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Os primeiros passos dos escritos em línguas vernáculas na idade média / História e Cultura / 2016
Em 1400, o teólogo da universidade de Paris, Jean Gerson, na obra La Montaigne de contemplation, tomava a iniciativa de escrever em vernáculo para aconselhar as gentes simples sobre os exercícios introspectivos de devoção, considerando que alguns clérigos poderiam se espantar com o fato de ele escrever em francês sobre uma matéria considerada, na época, elevada e complexa, digna apenas de ser tratada em latim. Contudo, sua escolha pelo vernáculo, como ele mesmo confessa, não foi despropositada, já que visava facilitar a divulgação do conteúdo da obra para um público mais vasto, isto é, pessoas menos instruídas e que não falavam outra língua que não fosse o francês. Ponto de vista semelhante é o de Álvaro da Mota, religioso português que, no século XV, ao traduzir do latim para o vernáculo a Vida de D. Telo, diz fazê-lo para que um número maior de fiéis tivesse contato com os ensinamentos contidos nessa hagiografia. A despeito da distância geográfica que separava esses dois eclesiásticos, ambos apontavam, do mesmo modo, o escrito em vernáculo como ferramenta chave para disseminar o conhecimento cristão.
Desde o século VIII, os concílios exortavam os padres a pregarem em língua vulgar. Posteriormente, por volta do século XIII, a pregação em língua vernácula aos poucos invadiu o terreno da escrita, os sermões passaram, então, a ser compostos e conservados nessas línguas, formando assim um material de leitura de natureza religiosa e edificante voltado para clérigos, mas visando igualmente a correção dos laicos. Se, nesse época, tais escritos começaram a ganhar fôlego, foi nos séculos XIV e XV que se multiplicaram e se tornaram mais difundidos. Essa ampliação da escrita vernácula não se restringiu, entretanto, ao domínio religioso, mas também se estendeu à produção de escritos laicais, como textos administrativos das cortes, tratados médicos, obras jurídicas, crônicas e romances de cavalaria. Nas terras latinas e em outros cantos da cristandade, se o poder eclesiástico apostou no vernáculo como veículo catequético, o poder temporal, por sua vez, o utilizou, tanto para promover regras no âmbito da corte, quanto para dinamizar o sistema administrativo da coroa. Mais precisamente, de um lado, eclesiásticos tornaram os manuais em vernáculo um dos instrumentos indispensáveis da política de pregação; do outro, leigos eruditos passaram a adotar o vulgar para textualizar o mundo, redigir história dos reinos, leis, relatos de viagens e conselhos para os nobres.
Abrindo o dossiê, o artigo de Fernando Ferrari, Nuove e strane e Meravigliose cose: As alterações nas práticas de leitura das traduções do Relatio de Odorico de Pordenone (1330) reflete sobre a circulação da obra deste viajante franciscano em diferentes lugares, como no norte da Península Itálica, Reino da França e das Ilhas Britânicas. Na sequência, o autor Thiago Borges explora como os mapas foram enriquecidos com explicações redigidas em vernáculo no estudo Textos e imagens do mundo medieval: as representações cartográficas entre as línguas clássicas e vernáculas (séculos VIII-XVI). Logo depois, é a vez de Jorge Vianna analisar, no trabalho Em defesa da monarquia imperial: Dante Alighieri e sua linguagem política contra o poder do papado medieval, o papel do vernáculo como instrumento de legitimação do poder monárquico na Península Itálica central. Continuando, Renan Birro reflete sobre a relação entre a poética vernácula e a absorção da fé cristã, no trabalho Sobre matadores de dragões: alusões poéticas ao herói Sigurdr Fáfnisbani e ao arcanjo Miguel na poesia escandinava do século XI. Outro autor a compor esta série é Dominique dos Santos que, no artigo A tradição Clássica e o desenvolvimento da escrita Vernacular na Early Christian Irland: algumas considerações sobre a matéria troiana e a Togail Troí, explora as heranças legadas pela Antiguidade na Irlanda medieval.
Além de trabalhos voltados para o mundo nórdico ou terras além-Pirineus, este dossiê apresenta um conjunto de estudos que abordam o universo dos escritos em vernáculo na Península Ibérica. O primeiro desses textos é do autor Ricardo Shibata que, no artigo Cultura Clássica e literatura vernacular no século XV em Castela e Portugal, discute as traduções, no ambiente das cortes régias, de obras da Antiguidade para o português e castelhano. Dando sequência, Carolina Ferro, no estudo A livraria de D. Duarte (1433-1438) e seus livros em linguagem, explora os esforços desse governante para a escrita no universo dos reis de Avis. Em seguida, André Silva, no trabalho A literatura devocional em língua vernácula e a reforma dos cuidados com os enfermos no Portugal tardo-medieval: a caridade, a assistência e a misericórdia, analisa em que medida os escritos em vernáculo contribuíram para a promoção das práticas de assistência aos enfermos. Por fim, a autora Kátia Michelan aborda, no estudo A escrita de um feito inglório: o cerco português a Tânger, em 1437, as diferentes narrativas que reportavam as expedições bélicas portuguesas no Norte da África.
A partir do papel político e social que os escritos em língua vernácula alcançaram em diferentes cantos europeus entre os séculos XII e XVI, o presente dossiê visa, desse modo, interrogar os usos desses materiais na construção e transmissão de saberes, na dispersão da fé e na consolidação dos reinos cristãos.
Leandro Alves Teodoro – Professor Doutor. Pós-dourando em história pela UNESP / campus Franca, bolsista FAPESP / CAPES e professor do programa de pós-graduação em História dessa mesma instituição. Membro do projeto “Temático escritos sobre os Novos Mundos”, financiado pela FAPESP.
Letícia Gonçalves Alfeu de Almeida – Professora Mestre. Doutoranda em história pela UNESP / campus Franca, bolsista CNPQ. Membro do projeto “Temático escritos sobre os Novos Mundos”, financiado pela FAPESP.
Organizadores
TEODORO, Leandro Alves; ALMEIDA, Letícia Gonçalves Alfeu de. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 5, n. 1, mar., 2016. Acessar publicação original [DR]
Escritos e Imagens do Mundo Luso-Brasileiro (séculos XIII-XVIII) / História (Unesp) / 2015
História (São Paulo), principal periódico editado pelos Programas de Pós-Graduação em História da UNESP de Franca e Assis, apresenta aos seus leitores uma nova edição (volume 34, número 1). Além de uma entrevista gentilmente concedida pela medievalista francesa Adeline Rucquoi, que se destacou como diretora de pesquisa do Centre de Recherches Historiques de L’École des Hautes Études en Sciences Sociales e que apresenta uma reflexão sobre sua trajetória como medievalista e sobre o estado dos estudos em história medieval na França atual, o número traz um instigante conjunto de textos dedicados à árdua tarefa de compreender a edificação, entre os séculos XIII e XVIII, de dois mundos que, ao longo de suas histórias, estiveram em vários aspectos fundidos ou, ao menos, articulados.
Resultado da colaboração de historiadores portugueses e brasileiros, o dossiê Escritos e Imagens do Mundo Luso-Brasileiro (séculos XIII-XVIII) conta com estudos que abordam aspectos políticos, sociais e culturais das sociedades portuguesa e brasileira e contemplam desde instrumentos administrativos até formas de saber partilhados ao longo dos séculos em questão. Da configuração do mundo urbano vista a partir de textos produzidos por órgãos e poderes administrativos portugueses dos séculos XIII ao XV, passando por outras facetas institucionais – como os instrumentos legais de justiça, a corregedoria do reino português, a centralização do poder, as medidas preventivas e as práticas terapêuticas – e pelo universo das crenças religiosas e políticas, o dossiê invade o terreno dos escritos e das imagens e sua força nos diálogos atlânticos.
Na seção de artigos de temática livre, o leitor deparar-se-á com diversos estudos sobre temas políticos e intelectuais. Entre os principais pontos abordados destacam-se: a difusão da propaganda fascista no Estado de São Paulo e suas consequências nas relações diplomáticas entre o governo brasileiro e Mussolini, entre as décadas de 20 e 40 do século XX; a peculiar interpretação do Estado Novo, realizada nos anos 40 pelo ideólogo e editor da revista Cultura Política, Almir de Andrade; e o estudo do Carimbó, “expressão típica da musicalidade cabocla do Pará e da Amazônia”. Ilustram ainda a seção análises sobre: as crenças e temores de homens e mulheres das Minas Gerais do século XVIII, as relações políticas entre o governador paranaense Ney Braga e o presidente João Goulart como pano de fundo do “golpe civil-militar de 1964” no Paraná; a relação entre a apropriação da terra e a criação de porcos na área da chamada Floresta Ombrófila Mista; e, finalmente, sobre a reforma da instrução pública colocada em prática nos anos 20 do século passado. O presente número da História (São Paulo), dando continuidade à sua proposta de difundir não apenas artigos originais, traz ainda sua já tradicional seção de resenhas.
O Conselho Editorial da História (São Paulo) gostaria, por fim, de agradecer ao CNPq e à Pró-Reitoria de Pesquisa da UNESP pelos suportes financeiros concedidos e, em especial, à Professora Livre-Docente Susani Silveira Lemos França, pesquisadora do PPG-História da UNESP de Franca, pelo empenho dedicado à publicação bilíngue do dossiê que nomeia esta edição.
José Carlos Barreiro – UNESP – Campus de Assis
Ricardo Alexandre Ferreira – UNESP – Campus de Franca
BARREIRO, José Carlos; FERREIRA, Ricardo Alexandre. Apresentação. História (São Paulo), Franca, v.34, n.1, 2015. Acessar publicação original [DR]