From Africa to Brazil: culture, identity, and an Atlantic slave trade, 1600-1830 – HAWTHORNE (VH)

HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: culture, identity, and an Atlantic slave trade, 1600-1830. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2010, 288 p. MARCUSSI, Alexandre Almeida. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 48, Jul./ Dez. 2012.

O Estado do Grão-Pará e Maranhão é uma região relativamente pouco estudada pelos historiadores que se debruçaram sobre a América Portuguesa, se o compararmos com as capitanias do Nordeste ou com a região de Minas Gerais, por exemplo. Da mesma forma, dentre as regiões da costa africana que participaram significativamente do comércio atlântico de escravos, o tre-cho localizado entre os rios Senegal e Serra Leoa – a costa conhecida como Alta Guiné – talvez seja um dos menos bem contemplados pelos estudiosos. É natural, portanto, que a obra de Walter Hawthorne, que aborda a conexão entre ambas as regiões, seja uma adição bem-vinda à historiografia que trata do período colonial.

Hawthorne, que atualmente leciona História da África na Universidade Estadual de Michigan, é autor de outra obra importante sobre a Alta Guiné, Planting rice and harveting slaves, na qual analisa a produção de arroz na região. Em From Africa to Brazil, ele alarga o escopo da pesquisa para com-preender a articulação dessa região com o Maranhão, outra importante área produtora de arroz do Atlântico que estabeleceu fortes vínculos com o comér-cio guineense de escravos – mais especificamente, com os portos portugueses de Cacheu e Bissau, ao sul do rio Gâmbia.

Como já sugere o subtítulo da obra, que poderia ser traduzido como “Cul-tura, identidade e um comércio atlântico de escravos, 1600-1830”, o objetivo do autor é compreender as influências da diáspora guineense sobre a experi-ência cultural das comunidades escravas no Maranhão, sobretudo no período que se estende de 1750 a 1830, quando houve predomínio numérico de cativos oriundos da Alta Guiné nas importações do porto de São Luís. Esse vínculo é explicado em parte pelo regime de ventos e correntes marítimas do Atlântico, que favorecia as viagens entre a costa norte do Brasil e os portos de Cacheu e Bissau, e em parte pelas políticas pombalinas de desenvolvimento econômico do Estado do Grão-Pará e Maranhão, que tiveram como base a produção do arroz empregando mão-de-obra africana fornecida por esses portos.

O autor compara manifestações culturais dos povos da Alta Guiné com as das comunidades escravas do Maranhão para propor a tese de uma con-tinuidade cultural entre as duas realidades. Dessa forma, a perspectiva de Hawthorne alinha-se à de outros historiadores norte-americanos normalmente denominados “afrocêntricos”, tais como Paul Lovejoy, John Thornton e James Sweet, com os quais Hawthorne mantém intenso diálogo ao longo do livro.

É interessante notar, inclusive, que o plano de capítulos de From Africa to Brazilecoa a organização temática de A África e os africanos na formação do mundo atlântico, de John Thornton,1partindo da realidade africana para iluminar aspectos culturais das sociedades americanas, num projeto de com-preender o protagonismo dos africanos na configuração do mundo atlântico. O primeiro capítulo aborda a transição do regime de mão-de-obra indígena para o trabalho africano no Maranhão, na década de 1750, e analisa a origem geográfica dos escravos desembarcados. Na sequência, o autor empreende um estudo da organização do comércio escravista e da cultura da Alta Guiné, para depois passar à realidade americana, discutindo o regime de produção agríco-la do arroz, as estruturas matrimoniais e familiares vigentes na comunidade escrava e, por fim, as práticas religiosas dos africanos e seus descendentes.

A obra de Hawthorne partilha com a historiografia dita “afrocêntrica” muitos de seus pressupostos e métodos de análise – bem como alguns de seus limites interpretativos. Nota-se logo a importância capital da demografia na argumentação: o autor demonstra que o maior grupo dentre os escravos im-portados para o Maranhão proveio da Alta Guiné, correspondendo a 57% dos ca-tivos desembarcados entre 1751 e 1842. Mais que isso, a análise dos etnônimos nos inventários maranhenses e o profundo conhecimento que o autor tem do funcionamento do comércio escravista na África ainda permitem demonstrar que, dentre os escravos que vieram dessa região, houve claro predomínio das etnias habitantes da faixa costeira (balantas, bijagós, papel, floup, banyuns e brames), em detrimento dos fulas e mandinkas do interior, caracterizando um cenário em que o autor identifica um certo grau de homogeneidade cultural.

A partir daí, a obra busca os vínculos culturais entre as duas regiões. A análise está ancorada, em grande medida, no trinômio origem-etnia-identida-de. Trata-se de propor que os escravos guineenses puderam resgatar a etnia como critério de identidade no Maranhão, recriando na América elementos de sua cultura de origem. Contudo, o autor ressalta que eles não resgataram propriamente suas etnias particulares, mas uma espécie de cultura comum da Alta Guiné, baseada em pressupostos culturais largamente compartilhados, que foram enfatizados na diáspora.

Pode ser proveitoso pensar no argumento do autor à luz daquilo que Luis Nicolau Parés denomina “identidades metaétnicas”, agrupando vários etnô-nimos em denominações mais amplas a partir da interação entre africanos e europeus.2Hawthorne explica de várias maneiras a formação dessa identidade compartilhada: em alguns momentos, sugere que ela possa ter sido uma es-tratégia dos escravos para evitar conflitos étnicos no interior do grande grupo guineense. Predomina na obra, no entanto, a ideia de que essa identidade te-ria sido uma recriação mais ou menos “espontânea” baseada em similaridades culturais já existentes desde a África. Nesse sentido, ela seria de fato um res-gate de uma realidade cultural africana, e não propriamente uma recriação específica da sociedade colonial ou do mundo atlântico.

Observa-se que, em alguns casos, as supostas continuidades culturais com a Alta Guiné estão fundamentadas em fenômenos que também podem ser observados em outras regiões da África e no restante da América Portuguesa – por exemplo, as bolsas de mandinga3 – , enfraquecendo um pouco a argumen-tação do autor. Até por conta disso, a ênfase na costa da Alta Guiné como fon-te majoritária da cultura escrava maranhense soa um tanto exagerada, ainda mais se considerarmos que as etnias da costa nunca chegaram a compor mais de 32% da população escrava.

A despeito de seus limites interpretativos, em grande parte derivados da perspectiva teórica escolhida, a obra apresenta diversas contribuições re-levantes. Para além dos pouco conhecidos dados a respeito da comunidade africana maranhense, cabe destacar a abordagem do comércio de escravos na Guiné, que foge dos modelos clássicos ao mostrar que o tráfico não implicou centralização política naquela região. Vale ainda mencionar a sofisticada aná-lise a respeito da implantação da cultura do arroz no Maranhão, que articula vasta informação documental, um profundo conhecimento acerca do cultivo de arroz no Novo e no Velho Mundo e uma reflexão sobre o comércio atlântico colonial. O autor estabelece um diálogo com a chamada “tese do arroz ne-gro”, segundo a qual o conhecimento técnico para o plantio do arroz na Amé-

rica teria sido trazido pelos africanos da Alta Guiné. Comparando as técnicas de cultivo na África e no Maranhão, o autor demonstra definitivamente que essa tese não pode ser estendida para o Brasil. Para ele, a natureza mercantil da colonização determinou as características ambientalmente predatórias do plantio, enquanto o conhecimento africano pôde ser preservado e empregado apenas nas etapas do beneficiamento e do preparo culinário. Daí, portanto, a ideia de que o arroz maranhense não seria nem “branco” e nem “negro”, mas “marrom”.

Do ponto de vista metodológico, From Africa to Brazilfundamenta-se em uma extensiva e sólida pesquisa documental. Embora falte em alguns mo-mentos uma crítica mais rigorosa de algumas fontes, o autor demonstra am-plo conhecimento, contemplando uma documentação heterogênea que vai de inventários maranhenses até relatos de viajantes na costa africana, passando pelas fontes inquisitoriais.

From Africa to Brazilnão interessa apenas aos especialistas na história do Maranhão, mas também a todos os estudiosos das culturas afro-americanas e do comércio atlântico de escravos. A obra de Hawthorne preenche uma lacuna importante, trazendo à luz as especificidades de realidades históricas pouco conhecidas na historiografia. Esta é sem dúvida, sua maior contribuição.

1 THORNTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo atlântico: 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
2 PARÉS, Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, p. 26.
3 Compare-se a perspectiva do autor com SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico: século XVIII. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008. 256 p. (Tese de doutorado – História Social); e SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Alexandre Almeida Marcussi – Doutorando em História Social Departamento de História da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP São Paulo – SP alexandremarcussi@gmail.com.