Entre o impossível e o necessário: esperança e rebeldia nos trajetos de mulheres sem-terra no Ceará | Paula Godinho, Adeaide Gonçalves e Lourdes Vicente

Como mensurar o interesse e a utilidade de um livro? Não somente de um texto, de um relato ou de uma história, mas do todo que constitui o objeto? Um caminho certamente é pensar naquilo que tal encontro desperta nos sentidos e traz como potencial de transformação ou elaboração. No quanto está em sincronia com as questões do próprio tempo, mas vai além e, por vezes intuitivamente, destila o que permanece, oferece o que não se esvai. Ou mesmo se traz mais do que seria suposto, não apenas porque se renova a cada leitura, mas pelo intangível que não controla, nem prevê, mas no qual seu todo participa. Seja por que caminho for, essas são balizas que podem guiar a leitura de Entre o impossível e o necessário: esperança e rebeldia nos trajetos de mulheres sem-terra no Ceará, lançado pela editora Expressão Popular no denso e tenso ano de 2020.

Composto por estudos e relatos correlacionados, mas que mantém independência entre si, tem a qualidade de que cada parte é mais do que se propõe a ser. Isto é, não seria incorreto dizer que o livro se centra em 15 relatos vida de 16 mulheres sem terra do Estado do Ceará, Nordeste do Brasil, a partir de entrevistas realizadas pela antropóloga portuguesa Paula Godinho, autora da introdução e do epílogo. É também organizado pela historiadora brasileira Adelaide Gonçalves e a pedagoga Lourdes Vicente, ambas professoras e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que também assinam o estudo “Essencial é a travessia”, como em Guimarães Rosa, à guisa de prefácio. Mas, depois de lido, dizer isso torna-se insuficiente ou inexato. Leia Mais

O fato e a fábula: o Ceará na escrita da história | Francisco Réges Lopes Ramos

O estudo do historiador Francisco Régis Lopes Ramos intitulado de O fato e a Fábula: O Ceará na escrita da História, publicado em 2012, trata da construção de uma determinada visão da História do Ceará, que vai se modificando ao longo do tempo. A partir de um recorte temporal de 1860 até 1970 – o objetivo de Régis Lopes é tomar a História do Ceará como objeto “que foi se legitimando na medida em que foi se constituindo”. O historiador Régis Lopes, atualmente Professor da Universidade Federal do Ceará, pós-doutor pela Universidade Federal Fluminense, tem estudos acerca da religiosidade, memória, ensino e teoria da História. No entanto, neste trabalho deve-se esclarecer que seu interesse não é privilegiar os autores estudados “já feitos”, mas esses autores em seus “fazer-se”, que vão “aperfeiçoando” seus conhecimentos “na medida em que o tempo vai passando”. Esses autores são José de Alencar, Alencar Araripe, Cruz Filho, Raimundo Girão, Filgueira Sampaio, Pedro Théberge, Senador Pompeu, entre outros. Ao se centrar na “cultura letrada” (na ilha dos letrados), analisa o tema da História do Ceará através de autores, livros e obras de História do Ceará, especificamente de autores cearenses, ‘partindo’ de José de Alencar – literato cearense. Iracema, Sertanejo, Troco do Ipê entre outras, são obras (assim como outras de outros escritores) que perpassam boa parte do livro, possibilitando ao historiador pesar historicamente concepção do “passado” do Ceará. Até mesmo a percepção de uma construção da imagem de autores que se deu como fundamental para composição desse “passado” – muitas vezes imaginado – do Ceará. José de Alencar, o “filho ilustre da terra”, não por acaso, entra na obra de Cruz e Souza, História do Ceará – resumo didático (1931), como um cearense de (merecido) destaque. Uma certa interação entre a escrita sobre o Ceará e a escrita de livros didáticos no Estado é perceptível.

No entanto, a análise histórica de Régis não se trata de uma “perspectiva tradicional de história das ideias”, como ele mesmo destaca, como se o passado cearense fosse “algo dado” pela natureza e ao pesquisado resta-lhe “apenas descobri-lo”; trata-se, entretanto, de uma “inexistência do objeto em si mesmo”, de modo que legitime-se a “crença” no passado cearense. Régis Lopes inicia sua análise do ponto que diz respeito “a parte e o todo”. A partir da orientação pioneira, a escrita da História do Brasil não deveria desprezar as singularidades das províncias, pois estas deveriam se manter unidas (fazendo parte do “todo”). Contudo, o norte do trabalho parte da preocupação em como escrever a História do Brasil levando em consideração as particularidades de cada parte (províncias) relevantes e fundamentais para o todo (Brasil); de modo que essa História do Brasil não pareça um aglomerado “de histórias especiais de cada uma das províncias”, como afirma Régis citando Martius. Desse modo, a presente obra direciona-se para o papel de autores cearenses, “na história e na literatura”, que buscaram evidenciar a importância do Ceará para a História do Brasil, no interesse de, no presente, construir a ideia de um Ceará “louvável e correto.”

No estudo de obras como Iracema (1865), de José de Alencar, e História da Província do Ceará (1867), de Alencar Araripe, o autor parte da ideia de que essas obras são exemplos de “escrita militante”, pela qual seus autores buscaram “figurações do passado” na tentativa de imaginar um passado para o Ceará, destacando o intuito de construção de uma “nacionalidade”, pelos intelectuais do século XIX, através da qual procuraria efetivar um passado cearense que seria “transladado ao presente, (…) filtrado, digerido e transformado em força.”Isto está explicito no material didático organizado por Joaquim Nogueira publicado em 1921, no seu livro Ano Escolar. Nesta, Nogueira indicava orientações pedagógicas entre as quais havia o intuito de o trabalho do professor seguir o pressuposto de um tempo linear, pontuando os feitos ilustres na lógica de causa e consequência – precisava-se, portanto, “criar” fundadores para o Ceará. Nessa disputa e trânsito de valores, permeado de escolhas, elaboram-se datas e fatos (célebres) através de uma “narrativa sedutora (…), com uma trama bem urdida para atrair a atenção do leitor e (…) torna-lo cúmplice partícipe da história que ele lê e da qual participa como cearense que procura conhecer o passado para amar o presente.”

Assim, o que s destaca na oba é o interesse de modelar um determinado discurso para a História do Ceará que atendeu às demandas específicas do espaço-tempo em que os intelectuais cearenses estavam inseridos. É importante salientar em O Fato e a Fábula a necessidade que esses intelectuais tinham de legitimar tais considerações para com o passado do Ceará através do ensino, pois se acreditava na importância dos estudantes saberem terma e autores que trataram do Ceará. Dessa forma, tais operações historiográficas se davam no sentido de “civilizar” o povo através do ensino da história, uma verdadeira “missão” que as “ilhas de letrados” detinham. O capítulo XIX “Começo, meio e fim” é destacável para perceber a dimensão do ensino, neste capítulo Régis destaca os quatro livros didáticos mais usados, de algum modo, nas escolas cearenses. Os livros são: História da Província do Ceará (1867) de Alencar Araripe, a já citada de Cruz Filho, uma de Raimundo Girão, Pequena História do Ceará (1953), e História do Ceará de Filgueira de Sampaio; Lopes procura entender na análise dessas obras como se constitui “o enquadramento do tempo para dar conta do espaço delimitado como o Ceará”. O final de cada livro é o presente de cada autor, por isso observam-se temas como o pioneirismo cearense na Abolição, as secas, a migração ao Acre, e mesmo figuras tidas como importante, como Humberto Castello Branco – o “bravo cearense” – no capitulo “O Ceará na Presidência.” é destacável, pois esse se dedicou aos livros didáticos.

Além de destacar a importância que o ensino de História do Ceará teve para tais autores, Régis também ressalta a importância que esses autores deram à escrita da História cearense. De forma geral “estava em jogo a legitimidade tanto da História do Ceará quanto do historiador cearense”. A obra do historiador é pontual quando procura conceber que o passado cearense não é “algo dado” de modo que os autores e as obras vão se constituindo, construindo o conhecimento de acordo como passar do tempo. Por isso, afirma que tal “objeto”: o passado do Ceará em si inexiste, havendo apenas uma “crença” nesse passado, pois “se não fosse o objeto da crença, a própria crença nem poderia sonhar em existir”. Publicado em 2012, quando é evidente o debate atual acerca do trabalho docente, do conhecimento histórico, do conhecimento escolar, dos métodos de exames (ENEM, por exemplo), o livro possibilita uma reflexão acerca do próprio fazer historiográfico e do ser historiador, principalmente quando se percebe a discussão entre o “local” e o “nacional”, o “cearense” e o “brasileiro”.

Raul Victor Vieira Ávila de Agrela.


RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: o Ceará na escrita da história. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2012. Resenha de: AGRELA, Raul Victor Vieira Ávila de. Sobre o fato Ceará: acerca da fábula cearense. Cantareira. Niterói, n.20, p. 129- 131, jan./jul., 2014. Acessar publicação original [DR]

Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses – CUNHA (REF)

CUNHA, Cecília Maria. Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008. 232 p. Resenha de: NOVAES, Mariana de Souza. Escritoras cearenses do século XIX. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.3 Sept./Dec. 2009.

O resgate da atuação e da ação de mulheres ao longo da história ainda se torna pertinente em pleno século XXI. Felizmente, hoje, muitas pesquisas têm sido feitas a fim de mostrar a importância exercida pela mulher tanto na história quanto na literatura, nas artes plásticas, na política, na educação e na imprensa, como esta, de Cecília Maria Cunha, que vem nos revelar o que há muito tempo ficou escondido ou esquecido: a produção feminina. Ainda assim, há muito a ser feito a despeito de esforços como o de Cunha. é preciso considerar que grande parte da produção literária feminina se encontra ausente nos estudos acadêmicos e, dessa maneira, esquecida dos leitores. Urge, pois, reapresentar as letras femininas, apontando sua importância na história da literatura.

A pesquisa de Cecília Cunha – mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba – é pioneira. Através de uma investigação minuciosa e detalhada, a autora apresenta o estudo e o resgate dos primórdios das letras femininas cearenses. A ensaísta faz um recorte do final do século XIX até as duas primeiras décadas do século XX e expõe um panorama da imprensa, da literatura e da situação feminina tanto no Ceará quanto no restante do país.

Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses organiza-se em duas partes. A primeira trata da situação da mulher naquela época: a educação que recebiam; a participação na história do Brasil – o momento da abolição e da chegada da corte ao país – ; e a influência europeia na cultura e na educação das mulheres.

Vale destacar, como um dos pontos mais relevantes de sua pesquisa, o estudo sobre a imprensa feminina cearense e da imprensa feminina brasileira, embora Cecília Cunha não se aprofunde nesta última. Para a pesquisadora, a imprensa se configura como o principal e o primeiro instrumento de inserção das mulheres nas letras e, portanto, como meio de divulgação dos seus trabalhos literários. Ela apresenta diversas autoras que escreveram e colaboraram em jornais, revistas e almanaques femininos (ou não necessariamente só femininos), além de fundarem muitos deles, durante os séculos XIX e XX. Dá-nos a conhecer nomes de importantes escritoras, como Francisca Clotilde – considerada uma das mais presentes na literatura cearense – , Emília de Freitas, Ana Facó, Alba Valdez e Maria da Câmara Bormann, que foram objeto de estudo de sua dissertação de mestrado, agora publicada.

Há que se ressaltar que, na pesquisa de Cecília Cunha, encontram-se informações valiosas a respeito de jornais da época, como O Lyrio, Orvalho e Sexo Feminino. Já na segunda parte, a autora investiga e decompõe a obra literária de quatro escritoras, a saber: Emília Freitas, autora do romance A rainha do ignoto; Francisca Clotilde, ousada, escreveu sobre o divórcio em A divorciada; Alba Valdez, memorialista na sua novela Dias de Luz; e Ana Faço, com Páginas íntimas. Além disso, há, também, a crítica recebida por suas produções.

Deve-se destacar, ainda, os dados preciosos contidos nos rodapés, em que estão as fontes de estudo e de pesquisa utilizadas pela autora, informações importantes sobre as escritoras e os jornais cearenses e, também, algumas observações de indispensável leitura. Merece lembrança a presença de ilustrações de jornais que circulavam na época e de excertos de publicações das escritoras cearenses.

Além do amor e das flores: primeiras escritoras cearenses é, pois, uma excelente contribuição no conhecimento da literatura dos séculos passados e, sobretudo, para aqueles que estudam e pesquisam a literatura brasileira de autoria feminina. Cecília Cunha reacende e resgata as letras produzidas por mulheres na literatura que nos antecedeu. O estudo trata-se, nas palavras da própria autora, de “uma verdadeira arqueologia literária”, de “escavações nos porões do silêncio”.

Mariana de Souza Novaes – Universidade Federal de Minas Gerais

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A Santa Cruz do deserto: a comunidade igualitária do Caldeirão: 1920 – 1937 | Tarcísio Marcos de Alves

ALVES, Tarcísio Marcos de. A Santa Cruz do deserto: a comunidade igualitária do Caldeirão: 1920 – 1937. Recife: Néctar, 2008. Resenha de: SILVA, Edson. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.25, n.2, p.349-354, jul./dez. 2007.

Acesso apenas pelo link original [DR]

O Trabalhador Gráfico (Edição fac-similar) / Adelaide Gonçalves e Allyson Bruno

A História sempre teve incontáveis narradores, em quaisquer épocas e lugares. Sabese, porém, que nem todas as narrativas se prestam à construção da História dita “oficial”. Por isto, em seu laborioso trabalho de fabricar mitos e heróis, os escribas da Corte se esmeram em filtrar informações, descartando aquelas que antagonizam a autoridade de plantão e alijando para os bastidores personagens que eventualmente desagradam, incomodam ou – suprema ousadia – afrontam as forças dominantes.

Preciosas versões dos acontecimentos acabam, dessa forma, desaparecendo nos desvãos do tempo. O que é lamentável, pois muitas vezes a face oculta dos conflitos, dos pactos e celebrações, dos pequenos e grandes inventos e descobertas, guarda informações imprescindíveis: a crônica do soldado revela-se mais rica e colorida que a do general; a do peão, mais contundente e esclarecedora que a do patrão.

Felizmente, vem-se disseminando a consciência de que há essa outra História para ser contada e, sobretudo no ambiente acadêmico, os pesquisadores têm-se dedicando ao resgate de uma memória que, por conta do descaso – quando não, da destruição consciente – ameaçava perder-se para sempre. Na Universidade Federal do Ceará, a Profª Adelaide Gonçalves, do Curso de História, lidera um trabalho de extraordinário alcance, voltado em especial para o restauro da crônica operária. Fragmentos representados por jornais, panfletos, manifestos, programas partidários, hinos, fotografias, revistas e outras peças ligadas ao mundo do trabalho têm sido pacientemente recolhidos, resultando em contribuição inestimável para o patrimônio imaterial de nossa gente.

Em “A imprensa libertária do Ceará – 1908-1922”, lançado pelas Edições UFC e Sindicato dos Jornalistas, em 2001, Adelaide reproduz alguns jornais que difundiram as teses libertárias no início do Século XX. Ao analisar esse período, ela se reporta à violência policial exercida contra aquelas folhas. Revela, como exemplo do arbítrio, a invasão da tipografia de O Operário, de Camocim, em 1928, e a prisão de seu editor, Francisco Theodoro Rodrigues.

Trabalho do mesmo alcance e significado é “Ceará Socialista – Anno 1919”, também apresentado ao público no ano passado, sob a mesma chancela editorial. Aqui é mostrada, em fac-símiles, a coleção completa daquele semanário, reunida ao longo de laboriosa busca em arquivos públicos e particulares.Agora, em parceria com Allyson Bruno, e sempre com o selo das Edições UFC e apoio do Sindicato dos Jornalistas, a Profª Adelaide entrega ao público “O Trabalhador Gráfico”, onde reproduz a coleção inteira desse jornal, preservada pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Gráficas no Estado do Ceará.

Realça, em todo o trabalho desenvolvido a partir do Curso de História da UFC, a preocupação em socializar resultados. A publicação dos dados coletados, em edição facsimilar, amplia o sentido da pesquisa, na medida em que facilita o acesso a um material que jazia nas gavetas do esquecimento e, assim, pedagogicamente, contribui para disseminar a consciência da preservação da memória. Enriquece ainda mais a iniciativa o estudo preliminar inserido nessas publicações, onde os pesquisadores analisam o material coletado, lançam um olhar crítico sobre seu conteúdo, interpretam tendências e sublinham pormenores que não poderiam passar despercebidos.

Em sua maioria de pequeno formato e duração efêmera, parcos de recursos técnicos e beirando a indigência em termos financeiros, os jornais operários que circularam no Ceará no Século XIX e início do Século XX enquadram-se na tradição dessa imprensa, que se voltava para a defesa do emergente movimento dos trabalhadores e que, heroicamente, procurava evidenciar as contradições do sistema vigente. Como acontecia no resto do País, os periódicos da província empenhavam-se na denúncia das condições gerais de trabalho, sem dispensar as intervenções de caráter doutrinário. Antes de mais nada, procuravam mobilizar o trabalhador para a luta, destacando-se pelo vigor dos seus editoriais, inspirados tanto nas questões locais quanto nos princípios do internacionalismo proletário.

O papel desses periódicos na sociedade seria reconhecido pelos profissionais presentes ao 1º Congresso Brasileiro de Jornalismo, realizado no Rio, em setembro de 1918. Entre as recomendações emitidas, ao final do evento, contemplavam-se temas ainda atuais nos dias de hoje, como a imprescindibilidade da ética jornalística, a necessidade da escola de jornalismo e o cuidado que deveriam ter os editores diante da publicidade nociva e do noticiário policial.

Com relação à imprensa operária, o documento recomendava às classes trabalhadoras fundar e manter órgãos de comunicação ligados às suas corporações, “pelos quais sejam afirmados os seus intuitos e os seus propósitos, com a elevação da linguagem indispensável à defesa de todas as causas justas”.

Protótipo desse gênero de periodismo, o Trabalhador Gráfico é entendido, pelos pesquisadores da UFC, como “uma das expressões da luta e do ascenso do movimento dos trabalhadores no Ceará, nos anos de 1920”. Órgão do Sindicato dos Trabalhadores Gráficos, recém-fundado, reunia não apenas dirigentes da categoria, mas também militantes de outros ofícios, alguns deles ligados ao Bloco Operário e Camponês (BOC). Seus artigos e editoriais, seções e colunas são um rico manancial de informações sobre os personagens e temas que aqueciam o movimento operário cearense naquela época. Circulou entre abril e outubro de 1930 e, no primeiro número, ao apresentar suas credenciais, descarta a idéia de ser “uma tribuna em que se discutem assuntos políticos ou religiosos, científicos ou literários”. Queria, talvez, exorcizar-se com relação à pasmaceira e mediocridade imperantes nos pasquins da intelectualidade burguesa. Preferia ser uma “bigorna onde muitos malhos rebatam, produzindo um só ruído – o de despertar a classe de operários gráficos do Ceará dessa modorra letárgica em que se acha”.

O projeto do jornal era, pois, tornar-se uma ferramenta da conscientização e mobilização de toda uma categoria profissional, que parecia, na época, indiferente ao próprio destino. A poderosa simbologia da bigorna e do malho sugere o propósito de ter a organização sindical um instrumento forte para fazer ressoar uma nova mensagem, aguilhoar os sonolentos gráficos, que, segundo o editorialista, se mostravam apáticos diante dos ideais que então agitavam outros segmentos dos trabalhadores. “É este o único motivo que nos trouxe à arena”, arremata o texto de primeira página.

Bigorna, malho, arena… Fica patenteada a disposição para a luta. E as armas são vigorosos instrumentos de trabalho que, metaforicamente, deveriam traduzir o poder da palavra escrita. Assim era o Trabalhador Gráfico. Assim se comportava a imprensa operária naqueles tempos de medo e arbítrio, quando, malgrado o tacão dos poderosos, começavam a disseminar-se idéias renovadoras, no mesmo ritmo em que se forjava a consciência de classe e se aglutinavam, em sindicatos, as hostes dos oprimidos. Ao reconstituir a memória da imprensa operária, os pesquisadores do Curso de História fazem pulsar de novo as manchetes e textos flamejantes que incitavam o trabalhador a defender os seus direitos. Para os que não se contentam em conhecer apenas a transcrição oficial da história – ou seja, a narrativa produzida sob encomenda, inspiração e com total aprovo das elites – a leitura de “O Trabalhador Gráfico” é um convite à reflexão sobre o nosso passado recente e, quem sabe, um guia para os embates futuros.

Italo Gurgel – Universidade Federal do Ceará


GONÇALVES, Adelaide; BRUNO, Allyson (Orgs.) O Trabalhador Gráfico (Edição fac-similar) Fortaleza: Edições UFC, 2002. Resenha de: GURGEL, Italo. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.3, 2002. Acessar publicação original. [IF].