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Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos – DOMINGUES (SS)
DOMINGUES, Ivan. Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos. São Paulo: Edições Loyola, 2012. Resenha de: SILVA, Evaldo Sampaio da. O grau zero da diferença? Scientiæ Studia, São Paulo, v.12, n. 3, p. 591-9, 2014.
Quando publicou O grau zero do conhecimento, Ivan Domingues se defrontava admiravelmente com um objeto ao qual iria destinar toda a sua carreira desde então, a saber, o problema da fundamentação das ciências humanas, não por acaso o subtítulo dessa obra inaugural. Oriundo de uma tese de doutorado defendida na Sorbonne, o livro era inspirado por uma senda aberta sobretudo por As palavras e as coisas, cujo autor, Michel Foucault, Domingues teve a oportunidade de acompanhar in loco em dois cursos ministrados no Collège de France. Os cursos, intitulados “Le souci de soi” e “L’usage des plaisirs”, foram ministrados por Foucault, respectivamente, em 1981 e 1983, na cátedra de História dos Sistemas de Pensamento. Em 1982, Domingues também teve a oportunidade, no mesmo Collège de France, de acompanhar o último curso que Claude Lévi-Strauss ministrou, antes de sua aposentadoria, na cátedra de Antropologia social. Mas Domingues (1991) não pretendia simplesmente dar continuidade ao instigante programa de estudos entrevisto por Foucault, senão subvertê-lo em seu próprio solo conceitual ao propor que a noção de episteme – moderna – que surge das investidas genealógicas e arqueológicas do mestre francês não seria apenas uma, mas várias, e que, por isso, quanto às ciências humanas cultivadas entre os séculos XVII e XIX, poderíamos discriminar pelo menos três estratégias discursivas epistemicamente díspares, no caso, a “essencialista”, a “fenomenista” e a “historicista”. A estratégia essencialista se edificaria em torno da metafísica e do método lógico-metafísico (Port Royal) e metafísico-matemático (Spinoza); o discurso fenomenista fora instituído pela física, sobretudo com o método empírico-dedutivo (Montesquieu) e o matemático-experimental (Smith); já a terceira estratégia discursiva viria a lume dos estudos históricos conduzidos pelo método positivo-comparado (Bopp) e dialético-hipotético-dedutivo (Marx). Para justificar tais desconfianças, empreendeu-se ali uma leitura ampla e erudita por áreas como a economia, a linguística, a política e a história. O resultado foi “um ensaio sobre as diferentes formas de pensar que conformaram a Episteme moderna” (Domingues, 1991, p. 9) no qual se buscou explicitar, com base naquelas estratégias discursivas e seus respectivos métodos, o nascimento do “espírito geométrico”, do “espírito positivo” e do “espírito histórico”, os quais representam as distintas e irredutíveis figuras de pensamento que constituíram as ciências humanas no período. Dessas figuras de pensamento, o espírito ou consciência histórica, com sua inclinação relativista e niilista, instauraria uma conjuntura na qual o problema mesmo da fundamentação do conhecimento e, por conseguinte, da fundamentação das ciências humanas, cai em descrédito, sendo preciso doravante pensá-lo em “bases absolutamente novas” (1991, p. 10).
Após alguns trabalhos nos quais aquilatou e repercutiu as conclusões daquela primeira grande investida (por exemplo, O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história, de 1996, reeditado posteriormente em francês em 2000), Domingues publica o Epistemologia das ciências humanas, Tomo I: positivismo e hermenêutica, fruto de sua tese de habilitação para o cargo de Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Se a obra O grau zero visava o problema da fundamentação das ciências humanas quando de sua “pré-história” moderna e concluía pela necessidade de uma reconsideração de toda a problemática, chegara o momento oportuno de procurar tal reconsideração nos paradigmas e modelos das ciências do homem no século XX. Nesse ínterim, tratou-se ali das “formas de racionalidade e estratégias discursivas” (Domingues, 2004, p. 17) pelas quais Émile Durkheim (o “positivista”) e Max Weber (o “hermeneuta”) delinearam duas das principais vias das chamadas “ciências sociais” e, por conseguinte, de como a concretização destas contribui decisivamente para repensar a questão fundacional. Obteve-se assim um estudo de fôlego no qual o leitor se depara com duas concepções paralelas de “construtivismo social”, a saber, o projeto durkheimiano para instaurar a sociologia como ciência empírica autônoma, especialmente com seus estudos sobre o suicídio, e o projeto weberiano para fundar a sociologia como uma “ciência compreensiva objetivante”, principalmente com suas pesquisas de sociologia da religião. Mas o fio condutor para tal investigação adveio de “uma pequena e instigante passagem de Lévi-Strauss segundo a qual o grande desafio das ciências humanas é pensar a diferença”, ou seja, conciliar no pensamento fenômenos irredutíveis e por vezes conflitantes. Isto levou o epistemólogo à conjectura de que, no domínio do social, “a diferença é primitiva e a identidade derivada” (cf. Domingues, 2004, p. 22). Por tal conjectura é possível esclarecer, sob nova chave de leitura, por que o primado da categoria de identidade impediu as principais estratégias discursivas (essencialista, fenomenista, historicista) que permearam a pré-história das ciências do homem de responderem apropriadamente ao problema do fundamento e como isso levou essa questão a cair em descrédito. Além disso, auferir as várias maneiras distintas de tratar a diferença, a oposição e a contradição no âmbito do social permite ao epistemólogo enfim pensar o problema da fundamentação das ciências humanas em bases absolutamente novas. Para tanto, cunhou-se um repertório de conceitos e perguntas que lhe permitiram apreciar e comparar as doutrinas daqueles protagonistas das ciências sociais, tais como as chamadas tipologias das formas de racionalidade (que discriminam as articulações dicotômicas, triádicas, ramificadas etc., pelas quais são discutidas a diferença e a diversidade social), o tripé metodológico descrição / explicação / interpretação (que permite ponderar as dificuldades de ajuste entre o discurso, a teoria e a pesquisa empírica), a noção de objetividade nas ciências humanas proposta ou apenas pressuposta pelas abordagens examinadas (e como aquela as conduziu à condenação dos expedientes introspectivos e a tratar os fenômenos sociais como um conjunto de “formas objetivadas”) (2004, p. 17-9). A rigor, essa empreita sequer exigia que um Weber ou um Durkheim se comprometessem inteiramente com a primazia da diferença quanto às ciências do homem, sendo o suficiente que naqueles se encontrassem elementos apropriados para justificar conceitual e historicamente essa orientação.
Com Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos, Domingues alcança o ponto nevrálgico de sua iniciativa epistemológica através de uma leitura abrangente e penetrante do maior antropólogo francês. Previsto inicialmente como o segundo tomo de Epistemologia I – e enfim escrito e publicado de modo independente –, este novo trabalho continua o projeto de refletir sobre a fundamentação das ciências humanas a partir do primado da diferença, porém tomando por objeto uma disciplina em particular, a antropologia, ou, mais precisamente, a antropologia estrutural. Mas por que, após um livro dedicado às estratégias discursivas exemplares das protociências humanas e outro concentrado nas principais abordagens positivistas e hermenêuticas das ciências sociais, Domingues escreve um terceiro ato que consiste em um estudo tão somente da antropologia estrutural de Lévi-Strauss? Em primeiro lugar, porque, como dito, fora uma passagem de Lévi-Strauss que fornecera a gazua para adentrar nas abordagens positivistas e hermenêuticas, sendo ele, portanto, uma referência primordial no percurso ora ensejado. Em segundo lugar, porque, como se verá a seguir, a urdidura do livro pretende mostrar como a antropologia estrutural lévi-straussiana – da qual a análise dos mitos representa o coração selvagem do sistema – parece fornecer ao epistemólogo o caminho mais fecundo, a despeito de seus obstáculos e riscos, para a fundamentação das ciências humanas.
O cerne de Lévi-Strauss e as Américas é composto por uma introdução de caráter programático e metodológico, seis capítulos temáticos e uma breve conclusão. A introdução repõe o problema da fundação das ciências humanas e, se é verdade que em nada contradiz ao programa geral redigido nos prefácios dos trabalhos anteriores, alcança um esclarecimento metódico superior. Novas perguntas sobre a questão fundacional incitam à distinção entre o “fundamento histórico ou arqueológico” (archaios), diacrônico e facultado à história ou sociologia da ciência, e o “fundamento epistemológico ou arquitetônico” (arché), conduzido pela ideia de princípio ou ponto de partida e da alçada da epistemologia da ciência (p. 15). Enquanto a história ou sociologia da ciência estudam as instâncias sancionadoras de um campo disciplinar sobretudo em seus aspectos públicos e institucionais, à epistemologia cabe inquiri-las em função do âmbito conceitual e sincrônico. O exame epistemológico dessas instâncias sancionadoras quando de uma ciência empírica requer uma atenção não apenas para o seu modus cognoscendi, porém igualmente para seu modus operandi (cf. p. 11), uma vez que a coerência interna do discurso precisa ser equilibrada com os procedimentos pelos quais os cientistas levam adiante suas pesquisas e assim constituem seus procedimentos de prova e contraprova. Daí que o problema da fundação das ciências humanas tenha por objeto um discurso científico e não somente proposições ou cadeias linguísticas, o que incita o epistemólogo a adotar uma via alternativa e polêmica àquelas comumente franqueados pela filosofia analítica, o positivismo lógico ou a filosofia da ciência de orientação popperiana. Dissonante ao exame “externalista” das instâncias sancionadoras públicas e institucionais ou às análises “internalistas” das proposições e das cadeias linguísticas, a pergunta pela cientificidade de uma ciência humana conduz a um estudo sobre como a coerência (conceitual) de um campo disciplinar se constitui em meio aos procedimentos pelos quais os próprios cientistas ratificam instâncias sancionadoras (históricas). Uma tal epistemologia histórica e conceitual da ciência se aproxima de autores como Bachelard, Canguilhem, Kuhn e permite refletir tanto o percurso já concluído por Domingues em trabalhos anteriores quanto aquele porvir, a saber, o estudo da cientificidade da antropologia estrutural.
Enquanto metadiscurso, a epistemologia reivindica que seu discurso-objeto tenha obtido certa estabilidade em sua prática teórica e institucional, a despeito de seus antagonismos. Constata-se que “houve um tempo (…) em que a antropologia foi considerada uma disciplina exótica e uma espécie de chiffonière das ciências humanas” e que, posteriormente, “já consolidada e com bastante lastro, a disciplina ganhou aura de prestígio e o status de ciência-piloto das ciências humanas” (p. 18). Que tal prioridade se tenha obtido sobretudo pela contribuição de Lévi-Strauss ratifica que o problema da fundamentação seja então posto em particular para essa disciplina-piloto e sob a perspectiva de seu mais destacado representante. Como nos seus primórdios a antropologia estrutural competia com a antropologia social britânica (cujos principais expoentes eram Malinowski e Radcliffe-Brown) e a antropologia cultural americana (com Boas, Kroeber, Tylor, Löwie e Morgan), dedica-se um primeiro capítulo (“O estruturalismo e as ciências humanas”) a explicar como o paradigma estrutural impactou as ciências humanas e, em particular, a antropologia lévi-straussiana. Retoma-se, inicialmente, a distinção entre a noção de “estrutura”, já registrada em francês desde o século XVI a partir do latim structura, que significava “construir, edificar e erigir (sentido próprio e figurado), e também, desde os tempos romanos, empilhar ou dispor em camadas”, e a noção de “estruturalismo”, que “ao incorporar novas e importantes significações, como disposição, forma, ordem e organização, chega às ciências humanas e sociais” (p. 27-8). Desse modo, pode-se resguardar a anterioridade e independência da noção de estrutura quanto ao estruturalismo, o que permite equilibrar a flutuação semântica deste termo e recontar o seu surgimento por três etapas: a proto-história, que, nos anos 1940, associa correntes díspares e sem relação direta umas com as outras, como a Gestalt, o Círculo linguístico de Praga ou a Escola formalista de Copenhague; a fase histórica, que registra a consolidação e apogeu do paradigma estrutural entre os anos de 1950 e 1980 e teria como marco regulador As estruturas elementares do parentesco, de Lévi-Strauss, bem como um conjunto de artigos e estudos de Jakobson no campo fonológico e literário; o pós-estruturalismo, cuja origem nos anos 1980 é uma consequência do lento e gradual processo de esgotamento e declínio institucional do paradigma que se seguiu ao “maio de 1968” (cf. p. 30-1). Após diferenciar nessa conjuntura quatro paradigmas estruturalistas (a saber, linguístico, antropológico, psicanalítico e semiótico-literário), Domingues discute como Lévi-Strauss constitui o paradigma antropológico por uma apropriação bastante peculiar da linguística estrutural e como tal apropriação obteve tanto êxito que, em seguida, a própria linguística estrutural será substituída pelo paradigma antropológico, como disciplina modelo e única capaz de conduzir o ambicioso projeto então em voga de unificação das ciências do homem. Para certificar como Lévi-Strauss transpõe para a antropologia os operadores da linguística estrutural, o capítulo reserva suas últimas seções a ilustrar como essa apropriação original ocorre de modo exemplar no estudo das estruturas do parentesco e dos mitos.
Uma vez dilucidado como se desenvolveu o paradigma estrutural a partir da noção mais ampla e anterior de estrutura, bem como se firmou o estruturalismo antropológico com base no paradigma estrutural das ciências humanas, o segundo capítulo, “Lévi-Strauss, a etnologia e a fundação da antropologia estrutural”, revela como o antropólogo francês encontra nos componentes que definem o programa estruturalista das ciências humanas – o “construtivismo epistemológico”, o paradigma da linguagem, o “modelo” e o tripé (metodológico) descrição/explicação/interpretação – uma alternativa às abordagens antropológicas de cunho social e cultural, afastando-se destas a tal ponto que se poderia falar mesmo de uma “refundação” desse campo disciplinar. A originalidade de Lévi-Strauss estaria em retomar temas tradicionais das antropologias concorrentes, tais como a análise do parentesco e da organização social, bem como do mito e das religiões primitivas, sob a hipótese de que “a estrutura será o elemento comum e o traço de união que permitirá ao antropólogo operar o diverso das comunidades humanas, reconhecendo as diferenças que as apartam e as semelhanças que as aproximam” (p. 94). Mais precisamente, em vez de buscar a cientificidade dos estudos do parentesco e dos mitos pelo inventário das gêneses e repertoriar as mudanças que estabelecem as funções das coisas, trata-se antes de “descobrir e evidenciar as estruturas que as abrigam e subjazem à diversidade dos fenômenos”. Como a noção de estrutura se constitui acima de tudo enquanto um sistema de diferenças e oposições, Lévi-Strauss não visará, portanto, a busca por semelhanças e sim “a tarefa de analisar e interpretar as diferenças” (p. 95). Diante de tais procedimentos, pode-se explicar como a antropologia estrutural conquista para a ciência um conjunto de temas até então difusos e mesmo disputados por diversas áreas, dentre os quais os sistemas mitológicos e as representações religiosas dos povos primitivos ocupam lugar de destaque. Enquanto tradicionalmente se recusou aos mitos qualquer racionalidade ou uma suposta racionalidade facultada pela sociedade ou pela natureza, Lévi-Strauss consegue com o paradigma estrutural obter “a chave [para a análise científica] do mito no próprio mito, em cuja base ele vê o trabalho do pensamento simbólico, em um processo que se passa por inteiro no interior do pensamento” (p. 151).
Ao garantir ao mito, ou, melhor dizendo, aos sistemas mitológicos, uma lógica interna que lhes atesta inteligibilidade própria e enfim torná-los objeto de investigação científica, Lévi-Strauss assegura a efetividade das ciências humanas num âmbito no qual até ali qualquer procedimento racional parecia arbitrário e extrínseco. Por isso, o terceiro capítulo, “A análise estrutural dos mitos: vias e variantes”, é decisivo para indicar como a antropologia estrutural tem no exame dos mitos a pedra de toque para a fundamentação das ciências humanas. Trata-se de elucidar em pormenor como LéviStrauss faz “ciência de uma coisa tão disparatada, em que a imaginação e o arbitrário” parecem se impor sobre “a lógica e a regularidade (…) onde imperam o tudo pode e as histórias contadas dão lugar a um verdadeiro breviário da estupidez humana” (p. 139). Após reconstituídas as mais influentes concepções sobre o estatuto do mito desde a Antiguidade até o estruturalismo francês, classificam-se e hierarquizam-se os vários trabalhos de Lévi-Strauss quanto ao tema, reconstituindo-se a intenção e os resultados por ele obtidos em seu itinerário. Para melhor precisar tais intenções e resultados, o quarto capítulo, “Um mito paradigmático: A Gesta de Asdiwal”, toma como exemplar uma série de formulações e reformulações do antropólogo francês em torno de um estudo alentado, inicialmente objeto de um curso proferido na École Pratique. A vantagem epistemológica de tomar a Gesta como paradigma e não, por exemplo, as Mitológicas, principal obra de Lévi-Strauss no estudo dos mitos, deve-se a que aquela, diferente da extrema fragmentação do corpus desta, oferece um mito completo e suas variantes, o que permite ao epistemólogo melhor avaliar a fecundidade e as adversidades da antropologia estrutural. Trata-se, portanto, de uma prioridade arquitetônica, a qual autoriza lançar luz sobre trabalhos historicamente anteriores e até mais relevantes, porém menos fecundos epistemologicamente.
Os quatro primeiros capítulos constituem o primeiro arco do livro, seguindo uma direção que vai do mais geral para o particular – da noção de estrutura ao estruturalismo, do estruturalismo ao estruturalismo nas ciências humanas, deste ao estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss, e deste último a um estudo paradigmático de LéviStrauss, a Gesta. Os capítulos seguintes traçam outro arco no qual se trata de pensar a singularidade archeológica do que fora até aqui obtido, e assim a questão fundacional retorna ao primeiro plano em definitivo. O quinto capítulo, “As dualidades fundadoras da antropologia estrutural: o caso do sistema mitológico ameríndio”, para além das intenções e resultados manifestos pelo antropólogo em seus estudos sobre os sistemas mitológicos, oferece uma interpretação do pensamento lévi-straussiano segundo a qual este opera primordialmente com díades e instala um conjunto de operações binárias, mas também mediações pelas quais incorpora tríades e figuras mistas, extrapolando assim o binarismo inicial e constituindo enfim um “sistema aberto e plural” (p. 255). A hipótese de Domingues é que a maneira pela qual Lévi-Strauss articula essas categorias epistemológicas subjacentes, já avultadas quando do estudo de Weber e Durkheim no Epistemologia I, permite mostrar e justificar a superioridade da antropologia estrutural para “pensar a diferença”, de modo que seu exame oferece, no âmbito epistêmico, as tais novas bases para o problema da fundamentação das ciências humanas.
O sexto capítulo aborda “O impacto da obra de Lévi-Strauss: legados, críticas e caminhos”, complementando as incursões conceituais do capítulo anterior por um balanço das repercussões da antropologia lévi-straussiana, em especial dos principais desafios por ela enfrentados. Nesse ponto, alguns apreciadores e adversários do eminente antropólogo francês são trazidos à baila e suas contribuições avaliadas, as quais auxiliam o epistemólogo na tarefa de indicar os limites e as carências do projeto antropológico-estrutural. Dentre esses, merecem destaque as críticas de filósofos como Claude Lefort, para quem “Lévi-Strauss é um platônico [que] despreza a história e apreende na sociedade regras em vez de comportamentos” (p. 365); Paul Ricouer, segundo o qual Lévi-Strauss “esvazia o sentido dos mitos [e] professa um estranho kantismo” ao “instalar um sistema de categorias sem o sujeito transcendental” (p. 365); e Jacques Derrida, que acusa a antropologia lévi-straussiana de “logocentrismo” (p. 366). Por outro lado, há antropólogos da escola anglo-saxã, como Edmund Leach, para quem os métodos de Lévi-Strauss conduzem para “onde tudo é possível e nada é verdadeiro”, apreciação que é complementada pelo influente Rodney Needham, o qual vê nas categorias que vigoram nas Estruturas elementares do parentesco uma “generalização abusiva” (p. 367-8). Afora o debate mais amplo da obra de Lévi-Strauss, Domingues documenta o conflito especializado para com hipóteses e trabalhos específicos, como o “mito de Édipo” e, obviamente, as Mitológicas e A gesta de Asdiwal.
As virtudes e vícios do projeto antropológico-estrutural dão azo para um balanço final que confirma a fundação da antropologia – e, por conseguinte, das ciências humanas – e aponta os novos desafios que lhe são reservados. Em primeiro lugar, a despeito do fim da “moda estruturalista”, a obra de Lévi-Strauss parece ainda conservar o seu vigor, de modo que Domingues, rejeitando alguns seguidores do mestre francês, como Eduardo Viveiros de Castro, que o leem como um “pós-estruturalista” avant la lettre, defende que Lévi-Strauss manteve-se sempre fiel a sua orientação original, sendo, portanto, um “estruturalista da velha e boa cepa” e, seguramente, o último “epígono” e “fortaleza” do movimento (cf. p. 80). Em segundo lugar, para além dos estudos dos chamados povos primitivos e da temática do selvagem, a antropologia se volta agora para outras linhas de pesquisa, tais como a antropologia simbólica (Geertz), a antropologia da performance ou pragmática (V. Turner), a antropologia desconstrutivista pós-moderna (J. Clifford e G. Marcus) e a antropologia cognitiva (D. Sperber). Sem dúvida essas novas vias também se preocupam em “pensar a diferença”; todavia, parece que aqui há um dissenso quanto ao significado dessa máxima que chega às raias da antonímia. Se para essas antropologias recentes pensar a diferença significa tratar de assuntos e/ou grupos restritos e até marginalizados, para Lévi-Strauss a diferença precisa ser cogitada num âmbito mais primordial. A consequência direta disso é a contraposição consciente que o antropólogo francês entreviu entre seu projeto de “aderir às coisas mesmas” pela busca do “sentido virtual e de posição” e a empreita pós-moderna de perquirir o “sujeito” e o “sentido por trás dos sentidos” (cf. p. 395-6). Para o epistemólogo, essa bifurcação da antropologia – e, por que não dizer, das próprias ciências humanas – encena as variantes pelas quais os pensadores procuraram lidar com a diferença irredutível dos fenômenos humanos. Uma hipótese que Domingues não escancara, mas também não disfarça, é que essas linhas pós-modernas – sobretudo hermenêuticas segundo a avaliação de Lévi-Strauss – descenderiam justamente do abandono da questão fundacional após o advento do espírito histórico, já apresentado no desfecho de O grau zero. Assim, acompanhar a antropologia estrutural lévi-straussiana significaria caminhar junto daquele modo de pensar a diferença que ainda conserva consigo a relevância da questão fundacional.
Lévi-Strauss e as Américas é o desenlace de uma trilogia iniciada com O grau zero do conhecimento e seguida por Epistemologia das ciências humanas. Embora cada um desses trabalhos possa ser lido separadamente, a sua conjunção constitui o audacioso projeto de fundamentação das ciências humanas cumprido por Ivan Domingues nas últimas três décadas. Felizmente, a sensação do leitor não é a do esgotamento, porém a constatação das peças dispostas sobre o tabuleiro à espera de um vindouro lance inaudito. O livro prova que Domingues deixou o melhor para o final. Uma última consideração, talvez extemporânea. Com a consolidação da pesquisa filosófica de pós-graduação no Brasil – da qual o professor Domingues é parte efetiva no plano acadêmico e institucional –, o novo desafio (nem tão novo assim) é consolidar uma produção filosófica local e que ouse desbravar caminhos para além dos cânones da metrópole ideal. Há quem pense que isso significa fazer história da filosofia de pensadores nacionais, tratar de temas ditos “regionais” ou buscar desesperadamente por gêneses “tupiniquins”. Falta aqui alcançar a sagacidade de um Machado de Assis, o qual, numa fórmula célebre, atestara que um pensador pode ser “homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (Assis, 1979, p. 804), espezinhando aqueles que “só reconhecem espírito nacional nas obras que tratam de assunto local” (p. 803). Ora, assim como Lévi-Strauss não deixa de ser francês ao escrever os seus Tristes trópicos, no qual reflete antropologicamente sobre suas experiências com os índios brasileiros, Domingues não deixa de ser brasileiro ao refletir epistemologicamente sobre Lévi-Strauss. Ou seja, tanto como pareceu atual e pertinente aos europeus o que um antropólogo teria a dizer sobre os ameríndios, para nós é atual e pertinente ouvir o que um epistemólogo tem a dizer sobre o olhar antropológico projetado em nossos conterrâneos. A questão, portanto, talvez não seja de base “histórica ou arqueológica” (archaios), mas quem sabe “epistemológica ou arquitetônica” (arché). Nesse sentido, o projeto epistemológico que culmina com Lévi-Strauss e as Américas não estaria também a nos ensinar um caminho para o nosso amor à sabedoria?
Referências
COUTINHO, A. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979. 4v.
ASSIS, M. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In: Coutinho, A. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979. v. 3, p. 801-9.
DOMINGUES, I. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das ciências humanas. São Paulo: Loyola, 1991.
_____ O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo: Iluminuras, 1996.
. _____. Le fil et la trame: refléxions sur le temps et l’histoire. Paris: L’Harmattan, 2000.
_____. Epistemologia das ciências humanas. Tomo I: positivismo e hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2004.
_____. Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos. São Paulo: Loyola, 2012.
Evaldo Sampaio da Silva – Departamento de Filosofia. Universidade de Brasília, Brasil. E-mail: evaldosampaio@unb.br
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