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Roman Temples, Shrines and Temene in Israel – OVADIAH; TURNHEIM (Topoi)
OVADIAH, Asher; TURNHEIM, Yehudit. Roman Temples, Shrines and Temene in Israel. Roma: Giorgio Bretschneider Editore, 2011. 155páginas e 78 pranchas. Resenha de: BASTOS, Marcio Teixeira. Espaços sagrados na Palestina romana: arqueologia, imperialismo e a multiplicidade ritual no Oriente Médio. Topoi v.17 n.32 Rio de Janeiro Jan./June 2016.
Asher Ovadiah e Yehudit Turnheim oferecem um trabalho pioneiro de pesquisa que contribui amplamente para o estudo da arquitetura e da cultura material associada aos lugares de culto em Israel; assim como para a investigação das distintas manifestações daquilo que foi considerado sagrado no período romano e a ocupação das múltiplas topografias na região. Este é o primeiro livro a tratar da arquitetura dos templos erigidos em Israel e da cultura material associada a ocupação dos templos, santuários e témenos no período romano (em seu contexto maior, a parte sul da extensa Província da Síria Romana e suas consequentes transformações). O estado de conservação dos sítios arqueológicos, o número limitado de escavações e a escassez de publicações sobre templos romanos escavados nessa parte do império são obstáculos que limitam a imagem e abrangência do esforço de abordagem feito pelos dois arqueólogos da Universidade de Tel Aviv na tentativa de reconstrução de práticas e lugares de culto em Israel durante esse período. A faixa cronológica dos templos, santuários e témenos discutidos neste livro se estende ao longo de um período que compreende desde o reinado de Herodes até o início da dinastia Dioleciana (primeiro século AEC até terceiro século EC).
Os autores decidiram não separar a discussão entre santuários e templos, e em alguns casos eles são apresentados conjuntamente. Um olhar apurado sobre a lista apresentada na obra mostra claramente quão variado e diferentes entre si são estes complexos. O livro é dividido em duas partes distintas: na primeira, são abordados onze sítios arqueológicos e seus respectivos santuários e templos; na segunda parte, é apresentada uma discussão de treze outros lugares, baseada essencialmente em fontes históricas, literárias, epigráficas e numismáticas, mais do que em vestígios das edificações nos sítios arqueológicos na região. Convém salientar que alguns dos sítios abordados nunca foram escavados, como é o caso da Caverna de Elijah, no Monte Carmelo; e outros sítios arqueológicos escavados não têm até hoje seus resultados completos de escavação publicados. Esse é o caso do santuário de Paneas (Banias), e dos três templos localizados em Citópolis (Beth Shean), que foram escavados há mais de dez anos e ainda aguardam a publicação completa e resultados finais dos trabalhos executados.
Nesse mesmo sentido, os autores apresentaram crítica ao trabalho desenvolvido pela Universidade de Minnesota no templo de Omrit, na Alta Galileia, salientando que até aquele momento nenhum resultado havia sido publicado sobre o sítio. Contudo, durante o mesmo ano de edição do livro aqui resenhado, Andrew Overman e Daniel Schowalter publicaram os resultados preliminares das escavações no templo de Omrit (J. Andrew Overman e Daniel N. Schowalter, The Roman Temple Complex at Horvat Omrit: An interim report, BAR International Series 2205). A crítica de Ovadiah e Turnheim não ficou sem resposta. Dois anos depois, Andrew Overman em resenha para o Journal of Roman Archaeology (2013, vl. 26, p. 877-878) procurou rebater as assertivas analisando o livro dos autores. Por sua vez, Arthur Segal, da Universidade de Haifa, em resenha publicada em 2011 (Roman Temples, Shrines and Temene in Israel, Israel Exploration Journal, v. 61, n. 2, p. 242-246) já havia alertado para a dificuldade que os autores enfrentaram na tentativa de proporcionar uma imagem balanceada do que foi denominado como “Arquitetura do Culto Romano em Israel”. Apesar de tais críticas, é preciso salientar que, em função do quadro variado e obstáculos de acesso à informação, Ovadiah e Turnheim chegaram à conclusão de que não é aconselhável, para o momento, estabelecer uma tipologia de construção para as edificações dos templos e santuários romanos em Israel.
Na primeira parte do livro (que corresponde a onze sítios arqueológicos) são abordados: 1 – Paneas-Banias / Cesareia Philippi; 2 – Horvat Omrit; 3 – Templo de Baal Shamin, em Kedesh; 4 – Beth Shean / Citópolis; 5 – Caverna de Elijah, Monte Carmelo; 6 – Dor; 7 – Cesareia Marítima; 8 – Samaria-Sebaste; 9 – Templo de Zeus Hypsistos, Monte Gerizim; 10 – Jerusalem / Aelia Capitolina; 11 – Témenos de Elonei Manre e Me’arat Hamachpelah / Tumba dos Patriarcas, em Hebrom. Já na segunda parte os treze lugares que compõem a obra são apresentados sob o título “Varia“. São eles: Keren Naphtali / Khirbet Harrawi; Bethsaida; Hippos / Sussita; Tiberíades; Beset; Acre (Akko) / Ptolemais; Antipátrida (Aphek) / Antipatris; Jaffa / Jope; Beth Guvrin / Eleutheropolis; Ascalon / Askelon; Gaza; e Elusa / Halutza. O Epílogo finaliza o livro e um apêndice sobre as fontes literárias, bem como a reprodução das fotos dos sítios arqueológicos, são providos no final da obra.
Os templos e santuários dedicados a Pan e outros deuses, situado no sopé da caverna de Paneas em Banias, na Alta Galileia, é um local que formou, na Antiguidade, um fascinante complexo religioso. Porém, como referido, poucos resultados das escavações foram publicados em mais de dez anos após o fim das atividades. Nesse sentido, merece destaque o estudo da cerâmica ritual encontrada no sítio. O estudo feito por Andrea Berlin, da Universidade do Minnesota, em The Archaeology of Ritual: The Sanctuary of Pan at Banias/Caesarea Philippi apresenta excelente descrição das possíveis atividades realizadas no local. Nesse contexto de escassez de publicações, a descrição do sítio apresentada por Ovadiah e Tunheim é uma fonte essencial para compreender o espaço, uma vez que tem por base, principalmente, os relatórios preliminares de escavação, além da obra de Zvi Uri Ma’oz, Baniyas in the Graeco-Roman Period: A History Based on the Excavations. No livro é possível encontrar uma análise das fontes escritas, epigráficas e numismáticas relacionadas com o sítio. Os autores procuraram utilizar toda a informação disponível, a fim de proporcionar, na medida do possível, uma imagem objetiva dos templos e santuários descritos nessa obra.
Figura 1 Santuário de Omrit, Alta Galileia (Foto: Marcio Teixeira Bastos)
No santuário de Omrit, que ainda passa por escavações realizadas pela equipe da Universidade de Minnesota (Macalester College), foram descobertos três templos romanos. O templo mais antigo foi erguido no primeiro século AEC, talvez nos tempos de Herodes. O segundo, que teve um plano tetrastilo períptero, foi construído no final do primeiro século AEC ou início do primeiro século EC, enquanto o terceiro templo, com um plano hexastilo períptero, seria uma expansão de seu antecessor e teria sido construído no decorrer do segundo século EC. Mesmo que a escavação ainda esteja em curso, não há dúvidas de que este sítio é um dos mais impressionantes templos romanos encontrados em Israel. A respeito de Horvat Omrit, os autores inferem que possivelmente o sítio serviu como um claro referencial paisagístico, assim como para propósitos eróticos e orgásticos de culto. Contudo, nada em Omrit parece sustentar essa especulação e mais evidências são necessárias para tal inferência.
As escavações no magnífico templo de Hippos/Sussita e algumas recentes publicações têm consideravelmente impactado o modo como tem sido entendido e abordado o leste do mar da Galileia e as cidades da Decápolis, brevemente abordadas pelos autores no livro. Arthur Segal e uma equipe de pesquisa da Universidade de Haifa têm publicado consistentemente sobre o tema nos últimos anos (SEGAL, Arthur et al. Hippos-Sussita of the Decapolis. The first twelve seasons of excavations 2000-2011. v. I, Haifa: The Zinman Institute of Archaeology, University of Haifa, 2013 ).
Ainda na primeira parte do livro, uma detalhada descrição do Templo de Baal Shamin em Kedesh (escavado por Ovadiah, Fischer e Roll em 1984) é apresentada. Sem dúvida um trabalho de fôlego sobre um templo romano preservado em estado satisfatório (os resultados das escavação desse sítio foram publicados amplamente). A respeito da caverna no Monte Carmelo, o questionamento de Overman sobre a estrutura ali existente é válido: trata-se de templo, santuário ou témenos? Provavelmente nenhuma dessas opções, como Ovadiah e Turnheim afirmam, tendo em vista que não existe evidência da ocupação da caverna em período romano. Assim, as duas páginas sobre esse sítio dependem em maior medida de algumas fontes literárias, notadamente Tácito (Hist. 2.78), que também afirma não haver um templo no lugar, mas considera que a “tradição da Antiguidade” reconhecia no local a presença de um altar e associação sagrada.
Assim, conforme salienta Mircea Eliade em O sagrado e o profano: a essência das religiões, dentro das práticas de consagração dos espaços, a valorização e a desvalorização de locais sagrados organiza uma hierarquização dos lugares e dos territórios. Isto contribui para o fortalecimento e/ou enfraquecimento do referencial de territórios ocupados na composição dos espaços. A seleção e consagração dos lugares depende em maior medida da capacidade que uma dada modalidade do sagrado tem de criar tipos de associação e uma rede de memórias atreladas à irrupção do sagrado naquele determinado contexto. As edificações sagradas e, portanto, os lugares em que elas se encontram, contribuem para a inteligibilidade associativa do que é considerado sacro e do que é considerado profano.
Entre os capítulos VII e VIII, Ovadiah e Turnheim descrevem dois templos erigidos sob a patronagem de Herodes durante o primeiro século AEC em honra e culto ao imperador Augusto. Estes são o Augusteum de Cesareia Marítima e o Augusteum de Samaria-Sebaste. Contudo, as publicações sobre Cesareia Marítima são mais consistentes para os estudiosos que procuram aprofundar o entendimento a respeito do sítio (ver HOLUM, Kenneth et al. Caesarea reports and studies: excavations 1995-2007. Oxford: Archaeopress, 2008 e PATRICH, Joseph. Studies in the archaeology and history of Caesarea Maritima. Leiden; Boston: Brill, 2011). Apesar dos poucos itens de decoração arquitetônica desenterrados e dos comprometidos segmentos das paredes das fundações do templo, o esforço de pesquisa dos autores proporciona uma imagem crível do santuário, construído sobre uma plataforma artificial na costa do Mediterrâneo, a alguns metros do porto da cidade (nominado de Sebastos). Melhor preservado estava o Augusteum em Samaria-Sebaste, localizado no ponto mais alto da cidade, como parte de outro magnífico santuário. Embora escavado na primeira metade do século XX por equipes norte-americanas e britânicas, as pesquisas estão ainda em desacordo a respeito dos estágios de construção e do plano do templo (REISNER, George Andrew; FISHER, Clarence Stanley; LYON, David Gordon. Harvard Excavations at Samaria, 1980-1910. Cambridge: Harvard University Press, 1924, 2v.; CROWFOOT, John Winter; KENYON, Kathleen Mary; SUKENIK, Eleazar Lipa. The Buildings at Samaria I. London, Palestine Exploration Fund, 1942; Netzer, E. The Augusteum at Samaria-Sebaste: A New Outlook. Eretz-Israel, v. 19, 1987, p. 97-105). O livro de Ovadiah e Turnheim oferece aqui um excelente material comparativo e elucidativo para compreender a questão.
Pouco restou do templo de Zeus Hypsistos, escavado em Tell er-Ras em Monte Gerizim. Entretanto, a escavação e a riqueza de informações numismáticas e das fontes históricas permitiram uma reconstrução dos planos do santuário e do templo (MAGEN, Yitzhak. Mount Gerizim; MAGEN, Yitzhak. Flavia-Neapolis, Shekhem in the Roman Period. Jerusalém: Israel Exploration Society, 2005). O templo teria um plano tetrastilo períptero, com o santuário retangular construído em dois níveis. Esse templo contava com uma via de procissão (a via sacra) que consistia basicamente em uma longa escada sobre a íngreme encosta da montanha conduzindo diretamente ao santuário no topo do monte. A via sacra ramificava-se a partir da principal via colunata da cidade. No que diz respeito aos quatro templos erigidos em Jerusalém, após ser refundada e renomeada como Élia Capitolina (Aelia Capitolina) em 130 EC, estes lugares foram dedicados às divindades de Zeus/Júpiter, Aphrodite/Venus, Asclepius/Serapis e Tyche/Fortuna, respectivamente. A informação sobre estes templos deriva essencialmente de fontes históricas, literárias e numismáticas, uma vez que pouquíssimos vestígios arqueológicos restaram destas edificações, em grande medida devido ao processo de cristianização da Palestina a partir do quarto século EC. Nesse sentido, assim como a Caverna de Elijah, no Monte Carmelo, seria mais apropriado alocar estes lugares na segunda parte do livro.
A primeira parte do livro encerra-se com a discussão dos dois témenos encontrados nas imediações de Hebron: o témenos de Elonei Mamre e o de Me’arat Hamachpelah (Tumba dos Patriarcas). As edificações foram construídas no final do primeiro século EC, ao que parece no mesmo período em que foram construídos o Augusteum de Cesareia Marítima (e também o de Samaria-Sebaste). Porém, não existe uma relação objetiva entre estas edificações. Os témenos claramente possuem inspiração Oriental e consistem em duas praças retangulares abertas, formada por paredes com sólidos blocos de rocha. Nestes espaços reuniam-se os participantes das cerimônias comunais e ritualísticas. Novamente se torna pertinente a pergunta: como podemos diferenciar estas estruturas? Basicamente, a origem de témenos está associada à escrita micênica Linear B e seu conceito surge associado a um terreno delimitado e consagrado a um deus, portanto, excluído dos usos seculares. O conceito também pode aplicar-se ao topos do bosque sagrado, ou, de modo genérico, à sacralização de uma dada paisagem (Carl Jung em Psicologia y alquimia associa o termo ao conceito do circulo mágico, que atua como um espécie de “lugar seguro”, onde se pode “trabalhar” mentalmente). Contudo, o sentido atribuído a témenos pelos autores está ligado a uma porção de terra em um domínio oficial, especialmente separada para um basileo (soberano) ou anax (rei supremo). Cabe dizer que tal definição necessitaria estar mais evidente no texto.
Muito foi feito em relação ao estudo dos sítios arqueológicos na transição do período Helenístico para o período romano na região e um número cada vez mais elevado de publicações pode ser consultado pelos estudiosos que se dedicam a este amplo e importante tópico de pesquisa. Bem como todos os que pretendem aprofundar seus conhecimentos no tema. Dessa forma, o livro de Ovadiah e Ternheim fornece uma abordagem holística singular sobre o tema que habilita os estudiosos a traçar seus próprios caminhos de pesquisa. No entanto, entre os importantes sítios não contemplados neste livro, merece menção Sepphoris-Zippori, escavado por Zeev Weiss da Universidade Hebraica de Jerusalém, e a publicação do templo romano From Roman temple to Byzantine church: a preliminar report on Sepphoris in transition.
Na segunda parte do livro, treze lugares são abordados de maneira concisa. Embora breves, todas as descrições são baseadas em evidências históricas, epigráficas e numismáticas, com suas respectivas correspondências nos vestígios das edificações, quando presentes. O livro termina com um epílogo. A importância desta breve conclusão, de apenas seis páginas, reside principalmente na análise dos diferentes tipos de fontes empregadas pelos autores na pesquisa. São listados os nomes das dezoito divindades às quais os santuários e templos foram dedicados em Israel e a bibliografia é acompanhada na sequência pela organização de pranchas com ilustrações dos sítios arqueológicos abordados.
Ao final desta resenha é importante relembrar uma das observações presente no prefácio do livro: os sítios da região passaram por profundas modificações materiais ao longo dos séculos. De fato, a deterioração dos templos e santuários pela erosão e outros agentes naturais (entre os quais terremotos que atingiram a região), e a destruição causada por roubo e pilhagem na Antiguidade, bem como o surgimento e o crescimento do cristianismo, são fatores capitais de mudança. A paisagem da Palestina foi radicalmente transformada com a ascensão do cristianismo no Oriente, apropriando sítios, destruindo e reconstruindo templos e santuários, promovendo, assim, a ressacralização dos lugares. Alguns destes complexos religiosos foram deliberadamente “esquecidos” e/ou destruídos na Antiguidade Tardia (quinto e sexto séculos EC) por ordem das autoridades cristãs e imperadores bizantinos, ou convertidos em igrejas e monastérios. Outros tantos foram demolidos pelas gerações posteriores, ou passaram por distintos processos pós-deposicionais (desastres naturais, incêndios, conquistas etc.). Como afirmou Lucrecio, uma faísca aqui e outra ali provoca um incêndio generalizado.
O número residual de templos romanos sobreviventes em Israel é muito pequeno se comparado à evidência e à preservação dos templos no Líbano, Jordânia e na Síria. A razão para esta discrepância parece ser evidente: as montanhas pouco povoadas e de difícil acesso do Líbano, o tamanho e a distância destas áreas na Síria e Jordânia, além da perda do controle da região durante a Idade Média. No entanto, as fontes literárias, as analogias arqueológico-arquitetônicas e as evidências circunstanciais, fornecem informações suficientes para a compreensão dos contextos e das transformações ocorridas na Antiguidade nessa região. As percepções culturais evidenciadas nestes lugares sagrados e os complexos religiosos do período romano em Israel demonstram como o imperialismo romano atuou eficazmente através da religião e como a veneração e adoração de muitas e variadas divindades dos panteões orientais e greco-romanos foram combinadas e consubstanciadas, fomentando a multiplicidade ritual do período. Além disso, é permitido supor que estes sítios arqueológicos, templos e santuários, demonstram não somente a realidade arquitetônica, mas também a atmosfera religiosa-cultual do período.
Entretanto, não é possível encerrar essa resenha a respeito dos templos romanos em Israel sem a profunda lástima sobre a destruição dos templos de Baal-Shamin (convertido em igreja no quinto século EC) e Baal (Bel) em Palmyra. Assim como sobre o descalabro que foi acometido o arqueólogo sírio Khaled al-Asaad da Universidade de Damasco, brutalmente assasinado pelo extremismo monoteísta islâmico do grupo autodenominado Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) ou Estado Islâmico do Iraque e da Síria (EIIS). O mundo contemporâneo testemunha mais uma onda de destruição de sítios arqueológicos, considerados Patrimônio da Humanidade, e a supressão intencional da memória coletiva. E assim, assistimos mais uma versão escabrosa de extremismo monoteísta e fundamentalismo religioso, que insiste em não saber conviver com a multiplicidade ritual presente em todas as sociedades do globo. Quando o objetivo de um grupo social atenta contra a vida e a memória dos povos, é nesse momento que se tornam mais significativas as palavras de Peter Burke: a função do Historiador (e essencialmente do Arqueólogo) é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer.
Marcio Teixeira Bastos – Doutorando cotutela em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), São Paulo, SP, Brasil e da Universidade de Tel Aviv (TAU), Israel, com período de pesquisa na Universidade de Durham, Reino Unido (2013-2014 – bolsa Bepe-Fapesp). Bolsista Fapesp. E-mail: marcio_quisleu@yahoo.com.br.
Espaço sagrado: estudo em geografia da religião – GIL FILHO (BGG)
GIL FILHO, Sylvio Fausto. Espaço sagrado: estudo em geografia da religião. Curitiba: IBPEX, 2008. 163p. Resenha de: BONJARDIM, Solimar Guindo Messias. Boletim Goiano de Geografia. v. 31 n. 1 (2011): jan./jun. 2011.
Sylvio Fausto Gil Filho, autor do livro apresentado, é geógrafo e professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná. Escreve e atua na área de Geografia Humana, especificamente em Geografia da Religião, Epistemologia da Geografia e Geografia Cultural. É pesquisador do Núcleo de Estudos em Espaço e Representações (NEER), e do Núcleo Paranaense de Pesquisa em Religião (NUPE). Além deste livro, escreveu e participou da organização de outros e até o momento tem mais de nove capítulos de livros escritos e diversos artigos em revistas especializadas.
Com relação ao livro resenhado Espaço sagrado: estudo em geografia da religião, ele foi pensado por Gil Filho com o objetivo de auxiliar alunos de pós-graduação no estudo do fenômeno religioso, tomando como categoria primordial o espaço sagrado. O texto discute a categoria “espaço sagrado” como chave para a interpretação da religião em suas diversas expressões no mundo. Ele enfatiza que o estudo da religião, em sua obra, está relacionado à análise das representações religiosas, com foco na religião como forma simbólica. A discussão é resultado de pesquisas realizadas pelo autor no período de 1998 a 2007. Alguns capítulos constituem-se em adaptações de artigos publicados e, de modo geral, o conjunto da obra apresenta como tema central a religião e sua inserção na Geografia.
Gil Filho ressalta que o principal conceito para o estudo da religião é o sagrado, pois, sem este, o estudo perde a essência, fica limitado ao físico, ao visível, ou seja, seu entendimento acaba distorcido. A partir do sagrado, o autor desenvolve outras categorias que auxiliam o processo de estudo da Geografia da religião, como poder, representação, discurso religioso, identidade e territorialidade.
Para alcançar o que se propôs, a obra foi dividida em seis capítulos, além da apresentação, introdução e considerações finais. O autor integra ao livro, no final de cada capítulo, uma síntese do que foi discutido com atividades de autoavaliação e de aprendizagem que incluem questões para reflexão e, ainda, atividades aplicadas – relacionadas à aplicação prática do que foi discutido no capítulo. No final do livro, acrescentou ainda um glossário dos conceitos, além de referências e bibliografia comentada.
A obra conta também com as respostas das atividades objetivas e direcionamento para as questões subjetivas.
O autor inicia com as “Bases Conceituais”, momento no qual esclarece sobre os conceitos-base do livro: sagrado, poder e representações simbólicas e a interrelação entre eles. Para estudar o sagrado, é de suma importância observar as representações simbólicas que, muitas vezes, existem pelo exercício do poder. O sagrado de uma religião é visto e revisto por meio de formas simbólicas. Este pode até vir da psique, mas vem principalmente de sua constituição histórica, da essência do mundo, de representações que remetem o homem ao sagrado, à religião. A partir do sagrado de cada religião, constituem-se a Geografia e a importância das representações e do poder exercido pela religião. Estes conceitos constroem uma integração entre a teoria das representações sociais e a teoria do fenômeno religioso para aprofundar a reflexão. O poder entra como chave para se entender a espacialização do sagrado; por meio do poder a instituição religiosa mantém e faz funcionar o seu espaço sagrado.
O autor encerra o capítulo fazendo uma observação muito interessante sobre o sagrado, ao afirmar que ele só é visto dentro da religião, do território religioso, porém, para ser entendido, precisa das representações.
Vale dizer que o sagrado não está somente na percepção das formas e do seu conteúdo, mas também nos atos que a ele remetem.
No segundo capítulo “Limites do Campo Religioso”, Gil Filho discute a concepção de vários autores para refletir sobre o processo de secularização e o sistema simbólico do sagrado como limites do campo religioso. Estudos recentes mostram que o processo de secularização acontece de maneira diferente no mundo todo. Na verdade, a secularização está proporcionando um crescimento do número de fiéis em algumas partes, principalmente por oferecer proteção contra impulsos anárquicos.
É como se as pessoas recorressem à religião para viver no mundo moderno. Segundo o autor, isso acontece porque a religião foi edificada na própria natureza das coisas (“as sociedades foram forjadas na religião”). Mesmo tendo sido desarraigada de antigos pontos de sustentação, ela tem pilares de sobrevivência, mostrando, inclusive, crescimento, além de ser propícia a explicar aquilo que de comum e constante existe no mundo, ao invés do que há de extraordinário.
Para conservar o campo religioso, a religião utiliza um sistema simbólico que cultiva fluxos de poder, com a intervenção de sacerdotes em geral. E a partir do momento em que o sistema simbólico é incorporado, cria-se o habitus religioso, que será a representação religiosa incorporada ao modo de vida da sociedade e do indivíduo – as práticas religiosas sendo incorporadas à identidade.
No terceiro capítulo “O Espaço Sagrado e suas Espacialidades”, o autor discute como encarar o sagrado em um momento de pluralismo religioso, no qual os metadiscursos deixam de ser utilizados como legitimadores.
A pós-modernidade forma um discurso religioso dinâmico, multifacetado, pela acessibilidade à informação existente. A religião perde seu papel de objeto de análise e começa a ser vista como forma de conhecimento, por isso, está mais voltada para o simbólico, os ritos e as singularidades. Isto é, como o homem e suas atividades estão voltados para o universo simbólico, o que faz parte desse processo é da ordem simbólica, como linguagem, mito e religião.
Nesse caminho, o espaço sagrado agora precisa ser entendido e desconstruído no espaço-tempo, principalmente porque o tempo é heterogêneo, voltado apenas para a sequência de acontecimentos. O tempo é caracterizado de acordo com o sentido dos aspectos culturais, históricos e de acordo com as singularidades de cada período. Assim, o espaço sagrado torna o estudo operacional. Por meio da apropriação dos espaços sagrados, têm-se as espacialidades religiosas que o autor classifica em três: concreta de expressões religiosas (que se refere ao concreto, ex: tempo religioso), espacialidade das representações simbólicas (que se refere ao plano da linguagem, ex: discurso religioso) e espacialidade do pensamento religioso (referente ao propositivo, ex: sentimento religioso).
Essas dimensões abarcam todos os pontos do estudo da Geografia da Religião.
No quarto capítulo “Formação da Identidade Religiosa e do Discurso Religioso”, Gil Filho analisa como a identidade do indivíduo é afetada pelo discurso religioso. A ação institucional da religião ganha sentido quando se verifica que o discurso embute no indivíduo transformações identitárias. Por isso, o discurso religioso é parte integrante (essencial) do sagrado. Para manter o espaço sagrado, ou mesmo o expandir, as religiões utilizam representações, dentre elas o poder do discurso religioso, que é dinâmico, tem temporalidade específica e sempre será formulado de acordo com a vida cotidiana da sociedade receptora.
Por conseguinte, mesmo com o ajustamento do discurso, o teor baseado na verdade ou apontado para a verdade não é transformado.
Percebe-se que, em alguns casos, o discurso ou está voltado para perpetuar o elo com o passado ou é repensando numa lógica para o futuro. Nesta reformulação, existe o risco de verdades que levam a novos habitus. Então, a religião para manter seu sagrado, o espaço sagrado, utiliza discursos com tendência à monossemia, mas sempre sob a vertente daquele que fala do e pelo sagrado. O rito do discurso religioso, portanto, constrói a identidade dos crentes.
No penúltimo capítulo, Gil Filho apresenta as categorias: “Espaço de Representação e Territorialidade do Sagrado”, que também dão nome ao capítulo. O espaço de representação é apresentado com base nos estudos de Mosse (1991), que discute a representação na política como relações de poder. Ao trazer o sagrado para esta discussão, o autor enfatiza que a representação tem o papel de tornar familiar o não familiar, criando identidade com o espaço, neste caso religioso e sagrado.
Para que um espaço seja sagrado, ele necessita de características que se identifiquem com a religião. Essas características constituem-se nas representações. A existência dos espaços de representação acontece com o controle e legitimação/apropriação desses por parte da instituição dominante. O domínio se dá por diversos fatores, entre os quais encontram-se os discursos, simbolismos e ritos, que exercem poder nesses espaços, formando territórios sagrados. Os territórios quando controlados e legitimados trazem a noção de territorialidade. Esta define as fronteiras de alcance do poder (os limites do território), isto é, o limite de onde o espaço passa de sagrado a profano. Vale ressaltar que a territorialidade do sagrado seria a percepção dos limites de controle e da gestão do espaço sagrado por parte da instituição religiosa.
O autor relaciona conceitos ligados tanto ao espaço de representação quanto à territorialidade do sagrado. Tais conceitos embasam a discussão para o entendimento da instituição religiosa como a materialização concreta da religião e a religiosidade como sua essência. Vale ressaltar que, neste capítulo, o estudo da religião na Geografia fica explícito por meio de um de seus elementos centrais: a territorialidade do sagrado.
No sexto e último capítulo da obra, intitulado “Estruturas das Territorialidades Religiosas: Cristianismo Católico, Islã Shi’i e Fé Bahá’í”, o autor discute a aplicação do conteúdo apresentado ao estudar, em três religiões, os lugares sagrados de cada uma, suas características e estruturas da territorialidade. De início, esclarece que o espaço urbano contemporâneo caracteriza-se por uma maior concentração de espaçosrepresentação, que formam os territórios e territorialidades das religiões.
Os espaços-representação são pontos de difusão do poder, sendo ligados aos lugares sagrados, que são os epicentros do sagrado. Dos lugares sagrados para cada uma das religiões citadas o autor desenvolve as estruturas e representações das territorialidades sagradas: […] estruturas da territorialidade católica a partir da instituição Igreja. […] peculiaridades das estruturas da territorialidade do islã shi’i, enfocando a instituição do Imanato e a estrutura de poder dos ulemás. […] a peregrinação bahá’í e as marcas na paisagem religiosa construídas a partir dessa religião. (p. VIII) Nas “Considerações finais”, encontram-se a reafirmação dos principais conceitos e a necessidade, na visão do autor, de uma epistemologia específica para a Geografia da Religião.
O livro é rico em informações, profundo e claro nas discussões dos conceitos tratados. Percebe-se uma preocupação do autor em se fazer entender e, principalmente, em promover esclarecimentos sobre estudos da religião na Geografia. As questões elaboradas nas atividades práticas elucidam os estudos sobre a religião. Além disso, a obra nos mostra, por meio de suas indagações, os cuidados necessários ao pesquisador quando em contato com certos labirintos nas pesquisas.
Solimar Guindo Messias Bonjardim – Doutoranda do Núcleo de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe.
Boletim Goiano de Geografia. v. 31 n. 1 (2011): jan./jun. 2011.