Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola – QUINSANI (CTP)

QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014. Resenha de: DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. A Guerra contra o esquecimento da Guerra. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 17, p. 74-78, set./out. 2014.

Tempo de mudanças substanciais na História da Humanidade, o Século XX foi um período repleto de disputas, sejam elas entre classes sociais, como a Revolução Russa, sejam elas de caráter ideológico, como a Guerra Fria. Se na primeira o socialismo saiu vencedor, ao forjar uma sociedade de modulações totalmente novas, na disputa da Guerra Fria o projeto de formação econômico-social capitalista sobressaiu-se em detrimento da proposta representada pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Esse Século XX foi claramente cortado em sua metade. O conflito de maiores proporções de destruição, morte e terror que ocorreu em todo o desenvolvimento humano foi a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Esse conflito foi tão peculiar, porque único, que foi capaz de alicerçar uma aliança entre a vencedora da Revolução de 1917 e o bastião maior do capitalismo, os Estados Unidos da América (EUA). Uniram-se, a despeito de tudo o que mais acreditavam, pelo objetivo de enfrentar e vencer o Nazismo. Ao impingirem a derrota militar às forças do Eixo permitiram que a História se desenvolvesse como hoje a conhecemos.

Mas a Segunda Guerra Mundial não foi de todo uma novidade na experiência histórica. Trazia, em seu bojo, reminiscências extremamente próximas de um conflito que também se fez militar, que também se fez ideológico e que – como tão bem se reportou o jornalista Herbert Matthews2– dizimou metade de um país. Esse conflito foi a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

O “maior historiador nato de nosso tempo”,3 Eric Hobsbawm, afirma que “as disputas da década de 1930, travadas dentro dos Estados ou entre eles, eram portanto transnacionais. Em nenhuma parte isso foi mais evidente do que na Guerra Civil Espanhola de 1936-9, que se tornou a expressão exemplar desse confronto global”.4 Estavam em confronto, dentro do território espanhol, as forças que defendiam a República com seu projeto de um Estado laico, com desenvolvimento social, educação pública não confessional e reforma agrária versus o agrupamento de forças que tinha na Igreja Católica e no alto oficialato das Forças Armadas, com seu projeto de conservação social, de apoio aos latifundiários e de manutenção da ordem tradicional. O que conferia esse caráter transnacional e, porque não, de laboratório da Segunda Guerra Mundial, era o apoio dos fascistas, com seus mais de 70 mil soldados italianos e dos mais de 40 mil membros das Brigadas Internacionais, oriundos de 53 países, dentre eles a URSS, os EUA, a França, e inclusive do Brasil.

Mas as novas gerações, principalmente fora da Espanha, mas não só, quase não sabem disso, como atesta Eric Hobsbawm: “Hoje parece pertencer a um passado pré-histórico, mesmo na Espanha”.5 Passados pouco mais de 75 anos do conflito, vivemos “uma era de esquecimento”,6 um tempo no qual a experiência histórica parece estar perdendo o seu valor. Vivemos imersos no presente, reféns do imediatismo em todos os tipos de relações, até mesmo com nossa consciência. E isso representa um perigo, pois, se o passado deixa de ser um ponto de reflexão, o mesmo pode ocorrer ao futuro e, com isso, podemos perder a capacidade de perseguir projetos de vida, sociais ou individuais.

Mesmo em plena era de esquecimento, ainda há possibilidades de lembrança. E uma das mais eficientes se dá pela arte, em especial aquela que é a expressão artística por excelência do Século XX: o Cinema. Ao associá-lo com a História, temos, então, uma poderosa ferramenta de análise. É o que acontece no livro A Revolução em Película,7 do historiador Rafael Hansen Quinsani.

Nessa obra, o autor parte da premissa de que “nossa função [dos historiadores] continua sendo lembrar e tornar inteligível o que muitos (propositalmente ou não) esquecem.8 Quinsani, desse modo, demonstra a mesma preocupação de Judt, quer seja, combater o esquecimento, trazer a História para o centro da vida social. E ele faz isso com muita competência.

O livro está organizado a partir de uma Introdução ao tema, seguido de um capítulo teórico-metodológico intitulado Cinema-História. Na introdução, é realizada uma rápida historicização do Cinema. Em seguida, é evidenciado a forma como serão analisados os filmes elegidos para o estudo, todos relacionados com a Guerra Civil Espanhola. A introdução ainda traz uma importante reconstituição do conflito, a partir de suas bases materiais e ideológicas. No capítulo primeiro, é elaborada uma densa e consistente reflexão teórica-metodológica. A partir das noções de imagem, representação e ideologia, Rafael Hansen Quinsani perscruta o desenvolvimento da História ao longo do Século XX. Para tanto, toma mão de autores consagrados, como Marc Ferro, Roger Chartier e Michel Vovelle.

No capítulo intitulado Primeira Projeção: !Ay, Carmela! Arte, Guerra e o Início do Debate é abordado o filme !Ay, Carmela!, do diretor espanhol Carlos Saura, produzido em 1990. Além do filme, esse capítulo traz outras fontes que foram muito bem trabalhadas pelo autor, como algumas canções da época da Guerra Civil Espanhola e a peça de teatro homônima de autoria de José Sanchis Sinisterra. Essa triangulação de fontes produz um capítulo muito rico em termos de História da Cultura, pois Quinsani realiza, de forma acurada, a crítica externa e interna dos documentos escolhidos, realizando, inclusive, um debate muito interessante sobre a adaptação da literatura para o cinema.

O filme traz o impacto que os soldados italianos do regime fascista de Mussolini causaram na Guerra Civil Espanhola. Realiza uma potente crítica ao fascismo, ao demonstrar como os soldados italianos transformaram uma escola em prisão! E realiza, através da analise do autor, uma síntese da sociedade espanhola do período a partir de seus personagens principais:  Os três personagens acabam compondo um só personagem que, no seu somatório de características, simboliza a Espanha daquele contexto. Carmela é o lado emotivo, sentimental, preocupado com os outros e direta em suas declarações, representa os combatentes e os simpatizantes da República, Paulino está disposto a sobreviver a qualquer custo, maleável a diferentes contextos, propício a se adaptar às exigências nacionalistas, e Gustavette é a jovem geração, silenciada pelas bombas, pelo terror já presente e que se estenderá sob os anos do Franquismo.9 Ainda é realizada pelo autor uma associação entre a personagem Carmela com as distintas representações da República, em especial com uma tela muita estimada por mim, A Liberdade Guiando os Povos, de Delacroix. Embora as batalhas típicas do conflito militarizado não estejam presentes na película, fica muito patente a forma pela qual a vida das pessoas foi modificada durante o conflito. E, mais além, como se deu a relação da cultura sob o regime de Franco.

A Segunda Projeção: Terra e Liberdade, o enfoque estrangeiro: as disputas e conflitos no interior do processo revolucionário, trabalha com o filme Terra e Liberdade, do cineasta britânico Ken Loach. É nessa película, de 1995, que fica mais em evidência o caráter internacional do conflito, “uma versão em miniatura de uma guerra europeia” de acordo com Hobsbawm.X A composição das Brigadas Internacionais, o apoio intensivo de Hitler e Mussolini aos nacionalistas espanhóis, o apoio e os limites estratégicos impostos por Stálin bem como a política de apaziguamento, para não dizer total omissão, do governo de Frente Popular de Léon Blum na França estão presentes nas análises feitas pelo autor.

Assim como no capítulo anterior, neste, Rafael Hansen Quinsani analisa detalhadamente também uma fonte literária, o famoso Lutando na Espanha, de George Orwell – que, assim como Ernest Hemingway participou da Guerra Civil Espanhola. Há uma polêmica, destacada por Quinsani, a respeito de Terra e Liberdade ser ou não baseado no livro de Orwell. Mesmo assim, muitas são as semelhanças entre o livro e o filme, e elas são deslindadas com elegância nesse capítulo.

Neste capítulo há uma excelente análise de História Política, na qual o autor esmiúça as divergências entre os grupos que defendem a República, sejam eles anarquistas, membros do Partido Comunista ou trotskistas vinculados ao Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM):  Outra cena que explicita claramente a fragmentação da esquerda e faz uma crítica à centralização e à stalinização é aquela em que David, após deixar as milícias, ingressa no exército e acaba envolvido num combate com anarquistas durante os “eventos de maio de 1937”. No filme todo o contexto e os debates são sintetizados e condensados na cena em que anarquistas e comunistas estão frente a frente nos telhados de prédios vizinhos. Entre tiros esparsos e insultos mútuos, os referenciais históricos de cada grupo se fazem presente: “– Você deveria estar matando fascistas e não outros. –Ei, você, o sócio de Stalin. Em que divisão estava você? – A divisão de Karl Marx. E você é da Terceira Divisão? – Não, seu bastardo. Somos da Divisão de Durruti, o melhor”.XI  Na Terceira Projeção: Libertárias. As milícias, o papel das mulheres e o auge do debate, a obra analisada é o filme Libertárias, do diretor Vicente Aranda, realizado quase simultaneamente ao filme de Ken Loach. O centro da análise empreendida por Quinsani é o protagonismo das mulheres na Guerra Civil Espanhola e no Cinema. Para tanto, o autor realiza uma eficiente síntese abarcando as décadas de 30 a 70 do século passado. Em relação a Guerra Civil, é elaborado um histórico sobre a emancipação feminina a partir da organização Mulheres Livres, fundada no mesmo ano em que o conflito se iniciou. Além disso, a análise remete a representação das mulheres protagonistas do filme:  O mérito do filme de Aranda é fugir da dicotomia puta-miliciana presente no imaginário espanhol e inserir no front de batalhas personagens complexas e dotadas de diferentes visões de vida. Maria representa a mulher pura que aos poucos vai descobrindo elementos que estiveram ausentes em sua vida reclusa. Charo é uma prostituta que decide mudar de vida e é influenciada pelos valores anarquistas. Pilar é uma revolucionária determinada. Floren mistura sua ideologia anarquista com um espiritismo peculiar.XII  Nesse capítulo, ainda são abordados o papel recalcitrante exercido na Espanha “por uma Igreja Católica que rejeitava tudo o que aconteceu no mundo desde Martinho Lutero”XIII e a dimensão do anarquista Buenaventura Durruti, para a Guerra Civil Espanhola.

Na conclusão, o autor compara os três filmes analisados. Para tanto, faz uso da aplicação do seu método histórico-cinematográfico, uma inédita – e sofisticada – classificação elaborada a partir de uma dedicada leitura da obra de Marc Ferro.

A riqueza da análise presente nesse livro demonstra um autor seguro sobre seu objeto de pesquisa. Além da apreciação de elementos cênicos – que muitas vezes passam despercebidos por espectadores menos atentos – passando pelo movimento das câmeras, até chegar a crítica externa das fontes, o que temos em mão é uma aula de História. E o melhor: uma aula ilustrada, pois o livro conta em seus três capítulos de análise, com 119 imagens reproduzidas dos filmes analisados, o que configura como uma das grandes jogadas desse livro, pois quando o autor se reporta a determinada passagem de um dos filmes analisados, na sequencia é possível conferir quase como se estivéssemos no Cinema.

A concepção de História de Quinsani está em consonância com Eric Hobsbawm para quem “o ofício dos historiadores é lembrar o que os outros esquecem”XIV e com Tony Judt, quando adverte à nossa sociedade de que “de todas as nossas ilusões contemporâneas a mais perigosa é a ideia de que vivemos em um tempo sem precedentes”XV. Ao analisar o filme de Ken Loach, o autor foi capaz de ler “que o filme busca educar às novas gerações e alertá-las do perigo do esquecimento”.XVI Pois bem, A Revolução em Película também cumpre esse papel.

Notas

2 MATTHEWS, Herbert. Metade da Espanha morreu: uma reavaliação da Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

3 JUDT, Tony. Reflexões sobre um Século Esquecido (1901-2000). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 149. Judt também observa que Hobsbawm é o “historiador mais conhecido do mundo”. Idem, p. 137.

4 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos – O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 157.

5 Idem, p. 161.

6 JUDT, op.cit., p. 13.

7 QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014.

8 Idem, p. 10. Interpolações minhas.

9 Idem, p. 77.

10 HOBSBAWM, op.cit., p. 162.

11 QUINSANI, op.cit., p. 109.

12 Idem, p. 144.

13 HOBSBAWM, op.cit., p. 158.

14 Idem, p. 13.

15 JUDT, op.cit., p. 32-33.

16 QUINSANI, op.cit., p. 112.

Referências

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos – O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

JUDT, Tony. Reflexões sobre um Século Esquecido (1901-2000). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

MATTHEWS, Herbert. Metade da Espanha morreu: uma reavaliação da Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014.

Charles Sidarta Machado Domingos – Doutor em História pela UFRGS. Professor DIII-3 do IFSUL – Câmpus Charqueadas.

Acesso à publicação original

A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola / Rafael H. Quinsani

Uma das grandes marcas do Século XX é a sua relação com a guerra. Não há como o historiador entender o Século XX –independentemente de sua posição social ou geográfica no mundo –se fechar os olhos para esse fenômeno sempre revestido de violência e de crueldade, pois a guerra é capaz de despertar o lado mais sombrio do ser humano. O maior historiador do (e sobre o) Século XX, Eric Hobsbawm, assim sinaliza a importância da guerra para esse século:

Não há como compreender o Breve Século XX sem ela. Ele foi marcado pela guerra. Viveu e pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões se calavam e as bombas não explodiam. Sua história e, mais especificamente, a história de sua era inicial de colapso e catástrofe devem começar com a da guerra mundial de 31 anos [1].

Além da guerra, o Século XX é também o século por excelência do Cinema. É nesse século que ele se desenvolve tanto em suas técnicas quanto em suas temáticas. Inclusive, é nesse século que é utilizado também como elemento de propaganda, tanto de regimes políticos quanto de modos de vida.

O encontro entre a Guerra e o Cinema no Século XX, então, era só uma questão de tempo:

Assim, a guerra frequentou o cinema intensamente, desde suas origens, ora sob a forma de cinejornal –poucas vezes diferenciado da propaganda política de cunho nacionalista –ora como ficção, celebrando o heroísmo nacional e a tragédia grandiosa da guerra. Algumas vezes, o cinema assumiu, de modo claro, um papel fortemente pacifista, de combate e denúncia contra a guerra, pensada enquanto irrazão [2].

Quando Hobsbawm se reporta a uma guerra mundial de 31 anos, ele quer evidenciar que há um processo de continuidade entre 1914 e 1945. Imediatamente, podemos pensar que ele se refere à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Mas podemos depreender que ele possa estar, também, se referindo a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) dentro desse processo de continuidade. Afinal, não são poucos os historiadores que percebem o conflito da Espanha como um prelúdio da Segunda Guerra Mundial.

Um historiador que assim percebeu a Guerra Civil Espanhola, ressaltando seu caráter de “microcosmo global, pois sintetizava o radicalismo e a polarização de uma era” é Rafael Hansen Quinsani, emseu livro A Revolução em Película. [3] Logo na introdução, é realizada uma síntese eficiente do conflito entre republicanos e nacionalistas, capaz de permitir que mesmo o leitor não especialista na temática tenha uma boa noção do que representavam os dois projetos em disputa na Guerra Civil.

O autor examina, com uma riqueza de detalhes ímpar, a partir de seu método de análise histórico-cinematográficotrês filmes realizados na década de 1990: duas produções espanholas (!Ay, Carmela!, de Carlos Saura e Libertárias, de Vicente Aranda) e uma produção britânica (Terra e Liberdade, de Ken Loach). Muito mais que um historiador que comenta filmes, Quinsani, a partir de sua metodologia de trabalho, obtém uma nova forma de escrita da História, realizada a partir de três eixos articulados entre si: o cinema nahistória, a história nocinema e a história docinema. Para tanto, o autor examina alguns vestígios:

A anotação dos diálogos permitiu a análise do conteúdo histórico de cada fala e de cada personagem. Os diálogos mais irônicos de Libertárias e! Ay, Carmela! ocorrem pela formação dos cineastas espanhóis e pela maior incidência do caráter tragicômico na cultura espanhola como um todo. A anotação dos ângulos de câmera, os planos utilizados, os movimentos empregados e os recursos fotográficos presentes, permitiram o uso do plano geral para enquadrar ambientes naturais e coletividades humanas, como manifestações, reuniões e desfiles presentes nos três filmes. A alternância de planos médios e planos americanos é o que mais ocorre nos filmes. O uso do primeiro plano, o close-up, é empregado para destacar algum objeto (a carteira do Partido Comunista rasgada por David) ou alguma expressão facial (os olhos de Durruti). […] Libertárias, dentre os três, é o que mais apresenta movimentos de câmera, travellingse panorâmicas, ressaltando o caráter dinâmico da narrativa. !Ay, Carmela! também utiliza bastante movimento de câmera, mas concentrado em espaços fechados. Esta é a película que utiliza mais recursos de iluminação direcionados na composição dos personagens. O uso do claro-escuro é empregado em diversos momentos e diferencia-se do tom mais cru utilizado nos outros dois filmes. O emprego do som é utilizado de forma sincrônica à linguagem visual, sendo que algumas vezes ocorre uma transposição para o emprego ilustrativo. Somente Terra e Liberdadeutiliza narração em off, do próprio protagonista, destacando duas instâncias temporais e operando sobre o espectador uma dupla imersão: no passado representado, e no presente em que assiste a esta representação [4].

Assim como duas são também as críticas a serem realizadas perante todo e qualquer vestígio do passado: a crítica interna, capaz de avaliar o significado da fonte histórica; e a crítica externa, na qual se busca a melhor orientação acerca das condições de produção da fonte que “necessariamente está divulgando uma ‘mensagem’, uma interpretação da realidade, uma visão de mundo que pertence ao seu autor. Este é, por sua vez, o resultado de múltiplas e incontáveis relações sociais que remetem para a sociedade onde foi realizada a produção cinematográfica” [5].

Assim, é importante lembrarmos, que os três filmes são realizados na década de 1990, um período no qual a democracia voltou à Espanha após mais de 35 anos de ditadura franquista. [6] Em 1978, três anos após a morte de Francisco Franco, foi estabelecida a Monarquia Parlamentar. Quatro anos após, portanto em 1982, o Partido Socialista Operário Espanhol assumiu o poder político na Espanha. Desse período para cá, muito se debateu acerca da Guerra Civil Espanhola e do Franquismo naquela sociedade, e a produção dos filmes analisados certamente contribuiu para essas discussões. E isso não escapa ao autor, que é capaz de perceber todo o componente político que subjaz a época na qual as pessoas foram aos cinemas assistir !Ay, Carmela!, Terra e Liberdade e Libertárias:

A transição foi baseada numa anistia progressiva, onde o Franquismo se transformou e se adaptou à persistência das elites. A lei da Anistia deixou impunes os autores dos crimes de lesa humanidade, pois buscou silenciar o passado embasado numa hipótese de culpa coletiva [7].

A teoria dos dois demônios é muito propagada na sociedade: está fundamentada na noção –difundida pelos que deram o golpe –de que eventuais “excessos” cometidos pelas forças estatais se justificam em razão de evitar um “mal maior”, quase sempre associado com o comunismo. Não se menciona, no entanto, que houve o aparelhamento do Estado por longos anos de ditadura censurando obras da cultura e mesmo a imprensa, prendendo adversários que muitas vezes sequer desenvolviam atividades que poderiam ser consideradas “subversivas”, obtendo confissões à base de torturas, desaparecendo para sempre com pessoas que contestavam a força dos quartéis.

Que conste que o país em questão ainda é a Espanha. Por mais que eu esteja escrevendo essa resenha em março de 2014. E por mais que você, no Brasil, conheça bem de perto essa História!

Notas

  1. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos–O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 30.
  2. TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Guerras e Cinema: um encontro no tempo presente. In: Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. Niterói: 7 Letras, Vol. 8, nº 16, 2004, p. 95.
  3. QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014, p. 13.
  4. QUINSANI, op.cit., pp. 154-5. Interpolações minhas.
  5. GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. Prefácio –História e Cinema, Noves Fora? In: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (org.). A Prova dos 9: a História Contemporânea no Cinema. Porto Alegre: EST, 2009, p. 11.
  6. Para entender as bases de sustentação de uma ditadura tão longa, o trabalho de Francisco Calero é bastante oportuno. CALERO, Francisco Sevillano. A “cultura da guerra” do “novo Estado” espanhol como princípio de legitimação política. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, Vol. 1, pp. 257-282.
  7. QUINSANI, op. cit., p. 160.

Charles Sidarta Machado Domingos – Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSUL) – Campus Charqueadas


QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhais: Estronho, 2014. 224p. Resenha de: DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. História histórias. Brasília, v.2, n.3, p.191-194, 2014. Acessar publicação original. [IF]