processos revolucionários em diferentes períodos e lugares, fornecendo um rico e diversificado mosaico de pesquisas sobre essas temáticas.

O número inicia-se com o artigo “Modelos de rebelião rural e as revoltas rurais do Império Romano Tardio”, no qual Uiran Gebara da Silva testa a validade de modelos explicativos elaborados pelas Ciências Sociais para a compreensão de revoltas ocorridas na Gália e na África romanas. No segundo artigo, “As letras de uma Revolução: a implantação da República em Portugal a 5 de outubro de 1910”, Ana Paula Pires estuda o processo que levou à derrubada da monarquia e sua substituição pelo regime republicano naquele país. Em seguida, Denise Rollemberg, em “Revoluções de direita na Europa do entre-guerras: o fascismo e o nazismo”, debruça-se sobre a Alemanha nazista e a Itália fascista para refletir sobre a aplicabilidade do conceito “revolução” para regimes e movimentos liderados pelas direitas.

Os dois artigos subsequentes concentram-se na história do Brasil. José Manuel Flores, em “Sob o credo vermelho: índios, comunistas e revolta no sul de Mato Grosso em meados do século XX”, articula a insurgência dos índios Kaiowá contra a autoridade do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e a atuação do Partido Comunista do Brasil (PCB). E Rodrigo Nabuco Araujo, em “A voz da Argélia. A propaganda revolucionária da Frente de Libertação Nacional argelina no Brasil. Independência nacional e revolução socialista (1954-1962)”, examina a recepção da guerra de independência argelina pela intelectualidade brasileira de esquerda nos anos 1950 e 1960.

Já Berthold Unfried e Claudia Martínez, em “El internacionalismo, la solidaridad y el interés mutuo. Encuentros entre cubanos, africanos y alemanes de la RDA”, desenvolvem um estudo comparativo entre as ações de solidariedade de Cuba e da Alemanha Oriental em relação aos movimentos e regimes socialistas e nacionalistas em países recém-independentes na África. Em “A new revolutionary practice: operaisti and the ‘refusal of work’ in 1970s Italy”, Nicola Pizzolato analisa a práxis e a elaboração teórica dos grupos “obreiristas” no contexto de radicalização política da Itália dos anos 1970. Em particular, é analisado o conceito de “recusa do trabalho” e seu impacto nas intensas lutas e mobilizações operárias do período.

Na seção Ensaio bibliográfico, Francisco Palomanes Martinho recenseia a literatura recente sobre a transição portuguesa para a democracia, privilegiando os temas do papel do marcelismo e do caráter da revolução que derrubou o salazarismo em 1974.

Finalmente, a seção Colaborações especiais conta com os artigos “Karl Marx e a Revolução Russa” e “Um ano extraordinário: greves, revoltas e circulação de ideias no Brasil em 1917”. No primeiro, Angelo Segrillo acompanha a reflexão de Marx acerca das possibilidades de eclosão de uma revolução comunista na Rússia. No segundo, Edilene Toledo trata dos movimentos contestatórios que tiveram lugar em várias partes do país no ano de 1917 e destaca a repercussão da Revolução Russa sobre as organizações de trabalhadores.

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Os editores.


MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.30, n.61, maio / ago. 2017. Acessar publicação original [DR]

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Mundos do Trabalho / Estudos Históricos / 2016

Chega a ser surpreendente que Estudos Históricos não tenha tido, até este momento, um número específico dedicado aos mundos do trabalho. Temática cara à tradição acadêmica do CPDOC / FGV, os estudos sobre o trabalho e os(as) trabalhadores(as) foram centrais para algumas das obras e pesquisas mais importantes da instituição. Por outro lado, no entanto, esta edição chega em um momento particularmente rico para os estudos dos mundos do trabalho no Brasil em uma perspectiva histórica e interdisciplinar. O campo da história social do trabalho no Brasil vive, já há alguns anos, um período de criatividade, renovação e diversificação. Gerações recentes de historiadores, historiadoras e cientistas sociais em geral têm expandido o escopo da área, incluindo novas e pouco exploradas temáticas, como gênero, etnicidade, trabalho informal, bem como as conexões entre trabalho escravo, forçado e o chamado “trabalho livre”. Mesmo temas considerados clássicos, como sindicalismo, conflitos sociais, participação política dos trabalhadores e a relação entre os mundos do trabalho e o Estado e empresários têm sido abordados de formas inovadoras e inventivas, ampliando em muito o entendimento sobre o papel dos setores subalternos nos processos de desenvolvimento econômico e social e na construção da cidadania e da democracia na história do país.

Além disso, a produção historiográfica nesta área teve uma evidente ampliação geográfica, ultrapassando em muito as análises antes bastante confinadas ao eixo Rio-São Paulo. A multiplicação de estudos sobre outras regiões, sobre o mundo urbano e rural e sobre os mundos do trabalho em pequenas, médias e grandes cidades permite hoje uma visão muito mais complexa, sofisticada e “nacional” dos processos de formação de classe e das relações sociais brasileiras. Por outro lado, a produção no campo tem se internacionalizado crescentemente. Ao lado de suas congêneres indiana e sul-africana, a historiografia do trabalho brasileira tem sido amplamente reconhecida como um dos polos de renovação e dinamismo da chamada “História Global do Trabalho”.

Este número de Estudos Históricos dialoga diretamente com esse momento de vitalidade da história social do trabalho no Brasil. De um lado, apresenta vários estudos de grande qualidade sobre os mundos do trabalho no país em diferentes períodos, regiões e situações. De outro, também aponta os limites e desafios colocados para este campo de estudos. É o caso dos dois artigos que abrem a revista. Alexandre Fortes, em O processo histórico de formação da classe trabalhadora: algumas considerações, revisita a obra de E. P. Thompson procurando demonstrar como ela, a partir dos desafios atuais e confrontada com outros autores mais contemporâneos, ainda pode inspirar uma necessária atualização conceitual sobre o processo de formação de classe no Brasil. Já Álvaro Pereira Nascimento, em seu provocativo artigo Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à história social do trabalho no Brasil, faz um balanço da (in)visibilidade dos sujeitos negros na produção historiográfica dos mundos do trabalho. O autor aponta os vários problemas trazidos pela ausência desses sujeitos históricos nos estudos da história social do trabalho e sugere alguns caminhos metodológicos para superá-los.

Exemplo da ampliação que vem ocorrendo com o conceito de trabalho e trabalhadores(as), o artigo de André Rosemberg, A pena como arma: trabalho, intimidade e rotina nas cartas dos policiais paulistas (1870-1915), surpreende ao abordar os policiais como trabalhadores, utilizando uma fonte pessoal e íntima como a correspondência trocada por esses personagens. Já Fabiane Popinigis, em “Todas as liberdades são irmãs”: os caixeiros e as lutas dos trabalhadores por direitos entre o Império e a República, retoma temas clássicos como o da “transição” do trabalho escravo para o trabalho livre e a construção da cidadania, a partir das experiências dos empregados do comércio carioca.

A regulação do trabalho feminino em um sistema político masculino, Brasil: 1932-1943, de Teresa Cristina Novaes Marques, inova ao abordar o polêmico processo de regulação do trabalho dos anos 1930 e 40 a partir de uma perspectiva de gênero, procurando compreender como a questão do trabalho feminino foi abordada por diferentes atores e movimentos políticos e sociais. Uma outra abordagem inédita sobre os mundos do trabalho durante a Era Vargas é feita por Adriano Duarte em Pedro Maneta e o concurso literário promovido pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1942. Nesse artigo, ao analisar o romance Pedro Maneta, premiado em concurso promovido pelo Ministério do Trabalho, o autor reflete sobre as intricadas relações entre história, literatura e sociedade. Assim, a partir de novas perspectivas, rediscute a centralidade adquirida pelos mundos do trabalho durante o Estado Novo.

Tanto o papel das biografias e trajetórias de ativistas quanto as relações entre o universo do trabalho e da moradia são abordados no texto de Mauro Amoroso e Rafael Soares Gonçalves. O advogado e os “trabalhadores favelados”: Antonie de Magarinos Torres e a prática política nas favelas cariocas dos anos 1950 e 1960 analisa a ação do famoso advogado Magarinos, em particular na favela do Borel, e seu papel de estímulo ao associativismo de seus moradores. Temas clássicos da história do trabalho, como o cotidiano fabril e os processos de dominação nos locais de trabalho são abordados por Cristiana Ferreira a partir das experiências de mulheres e jovens em Códigos de solidariedade na experiência de jovens e mulheres na indústria têxtil de Blumenau (1958-1968).

A mobilização dos trabalhadores rurais na crucial conjuntura do pré-1964 em um estado nordestino é o tema de Pablo Francisco de Andrade Porfírio em O tal de natal: reivindicação por direito trabalhista e assassinatos de camponeses. Pernambuco, 1963. O artigo analisa como, além do uso da violência, articulou-se uma narrativa visual e escrita para classificar, qualificar e construir significados para a ação reivindicatória dos camponeses. Por fim, O lobby dos trabalhadores no Processo Constituinte de 1987-88: um estudo sobre a atuação do DIAP, de Lucas Nascimento Ferraz Costa, mostra as diferentes estratégias e alianças políticas articuladas pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) para defender os interesses dos trabalhadores na Constituinte na segunda metade da década de 1980.

A seção Contribuição Especial apresenta o texto da palestra promovida pelo Laboratório de Estudos dos Mundos do Trabalho e Movimentos Sociais (LEMT) do CPDOC / FGV, proferida pelo historiador alemão Bernhard H. Bayerlein em julho de 2016. O artigo traça um panorama da situação e possibilidades de pesquisa nos arquivos mais importantes para os estudos históricos sobre o comunismo em diversas partes do globo. O arquivo da Internacional Comunista na Rússia e o projeto Comitern Online são analisados em particular. Por fim, o autor aborda o impacto que a abertura de novos acervos teve para a historiografia sobre comunismo, para as políticas de memória e para a história do século XX em geral.

Finalmente, este número traz uma rara entrevista com Michael Hall, um dos decanos da história do trabalho no Brasil. Professor do Departamento de História da Unicamp por mais de 30 anos, Michael Hall foi orientador de diversas gerações de historiadores. Foi um dos fundadores do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), o maior arquivo especializado em história do trabalho na América Latina. Nesta entrevista, concedida a Paulo Fontes e Francisco Macedo, Michael Hall fala sobre sua trajetória profissional e sua produção intelectual, analisa o desenvolvimento da historiografia do trabalho brasileira desde os anos 1960 e opina sobre os desafios contemporâneos desse campo de estudos.

Angela Moreira Domingues da Silva – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Os editores.

SILVA, Angela Moreira Domingues da; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.29, n.59, set. / dez.2016. Acessar publicação original [DR]

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Perspectivas Globais e Transnacionais / Estudos Históricos / 2017


MORELI Alexandre (Org d), Perspectivas Globais – Transnacionais / Estudos Históricos / 2017, Global (d), Transnacional (d), Estudos Históricos (EHd) MORELI, Alexandre. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.30, n.60, jan. / abr. 2017. Acesso apenas pelo link original [DR]

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Direito, História e Ciências Sociais / Estudos Históricos / 2016

Os estudos sobre o campo do Direito consolidaram-se no Brasil nas últimas décadas. Pode-se sugerir que a ampliação do interesse da História e das Ciências Sociais em relação à temática se vincule ao crescente protagonismo do Judiciário na vida pública do país no pós-ditadura militar. O vigor dessa área de estudos evidencia-se na existência de simpósios e grupos de trabalhos especializados organizados no interior das principais entidades de História e Ciências Sociais brasileiras.

A produção acadêmica sobre o Direito, com forte traço interdisciplinar, desdobra-se em análises sobre ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos. Além disso, proporciona reflexões sobre as fontes documentais e as metodologias utilizadas, e estimula o aprofundamento da reflexão teórica sobre o tema.

Assim, este número de Estudos Históricos pretende exprimir, ainda que parcialmente, a diversidade temática e de perspectivas que distinguem a produção atual sobre o campo do Direito.

O primeiro artigo, O procedimento de manutenção de liberdade no Brasil oitocentista, de Mariana Paes, examina as bases jurídicas da posse da liberdade no quadro da sociedade escravista do século XIX. O segundo artigo, A organização da justiça militar no Brasil: Império e República, de Adriana Barreto e Angela Moreira, oferece um panorama da estruturação e atuação deste ramo da Justiça no período imperial e republicano.

Os três artigos seguintes tratam da Primeira República. Em Vadiagem e prisões correcionais em São Paulo, Alessandra Teixeira, Fernando Salla e Maria Gabriela Marinho problematizam o controle e a repressão à vadiagem. Pedro Cantisano, em Direito, propriedade e reformas urbanas, aborda as reformas urbanas realizadas no Rio de Janeiro no início do século XX sob o prisma dos debates jurídicos por elas gerados em torno do direito à propriedade. Já o artigo A atuação do Supremo Tribunal Federal na crise da Política dos Estados na Primeira República, de Leonardo Sato e Priscila Gonçalves, versa sobre o periodismo jurídico, pelo estudo da revista O Direito.

Mariana Silveira, em Direito, ciência do social, articula a participação política dos bacharéis com a produção intelectual que veiculavam em periódicos especializados no primeiro governo Vargas. O artigo posterior, O sentido democrático e corporativo da não-Constituição de 1937, de Luciano Abreu, analisa a questão da legitimidade da carta constitucional em questão. Ainda no âmbito da Era Vargas, Walter Guandalini Jr. e Adriano Codato, em O Código Administrativo do Estado Novo, refletem sobre a estrutura político-administrativa do regime instaurado em 1937.

O último artigo, Constitucionalismo e batalhas políticas na Argentina, de Fabiano Engelmann e Luciana Rodrigues Penna, investiga as relações entre o constitucionalismo e a política naquele país.

O dossiê Direito, História e Ciências Sociais completa-se com o texto Sobre a história constitucional, de Andrei Koerner. Com ele, Estudos Históricos inaugura a seção Ensaio bibliográfico, destinada a publicar balanços da literatura nacional e estrangeira recente relacionada à temática do número.

Encerram a presente edição da revista os três textos lidos na cerimônia de outorga dos títulos de professoras eméritas da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV / CPDOC) a Angela de Castro Gomes e Lucia Lippi Oliveira. Os títulos foram concedidos pela Congregação do CPDOC, e a cerimônia ocorreu no dia 14 de março deste ano. Em Pioneiras e construtoras, Luciana Heymann destaca a contribuição institucional ao CPDOC das professoras homenageadas pela Congregação. Bernardo Buarque, em Socióloga com olhar histórico ou historiadora com perspectiva sociológica?, percorre a produção intelectual de Lucia, enquanto Paulo Fontes, em Sensei Angela de Castro Gomes, assinala aspectos fundamentais da obra de Angela.

Luciana Heymann Quillet – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Os editores


HEYMANN, Luciana Quillet; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.29, n.58, maio / ago. 2016. Acessar publicação original [DR]

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Patrimônios / Estudos Históricos / 2016

É surpreendente que Estudos Históricos não tivesse até hoje um número dedicado ao tema do patrimônio. Ainda que nos números dedicados aos Bens Culturais (38) e à Cultura Material (48) os debates sobre o patrimônio pudessem encontrar abrigo, faltava um número consagrado especificamente a esse campo de estudos marcadamente interdisciplinar, cada vez mais vasto e polifônico.

O texto de José Reginaldo Santos Gonçalves, O mal estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição, publicado como colaboração especial no número 55, problematiza a “obsessão preservacionista” do nosso tempo e aponta para os “diferentes perfis semânticos” que a categoria patrimônio tem assumido em suas apropriações contemporâneas por movimentos sociais e grupos populares; pela indústria cultural e do turismo. Sem que essa articulação tenha sido planejada, a Aula Inaugural proferida por Gonçalves no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do CPDOC / FGV em 2015, que deu origem ao artigo, pode ser lida como a abertura de um debate que, sem nunca se fechar, encontra ressonância nos artigos que compõem o número 57.

Nosso objetivo ao propor os Patrimônios como tema foi, portanto, captar artigos que contemplassem discussões sobre políticas patrimoniais tanto no campo dos bens associados ao patrimônio histórico e artístico como no do chamado – não sem controvérsias – patrimônio imaterial ou intangível, bem como artigos que explorassem situações contemporâneas que articulam e agenciam discursos e práticas do campo patrimonial. Consideramos que os 13 artigos que integram o número correspondem plenamente a essa diretriz, compondo um mosaico de estudos extremamente vigoroso e sugestivo.

O artigo de Paulo Cesar Marins abre a revista com uma discussão acerca das políticas patrimoniais das últimas décadas, na qual são investigadas as tensões que cruzam o campo do patrimônio imaterial, os impasses colocados pelo instrumento de salvaguarda e os usos políticos da gramática instituída por essas novas políticas. A natureza inovadora dessas políticas contemporâneas é colocada em xeque no texto provocador de Marins.

O segundo artigo, de autoria de Márcia Chuva, explora de maneira original gestos que produziram, por meio de seleções e classificações, conjuntos de bens instituídos como patrimônio cultural. Enfrentando o desafio de aproximar contextos de espaço-tempo distintos, sem nunca borrar as diferenças, Chuva sugere que o olhar se desloque dos processos clássicos de consagração para o momento inaugural da viagem, entendida aqui como prática estruturante dos atributos que arquitetos e antropólogos pretenderam descobrir ou revelar.

O Rio de Janeiro, cidade que historicamente foi palco de disputas e embates que têm no discurso do patrimônio seu eixo articulador, é o cenário no qual se desenrolam as tramas de quatro artigos. O texto de Nina Bitar explora os mercados de abastecimento como objetos privilegiados sobre os quais se projetam concepções e discursos urbanísticos que, embasados por distintas visões do patrimônio, tanto os condenam como os consagram. As disputas de memória pelos significados atribuídos ao Cais do Valongo, opondo ou justapondo o poder público municipal e o movimento negro, são tema do artigo de Márcia Leitão Pinheiro e Sandra Sá Carneiro. As conexões entre o campo de disputas que se articula no espaço urbano e o mercado do turismo não escapam às autoras, e também estão presentes no artigo de Roberta Guimarães dedicado às Áreas de Proteção do Ambiente Cultural do Rio de Janeiro. Ambos os textos analisam, cada qual à sua maneira, o apelo à identidade cultural como categoria articuladora tanto para gestores urbanos como para movimentos sociais. Por fim, o artigo de Fernando Atique, que analisa a trajetória do Solar Monjope, construído nos anos 1920 no Jardim Botânico, desloca o olhar para os embates que nos anos 1970 cercaram sua demolição. A sociedade civil, aqui também, se contrapôs aos órgãos de preservação do patrimônio, deixando entrever – como no artigo de Nina Bitar – como preservação e destruição são linhas de força constantemente imbricadas e em permanente tensão.

Os museus também foram contemplados no número, sob duas perspectivas distintas. Clovis Carvalho Britto se detém na análise do discurso museológico acerca do cangaço e do lugar reservado às mulheres nessa narrativa. Dialogando com os estudos que têm se dedicado a problematizar os sentidos produzidos pelos itinerários museais, conecta esse debate ao campo do patrimônio e da história. No caso do artigo de Lucília Santos Siqueira, o olhar se detém sobre as edificações que abrigam museus, deslocando-se o foco para os processos de tombamento, para as conexões entre os espaços e as coleções que eles abrigam e para a recepção desses bens.

O patrimônio material, a “pedra e cal”, como ficou conhecido todo um campo de políticas no âmbito do patrimônio e de seus técnicos, não poderia estar melhor representado: Ouro Preto, espaço por excelência de expressão dessas políticas, é objeto do artigo de Leila Bianchi Aguiar, que problematiza os impasses colocados pela mudança, vale dizer pelo próprio tempo, na gestão de um bem tão complexo como paradigmático. Em outro contexto nacional, e remetendo a outro tempo histórico, Olanda Vilaça analisa a casa minhota como patrimônio cultural do universo rural português a partir do exame de inventários, testamentos e fotografias.

A dimensão edificada é ainda objeto do artigo de Verônica Pereira dedicado à creche Condessa Marina Crespi. Nesse caso, porém, não está em jogo a singularidade ou a antiguidade do bem. Muito ao contrário, a categoria patrimônio cultural industrial, articulada pelos agentes que se mobilizam em disputas que têm a cidade de São Paulo como cenário, subverte o discurso da excepcionalidade para apostar no das identidades sociais.

A natureza tampouco escapou ao discurso patrimonial e aos dilemas associados à preservação, como nos convida a refletir o artigo de Annelise Fernandez sobre a criação do Parque Estadual da Pedra Branca, no Rio de Janeiro. Sob nova perspectiva, o embate entre natureza e cultura se atualiza nos meandros que envolvem a patrimonialização dos dois termos dessa equação.

Por fim, o artigo de Joana Passos, Tânia Nascimento e João Carlos Nogueira discute, a partir de um estudo de caso, a ressonância dos patrimônios da cultura afro-brasileria em um município do estado de Santa Catarina. O artigo aborda como as representações do poder público e da sociedade acerca do patrimônio estão imbricadas nas dinâmicas de auto-representação, permitindo perscrutar posições relativas de diferentes atores sociais sob a ótica das relações raciais.

O número 57 conta ainda com dois textos que enriquecem sobremaneira a publicação. O artigo do filósofo alemão Hermann Lübbe, pela primeira vez traduzido para o português, incide sobre as dinâmicas da memória a partir da discussão acerca da consciência histórica do nosso tempo, repercutindo amplamente os debates sobre o patrimônio tratados pelos artigos.

A entrevista com Luiz Felipe de Alencastro fecha a revista com chave de ouro: um convite para conhecer novas abordagens da historiografia pelas mãos de um historiador e cientista político que atravessou fronteiras.

Luciana Heymann Quillet – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Os editores


HEYMANN, Luciana Quillet; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.29, n.57, jan. / abr. 2016. Acessar publicação original [DR]

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Mundo Rural / Estudos Históricos / 2015

Este número de Estudos Históricos consagra-se à temática do mundo rural. Os artigos destacam o processo histórico brasileiro, ainda que a realidade paraguaia seja examinada por um dos textos publicados.

Pode-se dizer que a História e as Ciências Sociais surgiram no país tomando o mundo rural como um de seus objetos centrais. Lugar no qual viveu a maioria da população brasileira na maior parte da história, o campo converteu-se em tema de reflexão acadêmica associado ao atraso. Suas supostas expressões religiosas (como o messianismo), formas políticas (como o coronelismo) e conformação econômica (guardando semelhanças com o feudalismo) atestavam o arcaísmo que intelectuais de variadas colorações ideológicas desejavam fosse superado como condição para o desenvolvimento do Brasil. Ao longo do tempo, essa perspectiva foi se atenuando, abrindo espaço para a análise de fenômenos recentes, compreendidos não necessariamente na chave do atraso, tais como a consolidação de movimentos sociais vigorosos e de um capitalismo sustentado pelo agronegócio. O presente número de Estudos Históricos pretende contribuir para o esforço de uma compreensão matizada e mais abrangente do mundo rural, sem deixar, contudo, de jogar luz sobre suas mazelas e contradições.

O primeiro artigo, “Transformações na legislação sesmarial, processos de demarcação e manutenção de privilégios nas terras das Capitanias do Norte do Estado do Brasil”, analisa as vicissitudes do instituto da sesmaria na colônia, especificamente, entre fins do século XVII até meados do seguinte.

O segundo artigo, “O colonato na região serrana fluminense: conflitos rurais, direitos e resistências cotidianas”, acompanha o desenvolvimento desse regime de trabalho na cafeicultura e seu impacto sobre os trabalhadores a ele submetidos. “Quem é mais útil ao país: aquele que planta ou o que fica na cidade só comendo?: os trabalhadores rurais fluminenses e a luta por desapropriação de terras (1962-1963)”, debruça-se igualmente sobre o mundo do trabalho no campo, ao examinar a mobilização de posseiros de Magé (Rio de Janeiro). Os trabalhadores rurais, mais particularmente os canavieiros, também são estudados em “Cultura, política e direitos no canavial da ditadura militar brasileira”.

Por sua vez, em “O pobre solo do celeiro do mundo: desenvolvimento florestal e combate à fome na Amazônia”, a problemática tratada é a atuação de duas agências internacionais, a UNICEF e a FAO, na Amazônia nos anos 1950 e 1960. “As transformações socioambientais da paisagem rural a partir de um desastre ambiental (Paraná, 1963)” concentra-se num incêndio de grandes proporções ocorrido em 1963 para refletir sobre as mudanças experimentadas pela paisagem rural paranaense no período.

O artigo “Estado e mercado na reforma agrária brasileira (1988-2002)” tem como tema a política de reforma agrária no período posterior à promulgação da atual Constituição, privilegiando a interação entre Estado e mercado na elaboração dessa política. Finalmente, “Capitalismo agrário e os movimentos campesinos no Paraguai” analisa a formação e o desenvolvimento de uma economia agrária nesse país baseada na grande propriedade e voltada ao mercado externo, a partir da ditadura Stroessner.

Luciana Heymann Quillet – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Os editores


HEYMANN, Luciana Quillet; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.28, n.56, jul. / dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

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Religião / Estudos Históricos / 2015

Esta edição de Estudos Históricos preenche uma lacuna. Nos 27 anos de publicação da revista, o tema Religião, interdisciplinar por excelência, nunca foi tratado. Campo de investimento intelectual de historiadores, antropólogos e sociólogos – para não citar os teólogos –, religião e religiosidade são áreas de pesquisa que se impõem em contextos nacionais marcados pela colonização, diversidade e sincretismo. No caso do Brasil, um dos caminhos investigativos mais férteis por meio dos quais é possível aceder ao debate sobre identidade e nação passa pela religião – das relações entre Igreja e Estado às distintas matrizes religiosas que conformam nossa identidade cultural, o tema tem sido explorado e revisitado a partir de diversas perspectivas.

O presente número reúne historiadores e cientistas sociais que se debruçaram sobre diferentes objetos, compondo um panorama de análises vasto e multifacetado. A ordem dos artigos revela uma lógica histórica, que vai da Colônia à devoção popular contemporânea, tema do artigo “No sertão e na capital, salve Aparecida: peregrinações em Sergipe do tempo presente”. Em termos geográficos, a maioria dos artigos aborda a realidade nacional, com exceção de duas contribuições – “‘Morta de amor por Deus’: a vida exemplar de Dona Thomázia, uma mulher letrada e devota, que morreu em Lisboa, no ano do terremoto (1755)”, que analisa a produção literária de um frei beneditino lisboeta, e “Disputando a moral pública: a Ação Católica durante o primeiro governo Perón (Tucamán, Argentina, 1946-1955)”.

O tema das missões religiosas é tratado em dois artigos, “Os apóstolos dos sertões brasileiros: uma análise sobre os métodos e os resultados das missões religiosas dos capuchinhos italianos no século XIX” e “Uma Igreja distante de Roma: circulação internacional e gerações de missionários no Maranhão”, enquanto outros dois se dedicam ao vasto campo das religiões afro-brasileiras, ainda que suas abordagens em nada se assemelhem: “A religião dos bantos: leituras sobre o calundu no Brasil Colonial” e “Macumba surrealista: observações de Benjamin Péret em terreiros cariocas nos anos 1930”.

“Cultura confessional e luta por direitos no mundo do trabalho: Belo Horizonte, 1909- 1921” adota a perspectiva de uma história social do trabalho, enquanto “Pensando o Brasil: discurso religioso e prática social segundo Zilda Arns” pode ser lido na chave das análises históricas que tomam a biografia como fio condutor por meio do qual se desvelam práticas e representações sociais. Por fim, “Da tolerância à caridade: sobre religião, laicidade e pluralismo na atualidade” propõe uma discussão conceitual à luz das reflexões do filósofo Gianni Vattimo. Longe de esgotar as possibilidades abertas pelo tema Religião, os dez artigos que ora publicamos nos parecem representativos tanto da tradição desse campo de estudos como de suas fronteiras.

Uma última palavra para apresentar aos leitores duas novidades. Esta edição traz pela primeira vez a seção Colaboração Especial, inaugurada de forma primorosa pelo artigo de José Reginaldo Santos Gonçalves, “O mal-estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição”, tema da aula inaugural proferida no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do CPDOC. Por fim, apresentamos o novo layout da revista, viabilizado por recursos do Edital de Apoio à Publicação de Periódicos Científicos e Tecnológicos Institucionais, da Faperj. É a segunda vez, desde que foi lançada, que Estudos Históricos passa por uma renovação gráfica. Sem abrir mão da sua identidade visual, o objetivo foi tornar a leitura mais agradável e estimulante. Esperamos que apreciem as novidades!

Luciana Heymann Quillet – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Os editores


HEYMANN, Luciana Quillet; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.28, n.55, jan. / jun. 2015. Acessar publicação original [DR]

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História Pública / Estudos Históricos / 2014

Os debates sobre a chama da história pública têm ganhado grande visibilidade entre os historiadores brasileiros nos últimos anos. Seminários, simpósios, cursos, publicações e, inclusive, a formação de uma Rede Brasileira de História Pública demonstram o crescente interesse e a repercussão dessas discussões em nosso país.

De origem anglo-saxã, o termo história pública procura dar conta, de uma forma ampla, das relações e do diálogo entre a produção acadêmica e não acadêmica do conhecimento histórico. De um lado, os lugares de produção de saber histórico se multiplicaram, indo além dos departamentos e centros universitários. De outro, as numerosas contendas sobre a memória coletiva e o dever de memória têm frequentemente colocado a disciplina histórica no centro de debates públicos com amplas repercussões políticas e sociais. Tais fenômenos refle tem-se na vasta produção editorial, audiovisual, museológica, entre outras, que mobiliza saberes históricos, articulando demandas por esse tipo de conhecimento vindas de diversos setores da sociedade civil e do Estado. Leia Mais

Direitos e Cidadania / Estudos Históricos / 2006

Este número da revista Estudos Históricos é dedicado ao tema “Direitos e cidadania”. Trata-se de um número especial, pois reúne textos produzidos no bojo de um Projeto Pronex de mesmo nome, financiado pelo CNPq e pela Faperj desde 2004. Tal projeto, sediado no CPDOC / FGV, conta com a participação de pesquisadores do próprio CPDOC e também de outras instituições, como a Universidade Federal Fluminense, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Fundação Casa de Rui Barbosa. Exatamente por essa razão, todos esses textos foram discutidos no I Seminário Pronex Direitos e Cidadania, realizado na Fundação Getúlio Vargas, entre 4 e 6 de agosto de 2005, com o objetivo de apresentar e debater os primeiros resultados das pesquisas em curso.

O projeto “Direitos e cidadania” tem como foco a investigação do processo histórico de construção da cidadania no Brasil, na chave do acesso a direitos (civis, políticos, sociais, culturais, de gênero etc.) e da efetivação de controles democráticos capazes de garantir e expandir esses direitos. O tema da construção da cidadania, nesse sentido, está sendo compreendido como um longo e permanente processo de interação político-cultural, que envolve tanto as instituições formais do Estado como as entidades da sociedade civil, e inclui uma grande diversidade de atores sociais, mesmo não organizados. Com tal tema de fundo, ele se volta para um amplo recorte cronológico, utilizando fontes de caráter variado e trabalhando-as com metodologias diversas, a partir de uma perspectiva interdisciplinar. Sua natureza multifacetada guarda relação com a formação diversificada de seus pesquisadores, cujos olhares são conformados a partir das disciplinas da história, da sociologia, da antropologia e da ciência política. O projeto se estrutura em quatro grandes linhas de investigação, todas elas contempladas com artigos neste número de Estudos Históricos: I – Políticas de inclusão e movimentos pela expansão dos direitos de cidadania; II – Controles democráticos e instâncias de efetivação de direitos de cidadania; III – Cidadania, participação, representação e cultura política; IV – Cidadania cultural: memória, patrimônio e espaço urbano.

Dessa forma, o texto que abre a revista, de Daniel Aarão Reis, intitulado “Os intelectuais russos e a formulação de modernidades alternativas: um caso paradigmático?”, revisita uma questão clássica do pensamento social brasileiro- o debate entre projetos de modernização em sociedades “atrasadas” -, trabalhando em perspectiva comparada e utilizando o exemplo dos intelectuais russos, pouco contemplados na literatura de ciências sociais. A seguir, dois artigos, o de Regina Moraes Morei e Elina da Fonte Pessanha, intitulado “Magistrados do trabalho no Brasil: entre a tradição e a mudança”, e o de Angela de Castro Gomes, “Retrato falado: a Justiça do Trabalho na visão de seus magistrados”, concentram-se no estudo da história e da memória de uma das instituições mais importantes no mundo do trabalho a partir dos anos 1940. A Justiça do Trabalho, que recentemente teve sua competência ampliada pela Reforma do Judiciário, é o foco para se pensar em uma das dimensões mais visíveis e consistentes da cidadania no Brasil: os direitos do trabalho. Seguem-se então três textos que discutem a questão da cultura na história recente do país, fazendo cada um deles uma abordagem tão particular quanto original. Lia Calabre analisa a atuação do Conselho Federal de Cultura nos tempos do regime militar; Fernando Weltman acompanha a construção do que vem sendo chamado de jornalismo comunitário, tomando como exemplo a experiência da Rede Globo e do RJTV; e Mônica Almeida Kornis, ainda no universo televisivo, analisa as “aventuras urbanas” da série Cidade dos Homens, pontuando a questão da construção de estratégias de inclusão social.

Esse é o gancho para o tratamento de uma das dimensões mais significativas dos direitos e da cidadania no Brasil republicano, qual seja, a questão da “raça”. Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira privilegiam, entre os temas does) movimento(s) negro(s), a discussão polêmica e atual sobre as cotas nas universidades; e Hebe Mattos destaca a trajetória de um jovem líder de uma comunidade de quilombo: Antônio Nascimento Fernandes, morador da Fazenda São José, no estado do Rio de Janeiro. Seguindo a linha das trajetórias e estudos de textos memorialísticos, finalizam o número os artigos de Denise Rollemberg, “Uma vida, duas autobiografias”, e de Célia Costa e Juliana Gagliardi, “Lysâneas, um autêntico do MDB”.

Como se pode verificar, são muitas as possibilidades de leitura e de articulação entre esses textos, ressaltando-se a existência de exemplos de trabalhos com a história do tempo presente, com fontes-objetos, como programas de televisão, e com trajetórias de indivíduos, movimentos sociais e instituições. Finalmente, todos os artigos procuram apresentar contribuições sobre aspectos ainda pouco contemplados de temas e questões muito tratadas nas áreas da história e das ciências sociais. Embora sendo textos preliminares, acreditamos que o leitor poderá construir, com eles, seu próprio mosaico de achados, chegando satisfeito ao final deste número “especial”.


GOMES, Angela de Castro. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.1, n.37, jan. / jun. 2006. Acessar publicação original [DR]

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Antropologia e Arquivos / Estudos Históricos / 2005

Quando o campo é o arquivo

Este número de Estudos Históricos reúne uma seleção de trabalhos apresentados no seminário “Quando o campo é o arquivo: etnografias, histórias e outras memórias guardadas”, realizado em 2S e 26 de novembro de 2004 pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e pelo Laboratório de Antropologia e História do IFCS / UFRJ, com o apoio da Associação Brasileira de Antropologia [1].

O objetivo do seminário foi refletir sobre o uso de fontes arquivisticas na pesquisa antropológica e sua relação com a produção etnográfica, bem como sobre a constituição e organização de arquivos de antropólogos, de instituições de antropologia ou que apresentassem grande interesse para a disciplina.

Nossa motivação, tanto para o seminário quanto para esta publicação, advém da percepção de que, cada vez com mais intensidade, antropólogos têm realizado um tipo de trabalho de pesquisa-nos arquivos e sobre arquivos- tradicionalmente associado a historiadores ou arquivistas. Além de utilizar arquivos como fonte de conhecimento para a produção de suas análises, desde, pelo menos, os anos 1980, os antropólogos têm refletido sobre a natureza de registros documentais transformados em fontes e, em alguns casos, têm produzido e / ou organizado arquivos e coleções a partir de uma perspectiva antropológica. Ainda assim, persiste, entre o público em geral e no mundo acadêmico (mesmo entre os próprios antropólogos), a idéia de uma associação privilegiada da antropologia com um modelo de pesquisa de campo consagrado desde a clássica introdução de Malinowski a Argonautas do Pacífico ocidental, de 1922.

Apesar de vários antropólogos importantes terem feito pouca ou nenhuma pesquisa de campo no sentido malinowskiano – Mauss e Lévi-Strauss são dois exemplos eloqüentes -, o trabalho de campo permanece como uma marca distintiva da disciplina aos olhos dos não-antropólogos, bem como uma espécie de ritual de passagem identitário para os próprios antropólogos, como se quem não fizesse pesquisa de campo não fosse “realmente” antropólogo.

Nos 80 anos decorridos desde a publicação de Argonautas, os “primitivos” deixaram de ser tão “primitivos” – deixaram de ser povos sem documentos, característica que então os diferenciava dos ocidentais. Antropólogos já não têm mais o objetivo de acumular!!m arquivos e coleções específicas os registros de seus “feitos”, conquistas e contatos com nativos e “exóticos”. Arquivos criados desde o século XIX com tais finalidades vêm sendo objeto de contenda, recusa, crítica e novos usos por parte de povos etnológicos e / ou populações tradicionalmente transformadas em objeto da pesquisa antropológica. Além disso, a antropologia deixou de se interessar apenas pelos “primitivos” e passou a se interessar também pelo povos “ocidentais”, com seus arquivos e patrimônios documentais já constituídos. Alguns desses investimentos resultaram numa espécie de inversão dos modelos de objetificação tradicionalmente adotados, uma vez que antropólogos e, por conseguinte, procedimentos metodológicos e relações estabelecidas no campo transformaram-se em fontes de novas leituras, poderes e disputas. Os territórios dos arquivos têm sido ocupados por novos sujeitos. Ainda que novos usos dos arquivos por parte dessas populações venham sendo observados e, por vezes, partilhados pelos antropólogos, as implicações políticas e discursivas dessas formas de intervenção nos permitem imaginar o arquivo como campo povoado por sujeitos, práticas e relações suscetíveis à análise e à experimentação antropológica.

Ao pensar esse seminário, nossa intenção não era, de forma alguma, negar o papel fundamental que a pesquisa de campo “tradicional” teve e ainda tem para a constituição da antropologia como disciplina e como recurso de método poderoso para a produção de etnografias. Nosso objetivo envolvia, no entanto, uma ampliação e diversificação da forma como se pode pensar a prática antropológica, que não a deixasse restrita à pesquisa de campo.

Há ainda muito pouca reflexão no campo da antropologia, em particular da brasileira, sobre esse tema. Imaginamos que uma forma útil de contribuir para essa discussão era partir da experiência concreta de antropólogos lidando com arquivos. Com isso, não estávamos desprezando a reflexão “teórica” sobre o tema, e sim enfatizando nossa perspectiva de que, sem o apoio em experiências reais de pesquisa, corremos o risco de permanecer numa discussão pouco produtiva sobre fronteiras disciplinares e princípios metodológicos abstratos. Esperamos que o resultado dessa experiência, aqui reproduzido, ajude a estimular novas discussões sobre o tema.

Nota

1. A homepage do seminário, que inclui a programação, os resumos e o texto completo de algumas comunicações que não foram incluídas neste número da revista) é: http: / / www.cpdoc.fgv.br / campo-arquivo /


CASTRO, Celso; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.36, jul. / dez. 2005. Acessar publicação original [DR]

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Arquivos Pessoais / Estudos Históricos / 1998

CPDOC: 25 Anos

Jubileu de prata, um quarto de século. É grande a simbologia que envolve a comemoração de 2S anos. Já tendo sido inaugurada a maioridade, a impressão é de se estar festejando uma idade de plenitude, solidez conjugada a vitalidade. Uma idade em que a memória das realizações, longe de ancorar a embarcação, impulsiona os ventos de mudança.

No caso de uma instituição acadêmica como o CPDOC, criada e durante os primeiros anos conduzida pelo dinamismo de jovens pesquisadores -à época mais ou menos com a idade que hoje se comemora -, as razões para celebrar são de certa maneira evidentes. A própria estabilidade não seria uma motivação menor, num país constantemente sacudido por crises econômicas e pouco generoso com a área da cultura. Mas o CPDOC não se manteve apenas funcionando ao longo desse tempo. Ele se afirmou e se tomou reconhecido, dentro e fora do país, como instituição voltada para a preservação da memória nacional, produtora de conhecimento na área de história do Brasil e pioneira no desenvolvimento de metodologias nos campos dos arquivos privados pessoais e da história oral.

Entre as comemorações previstas para este ano, pensou-se em editar um número especial de Estudos Históricos, publicação que já há dez anos acompanha, e em certa medida divulga, a trajetória do Centro. Os fecundos resultados de um seminário recentemente organizado pelo CPDOC, que teve como objeto exatamente os arquivos pessoais, uma das matérias-primas do trabalho da instituição e, poderíamos dizer, a vocação primeira da casa, inaugurada em 1973 com a recepção do arquivo de Getúlio Vargas, apresentaram-se como material absolutamente oportuno para este número.

Estamos nos referindo ao Seminário Internacional sobre Arquivos Pessoais, promovido pelo CPDOC em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, da USP, e realizado na semana de 17 a 21 de novembro do ano passado, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Nesse seminário, pioneiro na sua concepção, reuniram-se nomes de destaque tanto da área arquivística quanto do campo das ciências sociais, para refletir sobre o tema dos arquivos pessoais a partir de uma perspectiva interdisciplinar. Seu objetivo principal era lançar alguma luz sobre a especificidade desse tipo de conjunto documental dentro da área de arquivos e assim permitir o avanço das discussões teóricas e metodológicas que envolvem seu tratamento e usos.

O seminário foi organizado em quatro mesas-redondas, cujos remas buscaram acompanhar a trajetória dos arquivos pessoais desde sua gênese até tornarem-se disponíveis em instituições que detêm sua custódia. Assim, numa primeira discussão, procurou-se refletir sobre as motivações que podem orientar o indivíduo em uma atividade acumuladora de documentos e registros de sua trajetória, abrindo-se a discussão para outras modalidades de “produção de si”, tais como a constituição de coleções e a escrita autobiográfica. A seguir, a discussão se deteve na interferência do arquivisra sobre esses conjuntos documentais, mais especificamente na aplicabilidade dos princípios arquivísticos a essa modalidade de arquivo, nas condições a serem cumpridas para a sua abertura à consulta e nas exclusões praticadas nesse processo. Um terceiro eixo temário girou em torno da utilização dos arquivos pessoais enquanto fontes de pesquisa, das suas potencialidades e peculiaridades e das posturas metodológicas específicas que exigem por parte, principalmente, dos historiadores. Finalmente, sugeriu-se que fossem abordadas questões ligadas às políticas de preservação e acesso, especificamente quanto às convergências entre público e privado, contrapondo-se o dever de dar publicidade às informações consideradas de interesse público aos preceitos de proteção à intimidade.

Os resultados desse encontro foram considerados muito satisfatórios. As contribuições apresentadas em alguns remas superaram as expectativas iniciais, e os debates que se seguiram tomaram rumos muitas vezes surpreendentes. De posse de um rico material ainda inédito para o grande público, tivemos a idéia de apresentá-lo nessa publicação, não na íntegra ou sob a forma de anais, mas conferindo-lhe uma nova ordenação, afeita mais aos resultados do evento do que à sua formulação original. Assim, estamos publicando não apenas textos apresentados no seminário, mas contribuições posteriores relacionadas às problemáticas abordadas e que, em alguns casos, já incorporam questões levantadas nos primeiros.

As ênfases e os parentescos temáticos sugeriram a organização dos artigos em dois blocos. O primeiro, que chamamos Escrita de si I escrita da história, reúne os textos que abordam preferencialmente a dimensão da produção de si pelo sujeito, as diferentes formas pelas quais o indivíduo se forja uma identidade, seja pela escrita propriamente dita, de memórias ou diários íntimos, seja por outros “atos autobiográficos”, incluindo também textos que se detêm na escrita feita com base nesses registros pessoais, isto é, na história que se alimenta basicamente das memórias individuais, geralmente chamada história cultural, antropológica ou das mentalidades. No segundo bloco, O espaço do arquivo, encontram-se os textos que problematizam o estatuto dos arquivos pessoais para o campo arquivístico, seja em uma comparação com os fundos de natureza pública, seja em uma análise dos procedimentos recomendados para o seu tratamento, seja ainda no que diz respeito ao papel do Estado na atribuição do valor de interesse público a esses arquivos c na regulamentação do acesso a seus documentos.

Abrindo o primeiro bloco, o artigo de Philippe Artières dedica-se à relação complexa que liga o indivíduo a seus documentos, detendo-se na natureza das injunções sociais que levam as pessoas, cotidiana e silenciosamente, a manter arquivos de suas vidas. Abordando a produção autobiográfica como uma prática de arquivamento de si, analisa o caso de Emile Nouguier, jovem marginal condenado à morte no final do século XIX que, por meio de escritos autobiográficos, afirma uma identidade para si mesmo e funda um mecanismo de resistência. A seguir, o texto de Renato J anine Ribeiro discute as formas pelas quais os indivíduos, num mundo laicizado, marcado pelo universalismo e pelo individualismo, forjam uma glória para si mesmos. Janine sugere que a construção de uma memória de si se faz por meio de processos deliberados de monumentalização, o mais das vezes representados pelo entesouramento do próprio cotidiano. No sentido de uma caracterização do contexto cultural do Ocidente moderno caminha também o artigo de Contardo Calligaris, que chama a atenção para o privilégio atribuído à subjetividade do sujeito com relação à objetividade dos fatos. Por esse contexto se explica o lugar de destaque assumido pelos escritos autobiográficos, forma narrativa que o sujeito encontrou para se dizer, uma entre outras manifestações dentro de uma história da subjetividade moderna. Os arquivos pessoais provavelmente também encontrariam nessa história o seu lugar. Essa hipótese encontra no texto de Priscila Fraiz uma análise empírica bastante sugestiva. Interessada em estabelecer relações entre o campo da literatura e o da arquivística, a autora analisa o caso do arquivo privado de Gustavo Capanema propondo que, para esse sujeito acumulador, a produção cuidadosa de um arquivo pessoal substituiu o texto autobiográfico jamais escrito. Já o artigo de Ulpiano Bezerra de Meneses indaga o que ocorre no deslocamento do campo pessoal para o público com objetos materiais e coleções, quando mobilizados como documentos, e que implicações precisariam ser consideradas no que diz respeito à pesquisa histórica.

Mais diretamente dedicados à escrita da história, são os artigos de Christophe Prochasson e de Angela de Castro Gomes. No primeiro, o autor discorre sobre a valorização e mesmo a banalização das fontes privadas nos últimos 20 anos, no contexto historiográfico francês, correlatas ao desenvolvimento da história cultural e das elites. A historiadora brasileira, comentando o texto do colega francês, analisa brevemente a relação entre o surgimento de uma “nova” história política, social e cultural no Brasil e a disponibilização de arquivos privados para a pesquisa, problematizando as propaladas virtudes da espontaneidade e autenticidade dessas fontes sem, no entanto, ocultar suas preferências pelo trabalho com esse tipo de material.

O espaço do arquivo, segundo bloco temático da revista, é também o espaço dos arquivistas que, embora não exclusivamente, se encontram aí reunidos. Inicialmente, duas grandes escolas ou linhas, dentro da arquivística, estão representadas. A canadense, caracterizada por conjugar eficiência e renovação, e portanto, em geral, inovadora e polêmica no tratamento de questões de base da teoria e da prática arquivísticas, aparece representada pelo artigo de Terry Cook; enquanto a da França, um dos berços da própria arquivística e sem dúvida a tradição que mais influência exerceu no Brasil, aparece no artigo de Ariane Ducrot. Cook questiona a atualidade dos consagrados princípios da disciplina no que diz respeito tanto aos arquivos pessoais quanto aos fundos governamentais e institucionais, considerando as transformações por que passam tanto as instituições quanto os próprios registros documentais e seu gerenciamento; além disso, problematiza o caráter neutro tradicionalmente atribuído ao trabalho do arquivista. No artigo de Ducrot, de caráter mais normativo, a questão da aplicação dos princípios da arquivística aos fundos de origem pessoal ou familiar é abordada a partir da remissão às regras práticas que orientam o trabalho desenvolvido nos Arquivos Nacionais, na França. São abordadas também as políticas desenvolvidas no sentido do recolhimento desses fundos, bem como os critérios para sua comunicabilidade. O artigo de Ana Maria Camargo, a pretexto de contribuir para uma abordagem diplomática dos arquivos pessoais, discute a natureza de determinados documentos que, por resultarem de ações juridicamente irrelevantes, não obedecem a fórmulas rígidas. Em torno de um exemplo concreto – uma participação de casamento do final do século passado – a autora analisa as características que distinguem os documentos de arquivos pessoais daqueles de origem institucional.

Maria Madalena Machado Garcia explora em seu texto a questão dos documentos pessoais no espaço público, tanto do ponto de vista dos arquivos privados propriamente ditos, cuja custódia e acesso podem ou não estar a cargo de instituições de memória, quanto daquele relativo aos documentos ou informações de natureza pessoal mantidos em arquivos públicos. Trata-se de duas situações que colocam em pauta a dicotomia privacidade x interesse público. As origens filosóficas e os embasamentos legais para as discussões travadas no seio da comunidade arquivística sobre essa mesma dicotomia são abordados no texto de Célia Costa. Finalizando este bloco dedicado aos arquivos encontram-se os comentários de Heloísa L. Bellotto aos textos de Cook e Ducrot, que sumarizam as contribuições desses dois renomados profissionais e lançam alguns desafios aos seus colegas brasileiros.

O mais, apenas a leitura dos textos poderá oferecer. Esperamos que os fios que se buscou puxar tendo como inspiração os arquivos pessoais sugiram ainda novas teceduras aos leitores, convidados a participar desta “aventura” interdisciplinar que provou ser não apenas possível, mas sugestiva e provocadora.

Ana Maria Camargo

Célia Costa

Luciana Heymann

Priscila Fraiz

Editoras convidadas.


CAMARGO, Ana Maria; COSTA, Célia; HEYMANN, Luciana; FRAIZ, Priscila. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.11, n.21, jan. / jun. 1998. Acessar publicação original [DR]

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Justiça e Cidadania / Estudos Históricos / 1996

Vários fenômenos deste fim de século contribuíram, e continuam a contribuir, para recolocar o problema da cidadania na ordem do dia, tanto nas novas democracias como nas antigas. A redemocratização de vários países na América Latina e na Europa, sobretudo do Leste, fez com que a preocupação com os direitos políticos e com a maneira de exercê-los voltasse com toda a força. A crise fiscal do Estado, que atinge indiscriminadamente países ricos e pobres, colocou em cheque o Estado de bem-estar e, conseqüentemente, a amplitude e o alcance dos direitos sociais. O processo de globalização econômica, por sua vez, atingiu ao mesmo tempo direitos civis, políticos e sociais. Atingiu negativamente os direitos políticos ao provocar profundas alterações na concepção e na prática do Estado-nação, agora enfraquecido diante do deslocamento de decisões para organismos multinacionais. Atingiu positivamente os direitos civis ao deslocar para a participação social a ênfase antes colocada na participação política. Atingiu um direito social básico, o emprego, ao exacerbar a competividade internacional e o avanço tecnológico, geradores estruturais de desemprego.

Não terminam aí as mudanças. A diversificação da problemática social (etnias, minorias, ecologia), acompanhada (e promovida) por novos movimentos sociais, sobretudo as organizações não governamentais, trouxe à consciência coletiva novos direitos antes não cogitados. Além dos três direitos clássicos sistematizados por Marshall, chamados de primeira e segunda geração, foram propostos, e incorporados a códigos legais, outros como os direitos civis coletivos e os chamados direitos difusos, ligados à preservação do meio ambiente. Pode-se ainda acrescentar o impacto sobre direitos políticos e civis provocado pela sociedade de consumo que transforma cidadãos em consumidores e pela globalização da informação via mídia eletrônica que, se rompe a barreira do controle estatal, também invade a privacidade do indivíduo.

Diante desse quadro, não é de admirar a explosão de estudos, teóricos e empíricos, sobre a problemática da cidadania. Como se viu, não se trata de uma problemática de democracias jovens e imaturas mas de uma questão universal com modulações nacionais. Não deixa de ser um consolo, embora triste consolo, o fato de descobrimos, os latino-americanos, que europeus e americanos do noite estão às voltas com problemas semelhantes, guardadas as especificidades locais. É na verdade uma vantagem o rato de podemos pensar e agir tendo o benefício da informação sobre o que se está passando nos países considerados avançados. Não se trata também de um tema que se possa abranger com o instrumental teórico de uma ou outra disciplina acadêmica apenas. Ele atinge todas as esferas da vida social e exige abordagens diversificadas e inovadoras. Um tratamento compreensivo seria impossível dentro do espaço aqui disponível.

Deu-se ênfase na seleção dos artigos deste número especial de Estudos Históricos ao tema da garantia dos direitos civis, tratando-se secundariamente dos direitos políticos e sociais. A escolha exige justificativa. Como quase todas as análises se referem ao Brasil, país recém-saído de um governo militar e marcado pelas imensas desigualdades sociais, poder-se-ia perguntar se a ênfase não deveria ser posta nos direitos políticos e sociais. Antes de responder, cabe observar que, do ponto de vista da legislação, todos os direitos estão garantidos aos brasileiros. A Constituição de 1988, chamada com razão de cidadã, esmerou-se em incluir todos os avanços atuais na área. Nosso problema se verifica no campo da consciência e da garantia dos direitos. Quanto a isto, não será polêmico dizer que há um conhecimento razoável dos direitos políticos e que seu exercício está razoavelmente garantido pelo sistema eleitoral e partidário. Há, sem dúvida, enormes problemas no gerenciamento do sistema de saúde e previdenciário, mas há igualmente boa noção dos direitos sociais e há uma Justiça do Trabalho a que se tem acesso com celta facilidade. O mesmo não se pode dizer dos direitos civis. O grau de conhecimento desses direitos é mais precário e sua garantia, baseada sobretudo no sistema policial e judiciário, é de longe a mais deficiente.

Além dessa situação desvantajosa dos direitos civis, cabe observar que eles são os direitos fundamentais numa democracia liberal, como é a em que vivemos. Vida, integridade física, propriedade, segurança, liberdade, são direitos básicos que constituem o alicerce de direitos políticos e sociais. São eles que garantem a conquista de outros direitos e sua preservação. Sem segurança pessoal e liberdade de opinião e organização para todos, por exemplo, a participação política será vazia, a política social frágil, a democracia precária.

Dentro do tema da garantia dos direitos civis, salientam-se os estudos sobre o Judiciário. Sinal dos novos tempos, marcados pela perda de influência do Legislativo e até mesmo do Executivo, tendo em vista o enfraquecimento dos Estados nacionais, o Judiciário passa a ver seu papel contestado, redefinido e ampliado. Mais que nunca é colocada em questão a visão rígida da separação dos poderes e se estabelece um processo ainda de contornos indefinidos em que se politiza a Justiça e se judiciariza a política. Ao mesmo tempo, contesta-se a visão positivista do direito e do papel do juiz como mero aplicador da lei, exigindo-se dele a preocupação com a eqüidade social. Esses temas são expostos e discutidos no artigo de Werneck Vianna.

Ainda dentro do tema do Judiciário, Sérgio Adorno demonstra o viés racista da Justiça criminal e o estereótipo que atribui maior tendência à criminalidade entre determinados grupos étnicos. Maria Celina D’Araujo apresenta o que talvez seja a primeira avaliação acadêmica do desempenho dos juizados Especiais. Surgidos como promessa de agilização da Justiça e ampliação de sua acessibilidade, a autora mostra que seu funcionamento está longe de corresponder à promessa inicial. Dois ensaios bibliográficos (Junqueira e Guanabara) avaliam o estado da arte nos estudos sobre o acesso à Justiça e sobre novas visões do direito.

O impacto da globalização sobre o Estado e as identidades nacionais, sobretudo no contexto europeu, é discutido por Guy Hermet. Enquanto na Europa Ocidental o processo de unificação tende a reduzir o peso dos Estados nacionais, a enfraquecer o envolvimento político dos cidadãos e a diluir as identidades nacionais, na Europa Oriental verifica-se o fenômeno oposto. Essas diferenças nacionais no que se refere ao conteúdo da cidadania e às rotas históricas seguidas em sua construção são discutidas por Carvalho, que usa o Brasil do século XIX como exemplo.

Finalmente, o processo social concreto de construção da cidadania é discutido por Sigaud. Usando como exemplo o recurso à justiça do Trabalho por parte de trabalhadores de engenhos de açúcar em Pernambuco, a autora demonstra que a decisão de recorrer ou não às juntas de Conciliação e Julgamento não se explica apenas pelo conhecimento do direito e pela disponibilidade da Justiça. Tem-se que levar em conta também a interveniência de fatores morais.

Papel do judiciário, concepções do direito, acesso à Justiça, estilos históricos e transformações recentes no conteúdo da cidadania, processos sociais de construção do cidadão, são os temas abordados neste número especial. Pequena contribuição à imensa tarefa que se nos apresenta, a um tempo teórica e prática, de construir a comunidade política do século XXI.

José Murilo de Carvalho – Editor convidado.


CARVALHO, José Murilo de. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.9, n.18, jul. / dez. 1996. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia / Estudos Históricos / 1996

Fiel como sempre aos compromissos que nortearam sua fundação. Estudos Históricos retorna às questões historiográficas. Fidelidade às origens e também preocupação de seus editores. O caráter ainda modesto dos estudos historiográficos em relação ao conjunto da produção brasileira no campo da História justifica por si só a organização deste número. Tal como ocorre ainda em outras latitudes, inclusive na França, a investigação crítica e reflexiva acerca da produção e da natureza do discurso histórico não é uma característica das mais difundidas entre os historiadores.

Os trabalhos que agora publicamos foram divididos em cinco blocos, de acordo com as características formais e temáticas de cada um deles. Lamentamos ter sido impossível incluir, como desejávamos, um bloco que contemplasse as chamadas historiografias regionais, reconhecidamente um segmento dos mais expressivos da produção historiográfica brasileira recente.

No entanto, para efeito desta “Apresentação”, pensamos ser mais eficaz reunir o material aqui publicado em quatro tópicos; as visões historiográficas mais gerais; as abordagens mais teórico-metodológicas; as avaliações e perspectivas sobre as relações entre história e política; os textos de cunho mais bibliográfico.

No primeiro tópico situamos o trabalho de Carlos Fico e Ronald Polito, e o nosso próprio texto. Neste tentamos elaborar uma síntese das Caraterísticas e transformações do que entendemos como “duas identidades” – da História e do historiador. Projetadas sobre a evolução do ensino e pesquisa da disciplina a partir dos anos 50, estas identidades revelam a persistência de dualismos que ainda sobrevivem, quer referidos às tendências historiográficas internacionais, quer às nacionais.

A importância da contribuição apresentada por Fico e Polito extrapola em muito o próprio texto. Estes dois historiadores, responsáveis pela criação e desenvolvimento do “Centro Nacional de Referência Historiográfica” (UFOPMG), já publicaram um levantamento quase exaustivo da produção historiográfica brasileira dos anos 80 – A História do Brasil (1980-1989), 2 vols. – e sua presença aqui, através desta “Avaliação preliminar”, relativa às teses e dissertações defendidas em 1995, constitui uma pequena amostra do levantamento que estão realizando para a década de 90.

Incluímos no segundo tópico, de um lado, os artigos de Verena Alberti e Henry Rousso, os quais abordam duas funções teórico-metodológicas mais genéricas, e, do outro, os textos de Regina Moreira, Maria Celina D’Araujo e Maria Luiza Ritzel Remédios, os quais têm um mesmo objeto de análise – o Diário de Vargas.

A hermenêutica ocupa hoje em dia uma posição-chave nas discussões historiográficas e mobiliza seus defensores e adversários em torno de intensos debates. É sabido que a ênfase crescente no caráter interpretativo do conhecimento histórico vem sendo ora justificada, ora denunciada por diferentes historiadores. Justifica-se assim o propósito de Verena ao oferecer ao leitor, especialmente ao não iniciado, uma explicação sobre a hermenêutica, “entendida como uma certa maneira de pensar”, e sua trajetória intelectual. Tampouco se exime a autora de apontar alguns dos riscos e possibilidades que a hermenêutica pode apresentar para o trabalho historiador.

O arquivo, lugar natural das fontes documentais escritas, parece destinado ao esquecimento em face das implicações lógicas de certas concepções filosóficas, lingüísticas e literárias mais recentes. É pensando em tais implicações que Rousso enuncia a presença de uma contradição e analisa a realidade de um problema, os quais remetem, em conjunto, à questão do “lugar” do arquivo na “construção do conhecimento histórico”. Contradição, no caso, é a da oposição entre as denúncias “pós-modernas” sobre a possibilidade de uma “restituição objetiva do passado” e a demanda social (e política) por uma “história verdadeira e transparente”. Com efeito, não mais se está diante daquelas brochuras que, em 1815, acreditavam poder “provar” que Napoleão “jamais havia existido”. Hoje, dispomos de denúncias muito sérias, como as enunciadas, entre outros, por Pierre Vidal-Naquet em Os assassinos da memória e Jean Chesneaux em Devemos fazer tábua rasa do passado? Assim, em meio à maré dos “revisionismos” e à presença dos eternos “falsificadores da História”, não estará no arquivo a única saída?

Problema, por outro lado, segundo o mesmo autor, é a tendência atual a opor dois tipos de fontes – a escrita, que representa a parte mais significativa dos acervos arquivísticos, e a oral Conservada ou não em arquivos) – e privilegiar o primeiro em termos de maior “autenticidade” ou fidelidade do ponto de vista da narração dos acontecimentos passados, em detrimento do segundo.

Os artigos aqui agrupados no “Dossiê Diário de Vargas” possibilitam ao leitor ter acesso a alguns dos inúmeros problemas formais e interpretativos que podem suscitar a edição e a leitura de um diário, sobretudo quando se trata de tomá-lo como “documento histórico”. Trata-se a bem dizer de três olhares distintos endereçados a um mesmo objeto. Regina Moreira preocupa-se com a explicitação de problemas, surgidos durante o processo de preparação do texto do Diário para publicação, e com a questão mais geral dos prós e contras que marcam a utilização dos diários em geral como “fonte histórica”.

Maria Celina D’Araujo aborda três aspectos: o do papel que se pode atribuir a todo diário – o de fazer parte da construção do self (caso, o de Vargas); a caracterização do Diário em tela como sendo mais exemplar do tipo de diário que os especialistas convencionaram chamar de ”diários modernos”; as sensíveis e significativas diferenças existentes, Diário de Vargas, entre volume e a natureza das informações e reflexões respeitantes à “esfera pública” e “esfera privada” da vida do autor, respectivamente.

Maria Luiza Ritzel, nem historiadora, nem socióloga mas, sim, especialista em literatura, sublinha o lugar da subjetividade de Vargas e situa o Diário entre os chamados “relatos confessionais”, de gênero autobiográfico.

Nosso terceiro tópico compreende os trabalhos de Angela de Castro Gomes, Márcia D’Alessio, Maria de Lourdes Janotti, Vavy Borges e Maria Helena Capelato. A dimensão “política” de uma parte da produção historiográfica é a preocupação comum que une todos estes textos. No entanto, salvo o artigo de Angela Gomes, os demais trabalhos derivam da história política para a presença da “esfera do político” quando se trata de examinar a produção histórica.

O propósito explícito de Angela Gomes é analisar historicamente as “relações complexas e muitas vezes ambíguas” entre História e Ciência Política enquanto saberes disciplinares distintos, ou academicamente separados. No seu texto, muito denso e sistemático, a autora contempla tanto a política, como objeto / dimensão da produção historiográfica, quanto a história, como objeto / dimensão dos “estudos políticos”. A par de oportunos insights sobre a renovação da História Política, a autora revela seu pessimismo quanto às possibilidades de diálogo entre historiadores e cientistas políticos, pois, no seu modo de entender, suas “linguagens” teórico-metodológicas são muito diferentes.

O trabalho de D’Alessio e Janotti representa O resultado de um esforço notável das duas autoras no sentido de detectar e recensear, através de fichas-resumos, a presença da política, ou da história política, na produção historiográfica dos programas de pós-graduação. Da busca da “política” passaram as autoras à “esfera do político” e revelaram assim a presença “do político” numa grande quantidade de teses e dissertações não classificáveis, em princípio, como de “história política “.

Vavy Borges e Maria Helena Capelato tomam como ponto de partida o comentário do trabalho das duas autoras acima mas logo introduzem reflexões bastante enriquecedoras. Vavy Borges interessa-se pelo problema das relações entre história política e ideologia e o examina de modo original ao sublinhar o papel do “imaginário político” brasileiro na própria elaboração das muitas “interpretações” do Brasil e da “história nacional” desde os anos 20 / 30. Maria Helena Capelato preferiu analisar a noção de “resistências” a fim de compreender as razões e características da verdadeira febre historiográfica que, a partir dos anos 70, levou a tantas pesquisas, boas e más, sobre “as resistências” na História do Brasil, não deixando de apontar os perigos e equívocos teóricos presentes nessa tendência.

Apesar das muitas diferenças que os distinguem, forçamos a junção, no quarto tópico, dos textos elaborados por Marcelo Jasmin, Marco Antonio Pamplona e José Augusto Drummond. O artigo de Marcelo Jasmin, ao enfocar o tema da “historiografia e liberdade” a partir do famoso texto de Alexis de Tocqueville, propõe, na verdade, uma leitura compreensiva na qual preponderam as “intenções” do autor francês e sua inserção num certo “lugar” histórico, ou seja, um certo pragmatismo e um evidente presentismo. Concordemos ou não com Marcelo Jasmin, seu trabalho é inteligente e ousado, especialmente quando conclui, com Tocqueville, acerca do trabalho historiador em geral.

O trabalho de Pamplona, bem estruturado e bibliograficamente rico, sintetiza e discute os clássicos da historiografia do “protesto popular” em ambientes urbanos, com destaque para Rudé, Hobsbawm, Tilly e Cohn. A discussão dos conceitos, as tentativas de elaborar tipologias, as questões que permanecem em aberto e os possíveis caminhos de investigação constituem os pontos altos deste texto. Mais que simples revisão bibliográfica, o texto de Drummond constitui um verdadeiro ensaio a propósito do livro de Warren Dean. O entusiasmo de Drummond pelo autor e sua Obra não o impedem de discordar aqui e ali e apontar alguns lapsos ou ausências cujo caráter “acidental” não hesita em pôr em dúvida. Enfim, um diálogo inteligente do leitor / admirador com o autor que admira mas de cuja “inocência” desconfia.

Agora, boa sorte! Prossiga o leitor, por sua própria conta, este diálogo que tentamos apenas sugerir.

Francisco José Calazans Falcon – Editor convidado.


FALCON, Francisco José Calazans. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.9, n.17, jan. / jun. 1996. Acessar publicação original [DR]

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Caminhos da Historiografia / Estudos Históricos / 1988

Por uma Revista de História

Enquanto as ciências sociais têm pretendido desnudar a previsão e a regularidade nos fatos sociais, a história vem recentemente refletindo sobre a indeterminação e O acaso na vida humana. A história quer nos falar da ação humana na construção de fatos, instituições e sociedades: do reino da liberdade. As ciências sociais têm usualmente pesquisado as determinações e os limites de ação, ou seja, o reino da necessidade. Sabemos que a liberdade e a necessidade se fazem presentes na vida do ser humano. O espaço da liberdade não é tão grande quanto possa supor uma história que não busque causalidades, – mas, ao mesmo tempo, a ação humana não é completamente limitada. As utopias tiveram, têm e terão lugar no universo do homem.

Apostamos em uma visão integrada desses dois saberes que lidam com o universo humano. A visão da história como uma espécie de laboratório das ciências sociais ou a proposta de análises que distinguem, não sem hierarquizar, uma dimensão sincrônica e diacrônica mantêm a separação formal entre os campos da história e das ciências sociais. Queremos agrupar compreensão histórica e explicação. Entendemos que história é an6lise e enquanto tal não restabelece as coisas “tais quais elas se passaram”. O encadeamento de eventos só ganha importância na medida em que temos conceitos nos informando sobre sua relevância. Isto é tão importante quanto nos lembrarmos da historicidade das teorias.

A historiografia no Brasil tem s6lida tradição de análise em dupla direção. Ou se afirma que nada muda neste país, ou se afirma cada momento como novo. Vivemos como se o novo não existisse ou como se o novo brotasse do zero. Mas em ambos os casos vivemos um profundo preconceito contra as origens, já que “o passado nos condena.” Nem a idolatria do passado, nem a negação total das origens nos ajudam a entender o presente e a construir um futuro. A amnésia é um castigo e um recurso de poder, pois esquecer significa ser obrigado a criar do nada. É também uma falsidade, pois, proibido de entrar pela porta da frente, o passado faz sua entrada pelos fundos. Recordação e esquecimento são igualmente importantes para a sociedade continuar a existir. A memória, composta do que se retém e do que se abandona, funda a identidade pessoal e coletiva, e é através dela que se pode comparar e avaliar as experiências particulares e sociais.

Dentro desta perspectiva, queremos ser um veículo onde se apresentem, se analisem e se debatam diferentes maneiras de compreender o Brasil. Entendemos que o momento presente nos coloca diante de perguntas cujas respostas podem e devem ser buscadas também em momentos passados. Uma história dos eventos, das culturas, das políticas nos ajuda a entender o Brasil em perspectiva.

Nossa proposta é a de reunir em uma revista todos os profissionais interessados em participar da análise do Brasil sob uma perspectiva histórica. Não queremos fazer uma revista de historiadores, ou de sociólogos, ou de cientistas políticos. Queremos sim que ela seja um órgão de divulgação de uma perspectiva multidisciplinar voltada para a história do Brasil. Queremos enfim ser o instrumento da divulgação de um saber que considera irrelevante o traçado de certas fronteiras acadêmicas e entende o conhecimento da história de um país não como um objetivo exclusivamente erudito e sim como uma preocupação fundamental para a vivência cotidiana de seus cidadãos.

Os editores.

Os editores. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.1, n.1, jan. / jun. 1988. Acessar publicação original [DR]

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Estudos Históricos | FGV | 1988

Estudos Historicos3 2

Estudos Históricos (Rio de Janeiro, 1988-) é um periódico trimestral em que cada publicação trata de um tema específico. Publicada ininterruptamente desde 1988, a revista se destaca por seu perfil interdisciplinar.

Estudos Históricos como objetivo publicar trabalhos inéditos, com perspectiva histórica, de pesquisadores da comunidade acadêmica nacional e internacional nas áreas de História, Ciências Sociais e outros campos relacionados. A revista é classificada como A1 no Qualis CAPES, na história e nas áreas interdisciplinares.

Está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC) do CPDOC / FGV, que possui curso de mestrado, mestrado acadêmico e doutorado.

A revista também tem sido um elo importante na comunicação entre os programas de pós-graduação, principalmente na área de História e Ciências Sociais.

Periodicidade trimestral.

Acesso livre

ISSN 2178-1494 (Online)

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